“Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!” (Lc 12,49)
À primeira vista, o evangelho deste 20º Domingo do Tempo Comum pode provocar um certo mal-estar e nos deixar com um sabor amargo; dá a sensação de que Jesus veio para trazer fogo (um incêndio provocado) e divisão. Isto seria incoerente com seu modo de viver e sua mensagem.
Em primeiro lugar, é preciso nos conectar com o evangelho do domingo anterior onde Jesus afirmava que “foi do agrado do Pai nos confiar o Reino”. Se compreendemos bem tal afirmação, que implicações e exigências têm para nós, seus(suas) seguidores(as)?
Fazer caminho com Jesus não é para as pessoas “frias” ou “mornas” em seu modo de viver. Seguimento implica calor humano, paixão, emoção...; seguir é ser fogo, reavivar o fogo interior, iluminar, dar calor...
Jesus não veio provocar um incêndio destruidor. Ele nos fala da imagem do fogo como elemento que limpa e purifica, usado tanto pelos camponeses (“limpará completamente sua eira; recolherá seu trigo no celeiro, mas queimará a palha em fogo inextinguível” – Mt 3,12), como por aquele que busca purificar o ouro, “que é provado no fogo” (1 Pd 1,7). Em qualquer caso, a imagem do fogo era muito eloquente para os primeiros cristãos, também provados no fogo da perseguição, que deixava a descoberto a pureza e solidez de sua fé.
João Batista também fala de Jesus como aquele que “batizará com Espírito Santo e fogo” (Mt 3,11). E esta promessa se cumpre em Pentecostes: “Apareceram línguas como de fogo... Todos ficaram cheios do Espírito Santo” (At 2,3). Também os discípulos de Emaús sentiram arder seus corações quando escutavam as palavras do Ressuscitado, que caminhava junto deles. Teresa de Jesus entendeu isso bem quando fala da “alma” como uma mariposa que se aproxima do Fogo, até ficar transformada, ela mesma, em fogo.
A imagem do “fogo” nos desafia a nos aproximar da pessoa de Jesus e viver o seguimento de maneira mais ardente e apaixonada. Pois seguir Jesus não é questão de razão, mas de afeto, de atração, de sedução...
O fogo que ardia no interior de Jesus era a paixão pelo Reinado do Pai e a compaixão pelos que sofriam. Jamais poderá ser des-velado esse amor insondável que o animava e o fazia arder em seu compromisso com a vida. O mistério de sua vida nunca poderá ficar contido em fórmulas dogmáticas nem em livros de sábios teólogos. Jesus atraia e queimava, perturbava e purificava. Ninguém podia segui-lo com o coração apagado ou com uma piedade estéril.
Sua palavra, sua liberdade, seu estilo de vida... fez arder os corações de todos aqueles que dele se aproxi-maram: revelou sua presença amistosa junto aos mais excluídos, despertou a esperança e a confiança nos pecadores mais desprezados, lutou contra tudo aquilo que violentava o ser humano, combateu os formalismos religiosos, os rigorismos desumanos e as interpretações estreitas da lei. Nada e nem ninguém podia bloquear sua liberdade e impedi-lo de fazer o bem.
Nunca poderemos segui-lo vivendo na rotina das práticas religiosas ou no convencionalismo do “politica-mente correto”. Nenhuma religião nos protegerá de seu olhar provocante. Nenhuma doutrina nos livrará de seu desafio. Jesus está nos chamando a viver na verdade e amar sem reservas. Isso queima!
A maneira livre de Jesus viver, junto com a fidelidade à missão confiada pelo Pai, fez com que sua vida se tornasse questionadora, e inclusive provocativa, para aqueles que se encontravam instalados em posições de poder e que não estavam dispostos a modificar. Por este motivo, a atitude e o comportamento de Jesus sempre foi fonte de tensão, conflito ou divisão. E assim deve ser entendida toda sua vida.
Jesus, com o seu modo original de ser e viver, acendia os conflitos, não os apagava. Não veio trazer falsa tranquilidade, mas tensões, enfrentamentos e divisões. Na realidade, Ele introduziu o conflito no próprio coração do ser humano. E isso comprometia inclusive a vida e a unidade das famílias. Até ali chegou a radicalidade da mensagem de Jesus, pois Ele mesmo foi incompreendido pelos seus próprios familiares, foi desprezado, traído e crucificado pelo seu povo.
Há um traço na personalidade de Jesus que os Evangelhos destacam: Ele era um “transgressor”.
Sua transgressão decorria da percepção de situações extremamente injustas vigentes na sociedade e das quais as primeiras vítimas eram os excluídos. Jesus optou por ficar do lado das vítimas.
Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.
Jesus não buscou o conflito (já que trazia uma mensagem de amor e fraternidade) mas conheceu uma das experiências conflitivas mais dramáticas da história humana. Falar em conflito na missão de Jesus é o mesmo que falar da sua fidelidade. O que tem valor em sua vida é seu Amor fiel, e não os conflitos em si mesmos. A dimensão conflitiva da fidelidade de Jesus é o resultado do confronto entre sua missão (que anuncia a justiça do Reino e as bem-aventuranças) e a realidade que não quer ouvir e rejeita a novidade do Reino.
A conflituosidade na vida de Jesus proveio do choque entre as exigências do Amor e a realidade injusta e pecadora. Jesus não cria conflitos; Ele os constata ao dar testemunho das exigências do Amor.
Evidentemente, as palavras e a vida de Jesus nos mostram que Ele foi portador de paz, mas não uma paz sem conflito. Muitas vezes, Ele nos recorda que trabalhar pelo Reino é um processo transformador que exige passar pela porta estreita, deixar-nos refazer até nascer de novo; neste caso, a paz não é comodidade, não é deixar as coisas como estão, mas viver um processo de transformação profunda, que costuma incluir despojamento e sofrimento.
O conflito também perpassa nossa vida pessoal, familiar e comunitária; não é acidente de percurso, é permanente: conflitos no interior da Igreja, no interior das comunidades; conflitos de origem social, cultural e político; conflitos gerados pela missão entre os pobres e pela defesa de seus direitos; conflitos de consciência, de lealdade; conflitos que se originam da missão profética da Igreja...
Mas, o que move a pessoa sábia não é o conflito por si mesmo, e sim o “fogo” interior que a habita. Um fogo que a torna firme e flexível ao mesmo tempo, respeitosa e apaixonada, amorosa e sagaz.
Esse “fogo” não é outra coisa que a expressão da Vida em nós. Se não lhe prestamos atenção e vivemos à margem dele, fica como apagado e morto. Nossa existência permanecerá marcada pela resignação e pelo conformismo. Quando, pelo contrário, mantemos a conexão consciente com a Vida que somos, o fogo se desperta até consumir-nos por completo. A partir daí, já não vive o eu, mas a Vida mesma em nós.
Texto bíblico: Lc. 12,49-53
Na oração: No contexto atual, a vivência cristã parece esvaziar-se, mas o fogo trazido por Jesus ao mundo continua ardendo debaixo das cinzas. Não podemos deixar que se apague. Sem fogo no coração não é possível segui-lo.
Assumir a causa de Jesus gera conflitos; mas o conflito é um “ensaio da esperança”, uma certeza de que o Espírito renova todas as coisas sobre a face da terra. O conflito é certeza da “novidade” que vem; por isso exige um discernimento permanente.
- Como crescer e amadurecer no conflito? Como viver o Evangelho no conflito? Como ser fiel à missão em meio aos conflitos?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.08.22
“Onde estiver o vosso tesouro, ali estará também o vosso coração” (Lc 12,34)
O evangelho deste 19º domingo do Tempo Comum nos apresenta um texto cheio de mensagens importantes sobre o seguimento de Jesus. O contexto deste relato é a compreensão do Reinado de Deus e as atitudes que são favoráveis para percebê-lo e acolhê-lo. Encontramo-nos no caminho, junto com Jesus, subindo em direção a Jerusalém; o texto evangélico nos mostra o Mestre da Galiléia liderando um novo movimento de vida e onde devemos investir para que a nossa vida tenha sentido e inspiração. Por isso, a alegoria do “tesouro” revela a busca do essencial e não se perder no que é supérfluo e caduco.
Um antigo relato oriental nos ajuda a compreender a alegoria do tesouro, usada por Jesus: quando os deuses criaram o homem, puseram nele algo de sua divindade; mas o homem fez um mal uso dessa divindade e os deuses decidiram tirá-la. Reuniram-se em grande assembleia para ver onde podiam esconder esse tesouro que lhe haviam dado. Um disse: “vamos colocá-lo no pico da montanha mais alta”. Um outro, porém, retrucou: “não, o homem acabará escalando a montanha e encontrará o tesouro”. Um outro disse: “vamos escondê-lo no fundo do oceano”. Mas, alguém respondeu: “Não, o homem poderá descer às profundezas e descobrir o tesouro”. Por fim, um terceiro disse: “Já sei onde vamos esconder esse tesouro: no mais profundo do coração do homem! Ali, ele nunca o buscará”.
A metáfora do tesouro, presente em diferentes tradições sapienciais, constitui um convite a encontrar ou descobrir aquilo que, mesmo sem saber, mais aspiramos: o que realmente somos, nossa identidade original.
E esta imagem contém várias indicações valiosas: o tesouro está aí, no nosso interior, todo o tempo; trata-se simplesmente de descobri-lo; não é algo separado de nós, nem algo daquilo que carecemos, mas justamen-te aquilo que somos. Quando o descobrimos, tudo o mais começa a ser visto como algo secundário; e essa descoberta se traduz em perene alegria.
Só podemos encontrar o tesouro dentro de nós se descermos ao chão de nossa vida. É normal que nós nos surpreendamos frente a frente com um “eu” desconhecido e pleno de recursos.
O caminho para o nosso tesouro passa pelo diálogo com as dimensões não integradas, com nossas paixões, com nossos problemas e fragilidades, nossas angústias e nossas feridas, com tudo quanto clama dentro de nós e consome nossa energia. A espiritualidade cristã nos mostra que exatamente nos “cascalhos” de nossa existência descobrimos o tesouro do nosso verdadeiro “eu”, escondido no fundo de nosso coração. Podemos, então, afirmar que o verdadeiro “tesouro” é o que há de Deus em nós.
Isto é o que somos: plenitude à qual nada nos falta, como cantava S. Teresa de Jesus: “Quem a Deus tem, nada lhe falta; só Deus basta”. Deus não é uma Presença separada que nos completaria a partir de fora, mas o “estado de presença” que constitui nossa identidade. E quando descobrimos o tesouro que é Deus, não há lugar para o medo (“não tenhais medo”).
“Foi do agrado do Pai nos confiar o Reino”. Este é o ponto de partida. “Não tenhais medo, estai prepa-rados, etc...” depende desta verdade. O Reino não é lugar ao qual iremos depois da morte; Jesus já havia dito em outro momento: “O Reino está dentro de vós”; portanto, é um espaço que já trazemos em nossa identidade profunda. Sem acolher esta realidade, não é fácil dispor-nos para conectar com o nosso eu verdadeiro.
Se o Reino é o tesouro encontrado, nada e nem ninguém poderá nos afastar dele. O sentido da nossa exis-tência está em descobrir o tesouro, tudo o mais virá espontaneamente. O Reino é o mesmo Deus escondido no mais profundo de nosso ser. Ele é a maior riqueza para todo ser humano. Todos os demais valores que podemos encontrar em nossa vida, devem estar subordinados ao valor supremo que é o Reino.
Este tesouro pode se expressar como “uma nova vitalidade e autenticidade, um sonho ousado, uma intuição, um dom especial, o encontro com o verdadeiro eu, a imagem que Deus faz de cada um de nós...”
O caminho para um novo sentido na vida passa pelo acesso ao nosso próprio coração. Aqui está o desafio que nos assusta, pois vivemos mergulhados numa cultura da superficialidade e da exterioridade.
“Descer” para as profundezas de nosso interior é a oportunidade para descobrir regiões novas e novos recursos, para ativar novas potencialidades, para encontrar aquele tesouro que facilitará uma contínua transformação na vida.
Isso requer coragem para passar por todas as regiões sombrias e chegar ao fundo. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que tínhamos perdido.
É preciso, portanto, “descer” até o chão de nossa humanidade para descobrirmos uma nova riqueza que iluminará a nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida.
O apelo de Jesus é para despertarmos, escavarmos, avançarmos na direção ao “veio de ouro” e de sabermos que este não é nossa propriedade; ele nos é oferecido com dom.
Mas não basta falar de “tesouro precioso”; é também necessário “escavar” nosso “chão interior”, alargar nosso coração, garimpar em direção às riquezas que estão no eu mais profundo, assim como o “fio de ouro” no meio dos cascalhos. Nosso interior é o campo que é preciso cavar (às vezes, profundamente) para fazer vir à tona aquilo que é mais nobre em cada um de nós.
O “tesouro no céu” não é algo que nós alcançamos graças ao esforço, nem é computado como mérito; é uma nova maneira de ser e de viver que emerge quando nos esvaziamos do “ego”, inflado e prepotente.
Quando acessamos à nossa nobreza interior, descobrimos o tesouro que seduz nosso coração; só assim a vida terá mais inspiração, criatividade e sentido.
Sabemos que o coração se enraíza ali onde está o bem mais valioso de nossa vida; a partir daqui, inicia-se um impulso em direção à plenitude que tanto almejamos; o seguimento de Jesus adquire uma nova feição e o Reino se revela transparente no nosso modo de ser e viver.
Esta é a chave da existência humana e da felicidade: ser conscientes de qual é nosso tesouro, o que consideramos mais valioso, pois o coração vai habitar aí. A proposta evangélica não se refere ao coração afetivo, mas ao coração existencial, esse centro vital a partir de onde fluem as profundas “moções” e dinamismos da vida autêntica. O coração é uma potência interior que é capaz de deixar transparecer a vida divina a partir da fonte para o exterior. E Jesus lhe dedicou uma bem-aventurança, uma afirmação chave para compreender este espaço de Deus: “felizes os que tem um coração puro porque verão a Deus”.
Texto bíblico: Lc 12,32-48
Na oração: Diante da presença de Deus, esteja aberto(a) ao contato com a própria realidade interior, para que venha à superfície aquilo que o(a) sustenta e dignifica o seu viver.
Dirija seu olhar para o mais profundo, onde nascem sentimentos e valores, decisões e gestos... onde você é convidado(a) a se alegrar com os rastros da Graça.
-Em que você investe sua vida, seu tempo mais importante, suas forças? Você busca o máximo que pode alcançar ou se conforma e se instala na mediocridade, com a falsa sensação de segurança e comodidade?
- Qual é o seu “tesouro” que pede um investimento afetivo, que alimenta um espírito de busca?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.08.22
“...a vida não consiste na abundância de bens” (Lc 12,15)
Na sua itinerância, Jesus se depara com situações inesperadas e que não tem nada a ver com o sentido de sua missão. Mas, como bom pedagogo, Ele aproveita de todas elas para mover as pessoas na direção do verdadeiro sentido da existência.
Como sabemos, as heranças sempre suscitam problemas e conflitos. E alguém, que devia se sentir prejudi-cado, pede a mediação de Jesus para conseguir uma melhor partilha dos bens.
Na sua resposta, destaca-se a liberdade de Jesus frente a esse tipo de questões, não só porque corta a petição pela raiz, mas pela parábola que narra a seguir. Nem Ele se considera “árbitro” em questões de herança, nem está preso pela cobiça. O que escutamos d’Ele é o ensinamento de um mestre livre que quer mostrar o caminho da verdadeira “riqueza”.
Todos temos experiência da perene e escorregadia tentação – uma mentira perigosa que aparece como verdade - de solucionar as inseguranças e medos de nosso eu através dos impulsos à cobiça que se aninham em nosso coração. Para Jesus Cristo, a primeira e maior tentação do coração humano é a “cobiça de riqueza”. Uma vez presos à cobiça, caminhamos, irremediavelmente, para a solidão, para o auto-centra-mento e desprezo dos outros.
Na parábola de hoje, o rico fazendeiro, em seu monólogo, revela o seu ideal de vida: acumular, ter vida longa, vida assegurada... Em seu horizonte de vida há uma terrível solidão: parece não ter esposa, filhos ou amigos. Não pensa nos camponeses que trabalham em suas terras. Seus verbos preferidos: acumular, armazenar e aumentar seu bem-estar material. Só se preocupa em “amassar riquezas para si”; todo o relato insiste no uso dos pronomes possessivos: minha colheita, meus celeiros, meus bens, minha vida... Ele não se dá conta de que vive fechado em si mesmo, prisioneiro de uma lógica que o desumaniza, esvaziando-o de toda dignidade.
Aumenta seus celeiros, mas não sabe ampliar o horizonte de sua vida. Aumenta sua riqueza, mas diminui e empobrece sua vida. Acumula bens, mas não conhece a amizade, o amor generoso, a alegria e a solidariedade. Não sabe compartilhar, só monopolizar. Que há de humano neste tipo de vida? A vida deste rico é um fracasso e uma insensatez, pois sua falsa segurança na posse dos bens vem abaixo. Quem vive centrado em si mesmo, perde a vida; quem vive para o eu, não é rico diante de Deus.
No percurso da vida humana surgem oportunidades em que a pessoa abre os olhos e se diz a si mesma, com enorme espanto: “na realidade, não fiz outra coisa que viver para mim mesmo”. Com as riquezas, com os saberes, com os próprios recursos ou o que for, ela se dá conta de que viveu “entesourando para si” e, de repente, essa forma de viver se revela como infecunda e sem sentido. É um momento privilegiado que pode ser muito duro e, ao mesmo tempo, muito fecundo, quando consegue sair dessa “situação viscosa” e centrar sua segurança em deixar-se conduzir pela mão providente de Deus (“ser rico para Deus). Sentirá a experiência de que foi tirada de sua “pasta egóica” pela mão de Deus e brotará em sua vida uma nova melodia de saída de si em direção à fraternidade, à partilha, ao encontro com o outro...
A eterna tentação da cobiça esconde uma necessidade, mais ou menos doentia, de segurança. Dado que o ser humano não pode renunciar à segurança, a questão é saber onde ele coloca sua segurança. Ao longo de nossa existência, é provável que o “lugar” onde a situamos vai se modificando: os pais, os amigos, os grupos, a profissão, a saúde, o dinheiro, as posses, as crenças, o prestígio...
O problema não se enraíza no fato de sentir necessidade de segurança, mas na ignorância à hora de querer afirmá-la. Colocar a segurança em qualquer realidade passageira é garantir a decepção, a frustração e o sofrimento. Essa é a primeira ignorância, porque nos faz tomar como “seguro” o que é transitório.
No evangelho deste domingo, Jesus usa a palavra “néscio” para referir-se a quem atua assim. Tal termo vem do verbo latino “nescio”, que significa literalmente “não sei”. “Néscio” é quem confunde o ter com o ser. “Néscio” é aquele que não sabe o que faz, aquele que vive perdido e ofuscado na ignorância e, em último termo, na inconsciência. Isso é viver identificado com o “ego”, na falsa ilusão de que essa é sua verdadeira identidade.
Agimos mal, a partir da cobiça, dos apegos a coisas e bens, da segurança em acumular... porque desconhe-cemos nossa riqueza interior, nossos recursos mais nobres, nossos dons mais originais... Perdemos o ca-minho do coração e “ajuntamos tesouros aqui na terra, onde a traça e a ferrugem destroem...”
No fundo, o evangelho deste domingo nos situa diante do grande dilema do “sentido de nossa existên-cia”: para quê vivemos? Sobre que valores queremos construir nossa vida?... O ser humano não é só um “animal racional”, ou um “animal afetivo”, mas é também um “animal de sentido”, o que é uma definição muito mais profunda. Ele precisa de um “sentido” para viver. E precisa disso tanto ou mais que os bens materiais necessários para sua vida. Sem sentido, sua vida se torna simplesmente sofrível, insuportável.
Uma pessoa espiritualmente anêmica enche sua existência com coisas e posses, mas isso não faz mais que aumentar sua sensação de vazio existencial. De fato, para viver uma existência verdadeiramente humana, é preciso cumulá-la de sentido, evitando que ela caia no vazio ou no absurdo.
O ser humano tem necessidade de uma causa pela qual viver, de canalizar todas as suas forças, seus desejos, energias, impulsos vitais e recursos internos e externos em direção a um horizonte de sentido no qual acredita intensamente (“ser rico para Deus”) E nele investir tudo o que é e possui, com intensa paixão.
Aqueles que são movidos por uma forte paixão, apostam que o ser humano tem potencial criador e foi feito para voar alto, para tentar, mil e uma vezes, alcançar cumes distantes.
Todo o percurso dos Evangelhos visa despertar em nós o “espírito de busca”, latente em todo ser humano. E a busca mais humanizadora é aquela do sentido, que brota com força do mais profundo de cada um, como um impulso vital que o move a construir uma existência inspirada e carregada de significado. O sentido aponta rumos e abre caminhos, alimenta a liberdade e ativa a criatividade.
“Viver a fundo” é não passar pela superfície da vida, acumulando bens e permanecendo refém de uma triste mediocridade. Há fomes existenciais, desejos mobilizadores e sonhos originais querendo encontrar canais amplos para jorrar. É preciso reaprender o caminho da própria interioridade para ativar a capacidade de amar, de vibrar, de buscar...
Deixemo-nos inspirar pelo Mestre da Galiléia!
Texto bíblico: Lc. 12,13-21
Na oração: O que ainda existe para ser descoberto em sua vida?
Há espaço para o novo? Ou está tudo amarrado, costurado nas bordas, selado contra qualquer surpresa?
- Onde você investe os melhores recursos de sua vida? Você encontra motivações para viver com mais inspiração?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.07.22
“Quando rezardes, dizei: ‘Abba’” (Lc 11,2)
Os evangelhos nos revelam que Jesus, em muitas ocasiões, se afastava de seus discípulos, do povo, dos espaços habituais, das atividades missionárias... para orar, sem deixar-se prender pelas necessidades urgentes, pelas expectativas de seus amigos e pelas ameaças de seus inimigos. Essa distância, que o fazia entrar em intimidade o Pai, ia gerando nele uma nova sensibilidade para perceber os acontecimentos e a ação do Pai no centro da realidade e assim poder anunciar a surpreendente notícia do Reino.
Sabemos que Jesus vivia uma profunda sintonia com o Pai; e esta sintonia se manifestava no seu modo de orar: Ele orava nos momentos difíceis; dava graças ao Pai e o louvava por ter revelado os mistérios do Reino aos pequenos; orava solicitando o perdão na Cruz para aqueles que o crucificavam; rezava nos momentos decisivos da missão: batismo, pregação, eleição dos discípulos, transfiguração...
Sua oração contagiava, despertava interesse nos outros até o ponto de seus amigos lhe pedirem que lhes ensinassem a orar, porque viam que Ele tinha outra profundidade e superava os formalismos e as orações recitadas de memória.
O que é mais original e revolucionário em Jesus é a atitude de dirigir-se abertamente ao Pai com palavras simples e emotivas, na linguagem de todos os dias. Na sua oração, Jesus revela um Deus Pai-Mãe, cheio de ternura e compaixão, que toma iniciativa e rompe as distâncias, entrando em comunhão com seus filhos e filhas. Por isso, a primeira palavra da oração de Jesus expressa um grito que ecoa além dos limites do espaço e do tempo. Jesus não disse “Deus nosso que estais no céu”, ou “Criador nosso”, ou “Todo-poderoso nosso”. É significativo que tenha dito “Abba”.
Uma característica comum na construção da “imagem” de Deus em todas as religiões é que Ele é intocável, incompreensível, todo-poderoso, transcendente... A oração de Jesus deixa transparecer não o Deus todo-poderoso, onipotente e onipresente, mas o Deus desejoso de interagir com seus filhos e construir uma rede de relações.
A oração de Jesus mostra um Deus que possui uma enorme sede de relacionamentos; Ele é um Pai que deseja entrar em diálogo com todos. É significativo que Jesus comece a falar de um Pai que quer se aproximar de todos, sem barreiras e preconceitos.
Fixando-nos em Jesus, os nossos olhos e o nosso coração aprendem, na graça do Espírito Santo, o caminho para o Pai. No nosso interior devemos sentir que rezamos continuamente.
Na oração de Jesus, nenhum ser humano foi excluído, nenhum errante foi rejeitado, nenhum sacrifício foi pedido, nenhum dogma proclamado, nenhuma lei estabelecida... Sua oração é instigante e provocativa, que nos liberta do cárcere da rotina, resgata-nos do entorpecimento e nos dá um choque de lucidez: a consciência de que somos conduzidos por uma presença amorosa. Não se pode rezar de qualquer jeito e com qualquer disposição a oração que o Senhor nos ensinou.
Para Jesus de Nazaré, Deus não quer que os seres humanos tremam em Sua presença, mas que tenham intimidade com Ele; não quer demonstrar poder que desperta medo, mas sensibilidade que alimenta proximidade; não quer controlá-los, mas fomentar sua liberdade.
Segundo Jesus, o Deus que se esconde atrás da cortina do tempo e do espaço não é um Deus juiz a ser temido, mas um Pai sensível, providente, cuidadoso, que quebra distâncias e se aproxima de todos.
Aproximando-nos da oração de Jesus, percebemos que tudo se concentra em torno à expressão vocativa que abre a oração: “Abba!”. É sempre em torno da descoberta do Pai que nos situamos. Mais do que rogar por esta ou por aquela necessidade ou interceder pela satisfação de qualquer carência, o que se pede a Deus é que Ele seja “Pai”. Segundo o Cardeal José Tolentino, “Pai!” é um grito íntimo e aberto de fé, de alegria, esperança e amor; um canto de reconhecimento pelo fato de sermos verdadeiros(as) filhos(as) de Deus. Mas é também uma súplica, um gemido, que brota do nosso ser mais profundo, reconhecendo a nossa distância, a nossa pequenez, a nossa fragilidade...
Através de sua oração, Jesus comunica aos seus discípulos e a todos nós o direito de também dizer “Abba”. Ele ativa em todos nós a participação na sua condição de Filho e, porque somos seus discípulos(as), abre a oportunidade de nos dirigir ao Pai celeste com a confiança de uma criança.
Aqui, o nosso desejo se orienta fraternalmente em direção ao próprio desejo de Jesus.
Temos a mesma Origem, a mesma Fonte que Jesus: “Eu e o Pai somos um” (Jo. 10,30); esta é uma frase que nós também podemos repetir.
Porque, neste momento, a vida que respira em nossos pulmões, que pulsa em nossos corações, não está separada da Fonte da Vida. É preciso, pois, tomar consciência desta relação com a Fonte do Ser que Jesus chama “Abba”, que é seu Pai e nosso Pai, é sua Origem e nossa origem, e também origem do mundo.
O coração do ser humano é este lugar onde o universo inteiro clama: “Abba, Pai-Mãe”.
Um monge do Monte Athos dizia: “Quando eu digo “Abba”, o mundo inteiro está presente”.
A oração revolucionária de Jesus, portanto, nos descentra e nos move em duas direções: na primeira, nosso olhar e nosso coração se dirigem ao Pai (santificação do seu Nome, vinda do seu Reino).
Na segunda, movidos por uma atitude filial, nos dirigimos às nossas necessidades (o pão, o perdão, a força contra a tentação).
Estas duas dimensões não devem jamais ser separadas, porque o Senhor as uniu em sua oração.
Invocar Deus como “Abba” nos irmana a todos, reforça nossos vínculos e nos expande a viver a comunhão com todos. Por isso, a invocação do “pão de cada dia” é um ato de fé e de abandono ao Pai celeste, o qual “bem sabe que precisais de tudo isto” e nos alimenta (Mt. 6,28-32).
É necessário pedir o pão, reconhecendo a nossa dependência para com a divina Providência. O fato de que Deus cuida de cada um de nós não é motivo para não estendermos a mão a Ele. Devemos fazê-lo, precisamente, para reconhecer a sua solicitude.
O cristão pede o “pão” para si e para os outros; ele não se sente como filho único de Deus, mas sim como membro de uma comunidade de irmãos.
“Dá-nos o pão nosso” significa também: “concede que saboreemos juntos o teu dom”.
Comer nunca significa um mero ato biológico de ingerir alimentos; é sempre um ato comunitário e um rito de comunhão. À mesa eucarística, onde se parte o pão do Senhor, o cristão aprende a partir e a partilhar o “pão de cada dia” com os outros.
Além disso, o pão que comemos esconde toda uma rede de relações anônimas; antes de chegar à mesa, ele passou pelo trabalho de muitos braços; há muitas lágrimas e suor escondidos em cada pão, como também há muito de solidariedade e partilha. Portanto, o pão que é produzido junto deve ser repartido junto e consumido junto.
A mesma necessidade básica nos iguala a todos; a satisfação coletiva nos confraterniza. Só então podemos, verdadeiramente, pedir: “o pão nosso de cada dia”. Rezamos a Deus para permanecermos “pobres”; a nossa única riqueza é o amor do Pai.
De fato, só o pobre pode fazer essa oração, porque crê que hoje e amanhã é Deus que o sustenta. Ele não pede coisas supérfluas, mas simplesmente um pedaço de pão para poder viver “hoje”. Não pede riquezas nem a abundância de bens terrenos, com os quais poderia assegurar o seu futuro; pede o que necessita, o que lhe é indispensável para viver hoje. Além disso, ele sabe que este pão falta a muitos; por isso, pede para si e para todos os necessitados como ele.
Nos lábios do rico esta oração soa como uma mentira.
Texto bíblico: Lc 11,1-13
Na oração: Rezar o Pai-Nosso utilizando o Segundo modo de orar, proposto por S. Inácio, ou seja,
“Contemplar o significado de cada palavra da oração”
- Dizer palavra por palavra. Ex: Pai-Nosso.
- Considerar esta palavra enquanto encontrar significados, sentidos novos, comparações, gosto e consolação, em considerações relacionadas com a mesma, sem se preocupar em passar adiante.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.07.2022
“Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas” (Lc 10,41
No evangelho de Lucas, o caminho de Jesus a Jerusalém marca uma progressiva manifestação do Reino. À medida que avança em seu percurso, Ele vai despertando e preparando seus(suas) seguidores(as) a viver as atitudes indispensáveis de um(a) verdadeiro(a) discípulo(a): a presença compassiva, o espírito de acolhida, o abandono das pretensões de poder, a escuta de sua Palavra... Tais atitudes exigem romper com o ritmo estressante da vida para que todos se coloquem, serena e atentamente, aos pés do Mestre. Esta eleição, que aos olhos da eficiência pode parecer superficial e inútil, é uma condição fundamental para chegar a ser um(a) autêntico(a) discípulo(a).
No seu caminho em direção a Jerusalém, o evangelho deste domingo nos revela que Jesus é recebido por duas irmãs, numa casa de família. Este episódio é algo surpreendente. Os discípulos que acompanham a Jesus desaparecem da cena. Lázaro, o irmão de Marta e Maria, está ausente. Na casa da pequena aldeia de Betânia, Jesus se encontra a sós com duas mulheres; ao hospedarem Jesus, o cotidiano de Marta e Maria se altera por completo; elas precisam modificar os próprios hábitos, os próprios ritmos, reordenar as próprias atenções e ocupações.
Com o “Senhor” em casa, tudo muda; graças a Ele, tudo deve encontrar uma nova “ordem”. Jesus, o pe-regrino sem casa, está no centro de todas as atenções que uma verdadeira hospitalidade exige. No entanto, Marta e Maria reagem de maneira diferente no encontro com o Mestre ilustre.
Aqui nos deparamos com duas atitudes diferentes. Uma, de total atenção e escuta; outra, de ansiedade, devi-do aos afazeres habituais e distração. Maria, sentada aos pés de Jesus, põe-se à escuta das suas palavras; Marta, ao invés, fica totalmente tomada pelas tarefas e preocupações.
Acolhendo-O e escutando-O, Maria encontra paz, serenidade, tempo, expectativa; Marta, ao contrário, não consegue encontrar a paz; agita-se, preocupa-se, fica insatisfeita, desconcentrada, em contínua ação. Ativis-mo sem sentido, sem intenção, sem motivação...
O ritmo da vida cotidiana tinha aprisionado a Marta, tornando-a surda à escuta da Palavra. Ele recebe Jesus, mas não o escuta. Embora Jesus entre em sua casa, ela o deixa à porta.
Maria, ao contrário, compreende bem o projeto de Jesus e rompe com os preconceitos culturais de sua época. Sua atitude é surpreendente pois está ocupando o lugar próprio de um “discípulo”, que só correspondia aos homens. Em lugar de andar atarefada com as atividades domésticas “próprias das mulheres”, “sentou-se aos pés do Senhor e escutava sua palavra”. Este gesto, reservado culturalmente aos discípulos varões, a confirma como discípula. De fato, Maria fez a melhor opção: decidiu aprender a escutar a Palavra e se deixa interpelar pela presença do Mestre.
Marta, ao fadigar-se com o interminável trabalho da casa, questiona a contraditória atitude de Maria e interpela o Mestre para que sua irmã, como mulher, se “coloque no seu devido lugar”. No fundo, o que ela pede a Jesus é que mande sua irmã voltar às tarefas próprias de toda mulher e deixe de ocupar o lugar reservado aos discípulos varões.
Jesus lhe dá uma resposta inesperada: felicita Maria porque acertou em sua eleição e repreende Marta por deixar-se envolver pelas preocupações cotidianas sem atender ao que é mais importante.
Em nenhum momento Jesus critica Marta por sua atitude de serviço, tarefa fundamental em todo seguimen-to d’Ele, mas a convida a não se deixar absorver por seu trabalho a ponto de perder a paz. E recorda que a escuta de sua Palavra deve ser prioritária para todos, também para as mulheres, e não uma espécie de privilégio dos varões. Jesus não despreza a acolhida de Marta, mas seu modo de trabalhar, nervosa, sob a pressão de muitas ocupações. Ele a alerta, e a todos nós, do perigo de viver absorvidos pelo excesso de atividades, apagando em nós a paz, contagiando nervosismo e cansaço e esvaziando a mística da acolhida.
Tem sido frequente ler este texto em chave dualista, reforçando a superioridade da “vida contemplativa” sobre a “vida ativa”. No entanto, o sentido original do texto está no fato de afirmar a primazia do discipulado acima de qualquer outra atividade. Com efeito, a expressão “estar sentado(a) aos pés de Jesus” constitui a atitude fundamental do “ser discípulo(a)”.
O texto imediatamente anterior, onde o bom samaritano aparece como um modelo por sua ação solidária, impede interpretar a cena de Betânia como uma desqualificação da ação em favor da contemplação; o contexto chama a atenção diante de uma maneira de agir que não nasce da escuta da Palavra, mas do próprio ativismo compulsivo. A escuta da Palavra inspira e dá sentido a toda ação. Ativismo ou ação insensata (sem sentido) revela auto-centramento, comparação, competição, queixa...
Marta se precipita em “fazer” e este “fazer” não nasce de uma escuta atenta da palavra de Jesus, correndo o perigo de se converter em um estéril girar sobre si mesma. Ela se limita, apesar de sua boa intenção, a acolher Jesus em sua casa. Maria, no entanto, o acolhe “dentro de si mesma”, oferece-lhe hospitalidade naquele espaço interior, secreto, e que está reservado só para Ele. Marta oferece “coisas” a Jesus; Maria oferece a si mesma; ela elegeu a “melhor parte”. Marta, ao querer que não faltasse nada ao hóspede importante, acaba deixando passar clamorosamente por alto “a única coisa necessária”.
Podemos pensar que Marta e Maria, mais que duas pessoas, são duas atitudes, duas tendências que todos temos e somos na vida. Muitas vezes vivemos num ativismo desenfreado e acabamos perdendo o fluxo de uma vida mais harmoniosa, integrada e pacificada.
Somos seres de ação, mas também somos seres necessitados de calma, serenidade, contemplação... Como integrar Marta e Maria, como harmonizar ação e contemplação? Eis a questão! Segundo o místico Eckhart, trata-se de deixar subir o que vem do fundo, de executar ações assinaladas pelo selo da interioridade e da profundidade.
“Vai para o teu próprio fundo e lá age! Com efeito, todas as obras que aí executas, vivem!”
Não se trata, portanto, de qualquer ação, mas daquela que vem das profundezas.
A ação que tem sabor e frescor de “nascente”: a ação contemplativa ou o “agir tranquilo”.
Nós, hoje, nos deparamos com um ritmo de vida mais agitado que em épocas anteriores. Os meios proporcionados pela tecnologia para economizar tempo também multiplicam as ocupações e acabam fazendo-nos cair num ativismo desenfreado. E o excesso de preocupações nos leva a esquecer do fundamental...
Nervosismo, inquietação, queixa, confusão, sofrimento... nascem sempre como consequência de nossa identificação com o eu separado. Esse é o “pecado original” porque, nessa crença errônea se origina a ignorância radical que se traduz irremediavelmente em sofrimento.
Desse modo, nossa vivência como discípulos(as) se converte em um tímido cumprimento de algumas normas e obrigações religiosas, sem espaço para o silêncio e a escuta da Palavra. Somos exortados, somos bombardeados continu-amente com mensagens que nos cobram ser mais eficazes, produtivos e competitivos. Mas, com Marta e Maria, Jesus nos interpela e nos chama a investir no essencial: colocar-nos a seus pés para escutar sua palavra.
Texto bíblico: Lc 10,38-42
Na oração: Acolher o convite para entrar na própria casa (interioridade), espaço do encontro com o Divino Mestre.
- des-vele (tire o véu) as preocupações, agitações, ansiedades... ali presentes.
- Seja casa aberta e acolhedora, onde o Senhor vem ao seu encontro para lhe falar ao coração. O encontro com Ele se prolonga no encontro acolhedor com os outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.07.22
Imagem: Jan Vermeer
“Mas um samaritano que estava viajando, chegou perto dele, viu e sentiu compaixão” (Lc 10,33)
O cristão é um pobre que ama e cuida de outros pobres, um ferido que se faz presente junto a outros feridos. Há um ponto de partida comum: a experiência da pobreza radical de todos que se encontram. Somos seres de relação; é a nossa essência. Nós nos definimos pela maneira como nos fazemos próximos junto aos outros. Esta relação essencial se manifesta como presença que acolhe, cuida, reforça laços, alimenta a comunhão... Há presenças impositivas, indiferentes, manipuladoras e geradoras de conflitos. E há presen-ças “cristificadas”, carregadas de compaixão.
Uma das páginas mais belas e provocativas do Evangelho é a parábola do “bom samaritano. Um desconhecido exemplar que nos oferece algumas chaves interessantes de leitura sobre o que significa atender às pessoas que estão em situação de exclusão e dor. Nesta parábola, Jesus destaca uma imagem que deve inspirar uma presença comprometida de todo(a) seguidor(a) seu(sua).
O relato começa com uma situação dramática: um homem “ferido de morte” à beira de um caminho. Várias pessoas passam por ele: um sacerdote, “ponte” entre os homens e Deus, e um levita, dedicado ao serviço do Templo. São incapazes de atendê-lo. Dão meia-volta e se vão. Por profissão, ambos conheciam bem a Lei de Deus, a cujo serviço estavam. E, nela, está contida a exigência de humanidade no trato com o semelhante.
Nada disto os moveu a vir em socorro do homem semimorto, caído no caminho. O encontro com Deus no templo não os movia à comunhão com o semelhante em extrema necessidade. Daí terem se desviado do homem semi-morto, passando pelo outro lado do caminho.
Fugir do sofrimento é, certamente, quase um ato reflexo em todos nós. Mas o samaritano, pelo contrário, se deteve, talvez porque sabia o que era ser desprezado (em seu caso, por ser estrangeiro e herege). A experiência da própria dor desperta nele uma grande sensibilidade, ativa um “radar” especial que detecta a dor alheia e o anima a “inclinar-se”, de maneira quase “natural”, para o mais necessitado. Era um dos seus. A redação de Lucas reforça insistentemente os verbos “viu”, “sentiu compaixão” e “cuidou dele”.
Foi suficiente ver o ferido para que se reacendesse a sua compaixão, ou seja, se enternecesse diante da triste situação daquele homem ferido, à beira da estrada. Essa comoção primeira é decisiva porque desperta o desejo de atuar. O que se revela realmente pernicioso é a indiferença, a frieza, e não o sentimento de tristeza e empatia que faz emergir uma corrente de afeto para com o sofredor. O samaritano ficou “afetado” ao contemplar o drama do outro.
A sequência na maneira de agir do samaritano é preciosa e fica perfeitamente refletida na narração através dos verbos: olhar, aproximar-se, enfaixar as feridas, colocar o ferido sobre sua cavalgadura, levar, cuidar, retornar. Uma progressiva implicação que termina alterando seu caminho e sua vida. Seus planos foram mudados. Alguém ferido cruzou seu caminho e já não pode viver à margem desse encontro. Por isso, depois de cumprir com suas obrigações, retorna. Esse homem ferido “permanece” em seu coração.
As vítimas da injustiça estão clamando a nós a “responsabilidade de ter olhos quando outros os perderam” (J. Saramago). Trata-se de educar o olhar que des-vela a mentira da realidade e ao mesmo tempo re-vela suas oportunidades históricas. Educar a visão é deixar-nos olhar pelo outro, pelo pobre, pela vítima do sistema. A honestidade com a realidade reclama de nós uma alteração de nossa visão, um movimento sutil de nossos olhos que nos conduzem a nos colocar-nos “na mira do outro”. Mais ainda, o olhar do outro manifesta que “fora dos pobres não há salvação”.
“Há um corpo caído no chão”: todo corpo é lugar de comunicação, de comunhão, é apelo à proximida-de e ternura. Dele brota uma voz provocativa que, quando acolhida, nos introduz na trilha da “vida eterna”, do horizonte do Sentido; ao passo que, se rejeitada, como aconteceu ao sacerdote e ao levita, os exclui do espaço da vida.
Mas, não basta o olhar; é preciso a “conversão das mãos”. Foi preciso mais que uma mão. Também o dono da hospedaria, possivelmente um judeu, também foi desafiado a superar o preconceito, acreditar no samaritano e aceitar colaborar com ele.
O samaritano conta com a ajuda do dono da hospedaria. Este se torna parceiro na solidariedade quando aceita fazer o que lhe fora pedido. Ele prolonga os gestos humanizadores do samaritano, manifestando seu compromisso com a vida frente ao ferido que aparece inesperadamente em sua pensão.
Depois de apresentada a situação concreta, através de uma parábola, Jesus relança a questão para o mestre da lei: “qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” A resposta brota límpida: não é possível escolher o próximo. Este, na perspectiva de Jesus, irrompe no caminho das pessoas, sem aviso prévio, na condição de vítima, do outro sofredor, carente de socorro.
Quem é capaz de romper esquemas e se transformar em servidor, com total generosidade, faz a experiên-cia de “próximo”, no sentido do discipulado cristão. Por conseguinte, “próximo” tem um sentido bem preciso. Não é qualquer pessoa! É o outro necessitado de ajuda. Por outro lado, só quem tem uma correta imagem de Deus, terá uma correta imagem de próximo. A indiferença do sacerdote e do levita deveu-se a uma falsa concepção de Deus, separado dos seus prediletos. Já o samaritano foi aquele que possuía uma fé verdadeira, expressa em atitudes de elevado padrão de misericórdia.
O verdadeiro seguimento de Jesus nos faz “virar a cabeça” e dirigir nosso olhar para as “margens”, para as “periferias” da história... comprometendo-nos com os prediletos de Deus. Para Jesus, o centro está nas margens; os marginalizados e excluídos são trazidos por Ele ao centro. Por isso, Jesus derruba as barreiras de religião e raça. Para Ele, o verdadeiro culto a Deus acontece nas “margens” e não nos templos.
Na perspectiva cristã, a opção pelos pobres não está vinculada a um voluntarismo ascético-moral, mas a um caminho no qual o ser humano se des-vela como pessoa guiada pelo princípio compaixão, sensível ao sofrimento dos outros e feliz por compartilhar seu ser e seus bens com os despossuídos. É preciso abrir os olhos para ver, dispor o coração para comover-se e estender as mãos para ajudar.
Texto bíblico: Lc 10,25-37
Na oração: Solidariedade é vestir o coração com as roupas do excluído:
- Examinando a sociedade, sentindo de perto os seus problemas e desafios, que esperança você carrega?
- você tem experiências de voluntariado, de solidariedade e de compromisso com os mais excluídos?
- como ser “presença samaritana” no cotidiano de sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.07.22
Imagem: Vincent Van Goh
“Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13)
O evangelho indicado para a festa de S. Pedro e S. Paulo nos situa diante de uma pergunta provocativa de Jesus: “e vós quem dizeis que eu sou”. Tal pergunta, dirigida aos discípulos e a cada um de nós, não só ajuda a des-velar (tirar o véu) a verdadeira identidade de Jesus como também nossa identidade original.
Pedro, ao responder – “Tu és o Messias...” – no fundo, estava também deixando transparecer sua própria nobreza interior, aquilo que é o fundamento e sobre a qual se pode construir toda uma vida.
E Jesus, como verdadeiro “pedagogo”, explicita o que estava escondido nas profundezas do coração de Pedro. “Tu és “petra” (rocha, base sólida)”. Essa é a verdadeira identidade de Pedro. Ressoa no interior de cada um de nós esta mesma voz: “Tu és rocha...”
O coração de cada um está habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; sente-se seduzido pelo que é verdadeiro, bom e belo; busca ardentemente a pacificação, a unificação interior, a harmonia com tudo e com todos...; sente ressoar o chamado da verdade, o magnetismo do amor, da plenitude; sente-se atraído por um desejo irreprimível de auto-transcendência, de crescimento, de maturidade.
Só a partir da vivência e da solidez interior poderemos descobrir o que significa Jesus como “Messias, o Filho do Deus vivo”. Só a partir da identificação com Ele é que poderemos também descobrir nossa original filiação, fundamento de nossa vida: “somos filhos e filhas do Deus vivo”.
A filiação é a solidez que nos unifica a todos; ela é a base que sustenta nossa identificação com Jesus Cristo.
Não é fácil tentar responder com sinceridade à pergunta de Jesus: “Quem dizeis que eu sou?”. Na realidade, “quem é Jesus para nós?” Sua pessoa, seu modo original de ser e viver, chega a nós através de vinte séculos de imagens, fórmulas, devoções, experiências, interpretações culturais... que vão desvelando e velando ao mesmo tempo sua riqueza insondável.
Mas, além disso, cada um de nós vai revestindo a Jesus com aquilo que nós somos. E acabamos projetando n’Ele nossos desejos, aspirações, interesses e limitações. E, quase sem nos dar conta, O apequenamos e O desfiguramos, mesmo quando queremos exaltá-lo. Mas Jesus continua vivo e sua presença, na história da humanidade, sempre se revela provocativa e surpreendente. Na realidade, o que notamos é que grande parte dos cristãos não seguem e não se identificam com a Pessoa de Jesus; seguem doutrinas, ritos, algumas obrigações legais... que não tem impacto no modo de viver de cada um. Mas Jesus não se deixa etiquetar nem se deixa reduzir a alguns ritos, algumas fórmulas ou alguns costumes.
Jesus sempre desconcerta a quem se aproxima d’Ele com atitude aberta e sincera. Ele se revela sempre diferente daquilo que pensamos e esperamos. Sempre abre novas brechas em nossa vida, rompe nossos esquemas e nos atrai a uma vida nova. Quanto mais O conhecemos, mais sabemos que ainda estamos começando a descobri-lo.
Responder à pergunta - “quem dizeis que eu sou?” – é “perigoso” porque nos compromete com o modo de viver de Jesus: sua liberdade perante as tradições religiosas, sua relação com os mais pobres, sua opção clara em favor de uma causa humanizadora (Reino), a vivência dos valores presentes nas Bem-aventuranças, a visibilização do mandamento do Amor...
Literalmente falando, Jesus é um “subversivo”, pois sub-verte nosso modo fechado de viver e de nos rela-cionar com os outros. Percebemos nele uma entrega livre que desmascara nosso egoísmo; Ele revela uma paixão pela justiça que sacode nossas seguranças, privilégios e busca de poder; transparece n’Ele uma ternura que deixa descoberto nossa mesquinhez, uma liberdade que põe às claras nossos apegos e dependências.
E, sobretudo, vemos n’Ele um mistério de abertura, proximidade e intimidade com o Deus da Vida, que nos atrai e nos convida também a abrir nossa existência à intimidade com Ele.
Só iremos conhecendo Jesus na medida em que nos identificamos com Ele e nos revestimos de seus sentimentos, valores, critérios... Só há um caminho para aprofundar em seu mistério: segui-Lo; seguir humildemente seus passos, abrir-nos com Ele ao Pai, prolongar seus gestos de amor e ternura para com todos, olhar a vida com seus olhos, compartilhar sua fidelidade à causa do Reino...
Pedro e S. Paulo viveram, por caminhos diferentes, um original encontro com o Mestre da Galiléia. Encontro que des-velou e extraiu o que havia de mais nobre e humano no coração de cada um deles (“tu és rocha” – “tu és paulo”). Foi esta solidez interior, que se visibilizou na maneira original de cada um seguir Jesus Cristo, que os transformou em colunas da Nova Comunidade dos seguidores do Nazareno.
A eles foi conferida uma “autoridade” como caminho para o serviço e a promoção da vida.
Jesus compartilha com eles sua mesma “autoridade” que não tem nada a ver com o poder que domina ou a liderança que se impõe. Jesus tem “autoridade” porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir.
A expressão “autoridade” vem do verbo latino “augere”, que significa literalmente: aumentar, acrescen-tar, fazer crescer, dar vigor, robustecer, sustentar, elevar, levantar o outro, colocá-lo de pé, impulsioná-lo para frente... É a qualidade, a virtude e a força que serve para apoiar, para alentar, para ajudar as pessoas a serem elas mesmas, para fazê-las crescer, desenvolvendo suas próprias potencialidades.
“Autoridade” significa recuperar a autoria, ativar a autonomia àquele que está impedido de optar e de fazer seu caminho. Nesse sentido, a autoridade nunca é perigosa para a pessoa, jamais é imposição ou atentado contra sua legítima autonomia ou liberdade. A autoridade é essencialmente amor.
Também o exercício da autoridade deve ser medido pela palavra e pela obra de Jesus Cristo. E não pode ser de outra maneira, já que, se a origem da autoridade na Igreja é divina, também deveria ser “divina” o modo de exercê-la. Se toda autoridade provém de Jesus, deveria ser exercida à maneira como Jesus a exerceu, e isto vale tanto para aqueles que detém uma autoridade instituída como para aqueles que, devido às suas qualidades e carismas, exercem, de fato, autoridade de serviço nas comunidades cristãs.
Neste “como” se exerce e deve ser exercida a autoridade na Igreja está o desafio que as comunidades cristãs devem assumir.
O Evangelho de hoje é claro quanto à maneira como se deve exercer a autoridade: a partir do serviço. Aquele que serve não domina, convertendo-se no centro, mas anima e integra o diferente. Aquele que serve, despoja-se de seus interesses privados e investe sua vida em benefício de todos.
Isto significa que todos aqueles que exercem a autoridade hão de voltar sempre ao manancial de onde brota o autêntico ser da Igreja, que é a palavra e a ação de Jesus. Não deve existir autoridade na Igreja que esteja por cima da ação do Espírito; ela não deve buscar outra coisa a não ser a vinculação de todos os membros da Igreja no amor e no serviço mútuo. Uma autoridade que se desvincula do “carisma de autoridade” do Espírito tende sempre a converter a instituição em um fim, esquecendo que só pode ser justificada na medida em que serve à obra do Espírito.
Texto bíblico: Mt 16,13-19
Na oração: Suplicar a graça “do conhecimento interno de Jesus para mais amá-lo e mais segui-lo” (S. Inácio).
“Conhecimento” que faz emergir aquilo que é o melhor em seu in-terior, a verdade da sua pessoa, para que você consiga ter uma visão ampla de si mesmo(a) e realizar-se da melhor maneira possível, ativando suas potencialidades. Cada um(a) é diferente, único(a), com saberes, expectativas, medos, ansiedades e desejos, pontos fortes e fraquezas, com seu ritmo e modos próprios de viver...
- Deixe ressoar em seu coração a voz de Jesus: “Tu és rocha firme, sobre a qual quero construir minha morada, em comunhão com o Pai e o Espírito Santo”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.06.22
“Quem põe a mão no arado e olha para trás, não está apto para o Reino de Deus” (Lc 9,62)
Jesus é muito claro quando se refere à radicalidade no seu seguimento. “Ninguém pode ser meu discípulo se antes não renunciar a tudo o que possui!” (Lc.14,33). Trata-se de uma atitude, uma postura, uma entrega.
E a palavra é “tudo”. O discípulo pela metade não pode ser discípulo. Jesus, ao associar seguidores à sua missão, pede sinceridade na vontade e verdade no coração. Não servem as entregas pela metade. Ele não se contenta com “amor a prestações”, com retalhos de vida.
A entrega parcial não é entrega. O “apego” a algo ou alguém esvazia a afeição à pessoa de Jesus, travando a entrega e tornando impossível que a relação com Ele cresça, se desenvolva e encha nossa vida de sentido. A entrega total, pelo contrário, traz à luz todos os nossos recursos, desperta nossas potencia-lidades e incendeia nossa fé.
Esta é a atitude genuína e verdadeira diante da vida. Esta determinação é a que abre caminho, avança e ativa a criatividade. Ficar com “alguma coisa” daquilo que Ele pede, fazer as coisas pela “metade”, adiar, regatear, dissimular... é impedir a livre ação da Graça do Pai em nosso interior.
A decisão autêntica é clara, completa e definitiva. Com “meias-tintas” não se escreve bem.
O evangelista Lucas desvela esse jogo do “meio-termo” no relato deste domingo. Duas pessoas manifestam o desejo de seguir Jesus e uma terceira é chamada pelo próprio Jesus. Mas, há algo em comum entre elas: as três apresentam “condições” para fazer o caminho do seguimento. Dizer “condição” equivale a dizer “não”, mantendo as aparências; é continuar apegado às “mediações” (bens, família, pai) sem investir afetivamente no Reino. É medo de avançar, de arriscar, de ousar...
A resposta do meio-termo pode, de fato, causar mais prejuízo do que a negativa sincera, porque uma negativa clara pode um dia levar ao arrependimento e à reconciliação; ao passo que o adiamento cortês, apesar de ser negativa absoluta, cria a impressão de ser um gesto aceitável e embota a consciência.
O auto-engano do “SIM”, mas “NÃO” desemboca na mediocridade, no fazer as coisas pela metade... é a funesta arte do regateio. E a mediocridade não tem lugar no caminho do seguimento de Jesus.
“Conheço tua conduta: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Assim, porque és
és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca” (Apc.3,l5)
O medo de perder “algo” ou “alguém” no futuro atrapalha viver intensamente o presente. Quantos “pesos mortos” arrastamos em nossa vida, com recordações, lembranças, apegos, afetos desordenados...!
O desejo de possuir confunde nossa vida. E já não se trata mais de uma lição moral sobre o vício ou a virtude, mas do impacto psicológico que produz em nosso comportamento o fato de nos sentirmos apegados a algo ou a alguém, com a consequente perda de liberdade e o perigo da dependência que esse apego causa. O apego às coisas e às pessoas impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o “fluxo” da vida, o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
“Diga-me o tamanho dos seus apegos, e eu lhe direi o tamanho do seu sofrimento”.
Para desmascarar nossas justificativas e racionalizações referentes aos nossos apegos, Jesus não contou apenas parábolas; muitas das suas expressões são também enigmáticas e impactantes. Mas é justamente esse modo de falar de Jesus que possui efeito provocativo e surpreendente.
Ao dizer - “deixem que os mortos enterrem os seus mortos” -, Ele nos faz entrar em contato com tudo aquilo que está morto em nós mesmos: tudo que não significa vida, com a rotina repetitiva do nosso dia a dia, com o vazio interior, com as coisas estagnadas da nossa existência.
Com sua linguagem radical, Jesus nos permite chamar as coisas pelo que são e declará-las mortas. Ele convida a nos afastar das coisas que não mais nos dizem respeito e que exigem um alto investimento afetivo. Muitas “aderências afetivas” – bens, posses, pessoas, lugares, poder, vaidade, segurança material – não estão ligadas à nossa vida verdadeira, impedindo-nos de nos concentrar na causa do Reino de Deus e no seu anúncio.
Sabemos que uma das características mais originais do ser humano é a capacidade de assumir compro-missos. Comprometer é empenhar-se radicalmente, é arriscar-se num projeto ousado, é envolver-se numa causa inovadora. No compromisso, joga-se a própria vida. Em Jesus Cristo, a pessoa encontra a realização da empresa mais nobre e a garantia de poder entregar-se a ela sem se enganar.
O ato de decidir é o mais nobre e profundo de todos os atos do ser humano, a própria definição da pessoa e a expressão última de sua dignidade. E precisamente porque é nobre e profundo, definindo a identidade de cada pessoa, decidir torna-se difícil e penoso. Por isso sua reação instintiva ao enfrentar uma decisão é tratar de evitá-la, dissimulá-la, adiá-la.
Custa decidir porque lhe custa definir. Muitos pertencem à “confraria do último dia”.
Chegamos à pós-modernidade com enorme carga de medo; medo cruel que alcança todo mundo, medo que afeta os corajosos e agride os ousados: medo de comprometer-se, medo de definir-se, medo de equivocar-se, medo de enfrentar, medo de ter de agir, medo de fazer opções, medo da própria missão...
O medo corrói as fibras humanas, asfixia talentos, esvazia a vida e mata a criatividade.
O medo encolhe o ser humano, inibe a decisão e bloqueia os movimentos em direção ao “mais”.
O medo cega os canais do discernimento, imobiliza o mecanismo das decisões.
Quem teme não pode decidir bem. Sob a influência do medo, o olhar, o pulso, o equilíbrio deixam de ser o que deveriam ser e de agir como deveria agir. O ambiente se turva e a eleição se frustra.
Para desenvolver ao máximo nossas potencialidades, temos de enfrentar dilemas, encruzilhadas, perplexi-dades e responsabilidades. Isto nos faz descer ao chão da vida, despertar nossas energias, encontrar a nós mesmos.
Seguir Jesus Cristo é aderir a Ele incondicionalmente, é “entrar” no seu caminho, recriá-lo a cada momento e percorrê-lo até o fim. Seguir é deixar-se con-figurar, movimento pelo qual a pessoa vai sendo modelada à imagem de Jesus.
O seguimento de Jesus Cristo pressupõe uma pessoa capaz de sair de si mesma, de des-centrar, com coragem de arriscar. Sem se abrir ao “magis”, que habita o coração humano, não haverá desejos de identificação com o Peregrino da Galiléia.
Diante do Cristo que chama, a pessoa sente-se pro-vocada, chamada a superar-se, desafiada a arriscar e a ser “mais”. É preciso sonhar alto, ter ideais, ser uma pessoa corajosa e marcada pela esperança para poder “escutar” o apelo de Cristo; é preciso ser apaixonado, deixar-se empolgar, aceitar correr riscos na vida para saber o que significa o “comigo” de Cristo; é indispensável uma enorme generosidade para se dedicar incondicionalmente a uma grande causa; é preciso forte dose de ousadia e coragem para transcender-se, ir além de si mesmo...
Texto bíblico: Lc 9,51-62
Na oração: Temos muitas atitudes, posses, ideias, cargos, posições, bens... que consideramos como Vontade de Deus; na realidade é tudo “projeção” de nossos desejos atrofiados; é tudo manifestação de nossos “afetos desordenados”.
- No seguimento de Jesus, o que prevalece em sua vida? Adesão incondicional à pessoa d’Ele ou seguimento sob condições? Que “apegos” travam sua vida, exigindo um alto investimento afetivo?
- Que paixão move sua vida? Seu coração está livre?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
24.06.22
Imagem: James Tissot
“...quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (Lc 9,24)
Depois do percurso quaresmal e pascal, a liturgia nos situa novamente no chamado “Tempo Comum”; trata-se de um percurso contemplativo que nos convoca a fazer caminho com Jesus, realizando sua missão e preparando a comunidade dos seus seguidores. Tendo os olhos fixos n’Ele, viveremos uma longa aprendizagem, deixando que o Mestre da Galiléia faça emergir o que é mais nobre e humano de nosso interior. Tempo de seguimento e identificação com Aquele que foi “humano” na sua radicalidade.
No evangelho deste domingo, Jesus deixa claro, para todos nós, o preço do seguimento. Responder à pergunta – “quem dizeis que eu sou? – implica identificação com seu modo de ser e viver. Sua proposta de vida, sua liberdade diante das leis e tradições, seu compromisso com os últimos, sua relação com o Pai... vão provocar conflitos com aqueles que estão “petrificados” em seu modo de viver. E aqueles(as) que se identificam com Ele também vão encontrar oposições, incompreensão e perseguições. Por isso, ao convidar seus discípulos e discípulas a segui-lo, foi taxativo: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia, e siga-me”
Que significa “renunciar a si mesmo” - “tomar a cruz de cada dia”? Será que ele veio “complicar” nossa vida com mais peso, mortificação, sofrimento...? Esta afirmação de Jesus parece estar em contradição com outra afirmação encontrada em Mateus: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e carregados de fardos, e eu vos darei descanso”. “Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,28-30).
Na vida e missão de Jesus encontramos duas grandes paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Em sintonia com o Pai, esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o fim.
A segunda paixão é a da “cruz”, imposta pelos poderes religiosos e civis. É a cruz patíbulo, instrumento de tortura, imposta pelos romanos àqueles que ousavam contrariar seu domínio. Ela não é fruto da opção de Jesus e nem do plano do Pai. É a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.
No grego, “cruz” é “staurós” e significa: prontidão, estar preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé, ser fiel até o fim...
Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou o “staurós”, ou seja, a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.
Assim entendemos a afirmação de Jesus no evangelho deste domingo: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com os outros, sobretudo com os mais sofredores.
Infelizmente, a história da espiritualidade confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-staurós” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da penitência... como se isso fosse agradável a Deus.
Privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tudo isso desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, descompromissada...
Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus, quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus. Mas Jesus assumiu também a “cruz-patíbulo” e revelou sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta “cruz” assumida é também visibilização da salvação.
Nesse sentido, a cruz de Jesus e dos seus seguidores não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino e da vida. Assim, a cruz não significou passividade e resignação; ela concentrou, radicalizou e condensou o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.
“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
Tanta radicalidade nos surpreende. De fato, hoje, em nossa sociedade, escutamos expressões totalmente contrárias: “cuide-se”, “seja você mesmo”, “aproveite a vida”, “seja o primeiro” ...
São expressões de uma vida centrada no próprio “ego”, ou, “ego-latria”. Tal idolatria reside no próprio interior. O coração humano é uma fábrica de ídolos; há ídolos internos que emergem e que desumanizam, pois rompem todo vínculo e quebram toda relação.
Jesus, em seu convite ao seguimento, nos pediu a “renúncia” de um ídolo especialmente perigoso e sutil: nosso “ego”. Exigiu-nos esquecer dele, negá-lo, não lhe prestar culto, não nos colocar a seu serviço...
Nosso ídolo interior, nosso “ego”, exige culto, sacrifícios, seguidores que lhe sirvam. Por isso, nos agrada que nos louvem, que nos coloquem num pedestal, que nos incensem.
Mas, quando alguém entra no fluxo desta falsa “liturgia”, brotam, imediatamente o veneno do desprezo, da do ódio, da violência, do autoritarismo...
Quando Jesus propõe “renunciar a si mesmo”, na realidade está dizendo: “renuncie a si mesmo como ídolo!”. Ele desmascara essa tendência diabólica que nos habita. Quantas vezes nos surpreendemos sendo nós mesmos nossa principal preocupação! Frequentemente nos tornamos o centro, fazendo que tudo gire em torno ao nosso próprio “ego”. Habituamos a nos aproximar das pessoas que nos agradam, que nos bajulam, que compartilham nossos apegos desordenados, que nos dão a razão em tudo, que engordam nosso “ego”.
A partir de nossa ego-latria, vamos criando e alimentando muitos outros ídolos externos, que minam as nossas forças, matam nossa criatividade e esvaziam todo espírito solidário: a busca do poder, da riqueza, da fama, da conquista... Tudo isso nos faz entrar no círculo de morte e destruição de nós mesmos.
A destruição dos ídolos começa por nós mesmos, esvaziando o ídolo de nosso ego. “Renunciar a si mesmo” não é renunciar o que é mais belo que temos recebido: uma personalidade com características únicas, uma liberdade admirável com capacidade criativa, um espírito compassivo e solidário, uma capacidade de relação gratuita... O que Jesus pretende é tirar nosso “ego” de seu recinto individualista e nos situar no amplo espaço do Reino de Deus. Podemos expressar isso numa linguagem tomada da ciência ecológica: Jesus nos chama a abandonar nosso “ego-sistema” para transladar-nos ao “eco-sistema” de seu Reino.
A identificação com Jesus no seu seguimento requer assumir um processo de “morte” e levar a “cruz-staurós” até o fim. É preciso que morra em nós aquilo que não tem futuro, que não é vida, que não é felicidade... O “ego” é pura ilusão, é só uma ficção ou, como dizia Einstein, “uma ilusão ótica da consciência”. Quando ele determina nossa vida, caímos no vazio, pois ele não tem em que se sustentar.
A renúncia à “egolatria” não é uma desgraça ou destruição de si mesmo; pelo contrário, é a oportunidade privilegiada para deixar emergir do nosso “eu original” os recursos mais nobres, as potencialidades de vida que não tiveram chance de se expressar, as beatitudes mais profundas que dão sentido e sabor ao nosso viver. Não se trata de massacrar uma dimensão de nosso ser para salvar outra; trata-se de descobrir uma falha na percepção de nós mesmos; ou seja, com frequência cremos ser aquilo que não somos e vivemos enganados. Trata-se de nos libertar de tudo aquilo que nos ata ao caduco e nos impede elevar-nos à plenitude que nosso verdadeiro ser exige.
Este é o caminho da vida que se faz doação, presença, compromisso... vida na fidelidade até o fim.
Texto bíblico: Lc 9,18-24
Na oração: Entendemos por medíocre aquele(a) que renunciou a viver em profundidade; perdeu o elán vital e por isso a capacidade de entusiasmar-se pela vida, de lançar-se, de expandir-se. O realista medíocre fica satisfeito com sua vida, mas “cheira a morte”.
A “mediocridade” não tem lugar no caminho do Reino; o seguimento de Jesus não é para “medíocres”, mas para os(as) ousados(as), aqueles(as) que arriscam, que alimentam a capacidade de criar e inovar.
- Sua vida: determinada pela mediocridade do “ego” ou pela maneira inspirada de Jesus viver?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.06.22
“Dai-lhes vós mesmos de comer” (Lc 9,13)
Celebramos o “Corpus Christi”, uma das festas mais ricas por seu conteúdo e simbolismo, mas que nos faz pensar também no “Corpo de Cristo” no meio de tantos outros corpos.
Aceitamos, pela fé, a presença real de Cristo na Eucaristia; isso implica comunhão bem maior com sua vida, seu testemunho de amor, de partilha, solidariedade, dedicação pela transformação de tudo aquilo que não dignifica a vida ou não dignifica os “corpos”. Comungamos o “Corpo de Cristo” para podermos viver o seguimento com mais radicalidade.
Infelizmente, o que temos observado é que grande parte dos cristãos não seguem uma Pessoa (Jesus Cristo), mas se limitam a cumprir alguns ritos, leis, práticas devocionais e piedosas... que revelam uma espiritualidade intimista, alienante e distante do compromisso com os outros.
Participamos, com muita fé, dedicação e respeito, das celebrações do “Corpo de Cristo”, mas pode ser que, às vezes, façamos uma profunda cisão ou ruptura entre o que celebramos e a realidade que nos cerca, ou seja, o compromisso com os “corpos” explorados, manipulados, usados, escravizados...
Pode ser que, às vezes, tenhamos um profundo amor e respeito ao “Corpo de Cristo vivo e presente na Eucaristia”, e não O vejamos nos “corpos” que estão aí, aqui, ali, lá, por todos os lados...
Certamente, nunca passou pela cabeça de Jesus pedir que os seus(suas) seguidores(as) se pusessem de joelhos diante d’Ele. Ele, sim, se ajoelhou diante de seus discípulos para lhes lavar os pés; e, ao terminar essa tarefa de servos, lhes disse: “Se eu, o Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros”. Essa lição, ousada e provocativa, parece que nunca nos interessou. É mais cômodo transformá-Lo em objeto de adoração do que seguí-Lo no serviço, na disponibilidade e na entrega aos demais.
Todas as demonstrações de respeito e veneração diante do Corpo de Cristo tem seu sentido e significado. Mas, ajoelhar-nos diante do Santíssimo Sacramento e continuar menosprezando ou ignorando o próximo, é uma ofensa. Se, em nossa vida, não deixamos transparecer a atitude de Jesus, todos os gestos de adoração continuarão sendo “magia barata” para tranquilizar nossas consciências. É preciso descobrir a presença de Jesus em todos os corpos desfigurados, famintos, violentados, desprezados..., e que suplicam por uma presença servidora e solidária. Diante destes corpos desumanizados, morada do Ressuscitado, é que devemos nos ajoelhar para facilitar a ajuda e o serviço. Ninguém pode servir a partir de uma posição elevada; é preciso “descer”, esvaziar-nos de nosso ego prepotente, para prolongar as mãos e o coração do Compassivo.
“Corpus Christi” nos fala, portanto, da “Encarnação continuada”, ou seja, Deus não só se “encarna”, Ele é Encarnação. A Encarnação não é um ato pontual, ou um evento isolado da história, mas uma atitude eterna de Deus. Toda a Criação e toda a Humanidade foram assumidas por este “mistério” fundante de nossa fé. Assim, toda a história humana se faz História da Salvação. E o “assim novamente encarnado” (S. Inácio) se visibiliza em todos os “corpos” humanos. “Todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequeninos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (Mt 25,40)
Ao comungar o “Corpo de Jesus”, nosso corpo e todo nosso ser tocam algo do mistério da Encarnação. A comunhão é – ou deveria ser – uma sacudida pessoal e comunitária que nos impulsiona a retomar o projeto vital de Jesus, do qual nos afastamos continuamente.
Na Eucaristia se concentra toda a mensagem de Jesus, que é o Amor. O Amor que é Deus manifestado no dom de si mesmo e que Jesus deixou transparecer durante sua vida. Ao dizer, “isto é o meu corpo”, Jesus está afirmando: Isto sou eu: Dom total, Amor total, sem limites.
Ao comer o pão e beber o vinho consagrados, queremos afirmar: fazemos nossa a Sua vida e nos comprometemos a nos identificar com o que foi e fez Jesus. O pão que nos dá a Vida não é apenas o pão que comemos, mas o pão no qual nos transformamos, quando fazemos de nossa vida uma doação contínua. Somos cristãos, não só quando comemos o pão, mas quando nos deixamos consumir, como Ele fez.
Discípulos(as) de Jesus somos quando aprendemos a partir o pão. Reconhecemos os cristãos hoje quando partem o pão e não o retém para si. O pão armazenado, como o maná no deserto, se corrompe, apodrece.
Compartilhar significa não “monopolizar”, não permitir que haja necessitados entre nós.
O pão partido é a vida compartilhada: bens, dons, tempo, qualidades...
O cristão, além disso, compartilha seus ideais, seu entusiasmo, seu ânimo, sua fé, sua esperança.
Também hoje Jesus precisa de nossas mãos para multiplicar os grãos; precisa de nossas mãos para triturar esses grãos, amassar a farinha e fazer o pão. E precisa de nosso coração para que o pão seja repartido.
O pão sem coração é pão “monopolizado”. Pão indigesto, que engorda o egoísmo.
O pão sem coração gera divisões e conflitos. Quantas guerras fraticidas provoca o pão sem coração!
Deus precisa de nosso coração para que o pão leve o sinal da fraternidade, seja vitamina de solidariedade, alimento de comunhão, energia de vida.
Por fim, é preciso enfatizar que, celebrar e venerar o “Corpo de Cristo” nos remete ao nosso corpo e ao corpo dos outros. Nossos corpos estão integrados e dignificados no Grande Corpo Cósmico d’Aquele que se esvaziou dos atributos divinos para se fazer “Corpo” e “divinizar” nossos corpos.
Integrados ao “Corpo do Ressuscitado” somos chamados a superar toda suspeita, medo, julgamentos moralistas e visões dualistas dos nossos corpos. Afinal, não “temos” corpo, “somos corpo”; pensamos, amamos, sentimos e entramos em relação com o Transcendente através de nosso corpo.
Enchemo-nos de assombro diante do mistério que é cada corpo. Nossos esquemas e dualismos de matéria-espírito, espaço-tempo, passado-futuro, longe-perto, parecem diluir-se. Todo corpo está “animado” e toda “alma” está sempre “corporificada”.
No encontro com o “Corpo de Cristo” passamos a ter uma outra visão de nosso corpo; isso implica superar a parcialização, a polarização e a dicotomia e buscar a harmonia e a integração.
Somos nosso corpo animado, com vida e com sentido. Construímos nossa vida com nosso corpo e graças a ele. Com, em e pelo corpo, vivemos nossa história, caminhamos pela vida na contínua aventura de crescimento e de maturação, de amor e de conhecimento, de encontro com os outros e conosco mesmo, com nossos desejos e medos, nossas alegrias e dores, nossas esperanças e desesperos, nossas vitórias e desilusões ... Tudo isso está inscrito em nossa “carne”.
Nosso ser profundo, nosso ser essencial se manifesta, se abre para fora através de nosso corpo.
O corpo deixa transparecer o que há de mais humano e mais divino em seu interior.
Deixemos “transparecer” o “Corpo de Cristo” em nossos corpos!
Texto bíblico: Lc 9,11-17
Na oração: Amiga, amigo, teu corpo que, que és tu mesmo, é habitado pelo Infinito, o Eterno. Tu também, como Jesus, em comunhão com todo o universo em movimento e evolução, és corpo de Deus. O Infinito se manifesta e emerge de ti. Acolhe teu mistério, deixa-te acolher pelo Infinito em ti, deixa que suba, desde o mais profundo de ti, a voz que ora: “meu corpo canta a Ti, Senhor!”
- Deixa Deus ser Deus em ti. Sê corpo, morada de Deus. Celebra, cuida, reza: sê corpo de Deus, epifania carnal da Ternura infinita.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.06.22
“Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora” (Jo16,12)
Neste domingo (12.06.22), a Igreja celebra a Festa da Santíssima Trindade. Parece que celebramos algo estranho e distante de nossa compreensão. No entanto, a festa da Trindade nos mobiliza para uma nova maneira de viver e de nos relacionar com o Deus de Jesus, cuja presença preenche o cosmos, irrompe na nossa vida, habita criativamente no interior de cada um de nós e é vivido em comunidade.
É preciso deixar claro que o Mistério da Trindade não é um enigma a ser decifrado, ou seja, como conjugar três “individualidades” em uma Unidade, mas é a proclamação de que “tudo é Relação”. A Trindade não é uma especulação teórica sobre três pessoas “abstratas” em Deus, mas a maneira de ser de Deus, como Amor que se expande, em si e fora de si, de uma maneira “redentora”, inserindo-se na história da humanidade.
Assim, a Trindade não é uma simples verdade para crer, mas a base de nossa experiência cristã. O dogma trinitário quer expressar o mistério da Vida mesma de Deus que nos é comunicada.
Foi a experiência cristã da ação salvadora de Deus por meio de Jesus Cristo e no Espírito Santo que deu existência à doutrina trinitária. Deus não é solidão, mas comunhão perfeita, pois “Deus é Amor”. Eis aí a grande revelação que Jesus nos trouxe: a essência de Deus é Amor em estado puro. Então, Deus não poderia fazer outra coisa senão amar. De fato, o amor não existe se não for movimento, reciprocidade, dom, acolhida, relação e comunhão.
Não podemos definir Deus. Só podemos nos aproximar da essência de Deus afirmando que Ele é relação, comunidade, partilha, comunicação, intercâmbio, comunhão.... Agostinho afirmou que no Amor se encontram três realidades: o Amante, o Amado e o mesmo Amor.
“Deus é Amor”, circulação eterna e infinita de amor, na qual o Amante, o Amado e o Amor se relacionam tão intensamente até “transbordar-se” na criação do universo. A Criação é transbordamento do Amor trinitário e o ser humano é “morada” das Três Pessoas Santíssimas.
A Trindade evoca um Deus cuja essência é caracterizada por um movimento eterno em direção a nós, em um amor redentor. Somente na medida em que formos capazes de amor, poderemos conhecer o Deus comunidade, ou seja, comunhão de Pessoas.
Esta é a essência do Evangelho. A melhor notícia que um ser humano podia receber é que Deus não o afasta de seu Amor. A Trindade nos ensina que só vivemos quando com-vivemos.
A Bíblia nos fala de um Deus amor; amor pessoal, porque ama a cada um de nós; amor total, universal, que não exclui ninguém; amor preferencial, porque se inclina para o frágil; amor comunitário, porque em si mesmo não está só, senão que é comunidade e gera comunidade entre os seres humanos.
Deus é Amor e só amor. Percebemos, então que, incompreensível não é Deus, mas nossa resistente e limitada capacidade de contemplar com profundidade essa Presença que se manifesta, permanentemente, em nossa vida e na Criação inteira.
Deus nos fez amor para o mútuo encontro, para a doação, para a comunhão...
Fomos criados “à imagem e semelhança” do Deus Trindade, comunhão de Pessoas (Pai-Filho-Espírito Santo). Quanto mais unidos somos, por causa do amor que circula entre nós, mais nos parecemos com o Deus Trindade. “Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu Amor em nós é perfeito” (1Jo. 4,12)
Deus colocou em nossos corações impulsos naturais que nos levam em direção ao convívio, à cooperação, à acolhida, à solidariedade... “Só corações solidários adoram um Deus Trinitário”.
Aqui está a grandeza e a dignidade do ser humano, criado à imagem e semelhança do Deus Trindade. E é fácil intuir isso: sempre que sentimos o dinamismo de amar e ser amados, sempre que sabemos acolher e buscamos ser acolhidos, quando compartilhamos uma amizade que nos faz crescer, quando sabemos doar e receber vida..., estamos saboreando e visibilizando o “amor trinitário” de Deus. Esse amor que brota em nós tem n’Ele sua fonte.
O amor intra-trinitário não é um amor excludente, um “amor egoísta” entre três. É amor em excesso que se difunde e se expande em todas as criaturas. Por isso, quem vive o amor inspirado pela Trindade, aprende a amar a quem não lhe pode corresponder, sabe doar sem esperar recompensa, sente uma grande paixão pelos mais pobres e pequenos, é capaz de entregar sua vida para construir um mundo mais amável e digno.
Por outro lado, quem é incapaz de dar e receber amor, quem não sabe compartilhar nem dialogar, quem só escuta a si mesmo, quem resiste relacionar-se com os outros, quem só busca seu próprio interesse, quem só deseja o poder, a competição e o triunfo, não pode experimentar nada da Trindade amorosa.
O ser humano não é feito para viver só; ele é chamado a viver em comunhão com todas as pessoas;
Como homem e como mulher trazemos esta força interior que nos faz “sair de nós mesmos” e criar laços, construir fraternidade, fortalecer a comunhão. Fomos feitos para o encontro e a comunicação.
Não fomos criados para viver sós; necessitamos con-viver, viver-com-os-outros, encontrar-nos; é essencial descobrir o sentido e a vivência do encontro relacional com os outros, na vida familiar, na fraternidade, na sensibilidade social para com o diferente e o excluído.
O sentido da vida em comum com os outros é um dom de Deus; afinal, fomos criados à imagem do Deus “encontro intra-trinitário”.
A fraternidade, a vida em comum se mede pelo amor, por atos e gestos de doação, por vivências de comunhão, por experiências de partilha do mesmo ser, da mesma vida, da entrega mútua gratuita...
O amor é olhar o outro com olhos tão limpos, bondosos, desinteressados, tão profundos... que só desejo que o outro seja o que é... Alegro-me de vê-lo assim, tal como é...
O dogma da Trindade, portanto, não só nos revela como Deus é para nós; é também revelação de quem somos nós, ou seja, portadores do impulso relacional que se manifesta na nossa capacidade de amar.
Se Deus é relacionamento amoroso perfeito e nós somos criados à sua imagem e semelhança, então a doutrina da Trindade está preocupada com a nossa vida também. Somos convidados pela graça divina a entrar neste fluxo de relação que define o próprio ser de Deus.
O Deus de Jesus não é uma verdade para pensar, mas uma Presença a ser vivida. Não é um ideia para quebrar nossa cabeça, mas a base e fundamento de nossa vida.
Uma profunda vivência da mensagem cristã será sempre uma aproximação ao mistério Trinitário.
Será, em definitiva, a busca de um encontro vivo com Deus. Não se trata de demonstrar a existência da luz, mas de abrir os olhos para vê-la. O verdadeiramente importante foi sempre a necessidade de viver essa presença do Deus, comunhão de Pessoas, no interior de cada ser humano.
Jesus, o Mistério de Deus feito carne no Profeta da Galiléia, é o melhor e único ponto de partida para reavivar uma fé simples no Deus Comunidade de Pessoas.
Texto bíblico: Jo 16,12-15
Na oração: A Trindade não é hóspede; é a essência do ser humano; o modo de viver de uma pessoa é revelador de quem habita seu interior; uma pessoa compassiva, aberta, acolhedora... é sinal de que é habitada pela Trindade amorosa.
- Quem perde o caminho de sua interioridade, distancia-se da Trindade que é Vida e passa a viver a cultura da morte, deixando transparecer o ódio, a violência, o preconceito, a injustiça... como modo petrificado de ser.
- Qual é a Presença que determina sua vida: a Trindade Santa ou os dinamismos diabólicos (forças que dividem)?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.06.22
“…soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (Jo 20,22)
A liturgia da festa de Pentecostes deste ano nos situa no momento do encontro do Ressuscitado com seus discípulos, literalmente “trancados” numa sala, incapazes de romper seus medos, marcados por uma profun-da tristeza e decepção.
O Ressuscitado, ao exercer o “ofício do consolar” (S. Inácio), desperta novo ânimo naqueles homens desolados, graças ao sopro vital do seu Espírito, que se torna ação criadora e rompedora de tudo que limita. O Ressuscitado não só se apresenta e fala, mas comunica a si mesmo: entrega o seu Espírito, Aquele mesmo que o conduzia criativamente pelas estradas da Galiléia, instaurando o novo Reinado do Pai.
Pentecostes é, para os cristãos, a festa do Espírito. Ao dizer que Deus é Espírito, estamos dizendo que Ele não é um “ser fechado em si”, senão abertura, ser-para-os-outros. Chamamos Deus “Espírito” porque é força criadora e criativa, alento no qual todas as coisas e os humanos se sustentam. Toda a realidade, perpassada pelo dinamismo divino, só tem sentido em Deus; todas as “coisas” são em Deus. Também o ser humano: ele existe unicamente a partir do “sopro” do Espírito divino, que lhe dá autonomia e liberdade.
Em outras palavras, o Espírito é o espaço aberto do amor oblativo e presença que estabelece continuamente o “cosmos” em meio ao “caos”; é Deus mesmo como força expansiva e como fundamento de vida de tudo e de todos, como seio maternal e fecundante no qual podemos chegar à existência verdadeira. Por isso, o ser humano nunca vive a partir de si nem para si mesmo; existe imerso no Espírito divino e caminhando para o futuro (o novo nascimento) ao qual o Espírito lhe abre.
“Recebei a Ruah”, assim deve ter dito Jesus. Em sua língua materna, Jesus chamava o Espírito de “Ruah”. É uma pobreza falar só do “Espírito Santo” e deixar de lado a riqueza semântica da “ruah”, que, em hebraico, tem conotações muito mais ricas que o termo latino “spíritus”.
Assim, a expressão hebraica “Ruah”, feminino de Deus, significa a brisa, o “pairar” de Deus sobre as águas, o sopro impetuoso que gera vida. Alento, vento, sopro, respiração, força, fogo... com nome feminino, que fala de maternidade e de ternura, de vitalidade e carícia.
Assim como Jesus, pela força da “Ruah”, se encarnou e se humanizou, também nós nos fazemos cada vez mais humanos, por obra da mesma “Santa Ruah” de Deus. Ela nos faz pressentir o quanto amados somos, que, na comunhão, nunca estamos sozinhos, e que esta é a hora para cada um(a) de nós e o melhor momento que nos cabe viver. Sob o impulso da “Ruah”, vivemos todos no "horário nobre da vida”.
É a “Ruah” quem nos move a superar os esquemas atrofiados da vida e a assumir uma causa mobilizadora, centrada no Reino anunciado por Jesus. É Ela que nos arranca das malhas do egoísmo, liberta-nos dos interesses mesquinhos, faz-nos caminhar no terreno firme do amor, abre novos horizontes e nos impulsiona a assumir ideais mais elevados de felicidade e realização pessoal.
Ela continua presente na vida de todo(a) seguidor(a) de Jesus e no seio de sua comunidade. Continua atuando através de muitas pessoas e organizações que se comprometem radicalmente na luta contra tudo aquilo que rompe os vínculos, alienam e desumanizam. A “Ruah” de Deus continua atuando na história, embora aparentemente não a percebamos. Não é necessário fazer tanto barulho para dizer que a “Ruah” está agindo através de um discreto silêncio. Muitas vezes, não a sentimos porque atua de maneira muito simples, através de gestos que podem passar desapercebidos.
Portanto, viver alentados pela e na Ruah é também um convite a harmonizar sabiamente os opostos da vida: experiência de fortaleza/experiência de debilidade, silêncio/palavra, trabalho/descanso, partilhar/receber, presença/ausência, conectar/desconectar, saber caminhar acompanhados/saber estar a sós saboreando a dimensão positiva e fecunda de uma “solitude” (solidão habitada) que enriquece nosso mundo interior e fortalece nossas opções e compromissos.
Por outro lado, as consequências de viver sem o Espírito-Ruah, Espírito-Sophia, são realmente desastrosas. A vida cristã sem “Ruah” se revela como um conjunto de normas em uma instituição a mais, carregada de moralismo, doutrina estéril e ritualismos vazios. Fica obsoleta, porque não interpreta os sinais dos tempos, odres velhos para vinho novo.
Sempre é a “Ruah” que nos unifica, Aquela que nos convida a superar a divergência que é fruto de nosso falso eu. Nela, a diversidade nos enriquece.
É a “Ruah” de Deus, do amor, do comunitário e do comum, do povo de Deus. N’Ela já não é possível permanecermos fechados, pois Ela transpassa as paredes e quebra os ferrolhos das portas, nos faz abertos de coração e de mente, frente às reservas e às dúvidas do temor.
Com seus dons, compreendemos que o universo é nossa casa e nós não somos estranhos nela, que a humani-dade não caminha no vazio de uma existência do nada, senão rumo à Casa Comum do Pai, e que a senda é a dos irmãos na comunidade, em direção a um horizonte sempre inspirador.
O ser humano, desde sempre existe enquanto está fundamentado (protegido e potenciado) na Ruah.
Constituído de argila, como vaso nas mãos de um ceramista, cada um recebe o sopro ou hálito divino. É a própria Vida de Deus, o seu sopro vital, que faz surgir o humano do húmus da terra. É a “Ruah” de Deus, inspirado no ser humano, que o torna realmente humano.
Cada pessoa é portadora deste sopro de Deus e desta força misteriosa que o impulsiona à plenitude.
O sopro de Deus impresso no mais profundo de nosso ser, está enfaixado pela fragilidade da argila.
Somos a grande combinação resultante do sopro de Deus e da argila que nos configura.
Cada um de nós é a força criativa de Deus impressa em cada coração. O respiro ou hálito é o símbolo da presença do Criador em nós. Sob o signo de Adão, nós somos, em primeiro lugar, criaturas de Deus em comunhão com as demais criaturas, participando da mesma existência criatural. Mas, pelo sopro do próprio Deus, somos “elevados” à condição de imagem e semelhança d’Ele.
Então, tornamo-nos “criaturas abertas ao Espírito” e, mais ainda, “criaturas habitadas pelo Espíri-to”; somos argila, mas argila portadora da “Ruah”, argila aberta ao céu. Tornamo-nos, assim, imagem do mundo diante de Deus e imagem de Deus diante do mundo.
Nos relatos bíblicos, a “Ruah de Deus” se revela sempre “rompedora”, pois é Ela que “alarga o espaço de nossa tenda interior”. É como se derrubasse as paredes, abrisse portas e janelas e nos oferecesse espaços amplos de encontro. Desse modo, cabe mais gente em nossas vidas e a “Ruah” nos ajuda a descobrir a fraternidade e sororidade como um dom.
A “Ruah Santa” é aquela que faz estremecer as estruturas, que toca nos lugares mais profundos e nossos. Ela vem como gesto de Deus que arranca nossas vidas do porto seguro da acomodação e nos lança para os mares abertos do novo e das surpresas. Nela, quanto mais navegamos, mais descobrimos novos mares.
E nunca faltará o Vento ao nosso veleiro.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração: “Vem, Santa Ruah!”: é o clamor, o gemido, a oração universal. Melhor: é a Ruah quem clama, geme e ora no mais profundo de seu ser e no mais profundo de tudo quanto existe. O universo é oração.
- Deixe a Ruah fluir livremente; assim, a vida espiritual será para você aquela vida na qual a Ruah poderá se mover sem obstáculos. Uma espiritualidade holística que experimenta a presença d’Ela na totalidade de sua vida, em todas as dimensões da realidade: a história, a natureza, a interioridade, as relações humanas, a luta pela justiça, o descanso, o trabalho etc. Todos estes são lugares onde a Ruah se manifesta.
- Como exercício prático, localize em sua vida os momentos de profundas mudanças nos quais você se atreve a chamar “Pentecostes”, porque lhe fizeram descobrir em seu interior, a presença da Ruah de um modo novo, mais vivo e vigoroso; porque lhe fizeram ver as pessoas e a realidade com reverência; porque lhe fizeram sair de visões e atitudes estreitas; porque lhe tornaram diáfano (transparente) da presença de Deus no cotidiano de sua vida...
- Em sintonia com toda a Criação, abra espaço à presença e voz da “Ruah” em seu coração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.06.22
Jesus levou-os para fora, até perto de Betânia. Ali ergueu as mãos e abençoou-os” (Lc 24,50)
Segundo o relato de Lucas, na Ascenção, Jesus “desaparece” em Deus; Ele não se afasta da humanidade, mas continua presente de uma outra maneira: junto com o Pai e o Espírito faz sua “morada” no interior de cada pessoa.
Por isso, Jesus não deixa uma estrutura religiosa organizada (com sua hierarquia, seus ritos, leis, doutrinas...); Ele deixa na terra “testemunhas”, ou seja, aqueles(as) que comunicam a sua experiência de um Deus de bondade e contagiam com seu estilo de vida centrado no modo de agir e viver do próprio Jesus. Serão testemunhas cristificadas, trabalhando por um mundo mais justo e humano.
Mas Jesus conhece bem os seus discípulos; sabe que eles são frágeis e medrosos. Onde encontrarão a audácia para serem testemunhas de alguém que foi crucificado pelo representante do Império e pelos dirigentes do Templo? Jesus tranquiliza-os: “Eu enviarei a vós aquele que Pai prometeu”. Não lhes vai faltar a “força do alto”. O Espírito de Deus os defenderá.
A “ausência física” de Jesus revelar-se-á, então, como oportunidade para fazer crescer a maturidade de seus seguidores. Ele lhes deixa o dom de seu Espírito que promoverá o crescimento responsável e adulto dos seus. É inspirador recordar isso nesse momento em que parece crescer entre nós o medo à criatividade, a tentação do imobilismo, a petrificação no ritualismo e na doutrina, ou a saudade de um cristianismo pensado para outros tempos e outra cultura.
A festa da Ascenção do Senhor nos recorda que, terminada a presença história de Jesus, vivemos “o tempo do Espírito”, tempo de criatividade e de crescimento responsável no seguimento de Jesus. O Espírito não nos oferece “receitas eternas”. Ele nos dá luz e alento para ir buscando caminhos sempre novos e alternativos para atualizar hoje o modo de ser e agir de Jesus. Assim Ele nos conduz para a verdade completa d’Aquele que sempre se revelou verdadeiro.
Para expressar graficamente o último desejo de Jesus, o evangelista Lucas descreve a sua partida deste mundo de forma surpreendente: Jesus volta ao Pai levantando as suas mãos e abençoando os seus discípulos. É o seu último gesto. Jesus entra no mistério insondável de Deus e sobre o mundo faz descer a sua bênção. Seus seguidores começam sua peregrinação pelo mundo protegidos por aquela benção com a qual Jesus curava os enfermos, perdoava os pecadores, abençoava e acariciava as crianças...
A Bênção atravessa toda a Bíblia, e quer atravessar também nossas vidas. Ela brota do olhar primeiro e amoroso de Deus que, admirado, viu que toda Criação era boa e preciosa. Também nossa missão, confiada pelo Ressuscitado, consiste em recuperar este olhar, esta benção original, sobre nós e sobre a terra; uma bênção que desperta admiração e assombro ao perceber a bondade e beleza no interior daqueles que não são considerados bons e dignos de beleza.
A palavra “bênção” tem um sentido amplo e direto; procede do termo latino “benedictio” e significa “dizer bem”. Mas, determinados pelo nosso contexto social e político que preza pelo ódio, preconceito, maledicência, “fake news”..., a sensação que temos é que há uma curiosidade viral, uma excitação, um prazer mórbido em “dizer mal”, destruir reputações, emitir juízos moralistas, ferir e excluir o outro que pensa, sente e ama de maneira diferente. Há uma “maledictio” (“mal-dizer”) que paira em todos os meios de comunicação e redes sociais, envenenando relações, rompendo vínculos, criando divisões. E tudo isso emerge da interioridade petrificada das pessoas, alimentando um fúnebre processo de desumanização. O trágico é que essas manifestações de maldição são expressas por quem se confessa seguidor(a) d’Aquele que sempre foi presença visível da Verdade e fonte de perene Benção. Quanta incoerência no seguimento de Jesus Cristo!
“Não há pior patologia que essa dissipação da alma, esse olhar cheio de pré-juizos que nos torna pequenos e amargos, esse juízo que se deixa escravizar pelo defeito e pelo peso da imperfeição e depois não nos deixa sair até que ignoramos a liberdade. Não há exercício mais esterilizante que essa espécie de ressentimento expresso como anátema em relação com a vida, esse totalitarismo da queixa que, sem nos dar conta, nos asfixia, essa incapacidade de romper com a engrenagem da maldição sobre todos e sobre tudo, da qual nem nós mesmos escapamos” (Cardeal Tolentino).
Somos herdeiros(as) de uma benção, herdeiros(as) da doação e da esperança de tantos homens e mulheres que, ao longo da história, aliviaram sofrimento, recobraram dignidades e ajudaram a viver.
Agora, somos nós a geração portadora dessa benção. Presente, passado e futuro.
Como seguidores(as), esquecemo-nos que somos portadores(as) da bênção de Jesus. A nossa primeira tarefa é ser testemunha da Bondade de Deus, manter viva a esperança, não nos rendermos diante do “maledictio”.
Na Igreja de Jesus, temos esquecido que a primeira coisa a se fazer é promover uma “pastoral da bênção”. Temos de nos sentir testemunhas e profetas desse Jesus que passou a sua vida semeando gestos e palavras de bênção, de bondade e de misericórdia. Assim, despertou nas pessoas da Galiléia a esperança no Deus Salvador, abriu um horizonte de sentido. Jesus era uma bênção visível e as pessoas reconheciam isso.
Somos chamados a ser presença de “bênção”. Que todos aqueles que vivem situações de desamparo, de miséria, de desamor, de indefesa, de maldição... possam sentir em nós o prolongamento da Benção do Ressuscitado; possam sentir-se bem acolhidos, bem nomeados, bem olhados, bem-amados.
“Dizer bem”, “bendizer”, “abençoar”, é nossa vocação primordial, porque só isso desperta a consciência de que cada um de nós é portador(a) autorizado(a) de uma indestrutível benção, e esse é o modo de fazer justiça ao maravilhoso milagre que é estar vivos. “Dizer bem” é conectar-nos com aquela verdade mais profunda, que é o puro vínculo na ordem do ser. Sem essa ancoragem compassiva na raiz do nosso ser e no nosso modo cristificado de viver, não chegaremos a compreender verdadeiramente o enorme e misterioso pulsar da própria existência.
Cada um de nós depende – porque a vida é dom e confirmação reiterada do dom – daquilo que a benção desencadeia. Somos um elo na longa corrente de bênçãos; são inúmeras as pessoas que deixaram impregnadas em nosso coração a marca da bênção oblativa, aberta e desafiadora. Crescemos e amadurecemos sob o impulso da “benedictio” daqueles(as) que conviveram ou convivem conosco.
E, por isso, é tão importante buscar a benção, colocar-nos de seu lado luminoso, ativá-la e exercitá-la ao nosso redor. O tempo se ilumina quando nos deslocamos da sombra da “maledictio” e nos re-situamos na órbita da “benedictio”.
Assim se expressa a maravilhosa e antiga bênção irlandesa: “Que o caminho seja brando a teus pés,/ que o vento sopre leve em teus ombros./ Que o sol brilhe em teu rosto sem ferir-te,/ e as chuvas caiam serenas em teus campos./ E até que eu de novo te veja,/ Deus te guarde cada dia na palma de Sua mão”.
Texto bíblico: Lc 24,46-53
Na oração: Todo(a) seguidor(a) de Jesus é “canal” de transmissão de Sua bênção que salva, eleva, exalta a dignidade de cada pessoa.
- Sua presença cotidiana é reveladora de “benedictio” ou “maledictio”, de elogio ou de maledicência, de vibração diante da nobreza do outro ou de queixa amarga?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
26.05.22
“Se alguém me ama, guardará minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele nossa morada” (Jo 14,23)
Neste último domingo de Páscoa a liturgia, mais uma vez, nos faz ter acesso a um trecho do discurso de despedida de Jesus, no evangelho de S. João. Na realidade, trata-se de um “discurso pascal”, onde o evangelista recolhe os dons principais revelados pelo Ressuscitado: vida, amor, paz, fé, Espírito Santo.
A narração deste domingo dá destaque a uma nova presença do Cristo Ressuscitado entre os seus seguidores e seguidoras: junto com o Pai e o Espírito, Ele faz do interior de cada um(a) sua “morada”.
Sabemos que o ser humano é interioridade; é sua essência, é a dimensão mais nobre e sagrada de todos. E essa interioridade é habitada por uma Presença, sempre inspiradora e iluminadora como o Sol.“O Sol res-plendente está sempre dentro da alma e nada pode arrebatar sua magnificência” (S. Teresa D’Ávila).
Presença que fala dentro de nós; presença que é Fonte de paz; presença que, através do seu Espírito, nos inspira, nos sustenta e desperta as melhores energias e forças mobilizadoras de nossa vida.
Os mestres espirituais chamam a esta interioridade também de “Imago Dei” (imagem de Deus), ou a própria presença divina em nós.
Só descobrindo o que há de Deus em nós, poderemos cair na conta da nossa verdadeira identidade. Ele é nosso verdadeiro ser, nosso ser profundo, nossa essência. Somos templos de Deus, presença constante do Espírito de Deus conosco. Somos seres habitados; não estamos sozinhos.
É próprio do ser humano mergulhar e experimentar sua profundidade. Auscultando a si mesmo, percebe que brotam de seu “eu profundo” apelos de compaixão, de amorização e de identificação com os outros e com o grande Outro (Deus). Dá-se conta de uma Presença que sempre o acompanha, de um Centro ao redor do qual se organiza a vida interior e a partir do qual se elaboram os grandes sonhos e as significações últimas da vida.
Normalmente quando falamos de Deus nós o imaginamos bem distante e quase inacessível. Vemos longe Aquele que está tão perto, Aquele que trazemos dentro de nós mesmos. Vemos longe Aquele que vive e nos dá vida cada dia. Basta um simples olhar por dentro para nos encontrar com Ele.
Às vezes, sentimos como se tivéssemos medo de nosso próprio mistério; temos medo de sentir que nós somos o céu de Deus; temos medo de pensar que somos a “casa” onde vive e habita Deus.
Muitas vezes não nos damos conta dessa Presença, mas ela não nos invade, não nos anula, não se impõe... Simplesmente se faz habitante, presença, inspiração...
No entanto, esta é a nobreza de nosso ser: todos somos “morada” divina, porque nosso verdadeiro ser é o que há de Deus em nós; embora a imensa maioria das pessoas não tem consciência disso ainda, não podemos deixar de manifestar o que somos. Deus sempre habita no mais profundo de cada um de nós; podemos ou não entrar em sintonia com essa presença para nos deixar conduzir por ela.
Deus anda abraçado conosco e sua graça banha suavemente todas as dobras do nosso ser e agir. Agostinho cunhará a expressão de que Deus é “intimior intimo meo”, mais íntimo que nossa própria intimidade. Esta presença é fonte de vida espiritual, uma vida que pulsa dentro de nós e flui com diferentes “moções” que nos fazem sentir perto d’Aquele que já está perto.
Em nosso coração há sempre um movimento profundo que é manifestação da ação de Deus no mais íntimo de cada um.
Quem toma consciência de sua identidade profunda, descobre-se habitado e amado pelo Mistério e não pode fazer outra coisa senão amar e experimentar a comunhão com tudo e com todos. Na linguagem do quarto evangelho, Deus é o “centro” último do nosso interior, o que constitui nossa identidade mais profunda. A expressão do pensador Pascal - “o ser humano supera infinitamente o ser humano” -, resume bem esta vivência da Trindade que nos habita, nos move e nos faz transbordar em nossa mesma intimidade.
É o céu que vem tocar a terra, é Deus que se aloja no coração humano, é o Reino que se entrelaça na configuração de nossa convivência, é a fé que se revela como atitude de confiança inabalável.
Em Deus sempre vivemos. Em Deus nos movemos. Em Deus somos. A Ele nunca vamos. D’Ele nunca saímos. N’Ele sempre nos encontramos. Ele está nos gerando a cada momento (“o ser humano é criado para...). Precisamos vivenciar a Fonte donde tudo jorra e onde tudo deságua; precisamos caminhar à luz do Sol primordial, regressar ao seu seio luminoso.
Eis a meta derradeira do ser humano: a auto-transcendência.
Ao fazer morada em nós, Deus acende nosso desejo no desejo d’Ele, ativa a nossa vontade na Vontade d’Ele, faz pulsar o nosso coração no ritmo do Coração d’Ele. Ele entra com sua Liberdade nas raizes da nossa liberdade e alarga os espaços internos para que a Vida divina atravesse todas as dimensões de nosso ser, tornando nossa vida mais oblativa, aberta e comprometida. Segundo José Saramago “a vida é breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver”.
Podemos ter acesso ao mais profundo de nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, a dimensão “divina” que nos situa acima do vai-e-vém das coisas, para além da superficialidade e da aparência.
Enraizados nessa Presença divina que nos habita, podemos transitar pela história com mais sentido e inspiração. Nós nos movemos, pois, entre transcendência e história, entre contingência e eternidade. É no “substrato humano” que o mistério da Trindade marca presença e age. É na “natureza humana” que Deus constrói a Sua Tenda e, na Sua ternura, abraça a pessoa no seu todo; abrange todas as áreas da vida.
Deus se serve das mediações humanas para revelar-se e falar ao coração. Ele quer assumir o humano na sua totalidade. Ele deseja ser o responsável pela “terra sagrada” da vida humana. Da parte de cada pessoa, Ele pede, apenas, para deixá-Lo trabalhar, limpar, semear, fazer crescer e colher os frutos. A pessoa é solicitada para que deixe espaço aberto e livre ao plano da ação de Deus.
É nas entranhas mais profundas do ser que Deus “toca” com a Sua bondade, ternura e misericórdia. Esta experiência gera compromisso de viver a bondade, a ternura e a misericórdia na missão.
Assim é a Trindade amorosa revelada por Jesus, que se deixa “transparecer” no interior e na vida de cada um de nós. Se nos sentimos “morada de Deus”, se verdadeiramente Deus está em nós, devemos necessaria-mente manifestá-lo em nossa vida. Deus é amor e o melhor de nós é nosso ser amoroso; por isso, também nós devemos ser “diáfanos”, ou seja, deixar transparecer, em nossa vida e em nossa ação, o Deus íntimo, fundamento de nosso ser e identificado com cada ser humano. Quem é “diáfano” também “vê” o Deus que se deixa transparecer no outro.
Somos presença do amor de Deus no mundo. Os outros descobrirão essa Presença em nossa vida quando manifestemos, através de nossas atitiudes, o que de Deus há em nós: bondade, compaixão, disponibilidade, atitude de serviço aos outros; quando, de verdade, sejamos um ser para o outro, a partir de nosso ser amoroso. Isso significa viver já como seres ressuscitados, uma nova humanidade; isso significa nascer de novo, nascer para a Vida divina, eterna, definitiva. E isto, aqui e agora, sem deixar para mais tarde.
Texto bíblico: Jo. 14,23-29
Na oração: Na oração, mergulhamos em Deus e libertamos em nós profundidades que desconhecemos.
Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela de-verá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser. Descobriremos recursos e dons ainda inexplorados, que nascerão para a vida sob a ação da Graça de Deus. Ele é a verdadeira fonte do nosso ser, mais próxima de nós do que nós de nós mesmos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.05.22
“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13,35)
No evangelho deste domingo Jesus nos coloca diante da realidade mais profunda de sua mensagem e, ao mesmo tempo, a realidade que nos faz mais humanos: a vivência do amor. A forma como Ele se expressa é clara e simples: frente aos inumeráveis mandamentos rabínicos, frente ao Decálogo de Moisés, suas palavras soam taxativas: “Eu vos dou um novo mandamento”.
Só há um mandamento, não há outro: amar os outros, não de qualquer maneira, mas como Jesus nos amou. Ou seja, manifestar esse amor que é Deus, em nossas relações com os outros.
Jesus nos deixa a marca de identidade que nos distingue como cristãos. É o mandamento novo, em oposição ao mandamento antigo, a Lei. Jesus não manda amar a Deus nem amar a Ele, mas amar como Deus e como Ele ama.
O amor é expansivo, inclusivo, universal. Ao conectar com ele, graças à compreensão do que somos, tocamos aquele Centro que nos descentra ou, talvez melhor, nos des-egocentra. Porque a compreensão de quem somos não nos fecha nem nos faz girar em torno a nós mesmos em um narcisismo infantil e asfixiante, mas nos abre, como um abraço sem limites, a toda a realidade.
O amor é o “dinamismo divino”, poderosa força centrípeta e centrífuga ao mesmo tempo. No mesmo movimento, unifica nossa pessoa para “dentro” (integra e harmoniza todas as dimensões de nosso ser) e nos abre para “fora”, ao encontro inspirador com todos.
Jesus não propõe como primeiro mandamento o amar a Deus, nem o amor a ele mesmo. Não diz: “amai-me como eu vos amei”. Deus é dom total e não pede nada em troca. Não precisa de nós, nem nós podemos dar nada a Ele. Deus é puro dom, amor total. É preciso descobrir em nós e reativar esse dom incondicional de Deus que, através de nós deve chegar a todos.
O texto fala de “novo mandamento”, como querendo destacar a importância daquilo que aí se anuncia. Não se trata de um “conselho” nem de uma “recomendação”, mas de um "modo divino de proceder".
Ao dizer que é “mandamento novo”, provavelmente é um eco daquilo que os próprios discípulos percebiam como “novidade” no modo de viver do Mestre, na gratuidade e na incondicionalidade de seu amor.
“Que vos ameis uns aos outros” foi, muitas vezes, entendido como um amor aos “nossos”. A partir de cada comunidade cristã, o amor deve chegar a todos. Não se trata de amor aos que são amáveis (dignos de serem amados), mas de estar a serviço de todos como se fossem nós mesmos. Se deixamos de amar uma só pessoa, nosso amor evangélico se esvazia. Não se trata de um amor humano a mais, senão do “ágape” divino (amor gratuito).
Sem essa experiência de que Deus é Amor em nós, a mensagem evangélica não terá acesso ao nosso próprio ser. O amor que Jesus nos pede, não é algo que possa ter sua origem em nós. Só podemos ser espelho que reflete a essência de Deus, que é puro Amor.
Naturalmente não se pode impor o amor por decreto. O principal erro que continuamos cometendo é apresentar o amor como um preceito que vem de fora. Todos os esforços que façamos por cumprir um “mandamento” de amor estão fadados ao fracasso. O empenho está em descobrir que Deus é amor dentro de nós. Na realidade não se trata de uma lei, mas de uma resposta ao que Deus é em cada um de nós, e que em Jesus se manifestou de maneira contundente. Nosso amor será “um amor que responde a seu amor”.
O amor que Jesus nos pede deve surgir a partir de dentro, não se impor a partir de fora como uma obrigação. Trata-se de manifestar o que é Deus no fundo de nosso ser, através do nosso modo de ser e viver.
Por isso, não é um mandato dado por outro, vindo de fora, como uma imposição arbitrária. Pelo contrário, ressoa em nós como um convite a viver o que somos, ou seja, conectados com o Mistério amoroso “d’Aquele que é”. Isso será possível, não tanto através de um voluntarismo moral, mas graças à compreensão daquilo que somos. Na medida em que vamos conhecendo e vivendo o que somos, o amor brota espontâneo e vai abrindo caminho de vida, despertando o amor latente nos outros.
O mandamento de Jesus não diz respeito à relação com Deus, mas à relação com todo ser humano. O que Jesus pede aos seus é um amor incondicional e a todos sem exceção. Todas as normas, todas as leis devem orientar-se a esse fim.
Não se trata de um amor humano, mais ou menos perfeito. É preciso entrar na dinâmica do Amor do mesmo Deus. Isto é impossível sem primeiro experimentar esse amor. Tudo parte do amor do Pai, que se manifesta em Jesus e que agora circula através dos seus(suas) seguidores(as).
Falamos do mesmo e único Amor, que constitui o segredo último do Criador. O que se pede aos discípulos é que permitam que esse Amor, primeiro e originante, se expresse e seja vivido através deles.
Antes de dizer, antes de pedir, Jesus viveu até o limite a capacidade de amar, até amar como Deus ama: “como eu vos amei”. Mas essa expressão não é comparativa, mas originante e “causal”: porque eu vos amei”. Em outras palavras: “vocês devem se amar porque eu vos amei, e tanto quanto eu vos amei”. A tradução mais justa do texto joanino poderia ser esta: “Com o mesmo amor com que eu vos amei, amai-vos também uns aos outros” (Leon-Dufour).
Esta é a marca da identidade dos(as) seguidores(as) de Jesus, a característica mais importante da vida cristã.
João emprega no seu evangelho a palavra ágape, que expressa o amor sem mistura de interesse pessoal; seria o puro dom de si mesmo, só possível em Deus. A expressão “agapate” (“que vos ameis”) faz referência ao amor que é Deus, ou seja, ao grau mais elevado do dom de si mesmo. Não está falando de amor de amizade ou amor entre familiares. O amor de Deus é a realidade primeira e fundante.
Ágape é o amor divino. Esse amor é o mais raro, o mais precioso, o mais milagroso. Seria como que uma renúncia à centralidade do ego, ao poder, à força...
Assim como Jesus, que se “esvaziou de sua divindade”, o ágape se esvazia de si mesmo para dar mais lugar, para não invadir, para deixar ao outro um pouco mais de espaço, de liberdade...
É a doçura, a delicadeza de se afirmar menos, a autolimitação de seu poder, o esquecimento de si, o sacrifício de seu prazer, de seu bem-estar ou de seus interesses...
Estas são algumas características do ágape cristão: é um amor espontâneo e gratuito, sem motivo, sem interesse, até mesmo sem justificação... o puro amor.
“O ágape é um amor criador. O amor divino não se dirige ao que já é em si digno de amor; ao contrário, ele toma como objeto o que não tem nenhum valor em si e lhe dá um valor. O ágape não constata valores, cria-os. Ele ama e, com isso, confere valor. O homem amado por Deus não tem nenhum valor em si; o que lhe dá valor é o fato de Deus amá-lo. O ágape é um princípio criador de valor” (Nygren).
Descobrir essa realidade e vivê-la é o distintivo do(a) seguidor(a) de Jesus. E é essa qualidade do amor o sinal decisivo pelo qual os discípulos de Jesus deverão ser reconhecidos. Os seguidores dos fariseus eram reconhecidos pelas “filaterias” que usavam; os de João Batista, por batizar, os de Jesus, unicamente pelo amor.
O amor ágape é expansivo: nos alarga através dos nossos membros, mãos e pés.
Podemos dizer que o amor tem coração, mãos e pés: coração cheio de compaixão e ternura, mãos que cuidam, curam, abençoam... e pés que nos arrancam de nossos lugares estreitos e nos deslocam para as margens, os pobres... Desse modo, o mandato do amor remete à Fonte que o possibilita, ao Amor originante que tece a unidade de tudo que É e somos.
Texto bíblico: Jo 13,31-35
Na oração: - deixe que aflore (recorde) os dons e benefícios recebidos, manifestação do carinho e da ternura amorosa de Deus.
- Faça “memória agradecida” de sua presença amorosa na realidade cotidiana.
- Viva em clima de ação de graças como atitude permanente; isso reforça os laços, faz a vida mais leve, desperta o sentido do humor e anima a assumir os novos desafios, próprios deste tempo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.05.22
“As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem” (Jo 10,27)
A imagem do Bom Pastor está carregada de simbolismos interessantes, embora não tenha tanto impacto no contexto urbano em que vivemos, onde os valores da igualdade e democracia parecem estar em contradição com a imagem de rebanho conduzida por um Pastor. No entanto, para muitos, as imagens do “cercadinho” e a do “gado manipulado” parece não causar tanta estranheza.
Jesus não foi, nem quis que os seus seguidores fossem “ovelhas e cordeirinhos” submetidos aos controles de seus pastores, nem obrigados a cumprir normas e costumes impostos por aqueles que se dizem responsáveis pelo rebanho.
Rebanho não é anulação das identidades, nem uniformidade no modo de pensar, agir e ser. Cada pessoa é diferente, única, com experiências, expectativas, medos, ansiedades, desejos, fortalezas e fraquezas, com seu ritmo e modo próprios de viver.
“Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem ao Evangelho o melhor possível no meio de seus limites e podem desenvolver seu próprio discernimento diante de situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, mas não pretender substitui-las” (Papa Francisco - Amoris Laetitia).
Jesus, no ministério do seu pastoreio, ensina e atua com “autoridade”, e não como os escribas e fariseus. Ele revela o dom de ativar a autonomia em cada pessoa, de devolver-lhe sua dignidade, de remetê-la a si mesma, de ajudá-la a se conectar com seu ser profundo, com aquilo que é mais divino no seu próprio interior. Pastoreio que possibilita cada um viver em plenitude consigo mesmo.
Jesus é Pastor porque não impõe nenhuma doutrina nem complica a vida das pessoas com a carga da lei; Ele é Pastor porque, ao contemplar os rostos das pessoas, vê, no interior delas, ricas possibilidades humanas, ainda latentes; Sua presença inspiradora faz emergir o melhor e mais humano que há no coração de suas “ovelhas”, reconstruindo a humanidade ferida e abrindo sentido para sua existência.
O “divino pastoreio” significa trazer para fora ou extrair a verdade da pessoa (sua identidade), para que ela consiga ter uma visão ampla de si mesma e realizar-se da melhor maneira possível, ativando suas potencialidades, dons e recursos.
Nesse sentido, o pastoreio de Jesus não tinha nada a ver com poder que se impõe, nem liderança que arrasta, nem controle das consciências. Suas palavras e suas atitudes ativavam a vida; elas despertavam tudo o que estava atrofiado e adormecido no ser humano. Aqueles que escutavam sua voz sentiam que havia algo de vida eterna, que alimentava e dava sentido à própria existência.
As palavras do Bom Pastor transmitiam uma sensação de pureza às pessoas, pois elas passavam a se sentir em harmonia consigo mesmas e conectadas com a nova vida que brotava do interior.
Jesus não só transmitia um novo ensinamento, senão que criava uma relação nova com o povo e de uns com outros, segundo o espírito do Reino. Nesse ministério do pastoreio, a palavra de Jesus manifestava-se cordial, terna, calorosa, pois tocava o coração das pessoas; ela se revelava criadora de futuro ao transformar por dentro a pessoa que a acolhia.
Jesus mesmo mostrava-se como a “Voz” do Pai que se expressava em palavras de vida e que o movia a se aproximar de todas as pessoas, revelando-lhes a dignidade infinita que cada um carregava dentro de si.
Essa era a mais nobre missão de Jesus como Pastor: ensinar os homens e as mulheres para que fossem eles(elas) mesmos(as) em liberdade, para que descobrissem e ativassem a verdade por dentro, sua verdade fontal, para que todos se guiassem e se ajudassem e, assim, fossem e vivessem em plenitude.
Com sua Voz instigante e mobilizadora, Jesus foi semeando humanidade, despertando o amor criativo, que se fazia vida naqueles(as) que o escutavam e acolhiam sua palavra.
Assim, o “divino pastoreio” evoca a verdade do ser humano, comporta uma provocação, uma proposta que o move a potencializar ao máximo seus recursos internos, revelando aquilo que ele é capaz.
Deixar-se conduzir pela “Voz do Bom Pastor” significa uma autêntica experiência e que tem efeitos explosivos: é novidade que surpreende e às vezes assusta, cria novas expectativas e solicitações, traz mobilização, pede mudança dos costumes e dos velhos estilos de vida, realimenta a liberdade criativa, leva adiante o equilíbrio de cada um em direção a horizontes imprevisíveis, abre uma nova fase de vida...
Aos olhos do Pastor da Galiléia nada é mais perigoso para o espírito humano do que vidas satisfeitas, acomodadas, sem desejos, sem o dinamismo das esperas e o desassossego das buscas; corações quietos, indolentes, medrosos, sem iniciativa, sensatamente contentes com aquilo que são e têm, conduzem à morte. Pelo contrário, como as vidas são repletas de razões, criatividade, entusiasmo e vitalidade quando se inspiram no modo de ser e viver do Bom Pastor!
Por isso, Sua Voz merece ser “escutada” para que ela tenha ressonância no nosso próprio interior e inspire o nosso modo de ser e viver. Inspirado(a) e identificado(a) com o Bom Pastor, todo(a) seguidor(a) se reveste desse “ministério do pastoreio”. Nesse sentido podemos afirmar: “como seguidores(as) do Bom Pastor, todo somos pastores(as) e exercemos esse ministério o tempo todo”.
Tudo começa com a escuta; por sua vez, só escuta quem se encontra numa atitude de busca. Quem crê estar em posse da verdade, deixa de buscar; blindado a qualquer questionamento, permanece instalado na “zona de conforto” de sua comodidade.
A pessoa que entra em sintonia com a Voz do Divino Mestre, começa escutando. A escuta requer uma disposição de abertura inicial, que implica flexibilidade para permitir inclusive que as convicções prévias possam ser removidas. A escuta revela seus próprios segredos para quem sabe desnudar-se nela.
Quando, aquilo que “escutamos”, encontra eco em nosso interior, reconhecemos estar em contato com nosso eu verdadeiro e em profunda “sintonia” com a pessoa que nos fala. Isto é o que acontecia com os seguidores de Jesus e o que continua acontecendo conosco quando lemos o evangelho: ao perceber que a palavra de Jesus “lê” nosso interior, nós a reconhecemos como própria e “comungamos” com sua pessoa, na unidade de vida que transcende o tempo e o espaço.
É preciso, então, educar os ouvidos para aprender a escutar, escutar-se, e assim poder dialogar.
“Escutar”, do termo latino “auscultare”, implica atenção e concentração para entender e poder ajudar.
Consequentemente, escutar as palavras e os gestos, os silêncios, as dores e raivas, os gritos de insegurança e de medo; escutar os tímidos e os sem voz, escutar os gemidos de Deus na dor dos pobres e sofredores; escutar o que se diz e o que se cala e como se diz e por que se cala; escutar também as ações, a vida, que com frequência negam o que se proclama nos discursos. Muitos desfazem com seus pés o que buscam construir com suas palavras.
Texto bíblico: Jo. 10,27-30
Na oração: Dar o maior e mais amplo espaço possível ao Pastor interior e deixar-se conduzir por Ele em todas as circunstâncias, em todo tempo e situações da vida. Ele o(a) conhece como ninguém e como ninguém faz emergir tudo aquilo que o Pai colocou em seu coração como criatividade, imaginação, intuição...
- “Ex-ponha-se” diante d’Ele, deixe ressoar Sua Voz em seu interior; deixe-se transbordar, surpreender pela presença d’Aquele que mobiliza seus melhores recursos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.05.22
imagem: pexels.com
“Saíram e entraram na barca, mas não pescaram nada naquela noite” (Jo 21,3)
A vida é constituída de momentos de luta e de coragem, de sonhos e de esperança, de vitórias e de derrotas. Este é o material com o qual são construídas nossas histórias, pessoais e coletivas.
Todos nós já vivemos experiências de fracassos, quando tudo desmorona, quando tudo nos é tirado, quando perdemos o chão, quando parece que evapora tudo aquilo sobre o qual tínhamos investido todo o nosso amor e toda a nossa energia e criatividade.
Mas, no horizonte da Ressurreição, o fracasso tem seu lugar. Ele pode ser percebido como chance para crescimento ou amadurecimento, ou pode ser integrado à luz de outras experiências positivas. Aprendemos mais pelos nossos fracassos do que pelos nossos êxitos.
O fracasso pode ser, à luz da Ressurreição, des-velador da natureza do ser humano, que vai amadurecendo, superando o sentimento infantil de onipotência, descendo do pedestal de sua soberba para tornar-se mais humano, mais amoroso, mais confiante... Os fracassos podem se revelar como ocasião privilegiada para ativar outros recursos humanos que não tiveram chance de se expressarem.
Integrar os fracassos significa assumir as perdas ou carências que aparecem como uma negação de vida, mas que contém potencial de nova vida, de crescimento, de maturação pessoal. Em definitiva, de criativida-de humana, base da evolução pessoal e social.
Em nosso contexto social, o fracasso é vivido como uma perda de prestígio e poder. Mas se o situamos no horizonte da Ressurreição, ele pode ser elaborado saudavelmente e, então, poderemos descobrir que o fracasso pode ser fonte de fecundidade. A Ressurreição nos ajuda a re-siginificar, a re-ler, a re-interpretar todos os nossos dramas, crises, feridas, fracassos... Tudo é acolhido, tudo é integrado, tudo é mobilizado para dar um novo passo em direção a um novo futuro de vida.
Há um relato que sempre nos impacta muito e que aparece no capítulo 21 do evangelho de João. Trata-se da aparição do Ressuscitado aos discípulos no lago da Galiléia.
Normalmente nosso imaginário concebe a Ressurreição como uma grande “apoteose”; mas, se algo está ausente nas aparições do Ressuscitado, tal como os evangelhos nos relatam, é precisamente a apoteose.
O dicionário Houaiss da língua portuguesa a define como o ápice, o momento mais importante de um acontecimento, o apogeu, a glorificação, o júbilo, o entusiasmo, o cume... Mas, por mais que busquemos algo disso nos relatos pascais, não é possível encontrar nenhum rastro de semelhantes exaltações, resplen-dores, arrebatamentos...
Ao relatar como o Ressuscitado se conectava com os seus amigos e amigas, o que nos assombra é sua discreta maneira de fazer-se próximo, de surpreender-lhes em seus trajetos habituais, de lhes saudar com o “Shalon” de cada dia, de apresentar-se sob as aparências mais comuns: um trabalhador de parques e jardins, um forasteiro desinformado a quem é preciso atualizá-lo sobre os últimos acontecimentos, um desconhecido ocioso que, a partir da margem do mar, pergunta como foi a pescaria.
Mas há um dado constante nos relatos das Aparições do Ressuscitado: Ele se faz presente no meio do fracasso, da dor, da tristeza, da ferida..., e, aos poucos, vai iluminando a situação dramática de cada pessoa ou do grupo, vai reconstruindo vidas despedaçadas, vai abrindo horizonte de sentido e confirmando a missão de prolongar o “movimento de vida” iniciado na Galiléia.
No relato pascal deste domingo, o evangelista João revela que, à primeira vista, parece que a situação dos discípulos não tinha mudado; eles tinham perdido sua condição de seguidores, tocaram fundo na decepção que a morte lhes produziu e atrofiaram o sonho no qual acreditavam que estavam fundadas suas vidas.
Novamente eles se encontram junto à praia e entre redes, como no começo; o vazio, o abandono, a solidão, a escuridão da noite, a rotina de um trabalho cansativo e ineficaz, dominam a paisagem do texto; novamente a dureza de cada dia, em um cotidiano sem a presença de Jesus.
Mas, um “estranho”, muito cedo, da margem do lago, atreve-se a provocá-los, fazendo uma pergunta onde mais doía: “moços, tendes alguma coisa para comer?”
Diante de um “não” ríspido, o Ressuscitado faz um convite ousado: “Lançai a rede à direita da barca e achareis”. É como se dissesse: mudem de atitude, pesquem de maneira diferente, busquem outros lugares, saiam da rotina, sejam criativos... Também para lançar a rede existem dois lados: um lado conhecido e rotineiro; e outro lado alternativo e novo. Revendo o passado, os discípulos reconheceram que estavam trabalhando no lado errado, determinados pelo peso de uma tradição que não os deixava crescer.
Saber escutar os outros sempre pode ser útil. O pior é a auto-suficiência que leva a acreditar que sabe tudo. Até o conselho de um desconhecido pode ser princípio do êxito.
A nova consciência transforma tudo. A vida ganha a plenitude da rede, torna-se vida em abundância.
Uma frugal refeição e a presença que se faz companhia foram a estratégia encontrada por Jesus para retomar o movimento de vida que fora bloqueado pela sua paixão; ao mesmo tempo, tornam-se o ambiente favorável para confirmar a missão dos seus mais íntimos, sobretudo de Pedro, que passara por uma profunda experiência de fracasso: negara a amizade com Jesus.
Há algumas brasas, que recordam aquela fogueira em torno da qual, alguns dias antes, o velho pescador jurou não conhecer Jesus, negando-o três vezes. Agora, junto ao fogo irmão, Jesus lavará com misericórdia a fraqueza de Pedro, transformando para sempre seu barro frágil em pedra fiel.
O relato deste domingo (3º da Pásco) nos revela que é do meio do fracasso que pode brotar o impulso para uma adesão mais radical Àquele que no fracasso “desceu” ao mais “inferior” (“infernos”) da condição humana, Àquele que “se fez fracasso” para se fazer mais solidário com todos os fracassados da história.
Assim aconteceu com Pedro e os seus companheiros. Foi no contexto do fracasso (morte de Jesus, retorno à profissão de pescadores, pescaria infrutífera...) que Pedro foi perguntado três vezes sobre o “amor”.
Foi também nesse contexto que Pedro teve chance de se deixar reconstruir em sua identidade pela presença do Ressuscitado; também por três vezes expressa a radicalidade de seu amor à pessoa de Jesus Cristo, que se faz visível na identificação com Ele e na confirmação de sua missão: “apascenta minhas ovelhas”.
As perguntas de Jesus a Pedro nos revelam que a cura das feridas emocionais é, antes de tudo, um caminho novo que envolve afeto, amizade, amor.
Antes, um Pedro valente o suficiente para cortar a orelha do servo do Sumo Sacerdote com a espada, mas que perde a valentia em seguida, a ponto de negar conhecer o próprio Jesus.
O Pedro que emerge deste contato terapêutico com o Ressuscitado é um Pedro corajoso, decidido, mas também muito mais amoroso, humano, pronto para exercer o “ministério do cuidado” do rebanho, confiado pelo Ressuscitado.
Texto bíblico: Jo 21,1-19
Na oração: O encontro com o Ressuscitado possibilita re-ler a vida, ressignificar fatos, “reci-clar” perdas e feridas, “processar” fracassos..., para sair do “fatal ponto morto” e entrar no movimento expansi-vo da Vida.
- Diante das crises, feridas, fracassos..., qual é a sua tendência? Tentar deletá-los através do retorno ao cotidiano normótico (voltar a pescar)? Ou oportunidade para um despertar a outras dimensões da vida, mais ricas e ousadas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.04.22
Imagem: Sieger Koder
“Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (Jo 20,20)
O relato pascal deste 2º domingo da Páscoa é chave para entender o sentido de todas as aparições do Ressuscitado aos seus amigos e amigas. Ele não tem a intenção de nos querer dizer o que “aconteceu”, mas transmitir-nos uma vivência, uma experiência.
Ao refletir sobre os relatos das Aparições padecemos de um míope e estéril realismo: quê viram? quê aconteceu? como Ele apareceu?... Interessa-nos muito mais a curiosidade do investigador. Lemos os Evangelhos mais como jornalistas do que como pessoas de fé. Nosso desejo era ter estado ali e ver tudo com nossos próprios olhos.
Mas, se tivéssemos estado ali, teríamos acreditado no Crucificado? Esta é a pergunta decisiva. Esta é a finalidade do relato de João, especialmente do conjunto Paixão/Ressurreição: “que creiais no Crucificado”. Aquele que não sente sua fé interpelada pelo crucificado e pelos crucificados do mundo, não tem uma fé bem enraizada.
A experiência pascal dos(as) seguidores(as) de Jesus revela que é na comunidade onde se pode descobrir a presença do Ressuscitado. A comunidade é a garantia da fidelidade a Jesus e ao seu Espírito; sobretudo, é a comunidade que recebe a nobre missão de expandir a grande surpresa realizada pelo Pai em Jesus.
Jesus aparece no centro da comunidade dos seus amigos e amigas, como presença de unidade, porque, agora, Ele é para eles e elas a única referência e fator de comunhão. A comunidade cristã está centrada em Jesus: sua saudação elimina o medo; as chagas, sinal de sua entrega, evidenciam que é o mesmo que morreu na cruz; o sopro do seu Espírito lhes reacende a alegria e a coragem; desaparece o medo da morte...
A verdadeira Vida não pode ser tirada de Jesus nem tirada dos seus seguidores. A permanência dos sinais de sua morte (chagas) indica a permanência de seu amor. Além disso, garante a identificação do Ressuscitado com o Jesus crucificado. A comunidade tem agora a experiência de que Jesus vive e lhe comunica essa mesma Vida.
O evangelista João é o único que divide em dois o relato da aparição aos apóstolos reunidos. Com isso personaliza em Tomé o tema da dúvida, que é capital em todos os relatos de aparições. Bastavam os sinais anteriores: o dom da paz, a memória de sua entrega (mãos e lado), o perdão, o sopro do Espírito. Mas o texto joanino continua dizendo que faltava Tomé, precisamente um dos Doze. Não é um cristão comum aquele que estava ausente da comunidade, mas um dos antigos companheiros de Jesus, um de seus doze seguidores. Precisamente Tomé, um dos líderes da igreja primitiva, corria o risco de entender a ressurreição de um modo “espiritualista”, “desencarnada”, fora da comunidade.
Não há experiência pascal sem um retorno à corporalidade do Cristo, que continua sendo o mesmo Jesus da história que morreu por sua fidelidade à causa do Reino: trazer vida em abundância a todos.
Neste segundo encontro do Ressuscitado com os discípulos, João destaca a exigência de “tocar” as feridas de Jesus, para conservar assim a memória de sua paixão, descobrir sua presença pascal e encontrá-lo nos feridos da história. “Tocar” em Jesus significa tocar e curar as feridas da humanidade que sofre.
A fé pascal expressa-se, dessa forma, como experiência mística (mas realíssima) do sofrimento e morte do Messias, que continua morrendo nos crucificados e enfermos deste mundo. O Ressuscitado não se apresenta com força e poder, mas com amor e a partir do amor, exercendo o “ofício do consolar” (S. Inácio). Por isso, às vezes não é fácil reconhecê-lo. E, no entanto, é Ele mesmo. Aquele que foi crucificado é o que Deus ressuscitou. Esta igualdade fica expressa por meio das chagas que o Ressuscitado traz em seu corpo. Mas estas chagas são algo mais que um modo de dizer “sou eu mesmo”. As chagas são expressão de identidade, ou seja, pertencem a seu novo ser de ressuscitado; elas são as “marcas” da entrega e que nunca desaparecerão.
Dito de outro modo: Jesus, vencedor da morte, não abandona a fragilidade da existência humana. A fragilidade da carne mortal foi assumida na glória do corpo ressuscitado. A ressurreição não O separa da condição humana anterior. Não é a passagem a uma condição superior, mas a mesma condição humana levada à sua culminação. A Jesus e a nós o Pai nos acolhe com toda nossa realidade, purificada e transformada.
Ao contemplar as chagas do Ressuscitado, somos movidos a olhar e acolher também nossas chagas: medos, traumas, fracassos, feridas...
Jesus, que conhece bem nossas obscuridades e resistências, medos e bloqueios que nos habitam, se faz presente em meio às nossas vidas abrindo as portas fechadas e pacificando nosso interior: “a paz esteja com vocês!”. Assim, no-lo repete, continuamente, insistentemente, pacientemente.
Ele vem ao nosso encontro e se empenha em re-criar-nos, comunicando seu Sopro sobre nós, como o Criador fez no princípio de tudo. Ali onde continua habitando o caos, a incerteza e a desconfiança, Ele nos oferece alegria, paz e fortaleza. Alenta nossa fé e renova nossas relações pessoais e comunitárias. Gratuitamente; com infinito amor. Com o mesmo amor com que nos anunciou a Boa Nova e nos libertou de nossas enfermidades; com o mesmo amor com que se pôs a nossos pés para lavá-los; com o mesmo amor com que fez de sua vida uma doação radical.
A experiência do encontro com o Ressuscitado nos faz também encontrar o verdadeiro lugar do nosso corpo em nossa vida. Normalmente tratamos mal nosso corpo: há muito de stress, de suspeita, medo e submissão. Sabemos muito sobre nossa mente e muito pouco sobre nosso corpo; temos uma alma livre num corpo rígido.
A nossa vida é uma bela história de ressurreição, um milagre de fortaleza na fragilidade que nos impulsiona continuamente a nos despertar da letargia, a sair de nossos lugares fechados, a colocar-nos de pé, a pisar firme sobre a terra, abandonando nossos túmulos e fechamentos, e continuar caminhando, com a cabeça erguida e os olhos fixos no horizonte da vida, onde se revela a Vida plena do Ressuscitado.
A este Vivente seguimos, pois Ele sempre nos oferece a oportunidade para nos encontrar com Ele e reconhecê-lo, apesar de nossas cegueiras, medos e pesadelos. Ele sempre nos toma pela mão para aproximá-la de suas feridas abertas e mostrar-nos, nas marcas deixadas pelos cravos, que a morte não tem a última palavra. Aproximar de suas feridas reacende em nós a solidariedade e o impulso para sair de nossos espaços fechados e entrar em sintonia com os chagados da história. As chagas do Crucificado, por graça, nos transformam em testemunhas de sua presença em todos os feridos e sofredores.
Que sua paz alente nosso anúncio alegre para que outros possam crer e, crendo, todas tenham vida em seu Nome!
Texto bíblico: Jo 20, 19-31
Na oração: Abrir espaço interno para que o Ressuscitado tenha liberdade de transitar por suas feridas existenciais (traumas, fracassos, rejei-ções, crises...) integrando-as, ressignificando-as, iluminando-as...
- Como ser presença ressuscitada neste mundo onde impera a cultura da morte, do ódio e da violência...? Como se fazer próximo e “tocar” as vítimas chagadas?
- Sua fé no Ressuscitado tem implicações sociais, políticas, relacionais..., ou se revela mais como uma “espiritualidade desencarnada”, intimista, alienada...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.04.22
+ Na alegria da ressurreição, prepare a oração, criando um clima de profunda intimidade com o Ressuscitado.
+ Suplique a Deus o dom da alegria com Cristo Ressuscitado; que a experiência da Ressurreição o(a) impulsione a viver com mais intensidade em comunhão com toda a humanidade e toda a Criação.
+ Antes de “entrar em contemplação”, repasse os “pontos” seguintes:
Mestre Crucificado, Mestre Ressuscitado. O ensinamento de Jesus revelou-se inseparável de sua vida; em outras palavras, Ele ensinou com sua vida. Certamente, Jesus ensinou com parábolas, com gestos ousados... Mas, no final, o que educa de verdade é sua própria vida de Mestre amigo, terapeuta, compassivo, crucificado, ressuscitado... Por isso, não basta dizer que o ensinamento de Jesus “segue adiante”, mas que devemos acrescentar: Jesus mesmo, ressuscitado por Deus, é o autêntico educador.
Os relatos de suas Aparições nos revelam como Ele foi reconstruindo as pessoas, amigas e amigos, quebrados(as) pelo fracasso, pela tristeza, pela decepção... Jesus os(as) ressuscitou por dentro, despertando a vida bloqueada e abrindo o horizonte da missão.
“Olhar o ofício de consolar que Cristo nosso Senhor exerce” (EE. 224). S. Inácio utiliza esta expressão quando apresenta, na 4ª Semana dos Exercícios, a contemplação das aparições do Ressuscitado.
Consolar é o que define a ação do Ressuscitado, transformando a situação dos seus discípulos e discípulas: a tristeza se converte numa alegria contagiosa, o medo em valentia e audácia, a negação de Jesus em profissão de fé e martírio... Não se trata de um ato pontual senão de um “ofício” , que definirá para sempre a atividade de seu Espírito no mundo.
Nas cenas evangélicas das aparições, o efeito da presença do Ressuscitado sobre os discípulos e discípulas termina sempre em reconhecimento, em chamado e envio, em restauração de uma vocação e missão.
Jesus ressuscitado exerce sobre eles(elas) um original “ofício de consolar”, cujo efeito é iluminar o caminho pelo qual, em seu nome e com Ele, eles e elas hão de percorrer. O “ofício de consolar” é a marca do Ressuscitado, é força recriadora e reconstrutora de vidas despedaçadas. Jesus “ressuscita” cada um dos seus amigos e amigas, ativando neles(as) o sentido da vida, reconstruindo os laços comunitários rompidos, e sobretudo, oferecendo solo firme a quem estava sem chão, sem direção...
O verbo “consolar” tem, no hebraico, um sentido mais amplo e forte que nas línguas latinas, porque, muito mais que animar a alguém abatido, expressa a ação eficaz de conseguir com que desapareçam os motivos de seu abatimento. Neste sentido, consolar não é tão somente acompanhar senão, também, inclui a ação de dar esperança, uma esperança fundada, capaz de produzir uma mudança radical no estado de ânimo do outro.
Nos relatos das aparições de Jesus Ressuscitado, esta experiência de ficar consolado aparece muito evidente, porque passa-se da angústia do túmulo vazio à consolação na presença d’Aquele que vive; é a passagem da ausência desconcertante à presença significativa.
O Ressuscitado se aproxima como Presença viva que comunica Vida: deixa-se ver, caminha, fala, interpela, corrige, anima, transmite paz e alegria. Em uma palavra, presenteia seu Espírito.
Sua maneira de se fazer presente é pessoal, personalizante, identificadora: dizer o nome, suscitar recordações e experiências comuns, fazer vislumbrar projetos de futuro.
Outra vez Jesus recria a comunidade que, depois da Paixão, estava se desintegrando; e seus discípulos experimentam novamente o chamado e o envio, a serem testemunhas e cúmplices do Espírito, porque vivem a certeza existencial de que o Crucificado é o Ressuscitado, que a morte foi vencida, que Deus está constituído como Senhor.
Em meio à dor, os(as) discípulos(as) aprendem a confiar em Deus e a não se deixar levar pela tristeza.
A alegria não começa quando acabam as dores; a alegria é uma opção de vida, expressão da confiança em Deus, que torna possível enfrentar o sofrimento com esperança. A alegria não suprime o sofrimento, mas lhe dá sentido. A alegria não desconhece o sofrimento, senão que o enfrenta com confiança.
Em nosso uso habitual, a palavra “consolação” e o verbo “consolar” apontam para um profundo e rico significado: revelam um tipo de proximidade e comunhão com o outro capaz de lhe transmitir compreensão, alento, acolhida, impulso... ou seja, uma transmissão de energia que desperte nele suas próprias capacidades de reação diante de uma situação de tristeza, de fracasso, de desespero ou sofrimento...
Nos Exercícios Espirituais de S. Inácio, consolação e consolar são a linguagem e ação de Deus no ser humano, comunicação do Criador com a criatura, iniciativa de Deus que, quando é recebida com agradecimento e pureza, isto é, como dom gratuito e como escuta disponível, nunca deixam a pessoa consolada no mesmo lugar ou situação onde estava antes.
A consolação de Deus é sempre dinamizadora daquilo que é mais divino no ser humano.
Por ser manifestação da comunicação do Espírito de Deus ao espírito humano, gera sempre na pessoa, amor, alegria, fé, entusiasmo..., e desemboca sempre na missão.
Deus nos consola para que possamos consolar.
Na consolação, Deus nos chama a ser seus colaboradores. A consolação que recebemos do Senhor não nos é dada tendo em vista um desfrute narcisista e fechado deste dom espiritual, mas tem a finalidade de capacitar-nos para o “ministério da consolação”.
É um dom para a missão; se alguém se apropria dela como coisa pessoal, morre.
Dessa consolação de Deus, da qual nós mesmos e nosso mundo tanto necessitamos, somos chamados a fazer-nos receptores e mediadores.
Trata-se de uma consolação que é pura graça, que não está ao alcance de nossa mão dá-la a nós mesmos, nem dá-la aos outros, mas da qual podemos ser agradecidamente receptores e gratuitamente mediadores. Com isso, a consolação pode estender-se a outros muitos rincões da existência humana.
É tempo de autocompreender-nos e atuar frente aos outros como enviados a exercer ativamente o “ofício de consolar”, tendo sempre presente que a consolação verdadeira pertence somente ao Espírito, já que não é outra coisa que a gratuita autocomunicação do Deus trinitário à humanidade.
É Ele mesmo quem deseja compartilhar conosco este ofício, o ofício de consolar.
Consolação e “ofício de consolar” nascem e vem precedidas pela experiência de uma alegria pura e totalmente desinteressada pelo Senhor. Alegria interna e verdadeira que procede e provoca a missão.
Nada mobiliza tanto como o agradecimento e nada revela tanto o agradecimento como a alegria pura pelo bem do outro. A gratuidade é o habitat natural da consolação e do consolado.
Todos somos chamados a prolongar este “ofício de consolar” de Jesus; a experiência da Ressurreição nos move a “descer” junto à realidade do outro (seus dramas, fracassos, perda de sentido da vida...) e exercer este ministério humanizador, ou seja, ministério entre iguais, “vida que desperta outra vida”.
É vida plenificada, iluminada, integrada... pela experiência de encontro com o Ressuscitado e que flui em direção à vida bloqueada, necrosada... ativando-a, despertando-a...
É movimento expansivo da vida.
Assim como a consolação é o canal privilegiado pelo qual Deus se comunica e atua em nós, o ofício do consolo” é o canal por onde flui a vida.
Textos bíblicos: Jo 20,11-18 Lc 24,13-35
Na oração: faça “memória” das experiências de consolação, suscitadas pela Graça de Deus ao longo desta Quaresma
- Recorde pessoas que foram “presenças consoladoras” em sua vida.
- Traga à memória situações em que você foi o(a) mediador(a) da consolação de Deus.
Iluminar a madrugada e tecer liberdade, nutrir a vida de compaixão e amizade, celebrá-la e oferecê-la de verdade, orar... Esse é o movimento de Ressurreição? É isto que o evangelista João quer destacar quando escreve que Madalena “saiu correndo”, que Pedro e João “corriam juntos”?
Que a Páscoa seja um tempo de movimento e cada um(a) discirna para onde correr!
Um Santo Tempo Pascal e todos e todas!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.04.22
“No lugar onde Jesus foi crucificado havia um jardim e, no jardim, um túmulo novo...” (Jo 19,41
É Sábado e Jerusalém voltou à sua normalidade: nada mudou, ao menos aparentemente, na história. Silêncio gélido, desconcerto, frustração e indiferença cobrem a cidade santa como um manto de densa neblina.
Como seguidores(as) de Jesus vivemos nossos adventos, natais, quaresmas, páscoas e pentecostes; vivemos nossas sextas-feiras; é preciso aprender a viver o incômodo silêncio dos sábados santos.
No caminho do seguimento de Jesus há “Sábados Santos”, tanto no nível pessoal como comunitário: passamos por contínuas mortes, noites escuras, crises, silêncios carregados de tristeza, falta de esperança, dúvidas de fé, fracassos, traumas...
A humanidade inteira vive um grande “Sábado Santo”; há uma espera angustiada dos povos. Envolve-nos a “noite sabática”, que deve realimentar a paixão pela vida.
Sábado Santo da dor, da tristeza, do fracasso..., mas também Sábado Santo da espera e da esperança. É o Sábado Santo que nos abre às surpresas de Deus.
Onde encontrar, então, a razão, o segredo e o sentido deste dia que dá a sensação de um “dia morto”?
Certamente está neste fato: se o Crucificado não tivesse descido até os “infernos” da vida, em quem os homens e as mulheres que ali vivem poderiam se apoiar? A quem poderiam ter por companheiro, amigo e irmão? De quem poderiam sentir uma presença consoladora?
Somente porque Jesus desceu nos “infernos” da vida é que pode salvar-nos deles, transformá-los em caminho. “Porque foi provado no sofrimento, pode ajudar os que são provados” (Heb. 2,18).
Os “crucificados da história”, os sofredores e as vítimas são lugar de encontro, sempre e para todos; eles são sacramento do mundo que Jesus veio transformar, porque não corresponde ao que o Pai sonhou a respeito deste mesmo mundo; são um compromisso obrigatório para encontrar Aquele que viveu a verdadeira Paixão em favor da vida.
Talvez nem todos possamos estar ao lado das vítimas e dos últimos, próximos deles, participando de sua vida. No entanto, todos devemos estar a favor deles, junto Àquele que, na sua morte, faz-se solidário com todos e caminha ao lado de todos eles.
As “mediações” que Deus utiliza em sua ação salvífica são o amor humilde, a pobreza solidária e a participação no sofrimento humano. Loucuras do amor de Deus. Só o amor que se entrega, salva.
É em sua morte na Cruz que Jesus desce até o extremo de sua condição humana. Com estas duas palavras, “descer” e “subir”, o evangelista João descreve o mistério da Redenção realizada por Cristo.
“Ninguém subiu ao céu senão Aquele que desceu do céu, o Filho do Homem” (Jô. 3,13)
A Igreja primitiva viu a “descida entre os mortos” como paradigma da Redenção. No Sábado de Aleluia, ela lembra este “descer” às profundezas da terra e da humanidade.
Na “descida aos infernos”, lá onde o ser humano chegou ao extremo, onde ele se encontra excluído de toda comunicação e comunhão, onde não pode fazer mais coisa alguma, aí Jesus o toma pelas mãos e ressurge com ele para a vida. Jesus Cristo acolheu tudo quanto é humano e desta maneira tudo redimiu. Ele “subiu” ao céu porque “desceu” às profundezas da terra.
A descida aos “infernos” é imagem da descida de Jesus às regiões sombrias de nossa existência.
Descobrimo-Lo presente nos nossos “infernos interiores. As profundezas de nosso ser se iluminam, e tudo quanto foi reprimido, recalcado, ferido... é tocado e assumido por Jesus e nos desperta para a vida.
É preciso descer, com Jesus, ao túmulo de nossa interioridade, transitar pelos espaços e dimensões não integradas. Só quem desce às profundezas de si mesmo é capaz de vislumbrar potencialidades de vida que não foram ativadas. É preciso morrer ao “ego”, “descer” aos “infernos” interiores e sociais para expandir a vida em novas direções.
“Descer” e “subir”, portanto, são imagens para descrever o processo de transformação realizado por Jesus morto, e também sepultado, no interior de cada um de nós.
Se com Ele quisermos subir ao Pai, temos primeiro de descer com Ele à terra, afundar os pés na nossa própria condição humana. Não podemos subir ao céu se não estivermos dispostos a descer com Jesus aos nossos “húmus”, às nossas sombras, à condição terrena, ao inconsciente, à nossa fraqueza humana.
Nós “subimos” a Deus quando “descemos” à nossa humanidade. Este é o caminho da liberdade, este é o caminho do amor e da humildade, da mansidão e da misericórdia.
O coração, a quem nada do que é “humano” lhe é estranho, alarga-se, enche-se do amor de Deus, que transforma e ressuscita tudo o que é humano.
Ao fazer, junto com Jesus Cristo, o caminho da “descida”, vamos ao encontro de nossa realidade e nos colocamos diante de Deus para que Ele transforme em amor tudo quanto em nós existe, para que sejamos totalmente perpassados pelo Espírito de Deus.
O evangelista João nos diz que Jesus, após sua crucifixão, foi colocado em um “sepulcro novo”.
O sepulcro representa a “passagem” entre o antigo e o novo. Ao ser fechado com uma pedra, no entardecer da Sexta-Feira Santa, encerrava-se um ciclo. Ao se abrir, na madrugada do domingo, inaugura-se um novo tempo, uma nova Criação. Os sinais estão ali, no ventre aberto da Terra. Sinais que podem ser mudos para nós e fazendo-nos deter no passado, ou podem ser umbral de novas significações.
Neste Sábado Santo, situemo-nos junto ao sepulcro, lugar onde tivemos os últimos sinais ou notícias d’Aquele que foi fiel até o fim. Ali podemos permanecer com as velhas interpretações ou podemos nos dispor a acolher a surpresa que irrompe, o novo que quebra o que é caduco e sem sentido.
“O Sábado Santo é o tempo de uma gravidez: podemos dizer de uma “segunda gestação” de Jesus Cristo. Se a “primeira gestação” de Jesus foi a entrada de Deus na carne humana, no Shábbat se gesta a divinização do ser humano e da história na carne de Deus. O sepulcro é o ventre da terra onde foi sepultado o cadáver de Jesus. Nesse corpo inerte, torturado e deformado, acontecerá uma metamorfose. Ali a matéria se divinizará. Toda a criação, contida na corporeidade de Jesus, é chamada a ressuscitar. O Verbo se fez carne para que a Carne se divinize.
Tudo isso acontecerá secreta e simbolicamente entre o Shábbat e a alvorada de uma nova criação. A terra está ameaçada e grávida de ressurreição.
O Sepulcro era novo, dizem os relatos, como virgem era o ventre de Maria. Disponível, inocente, livre. O vazio como possibilidade, como fecundidade: “Feliz tu, cheia de graça, porque está vazia de ti mesma. Teu espaço interior te faz matriz do Verbo, da Palavra pela qual Deus se historiza”.
Assim como as entranhas de Maria albergaram o primeiro nascimento de Jesus, as entranhas da Terra e da história albergam as sementes de seu segundo nascimento.
O sepulcro é uma manjedoura de vida nova, de humanidade inaugurada por uma Presença nascente. Tudo está grávido de ressurreição”.
(Javier Melloni – El Cristo interior – Herder).
Textos bíblicos: Jo 19,38-42 Mc 15,42-47
Sábado Santo ajuda a dar sentido à solidão: há solidão vazia, que deprime, mas há solidão (solitude) que nos faz ter acesso às dimensões desconhecidas de nossa vida... As experiências de fracasso, de crise, de desolação... ativam outros recursos e nos motivam a purificar nossa adesão a Deus.
Santo Inácio de Loyola nos convida a passar este dia na casa de Maria, em comunhão com seus sentimentos e sua esperança.
É a única que tem certeza de que a Vida do seu Filho não permanece na morte.
Sua atitude revela-se antecipadora da Ressurreição, assim como ela antecipou o primeiro “sinal” de Jesus nas Bodas de Caná.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.04.22
“Tudo está consumado!”
+ A oração de hoje é profundamente silenciosa: trata-se de acompanhar Jesus no seu caminho em direção ao Gólgota e sua morte na Cruz.
+ Silenciar o corpo, a mente, o coração... através dos “preâmbulos”: oração preparatória, composição vendo o lugar, petição da graça...
+ Antes de “fazer o caminho” com Jesus até à Cruz, leia as indicações abaixo, como motivação para a experiência:
Jesus, o Justo e Santo, foi Aquele que não ficou indiferente diante da fome, da doença, da violência e da morte... Seu modo de ser, suas opções, sua liberdade diante da lei, da religião, do templo, seus encontros escandalosos com os pobres e excluídos..., desestabilizou tudo, pôs em crise as instituições e as pessoas encarregadas da religião. Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos. Tornou-se um perigo a ser eliminado.
“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é conseqüência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.
Existem cruzes que são vazias, sem sentido, insensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida.
São cruzes impostas sobre nossos ombros ou sobre os ombros dos outros. São cruzes que nascem dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de vida; elas se fixam no passado, na morte... e nos deixam no túmulo.
Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus que leva a Cruz da fidelidade nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no desespero.
Na vida e missão de Jesus encontramos duas paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o fim.
A segunda paixão é a da cruz, imposta pelos poderes religiosos e civis. Ela não é fruto da opção de Jesus e nem faz parte da vontade do Pai. Ela é a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.
No grego, “cruz” é “staurós” e significa: prontidão, preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé...
Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou o “staurós”, ou seja, a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.
Assim entendemos a afirmação de Jesus: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com os outros, sobretudo com os mais sofredores.
Infelizmente, a história da espiritualidade cristã confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-staurós” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da renúncia... como se isso fosse agradável a Deus. A Paixão e Morte de Jesus foi “desconectada” de sua vida comprometida em favor dos pobres e sofredores, dando a impressão que só a “paixão de Jesus” é salvífica. Toda a vida de Jesus é salvação porque é vida que destrava vida e abre para elas um novo sentido.
Com isso, privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tal concepção desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, alienada, descompromissada...
Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus (a cruz patíbulo). Mas Jesus integra a “cruz patíbulo” e revela sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta Cruz assumida é também visibilização da salvação.
Mas o sofrimento não pode ser buscado nele mesmo; não tem sentido e não abre futuro esperançador.
Na Paixão e morte de Jesus, o Silêncio de Deus não é um silêncio vazio. É um silêncio eloqüente, que nos fala: revela, desvela sem dizer, mostrando uma vida que não necessita palavras, a vida de Jesus que é puro amor até o fim e que, por sua vez, desvela o puro Amor de Deus.
No silêncio do seu coração, coloque-se, em atitude contemplativa, diante da escultura do Crucificado; notemos que um de seus braços está crucificado e o outro está estendido, com a mão aberta para acolher quem d’Ele se aproxima. Quanta vida e comunicação silenciosa nesse gesto! Trata-se de um grito de amor, silencioso e cheio de comunicação.
Aquela mão estendida nos chama a depositar a nossa mão na sua e estar aí, em silêncio, um longo tempo.
Que nos transmite esta imagem? Não precisamos palavras, nem ritos, pois é um gesto que nos conecta, como um cordão umbilical, ao Crucificado que nos revela o caminho da doação radical: como viver nosso dia-a-dia? Como usar nossos recursos? Como conectar-nos com o coração de Deus, com o coração do planeta Terra e de toda a humanidade?
Podemos também sentir que essa mão estendida nos chama e nos envia; primeiro, nos chama a segurá-la e sustentá-la. E como se Ele dissesse: “aproxime-se e permaneça comigo, pois preciso abrir-lhe meu coração; sinta minha pulsação e deixe seu coração pulsar no ritmo do meu; una-se ao meu coração, carregado de amor, e prolongue-o através do seu coração”.
E tudo acontece no silêncio; um silêncio que nos enche de vida, de paixão partilhada, de compaixão, de solidariedade... No fundo desse silêncio nos encontramos com a mão aberta de um moribundo que nos ama e que é revelação do rosto do Deus vivo e feito carne entre nós.
A mão quente do Crucificado é a mão de todos os irmãos e irmãs violentados, vítimas da cultura do ódio e da morte; a mão do Crucificado que pulsa é a mão latejante de nossa Terra, violada e abusada pela ânsia do lucro de uma minoria aterradora.
O silêncio pode ser também a escuta do coração aberto da realidade, enquanto apertamos a mão que nos comunica o pulsar e o amor do crucificado.
Esse silêncio nos dignifica porque nos vacina contra os outros silêncios covardes e auto-centrados.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.04.22
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