“Estende a mão!” (Mc 3,5)
Retornamos ao tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum”, depois de termos feito o percurso do Tempo Quaresmal e do Tempo Pascal. Neste ano “B”, seguimos o evangelista Marcos.
O evangelho deste domingo nos motiva a fazer caminho com Jesus, que se revelou profundamente livre diante das tradições religiosas judaicas; o relato que a liturgia nos propõe encontramos Jesus “transgredindo” a lei do sábado em duas situações diferentes: uma no campo, onde os discípulos colhiam espigas de trigo para comer e outra na sinagoga, onde o próprio Jesus se encontra com um homem de mão atrofiada, excluído, carente de energia e vitalidade.
A sinagoga era o lugar onde se recordava e se celebrava o Deus que havia conduzido o seu povo “com braço estendido e mão forte” para a terra da liberdade; agora se converteu em um lugar onde a Lei afoga a liberdade dos filhos de Israel. A sinagoga se transformou no espaço onde se gera submissão, medo e escravidão; em vez de pôr as pessoas de pé, a caminho de uma nova Páscoa, atrofia seus braços e as paralisa; ela deixa de ser lugar de celebração da vida para ser lugar de exclusão, de indiferença e preconceito.
O sentido do sábado era este: dia de festa pelo bem-estar (Shalon) de todas as criaturas, dia da comunhão universal, do repouso da Criação em Deus. No entanto, a casuística e o legalismo farisaico fizeram da libertação um jugo e da festa um pranto.
Na sinagoga Jesus expressa sua dor e sua profunda irritação porque lhe dói a dureza de coração daqueles que fizeram de Deus uma propriedade privada e da sinagoga, uma garantia de seus interesses.
Jesus vai converter a sinagoga em lugar de vida para o filho de Israel paralisado; coloca-o de pé, estende-lhe a mão, leva-o para o meio, devolve-lhe a capacidade de decisão...
No centro da sinagoga, ao lado do “Santo” (espaço em que são conservados os livros sagrados), há uma elevação, o púlpito, onde fica quem preside e quem faz a leitura. O “centro” é, pois, o espaço que atrai as atenções de todos. É daí que, “paramentado”, o leitor proclama o texto da Torá e dos Profetas, seguido da pregação. Normalmente os doutores da Lei é que ocupavam a tribuna para fazer a pregação.
O centro, portanto, é o lugar mais importante (e sagrado) da sinagoga, o lugar de onde a Torá ilumina a conduta do ser humano.
O homem da mão seca certamente estava sentado (“levante-se”) quando Jesus lhe ordena “ocupar o lugar da Torá”. Uma pessoa deficiente é o centro de todas as atenções. Em vez de ler a Torá, Jesus provoca a assembleia a fazer outra leitura – a leitura da vida de um homem estigmatizado pela má interpretação da lei. Em outras palavras, trata-se de permitir que fale o espírito da Lei, e não sua letra. Jesus provoca seus adversários, acusando-os de transformar o sábado em dia de opressão, a festa em dor.
Para o homem da mão seca, ocupar o “centro” não era apenas dar uns passos rumo ao meio da sinagoga.
Certamente Jesus pretendia que ele encontrasse o próprio centro, que reconhecesse a própria dignidade de ser humano, que descobrisse o “eixo” da própria vida, assim como o ser humano foi criado como centro de toda Criação. Não é a mão seca que diminui ou suprime a dignidade do ser humano, como não são as mãos sadias a incrementá-la ou garanti-la. O deficiente foi convidado a viajar para o próprio centro à procura de sua “alma”, seu eixo, seu “eu interior”. Com isso pode estender o braço, mostrar a mão, sem medo de dizer “eu sou gente”. Aí se dá a cura total da pessoa.
Para que possa ser curado, ele precisa encarar sua deficiência, precisa tornar-se o centro das atenções, não pode se esconder dos olhares dos outros. Jesus exige que faça exatamente aquilo que sempre tentou evitar: colocar-se no centro, ser observado e considerado.
Mas, Jesus queria atingir também a assembleia e os defensores do legalismo do sábado. Agora põe como ponto de partida para todas as leis uma pessoa concreta, com suas necessidades especiais.
Quando ordena ao deficiente físico ocupar o centro, Jesus pretendia atingir tanto o doente quanto os que, embora fossem fisicamente sãos, eram profundamente doentes de fundamentalismo e legalismo.
O sábado nasce como dia de comunhão com Deus e com as pessoas, como festa pela vida que percorre a vida de todos. Enquanto uma criatura de Deus estiver privada de liberdade e de vida, o sábado e a festa terão sempre o gosto amargo da exclusão e do preconceito.
Os letrados e fariseus de hoje também não se alegram quando o favor, o perdão e a misericórdia de Deus se aproximam dos pecadores e excluídos. Eles têm prazer doentio em impor sobre os outros “pesados fardos”, ritos vazios, mortificações e penitências que alimentam culpa...
Há concepções de “Deus” que matam a festa, a alegria e o prazer de celebrar a vida; há homens e mulheres piedosos que não sabem de banquete, de dança e de alegria. Há pessoas que não suportam a ternura e a compaixão de Deus; parece que estão cheias de ressentimentos e frustrações, como se a experiência de Deus não fosse uma experiência prazerosa e vivificante. Não suportam a alegria dos outros, não se alegram pelo fato de que os pecadores tenham festa e perdão, os solitários tenham companhia, os atrofiados recuperem sua liberdade e autonomia. Determinadas concepções de “Deus” provocam atrofia do coração.
O homem da “mão ressequida” é um personagem significativo. Jesus não hesita em transgredir o preceito sabático e declara o supremo valor da vida. Temos aqui um homem impedido, pela atrofia e pelos preconceitos religiosos, de exercer sua vida plena, sua autonomia e, provavelmente, de participar integralmente do culto judaico. Lucas especifica ser a mão direita. A mão é símbolo da força e da liberdade: através das mãos é que são realizados os trabalhos: “dos trabalhos de tuas mãos hás de viver” (Sl 128,2); também na oração elas são meios de expressão: “à noite estendi a mão, sem descanso” (Sl 77,3).
Em termos antropológicos, ter as mãos atrofiadas pode significar ausência de liberdade, de autonomia. Machucar ou quebrar a mão ou o braço impede o exercício de funções e cria dependências. Ficar de pé e ter a mão curada está em oposição à interpretação do sábado proposta pelos fariseus e doutores da lei que criavam impedimentos, tolhendo a maturidade e a autonomia dos fiéis perante o culto e a sociedade. Jesus é o Senhor do sábado e liberta o homem para o exercício da vida plena: trabalho e celebração, fé e vida.
O Evangelho deste domingo também nos motiva a descer e transitar pela nossa sinagoga interior, em companhia do Senhor; ali encontraremos dimensões da vida que estão atrofiadas: nossa auto-imagem, sentimentos negativos, rejeições, feridas, fracassos... que, embora dentro da sinagoga, estão em um canto, escondidas dos olhares dos outros. Tais situações consomem energia e esvaziam o fluir da vida.
O que é mais desumanizante e trágico não é ter mãos atrofiadas, mas ter mentes e corações bloqueados pelo negacionismo, intolerância, preconceito... Mentes atrofiadas são geradoras de mentiras (fake news) e incapazes de uma visão mais crítica da realidade; mentes manipuladas por aproveitadores de plantão; mentes incapazes de discernimento e de criar algo novo... Corações atrofiados são fonte de rigidez, de insensibilidade, de falta de compaixão; corações de pedra que só expelem veneno e impedem toda possibilidade de encontro e de acolhida; corações incapazes de bombear uma só gota de amor, mas só injetam veneno nas relações familiares, sociais, religiosas, carregando o ambiente de violência, exclusão e ódio.
E Jesus mete o dedo na chaga daqueles que são “duros de coração”. Ele os chama de hipócritas, pois sabem manejar a lei segundo seus próprios interesses, mas incapazes de compaixão. O que Jesus não suporta é a falta de compaixão dos “piedosos”, “lobos revestidos em pele de cordeiro”.
Texto bíblico: Mc 2,23-3,6
Na oração: A narrativa deste domingo nos convida a encarar a nossa vida e parar de nos esconder por trás de outros; nos encoraja a arriscarmos, pois somente assim poderemos lidar com os conflitos com os quais somos confrontados e dos quais não devemos fugir.
- Na “sinagoga” que é você (pensamentos, emoções, reações, dizeres, olhares, conhecimentos, atitudes), o que está paralisado? atrofiado?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.05.2024
imagem: James Tissot
“Ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19)
Nem sempre é fácil, como cristãos, relacionar-nos de maneira concreta e viva com o mistério de Deus confessado como Trindade. A festa da Trindade nos recorda que não se trata de entender, ou simplesmente de pensar e estudar o Mistério das Três Pessoas divinas. O decisivo é viver o Mistério a partir da adoração e da partilha fraterna.
De Deus não sabemos nem podemos saber absolutamente nada. Temos que retornar à simplicidade da linguagem evangélica e utilizar a parábola, a alegoria, a comparação, o exemplo simples, como fazia Jesus. A realidade de Deus não pode ser compreendida, não porque seja complicada, senão porque é absolutamente simples; a nossa maneira de conhecer é que analisa e divide a realidade. Deus não é dividido em partes para que cada uma delas possa ser analisada por separado.
A Trindade chega até nós, não cada uma das “Pessoas” por separado. Ninguém poderá se encontrar só com o Filho, ou só com o Pai, ou só com o Espírito Santo. Nossa relação será sempre com o Deus Uno e Trino. É necessário tomar consciência de que quando falamos de qualquer uma das Três Pessoas divinas relacionando-se conosco, estamos falando de Deus. Nem o Pai só cria, nem o Filho só salva, nem o Espírito Santo só santifica. Tudo é sempre obra do Deus Uno e Trino.
Tudo em nós é obra do único Deus. Dizer que é preciso ter devoção a cada uma das pessoas, é uma “piedosa” interpretação do dogma. Que sentido pode ter, dirigir as orações ao Pai crendo que é diferente do Filho e do Espírito?
A partir de sua própria experiência de Deus, Jesus convida seus seguidores a se relacionarem de maneira confiada com Deus Pai, a seguirem fielmente seus passos como Filho de Deus encarnado e a deixarem-se guiar e alentar pelo Espírito Santo. Enfim, ensina-os a se abrirem ao mistério da Trindade Santa.
“Só n’Ele (Jesus Cristo) a Trindade se comunica a nós e somos revelados pela Trindade. Jesus é o Mestre porque é a voz da Trindade para nós e a nossa voz para a Trindade. Jesus Cristo é a porta através da qual a Trindade passa até nós e nós até a Trindade. Jesus Cristo é o caminho que nos leva à Trindade e através da qual a Trindade chega até nós. Jesus Cristo é a Vida, porque n’Ele a Vida da Trindade corre em nós e a nossa pobre vida corre na vida da Trindade eterna de Deus” (Bruno Forte).
A festa da Trindade quer expressar o mistério do Amor-Vida de Deus que se comunica a nós. “Deus é UM, mas não está jamais só”. Deus não é um ser isolado, distante da Criação, solitário. É um Deus comunhão, família, sociedade, fraternidade etc. Por isso, o cume de toda a revelação bíblica é esta: “Deus é Amor”, ou seja, Deus não é uma realidade fria e impessoal, um ser triste, solitário e narcisista. E o Amor nunca é solidão, isolamento, mas comunhão, proximidade, diálogo, aliança...
O Deus revelado por Jesus é Amor e aproximar-nos do Deus Amor é descobrir a Trindade.
Se Deus deixasse de amar um só instante, deixaria de ser Deus. O movimento que parte do Pai, passa pelo Filho e se consuma no Espírito é um movimento de Amor sem fim.
Não podemos imaginá-Lo como poder impetrável, fechado em si mesmo. Em seu ser mais íntimo, Deus é vida compartilhada, diálogo, entrega mútua, abraço, comunhão de pessoas. O amor trinitário de Deus é amor que se expande e se faz presente em todas as criaturas.
Só quando intuímos, a partir da fé, que Deus é só Amor e descobrimos fascinados que não pode ser outra coisa senão Amor presente e palpitante no mais profundo de nossa vida, começa a crescer, livre em nosso coração, a confiança em um Deus Trindade, de quem o único que sabemos foi revelado por Jesus.
Quando se anuncia que estamos envolvidos amorosamente pela Trindade Santa, não devemos pensar em três entidades fazendo e desfazendo, separada cada uma das outras duas. As tradições orientais afirmam: “No Espírito, pelo Filho ao Pai”.
Antes de mais nada, Jesus convida seus seguidores a viverem como filhos e filhas de um Deus próximo, bom, com entranhas de misericórdia, amoroso, a quem todos poderão invocar como Pai querido. O que caracteriza este Pai não é seu poder e sua força, mas sua bondade e sua compaixão infinitas. Ninguém está só; todos temos um Deus Pai que nos compreende, nos ama e nos perdoa sempre.
Ao mesmo tempo Jesus convida seus seguidores a confiarem também n’Ele: “Não se perturbe vosso coração. Crede em Deus e crede em mim também”. Ele é o Filho de Deus, imagem viva de seu Pai. Suas palavras e seus gestos lhes revelam como o Pai de todos os quer bem. Por isso, convida a todos a segui-Lo. Ele os ensina a viver com confiança e docilidade a serviço do projeto do Pai.
Para isto, precisam acolher o Espírito que é o Sopro amoroso do Pai e do Filho: “Vós receberei a força do Espírito Santo que virá sobre vós e assim sereis minhas testemunhas”. Este Espírito é o Amor de Deus, o Alento que o Pai e seu Filho Jesus compartilham, a força, o impulso e a energia vital que fará dos seguidores de Jesus suas testemunhas e colaboradores a serviço do grande projeto da Trindade Santa.
A festa da Solenidade da Santíssima Trindade, portanto, nos coloca diante de nossos olhos a unidade da obra do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Jesus veio cumprir a obra do Pai e nos deu seu Espírito, para que permanecêssemos n’Ele, “ensinando a todos tudo o que Ele nos ordenou”.
Em Jesus Cristo, desperta-se a consciência da relação que há entre todos os seres humanos e destes com todas as demais criaturas e com o Criador. Ele não só tornou próximo um Deus cuja essência é encontro (cerne da doutrina cristã da Trindade), mas revelou que o caminho para a plenitude e a transformação humana consiste em “entrar no fluxo do encontro intratrinitário”, fazendo-se encontro e reconstruindo as relações rompidas.
Na verdade, Ele chamou o ser humano a sair de seu mundo fechado, de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para se expandir na direção de um novo encontro com tudo o que existe; tal encontro é o prolongamento do encontro trinitário e concretização do sonho do Reino de Deus.
Assim, a visão cristã de Deus como Trindade ajudou também a entender a pessoa humana como solidária mais que como solitária. A pessoa é tal quando vive em comunhão com outras pessoas.
Fomos criados à imagem do Deus, Comunidade de Pessoas; assim, carregamos em nosso interior o impulso para a convivência, a comunhão, o encontro... Só corações solidários adoram um Deus Trinitário.
Viver a cultura da indiferença, do ódio, da intolerância..., é bloquear a ação amorosa da Trindade no próprio interior. Sempre que construirmos relações pessoais e sociais que facilitem a circulação da vida, a comunhão de diferentes à base da igualdade, estaremos tornando um pouco mais visível o mistério íntimo do Deus Trino.
Texto bíblico: Mt 28,16-20
Na oração: A oração cristã, tanto a mais silenciosa como a mais jubilosa, é sempre abertura às permutas de amor das Três Pessoas divinas. Assim se expressa tantas vezes S. João da Cruz: o Espírito nos aspira com ele na comunhão do Pai e do Filho.
Toda oração cristã se expressa, espontaneamente, de maneira trinitária: rezamos ao Pai, pelo Filho, no Espírito. Isto não é uma fórmula, mas a expressão profunda do que vivemos. Assim se afirma, pouco a pouco, uma originalidade cristã da oração que vai marcar todas as atitudes espirituais da Igreja: contemplação, invocação, louvor litúrgico...
Configurando-nos ao Filho, no Espírito, a oração nos faz encontrar todos os seres humanos sob olhar do Pai; tal vivência fundamenta nossa fraternidade e a experiência daquilo que nos une.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
23.05.2024
imagem: Rublev
“Soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (Jo 20,22)
A Bíblia é um livro repleto de Ventos e de Caminhos. Assim são as narrativas de Pentecostes, repletas de caminhos que partem de Jerusalém e plenos de Vento, leve como uma brisa e impetuoso como um furacão.
Por seu sentido etimológico, “espírito” (“Ruah”, feminino na bíblia hebraica), se refere ao vento, ao ar que impulsiona, ao alento ou a respiração que mantém a vitalidade dinâmica do ser humano. A “Santa Ruah” é um modo de descrever a presença divina que perpassa tudo, energiza toda a Criação, desperta o melhor em cada ser humano; como impulso, dinamismo, força, não pode ser contido nem retido, pois, assim como o vento, não sabemos de onde vem e nem para onde vai.
Desta maneira, a Sagrada Escritura ensina sobre a força, energia e ação vital do Espírito de Deus que é, por essa razão, “santo” e que se derrama sobre a humanidade para que se realize o plano de Deus na história.
O testemunho da revelação bíblica nos fala, portanto, da ação do Espírito num tríplice contexto: o Espírito é “atmosfera de Deus”, onde Deus pode ser encontrado e conhecido; “herança de Jesus”, memória de suas palavras e sinal de sua ação; e “ambiente de realização do ser humano”, porque n’Ele a vida adquire profundidade, consistência, criatividade...
Já no início do Genesis (1,1), o Deus bíblico se revela “saindo de si”, por pura gratuidade, porque “a Ruah de Deus pairava sobre a superfície das águas”. Derramado sobre a Criação toda, o Espírito Santo permeia tudo que faz parte da realidade, dos eventos históricos e da vida de todos. É o oxigênio do coração.É o Sopro poderoso de Deus que re-spira (a-spira, in-spira, con-spira) na vida da humanidade e da Criação.
Sem o “sopro” direto de Deus, só pode existir o caos; se desaparece a Ruah, o universo morre, perde seu impulso de vida, se destrói. Só o alento de Deus oferece vida e ordem em meio ao “caos” presente na realidade. A obra do Espírito não é um ato do passado, própria do Deus antigo que por sua palavra e vontade quis fixar o mundo, mas é uma presença permanente, atravessando toda a realidade e constituindo o “cosmos” (beleza, harmonia, sinfonia).
O mundo fechado em si mesmo carece de ser, perde sua identidade. Existe, mas é distinto de Deus; só pode manter-se e ser em relação com Deus, porque Sua “Ruah” está presente e faz com que o mundo seja habitável e ofereça caminho de vida para o ser humano. Isso significa que, em sentido bíblico, as criaturas do mundo, por si mesmas, carecem de identidade e consistência; elas são, se desenvolvem e existem por força e impulso do Alento de Deus que as sustenta; elas são o que são só por “graça”, por presença pessoal divina.
Tudo se mantém vivo por meio d’Ele. É esse Espírito integrador que harmoniza todo o universo e todo o nosso ser, dando um novo sentido ao nosso existir no mundo, na comunidade cristã.
A festa de Pentecostes vem nos revelar que “Ruah” é fundamental e essencialmente energia pessoal, comunitária e cósmica. É energia de vida (força vital), energia de mudança (força de transformação) e luz para o discernimento.
Como energia vital, o Espírito é o princípio de criação; Espírito é invenção, é fonte de criatividade, de autêntica novidade. Em relação ao velho mundo, a “Ruah” é força que emerge como “renovadora” de todas as coisas. Por isso o Espírito é origem de surpresa e maravilhamento. Ele realmente opera maravilhas na história humana. É fonte de novas possibilidades dentro do mundo, energia inaugural de novas auroras.
E essa ação do Espírito se manifestou de modo universal e gratuita, suscitou, ao longo da história, pessoas ousadas, palavras desafiantes, caminhos ainda não percorridos, imagens novas. O Espírito insuflou vida em todas as etapas do universo, na evolução dinâmica para o novo.
Como energia de mudança, o Espírito é o grande transformador e revolucionário. Ele faz os ossos secos voltarem à vida (Ez. 37). Ele faz o deserto florescer no direito, na justiça e na paz (Is. 32,15-20). Ele é Aquele que quebra todas as amarras e desbloqueia todos os impasses.
Como luz para o discernimento: dos sete dons prometidos ao Rei messiânico, mais da metade se referem à inteligência (sabedoria, ciência, entendimento e conselho). Pois o Espírito revela o conhecimento profundo do Mistério de Deus e de seu Plano no mundo (1Cor. 2,10-16). Ele dá aquela intuição profunda que permite descobrir os caminhos corretos dentro das ambiguidades da história.
Precisamos do Espírito; d’Ele precisa o nosso pequeno e estagnado mundo; d’Ele precisa a Igreja para que seja guardiã de liberdade e de esperança. O Espírito com os seus dons dá a cada cristão uma genialidade que lhe é própria. E temos extrema necessidade de discípulos(as) de gênio. Ou seja, precisamos que cada um acredite no seu próprio dom, nos próprios recursos, e que coloque a sua própria criatividade e coragem a serviço da vida. A Igreja, como Pentecostes contínuo, é coragem ousada, é inventividade, é poesia criativa, é saída solidária...
Pentecostes se revela também como momento privilegiado para ativar uma diferente perspectiva de visão e de sensibilidade. Há muita carência desse dom da sensibilidade nesse contexto marcado por profundas divisões, ódios, intolerâncias, mentiras... Somente aqueles “que vivem no Espírito” serão capazes de perceber Sua ação original e inspiradora, presente em tantos carismas que tornam a humanidade tão bela, tão interessante, tão divertida, tão inesperada.
Agora é o momento de acabar com todos os medos e inseguranças para viver centrados na confiança. A Igreja inteira é chamada a abrir todas as suas portas e janelas para que o Espírito que recebeu se faça extensivo para todo o mundo e toda a Criação. Tocados pelas “línguas de fogo” do Espírito, os cristãos discernem o que o Pai quer deste mundo e se fazem presentes nele como fermento, como sal, como grão de mostarda, como grão de trigo, para serem Igreja em missão, em saída, compassiva, generosa, portadora de perdão e cura, de força para os fracos e denúncia para os injustos.
Nós, movidos pelo Espírito que atuava em Jesus, fazendo-nos seus seguidores(as), precisamos estar vigilantes se não quisermos cair na tentação da indiferença. Costumeiramente, tendemos ao conformismo. A cultura da indiferença é fortalecida toda vez que deixamos de acreditar que a realidade pode e deve ser diferente. Não podemos nos dar por vencidos acreditando que estamos no fim, que nossas forças já se esgotaram, que não há mais esperança e sentido para lutar.
“Não apagueis o Espírito”, nos diz S. Paulo (1Tes 5,19), ou seja, não extingais a Divina Energia que faz crer, criar e ressuscitar. Cada vez que, ao longo da história, apagamos o fogo do Espírito, é preciso reavivar o braseiro da espiritualidade para além das religiões. Jesus traz o fogo que não destrói, mas que renova: força vivificadora e, ao mesmo tempo, “desmascaradora” e “discernidora” dos poderes de morte que tentam nos sufocar.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração: Depois de ter criado cada ser humano, Deus quebra o molde e lança-o fora. O Espírito nos faz únicos(as) na nossa maneira de amar, na nossa maneira de alimentar esperança; únicos(as) na maneira de consolar e viver os encontros; únicos(as) na maneira de desfrutar a doçura das coisas e a beleza das pessoas...
Esta é precisamente a obra do Espírito: guiar-nos para a “nobre verdade”, escondida no mais profundo de nós mesmos. Ninguém sabe cuidar como cada um(a) sabe; ninguém tem essa alegria de viver como cada um(a) tem; ninguém tem o dom de compreender os fatos como cada um(a) os compreende...
- Certamente, todos temos “Ruah”, alento e vida próprios. Mas nosso alento é vacilante, nossa vida é curta, nossa essência é deficiente, ameaçada pelas limitações e pela morte. Por isso, só somos “Ruah” de verdade, só existimos de maneira profunda, esperançada e criativa quando nos deixamos possuir e transformar pelo Espírito divino.
- Com que intensidade poderemos “dançar e voar”, conduzidos(as) pelo sopro da Ruah?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.05.2024
Ressurreição, Ascensão, sentar-se à direita de Deus, envio do Espírito Santo, são “mistérios” pascais.
O Mistério Pascal é tão rico e tão denso que não podemos abarcá-lo somente com uma imagem; por isso precisamos desdobrá-lo para poder experiênciá-lo de uma maneira mais profunda.
Celebrar a Ascensão de Jesus não significa, para os cristãos, algo diferente que celebrar sua Ressurreição. São só diferentes nomes para referir-se à mesma realidade: que, ao morrer, tanto Jesus como nós, mergulhamos na Vida de Deus.
Lucas, em seu Evangelho, põe todas as aparições e a Ascensão no mesmo dia. No entanto, nos Atos dos Apóstolos, ele fala de quarenta dias de permanência de Jesus com seus discípulos, provavelmente como um modo de indicar que eles haviam recebido a formação necessária para levar adiante a missão (“quarenta dias” com o mestre era o tempo que o discípulo precisava para alcançar uma preparação adequada).
A fé na Ascensão não é aceitar que uma pessoa “subiu” aos céus. É aceitar que Jesus é o sentido de tudo, a revelação de Deus e do sentido da existência: Ele é o Senhor.
Nos relatos da Ascensão, normalmente nos preocupa muito saber o lugar de onde Jesus subiu aos céus e para onde Ele foi; mas o que importa é que nosso destino é o coração de Deus e Jesus revela a grandeza do ser humano capaz de alcançar a divindade.
Pela sua Ascensão, Jesus Cristo acolheu tudo quanto é humano e desta maneira tudo redimiu.
Descobri-lo dentro de nós e nos outros é muito exigente e comprometedor. É muito mais cômodo continuar “olhando para o céu” e não sentirmos implicados com aquilo que está acontecendo ao nosso redor. Por isso, Ascensão é missão; é “descer” da montanha para as periferias da nossa Galileia (periferias existenciais, sociais, religiosas...) e ali prolongar a atividade libertadora de Jesus.
A Ascensão ocorre toda vez que, vivendo o Presente, transcendemos os limites temporais e nos experimentamos “ser em Deus”. Nestes momentos, nos alcança a Plenitude e saboreamos a Alegria.
Ao mergulhar na realidade, interna e externa, nos esbarramos n’Ele, o Ressuscitado.A Ascensão do Ressuscitado, portanto, nos torna encarregados da missão de “fazer discípulos” à qual Ele, em sua glória, preside. Nós é que devemos reinventá-la a cada momento.
Celebrando a glorificação de Cristo, tomamos consciência de nossa própria vocação à glória.
A Ascensão é o lugar onde vai acontecer uma mudança profunda na vida de cada seguidor de Jesus: partimos para a missão; deixamos a Terra Santa, como os Apóstolos e, até o fim da vida, seremos os peregrinos de Cristo. Somos arrancados de tal experiência para adentrar-nos em um caminho de seguimento de horizontes desconhecidos, mas centrados no compromisso apostólico da missão na e da Igreja. “Passamos” da particularidade de um lugar para a universalidade da missão. A Ascensão pede de todos nós uma “amplitude de visão”, rompendo com tudo aquilo que atrofia e limita, nas diferentes dimensões da vida.
Saber-se continuadora da missão de Jesus, sustentada na bondade e na misericórdia do Abba e impulsionada pela força da Ruah: esta foi a experiência central da primitiva comunidade cristã em seu novo caminho, depois da Páscoa. Talvez por isto a pergunta dirigida aos discípulos no momento da Ascenção de Jesus: “por que ficais aqui parados, olhando para o céu?” (At 1,10). A pergunta tira-os da imobilidade e os leva de volta a Jerusalém, ao lugar onde começarão a construir a grande comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus. A pergunta os situa no lugar onde encontrarão, nesta vida, o “céu” que Deus quer presenteá-los.
Infelizmente, esta foi a eterna tentação: muitas igrejas e inúmeros cristãos, plantados, quietos, imóveis, ficaram olhando o “céu” durante séculos, com os braços cruzados. Pouco tinham a fazer neste mundo, além de resignar-se e esperar; seu campo de atuação não era o aqui e agora, senão o mais além. O mundo era “um vale de lágrimas” e a vida se definia como situação de passagem, espera de amanheceres que não dependiam deles, vale de sofrimentos sem consolo, morada do desencanto...
Ao contemplar a Ascensão de Jesus, muitos cristãos sentiam uma grande vontade de “subir” com Jesus, de fugir, de abandonar o mundo da violência, da injustiça, da desigualdade social, da fome, da violência... Diante da impossibilidade de “subir” com Ele, para além de nosso mundo caótico, eles se retiraram à vida privada, ao individualismo religioso, ao ritualismo, à salvação de sua alma, aos desertos, aos mosteiros, aos templos... para rezar, fazer penitências e mortificações, enquanto aguardavam a “segunda vinda” de Jesus.
Assim nasceu a “teologia do desencanto com o mundo”, como uma falsa leitura da Ascensão de Jesus.
Ainda hoje, são muitos aqueles que continuam olhando o céu, parados, fechados numa prática religiosa alienante, devocional e estéril, vivendo uma espiritualidade tóxica, distantes do compromisso com a transformação deste velho mundo. Também eles e elas merecem a reprimenda dos Atos dos Apóstolos: “Galileus, por que estais aí plantados, olhando o céu” (At 1,11).
A Ascensão de Jesus, curiosamente, é o contrário do movimento de “subida” ao céu; é um apelo a “descer”, a retornar à cidade, a deixar as alturas, os montes e as nuvens. É preciso olhar a terra, é preciso mobilizar as mãos em favor da mesma obra de Jesus, verdadeira sinfonia incompleta.
O cristão que tem os olhos fixos em Jesus também saberá olhar o chão, fazendo-se presente, de maneira cristificada, na realidade cotidiana. Esta é a desafiante missão de todo(a) seguidor(a) de Jesus: submergir-se na realidade, fazer-se cidadão(ã), “mundanizar-se”, unir-se a outros, lançar-se a gritar pelas ruas e praças que Jesus tinha razão e que seu projeto de humanização ainda é realizável, que ainda é possível recompor este velho quebra-cabeças da família humana, verdadeira Babel de egoísmo e falta de solidariedade, e acabar com esta onda de desigualdade, violência e miséria.
Construir um mundo de irmãos e não de “soberanos”: este é o desafio e a missão de todo cristão; o movimento despertado pela Ascensão significa um verdadeiro apelo a olhar o chão da vida e descer à realidade até transformá-la por dentro. Assim fez Jesus que, na sua encarnação, vida e morte, desceu, misturou-se com o mundo, fez-se solidário com todos os sofredores da história.
Uma igreja fechada, entrincheirada sobre si mesma, é uma igreja assustada que continua vivendo no cenáculo. Jesus tirou seus seguidores do templo, dos cenáculos e das estruturas eclesiásticas petrificadas: “ide por todo o mundo”. Tal apelo não faz referência somente a uma questão geográfica, mas humana: ide por todas as culturas, raças, crenças, trabalhe pelo diálogo ciência e fé, situações políticas e compromisso evangélico, anúncio da Boa Nova e cultura.
A evangelização implica uma dinâmica missionária de desinstalação, de agilidade e criatividade, de esperança.
A ascensão aos céus passa pela “descida aos infernos” da desumanização. Jesus, na sua encarnação, vida e morte, desceu ao mais profundo da condição humana, da miséria e da dor, da injustiça e da violência...
Nossa Ascensão passa pela descida ao baixo mundo dos empobrecidos, deprimidos, pisoteados, violentados, marginalizados; também é preciso descer às nossas próprias profundezas, marcadas, muitas vezes, por pesadas culpas, angústias, traumas e feridas. É preciso, em primeiro lugar, levar a boa-notícia do evangelho às dimensões esquecidas e excluídas de nossa vida interior.
Texto bíblico: Mc 16,15-20
Na oração: Para entrar no fluxo da Ascenção de Jesus é preciso, antes, “descer” até às profundezas de seu ser, até sua Galileia interior, abrindo espaço para que, também aí, chegue a luz do Evangelho.
Iluminado(a) pela Boa Notícia, “suba” em direção ao serviço e o compromisso com aqueles que estão à margem.
É preciso construir o “céu” neste chão da vida; sobre esta terra, no menor de nossos atos de amor, no menor de nossos gestos de gratuidade, a eternidade já está presente. Que esta eternidade seja saboreada desde agora.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.05.2024
“Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai” (Jo. 15,15)
Continuamos vivendo o percurso pascal; no relato do evangelho deste domingo, a Páscoa se expressa como o tempo dos três “as”: Amor, Amizade e Alegria.
O evangelista João põe na boca de Jesus um longo discurso de despedida, no qual recolhe aquilo que será a marca distintiva dos seus seguidores, para serem fiéis à Sua pessoa e ao Seu projeto. E a identidade original de quem O segue será a vivência do amor. Fomos criados à imagem do Deus que é amor; por isso, trazemos, no mais profundo do nosso ser, a “chama do amor divino”. O amor que Jesus nos pede tem de surgir a partir de dentro; trata-se de manifestar o que é Deus no mais profundo de nosso ser. Quando amamos não é preciso dizer que Deus está em nosso coração porque, de uma maneira melhor, estamos no coração de Deus, participamos do próprio dom de seu amor. Encontramo-nos, assim, envolvidos pelo amor de Deus.
Indecifrável como a obra de arte, o Amor nem se define nem se enquadra: é cada vez outro, novo, surpreendente, desconcertante..., embora tão antigo. S. João nos diz que “Deus é Amor (Ágape) e aquele que habita no Amor, habita em Deus e Deus habita nele” (1Jo. 4,16). Portanto, é proposto ao ser humano uma experiência. Ele é chamado para exercitar sua capacidade de gratuidade e graça. Em um mundo onde tudo se paga, onde nada é gratuito, ele é chamado a ser presença gratuita, a viver a graça e a gratidão.
O amor que Deus tem por nós é absolutamente desinteressado, ativo e criativo, gratuito e livre. Ama aqueles que não são valorizados, aqueles que são desprezados e excluídos. O seu Amor é que valoriza o outro. A criatura não é amada porque tem valor por si mesma, mas tem valor porque é amada por Deus, que lhe comunica generosamente a sua própria riqueza. Nisso consiste a Criação: Deus, num transbordamento do seu amor intra-trinitário, deu o ser ao que não era nada.
Criados à imagem e semelhança do Deus Amor, somos capazes de Amor-Ágape, de amar aquele que não nos ama e não devemos nos privar dessa liberdade. Não é porque as pessoas são amáveis que devemos amá-las; é na medida em que as amamos que são (para nós) amáveis. A caridade é esse amor que não espera ser merecido, esse amor primeiro, gratuito, espontâneo e que, de fato, é a verdade do amor. Uma liberdade de amar o outro em sua diferença, de amar o divino no outro, de amar o outro como a nós mesmos, reconhecendo-nos nele.
Para aprender a amar é preciso sair de nossos hábitos, sair do conhecido; aprender a amar é sempre uma aventura. Se entrarmos nessa aventura, nossa vida será virada pelo avesso e completamente questionada.
Esse amor, ativo e primeiro, suscita em nós a gratidão que nos leva a corresponder com um amor-serviço; o amor sempre se faz serviço, assim como todo serviço é inspirado e sustentado pelo amor. Trata-se da mística do “serviço por puro amor”. Por isso, esse amor é fonte de alegria, ou seja, um estado permanente de plenitude e bem-estar. Sem amor não é possível dar passos em direção a um cristianismo mais aberto, cordial, alegre, simples e amável, onde possamos viver como “amigos” de Jesus.
Da mensagem de Jesus ressoa a surpreendente frase de sua despedida: “Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai”.
Quem vive o mandamento do amor é, por isso mesmo, “amigo de Jesus”; e a amizade se mostra em ser introduzidos na intimidade de Jesus com seu Abbá, em ser confidente de Jesus. Jesus não pede a seus discípulos que sejam perfeitos em tudo: só no amor e na misericórdia.
“...se fizerdes o que vos mando”; tradução empobrecida, pois entre amigos não há quem manda, mas acolhida mútua. É como se Jesus dissesse: “sereis meus amigos se entrardes no circuito do amor que flui do Pai, passa por mim e circula entre vocês”; “sereis meus amigos se entrardes em sintonia com o amor ágape que brota do meu coração”. O amor é movimento, circula reforçando os laços, acolhendo... O amor é expansivo e contagiante. O amor une corações.
Quando falamos de amizade estamos falando de gratuidade, de lealdade, de igualdade, de não pedir nada em troca, de partilhar sem passar recibo... A amizade seja talvez a melhor relação humana que existe; é gratuita, livre, simbiótica. Dizer de alguém amigo é um tesouro. Os amigos se conhecem bem, há sinceridade entre eles, desejam sempre o bem do outro, sabem acompanhar as diversas situações da vida, aprendem a escutar e a dizer livremente para o bem do outro. A amizade é um lugar de acolhida contínua, de sentido do humor e de ajuda mútua. Por isso, um(a) amigo(a) é um tesouro, e aquele(a) que tem um(a) amigo(a) tem uma conexão direta com as mais autênticas essências da vida.
A amizade é caminho compartilhado. Ninguém faz caminho sozinho, fazem juntos, e assim são amigos. A amizade implica neste plano com-corrência (correr juntos, para assim ajudar-se uns aos outros). Amizade é co-laboração (trabalho compartilhado). Frente àqueles que entendem a vida como luta ou competição, frente àqueles que procuram combater ou silenciar-se no processo da vida, frente àqueles que oprimem e dominam os outros, os amigos cooperam, se respeitam e trabalham juntos. Os amigos verdadeiros deixam de lado as opções partidaristas, os egoísmos particulares, e integram-se na busca comum, com a alegria de estar unidos, compartilhando os desafios e as perdas. Quem não sabe ou não quer colaborar na obra comum nunca será verdadeiro amigo.
Amigos são aqueles que se querem por querer-se, sem buscar a amizade por outros interesses. Mas a mesma amizade faz com que eles se ajudem em gesto de benevolência ativa: acolhem-se, perdoam-se, potenciam-se uns aos outros.
Desprovida de interesses mesquinhos, a amizade vale por si mesma, não pelo que faz. Mesmo assim, a autêntica amizade é a mais eficaz, pois sempre se expressa em gestos concretos de ajuda mútua. O que importa mais é uma existência compartilhada: ideais e busca, êxitos, fracassos, vida. Por isso, a amizade com a marca cristã se inspira n’Aquele que se revelou Amigo de todos, sobretudo dos mais pobres e excluídos
De uma comunidade cristã que deixa transparecer o Amor e prolonga a Amizade de Jesus, nasce a alegria. Só o amor profundo e a amizade sincera é fonte de alegria, de prazer completo. Assim desejava Jesus para sua comunidade: alegre, mensageira, aberta ao diferente... O amor e a amizade fazem de cada cristão um(a) irmão(ã) universal.
Alegria que brota do interior e é um dom do Espírito. “O fruto do Espírito é: amor, alegria” (Gal 5,22). Este dom nos faz filhos(as) de Deus, capazes de viver e saborear sua bondade e misericórdia.
O vocábulo “alegria” está carregado de emoções, sentimentos e aspirações nobres. Vincula-se ao estado de plenitude humana, à criatividade, ao entusiasmo, ao prazer, ao contentamento, à satisfação, ao regozijo, à felicidade. “Bem-aventurados os que sabem rir de si mesmos: nunca cessarão de se divertir”.
Ao nosso cristianismo lhes falta, com frequência, a alegria daquilo que se faz e se vive com amor. Ao nosso seguimento de Jesus Cristo nos falta o entusiasmo da inovação e nos sobra a tristeza daquilo que se repete sem a convicção de estar prolongando o que Jesus queria de nós; predomina, muitas vezes, uma vivência cristã marcada pelo medo, pelo legalismo, pelo ritualismo... e não pelo entusiasmo de sentir-nos colaboradores do Mestre da Galiléia.
Não é correto que os cristãos associem com tanta frequência a fé à dor, à renúncia, à mortificação, mas à alegria, à vida em plenitude. A “perfeita alegria”, como dizia S. Francisco de Assis, é o horizonte da Páscoa que, desde agora, dá sentido e plenifica nossa existência cotidiana. Não fomos destinados a viver em “vale de lágrimas”.
Texto bíblico: Jo. 15,9-17
Na oração: Faça uma leitura das “marcas” do Amor de Deus em sua vida; crie um clima de ação de graças.
- Faça memória dos(as) amigos(as) que foram ou são verdadeiros tesouros para você.
- Sua amizade com os outros está iluminada pela amizade de Jesus: gratuita, com-passiva, aberta, acolhedora...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.05.2024
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“Permanecei em mim e eu permanecerei em vós” (Jo 15,4)
No Evangelho de João encontramos expressões com as quais estamos acostumados e que, infelizmente, escutamos ou lemos de modo superficial. Na verdade, quando as lemos ou escutamos como palavras do Ressuscitado vivo, do Senhor no meio de sua comunidade, é que nos sentimos capacitados a acolhê-las como palavras de verdade e de vida. Estamos vivendo o tempo pascal e o tema “vida” perpassa todo esse tempo litúrgico.
O relato deste domingo é tirado dos chamados “discursos de despedida” (cf. Jo 13, 31-16,33), palavras que o Ressuscitado glorioso e vivo dirige à sua Igreja. Jesus afirma: “Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor”. Para um judeu piedoso, a videira era uma planta familiar, que, junto com o trigo e a oliveira, marcava a terra de Israel; é a planta da qual se extrai “o vinho que alegra o coração humano” (Sl 104, 15); é a planta cultivada desde sempre na terra da Palestina, símbolo de uma vida fecunda que brota de um chão árido e pedregoso, símbolo da vida abundante e alegre.
A imagem da videira também já tinha sido assumida pelos profetas como imagem do povo de Israel, da comunidade do Senhor: videira escolhida, arrancada do Egito e transplantada na terra prometida pelo próprio Deus, cultivada com cuidado e amor pelo Senhor, que dela esperava frutos. Deus é o vinhateiro que ama a sua vinha, mas fica frustrado com ela; Ele é o vinhateiro que chora pela sua vinha, outrora exuberante, mas agora queimada e desolada; Deus é o vinhateiro invocado em socorro da sua vinha devastada e cortada. Mas o que é radicalmente novidade com relação ao AT é que Jesus se apresenta a si mesmo como a “Videira verdadeira”. Ele é a Vinha que recapitula em si toda a história do povo de Deus, assumindo seus fracassos, suas quedas e seus sofrimentos. Ele é, ao mesmo tempo, a testemunha do amor fiel de Deus que, na sua misericórdia inesgotável, renova a aliança com o seu povo.
Já não se trata somente de um povo a quem Deus consola e assiste. Deus mesmo, em Jesus, é a “seiva” que corre por esta comunidade-videira. Cada um, nesta comunidade, é como o sarmento, ramo nascente, destinado a dar fruto; mas a planta da videira é sempre uma, e uma só seiva a faz viver!
Toda a videira é um ser vivo: raiz, cepa e ramos estão atravessados pela mesma vida; mas, para manter a vida e produzir frutos, é preciso dos três elementos. O agricultor experiente sabe que, se os ramos não são podados, eles podem bloquear a transmissão da seiva e não dar fruto. Por isso, é necessário que sejam regularmente podados. Sem poda não há criatividade, nem fruto e nem futuro.
Quando é podada, a videira é despojada de todos os ramos; só fica um tronco áspero e escuro, sem uma única folha verde. Quem não sabe de podas dirá que a videira está absolutamente morta, em pleno inverno. Só ficam presos ao tronco uns centímetros de alguns ramos que deram fruto em outro tempo e que agora parecem “cotocos” sem futuro. Na videira, não só são podados os ramos que foram férteis; também são cortados aqueles que não dão fruto, aqueles que crescem muito, chamam a atenção porque são brilhantes e ostentosos, exibem protagonismo, ocupam espaço ao sol, absorvem a seira que sobe pelo tronco, mas são estéreis.
Jesus nos diz na parábola que o Pai é o agricultor, que realiza a poda para que a videira tenha mais vida; só Ele pode transformar a destruição de uma poda em uma nova videira que dará melhores frutos. Ele pode orientar para a vida um golpe dirigido para a morte. Ele é o agricultor que ama sua vinha e que sempre trabalha no fundo do húmus da realidade com criatividade infinita.
A parábola de Jesus é completamente atual. A poda sempre será necessária em nossa vida. Todo o “novo” que assumimos, com o tempo esvazia-se, porque os “ramos existenciais” trazem dentro de si uma dose de ambiguidade e, aos poucos, vão acumulando “excessos” que exigem um consumo muito grande de seiva; na realidade, em vez de produzir frutos, se revelam infecundos e estéreis. Então, faz-se necessária uma poda para eliminar os “pesos”.
De fato, levamos “cargas pesadas” em nosso interior, e são justamente elas que dificultam nossa caminhada pela vida; é preciso desfazer-nos de cargas incômodas para andar com maior desenvoltura e alegria pela vida.
O medo de perder “algo” no futuro atrapalha viver intensamente o presente. Quantos “pesos mortos” arrastamos em nossa vida, com recordações, lembranças, apegos, afetos desordenados...! O apego às coisas, bens, lugares, títulos, pessoas... impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o “fluxo” da vida, o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”. A fidelidade ao Deus da Vida fica interditada e o seguimento de Cristo fica fragilizado.
Quando o agricultor faz uma poda na videira, continuam saindo pelos cortes pequenas gotas de seiva como se ela chorasse a perda, buscando desorientada o mesmo caminho de sempre que já não existe mais. O importante é acolher a poda, viver o luto, despedir-se do que foi perdido, e não se trancar numa queixa obsessiva que gira sobre si mesmo, paralisando o futuro. Quando não se faz o luto e não se assume a perda, as feridas se prolongam no tempo e deixam uma esteira de dor que nunca cicatriza.
Durante semanas, na vinha podada não acontece nada por fora, mas por dentro, célula por célula, vai sendo gestada a primavera com processos diminutos e invisíveis. A vida nova se revela no escondimento da interioridade. O ritmo é lento e não responde às impaciências do agricultor nem à hostilidade do clima que a cerca. Todo o trabalho é interior e silencioso. São as ressonâncias bíblicas do “pequeno resto de Israel”, que em tantas ocasiões foi o começo de movimentos radicalmente novos como surpresas de Deus.
Quando chega a primavera, a casca ressequida e endurecida da videira começa a abrir-se a partir de dentro pela fortaleza da vida que cresceu em seu interior. O rigor do frio vai se afastando de seu entorno. Aparecem os brotos, os ramos, as folhas e os cachos de uvas. É tempo de surpresa, um despertar da consciência de uma vitalidade assombrosa em sua pequenez e vulnerabilidade, que já é impossível de esconder e deter debaixo da casca.
Uma palavra se repete várias vezes na parábola tão breve deste domingo: “permanecer”. É como uma obsessão que tece todo o texto, a chave que tudo explica. Nas podas, o importante é “permanecer” conectado ao tronco de onde nos chega a vida, embora tudo parece morto.
Este relato evangélico nos revela uma relação muito poderosa, sem a qual, continuamos desconectados, secos, como mortos. É uma vinculação profunda com Jesus, fonte de vida e de ação. “Sem mim nada podeis fazer”. Nossas atitudes e especialmente a fecundidade das ações mais simples dependem desta vinculação profunda com Jesus. Do contrário, aquilo que fazemos “separados” ou por nossa conta, será caduco, nos faltará profundidade e sentido. O “nada” do ramo cortado e destinado ao fogo se opõe ao “muito fruto” duradouro daquele que permanece no amor criador; a seiva nunca deixará de chegar, vindo do próprio Jesus, ao lado das mesmas cicatrizes da poda.
Somos fecundos na humildade de Deus quando temos nossas raízes bem plantadas na realidade onde Ele está oculto e de onde tudo refaz; seu amor ao mundo e sua imaginação criativa abrem na história possibilidades sempre novas, atualizadas em cada circunstância. Nosso futuro só é possível se estiver enraizado na humildade de Deus, que é o mais profundo de seus mistérios. A humildade fecunda de Deus se oculta na longa história que vai desde a dor da poda, até o sabor do vinho da nova colheita que compartilhamos.
Texto bíblico: Jo 15,1-8
Na oração: “Eu canto por ser ramo, unido à Videira. Sou ramo que se alarga, ampliando a minha vida. Eu deixo vida feita folha verde e cachos de uvas. Sou ramo e jorro minha vida feito vinho saboroso. Sou ramo desde a origem. Sou ramo ligado à Videira. Sou ramo alimentado pelo vigor incontido da seiva. Alguém vive em mim no silêncio. Alguém que conhece o bem, a verdade, a liberdade.
Sua Vida é minha vida. Seu viver é meu viver. Para mim, a vida é sua Vida. Sou ramo.
Sou ramo e quero gritar bem alto. Sou ramo e vivo. Amo minha vida e não quero abafá-la. Amo minha vida e não quero morrer sufocado, desconectado da Videira. Grito a ti Videira, Fonte de minha vida!”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.04.24
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“Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem” (Jo 10,14)
A liturgia do quarto domingo de Páscoa sempre celebra a imagem do Ressuscitado como “Bom Pastor”.
Terminados os relatos de Aparições do Ressuscitado, continuamos com textos pascais que nos falam de “dar a Vida”; a experiência pascal é que Jesus nos comunica Vida. Nós temos a possibilidade de fazer nossa essa Vida; trata-se da Vida mesma de Deus, que é a chave do tempo pascal. João não nos fala de uma vida para o mais além, mas de uma Vida que deve ser vivida como ressuscitada, aqui e agora.
Para a grande maioria de nossos contemporâneos, a imagem do “pastor” se revela anacrônica, provocando alergia em muitos. Em primeiro lugar, porque nos encontramos muito distantes daquela cultura agrícola e pecuarista na qual nasceu esta imagem; por outro, porque resistimos às imagens que se movem em chave de poder/submissão, e que arrastam, com frequência, uma história de dominação.
Concretamente, a imagem do pastor evoca, por si mesma, a da “ovelha” e do “rebanho”. E o contraste entre ambas faz aflorar na consciência de muitos a contraposição entre autoritarismo, por um lado, e submissão e alienação, por outro. Sem dúvida, a imagem do “pastor”, bem como a do guru ou do mestre, muitas vezes serve de pretexto para justificar abusos de diversos tipos, todos eles baseados no “poder religioso” que aquelas mesmas imagens conferem.
Não é “pastor” quem procura domesticar, manipular e dominar as “ovelhas”, mas quem “conhece pessoas”. Biblicamente falando, “conhecer” é criar relações de amor entre pessoas, no sentido amplo; assim se diz que homem e mulher se “conhecem” quando se amam; assim se “conhecem” filhos e pais, amigos, companheiros... O bom pastor não só “conhece” as ovelhas, mas também “é conhecido” por elas.
“Bom pastor” é o que cria relações de solidariedade com seus amigos e amigas; não os utiliza em favor próprio, não está acima deles(as), mas que os(as) ama e se deixa amar por eles(as); reconstrói os laços de liberdade solidária e comunhão, em vida e até na morte. O “pastor” verdadeiro não manipula consciências, não alimenta medo e nem cria dependências; pelo contrário, o pastor tem “autoridade” no sentido de ativar a autonomia e a autoria de quem o segue. Por isso, os seguidores e seguidoras de Jesus não são “servos(as)”, mas “amigos” do Bom Pastor e amigos uns dos outros.
A imagem de “ovelhas e pastor” deve ser usada com cuidado, porque pode justificar a existência de duas categorias na Igreja: quem manda e quem obedece.
Na Comunidade d’Aquele que disse que “quem quiser ser o primeiro que seja o último e o servidor de todos”, todos somos “pastores” de todos, todos somos responsáveis e todos podemos contribuir com nossos dons. Não se nega a função de coordenação ou de liderança. O que se nega é a sacralização do “poder religioso” em nome de Deus e que tem alimentado uma submissão doentia.
Esta alegoria do “Jesus Pastor” apresenta três características ou elementos principais:
- Pastor é Aquele que se esvazia de sua condição divina e se faz servidor de seus irmãos e irmãs; não vive para aproveitar-se deles(as), mas para acompanhá-los e ajudá-los;
- A essência mais profunda de todo pastor é o conhecimento: Jesus é verdadeiro pastor porque “conhece” às ovelhas, dialogando com elas em intimidade de coração;
- Pastor é quem “dá a vida”. Não se aproveita das “ovelhas”, vive para elas, em gesto de conhecimento e de entrega, em comunhão de vida.
Jesus sempre se revelou como “Pastor” desprovido de poder, de prestígio, de manipulação das consciências.
Sua identidade de “pastor” esteve centrada na arte do cuidado que é gesto amoroso para com o outro, gesto que protege e traz serenidade; o “cuidado” é sempre uma atitude de benevolência d’aquele que quer estar junto, acompanhar e proteger. Jesus, como Bom Pastor, sempre se revelou como um “Ser de cuidado”, pura transparência do Pai cuidador e providente.
Cuidar é entrar em sintonia com... Disso emerge a dimensão de alteridade, de respeito, de sacralidade...
Cuidar é envolver-se com o outro, mostrando zelo e preocupação.
Quer conhecer o outro com o coração e não com a cabeça. O cuidado abre caminho para viver, com mais intensidade, a própria humanidade. E viver “humanamente” significa viver em vulnerabilidade.
Quem não aceita a própria vulnerabilidade e interdependência não desenvolve atitudes de cuidado. Quem não aceita ser cuidado, também não está disposto a cuidar dos outros. Somos educados para sermos “super-homens” ou “supermulheres”; aprendemos a não admitir e a não aceitar o limite, a vulnerabilidade, o fracasso... O ser humano é finito, portanto, vulnerável. Ele não se basta a si mesmo; necessita de relações com o seu meio, com os seus semelhantes e com o Transcendente, dando sentido à sua existência.
Cuidar do outro significa, antes de tudo, velar por sua autonomia; significa ativar a capacidade de dar direção à sua própria vida. O exercício de cuidar não deve ser visto como uma forma de imposição sobre o outro, e menos ainda como um modo de exercer um controle, atrofiando a autonomia e a liberdade do outro. Pelo contrário, quando alguém se dispõe a cuidar compassivamente o outro, faz todo o possível para que esse outro possa viver e expressar-se conforme determina seu coração, mesmo quando isto não coincide necessariamente com a intenção do cuidador.
A identidade do verdadeiro pastor está na capacidade de “dar a vida”, como equivalente de um amor que não tem medida. No extremo oposto da voracidade egóica, que vê os outros e as coisas como objetos com os quais saciar o próprio vazio, o amor de quem transcendeu seu “eu” não busca outra coisa senão oferecendo, doando a vida, dia a dia.
Na medida em que o(a) seguidor(a) de Jesus vive como “ressuscitado”, sua vida se torna Vida maior e, assim estará disposto(a) a “gastar” a vida em função dos outros. Esta Vida é um “movimento a partir de dentro”, ou seja, sair de si mesmo para ir ao encontro dos outros e potenciar suas vidas; tal movimento que tem sua origem na mesma Vida do Ressuscitado mobiliza o que há de “melhor” em cada um para que viva de maneira mais oblativa e comprometida no cuidado para com todos.
A partir desta perspectiva, podemos reconhecer a Jesus Ressuscitado como o “espelho” daquilo que já somos. Ele vive o que é na sua essência, e isso faz com que se desperte em nós o que somos, numa identidade compartilhada.
Todos somos pastores, mestres e discípulos. Todos nos encontramos em um processo de aprendizagem. Podemos, sem dúvida, reconhecer as pessoas que nos ajudaram e que despertaram o melhor de nós mesmos. Mas, não foi porque se impuseram e se empenharam em conduzir nosso caminho, mas porque, sendo humildes e transparentes, nos remeteram ao nosso próprio “pastor e mestre interior”.
Não precisamos de pastores nem gurus, mas companheiros(as) de caminho, acompanhantes lúcidos e humildes, compartilhando aquilo que cada um nos proporciona experimentar.
Texto bíblico: Jo 10,11-18
Na oração: abrir espaço interior para que a Graça desvele seu próprio interior: quem predomina aí dentro? O pastor cuidadoso ou o lobo voraz?
- Fazer memória do seu nobre “ministério do pastoreio”: na sua família, comunidade, ambiente de trabalho, relações sociais...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.04.2024
“Vede minhas mãos e meus pés; sou eu mesmo!” (Lc 24,39)
“Há feridas que em vez de abrirem nossa pele, abrem nossos olhos”, afirma o poeta chileno Pablo Neruda.
Jesus, que nos desconcertou ao curar tantas feridas, na ressurreição não fechou as suas próprias feridas; Ele as mostrou para que fosse reconhecida a sua identidade, para que ficasse claro que elas são a marca da entrega e que nunca se apagarão.
Quando o Senhor se apresentou diante de seus discípulos, depois de sua morte, não tinha dinheiro, nem prestígio; não veio sentado em um trono de ouro nem desembainhou a espada para derrotar os inimigos. Simplesmente mostrou as feridas da crucifixão, as marcas da doação total. Porque, “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e sempre” (Heb 13,8).
Para despertar a fé dos discípulos, Jesus não lhes pede que olhem Seu rosto, mas suas mãos e pés. Quer que vejam suas feridas de crucificado; que tenham sempre diante dos olhos seu amor entregue até a morte. Não é um fantasma: “Sou eu mesmo!”. O mesmo que conheceram, seguiram e amaram pelos caminhos da Galileia.
Olhando as mãos de Jesus, os discípulos faziam “memória” das mãos que curavam os doentes, cuidavam dos frágeis, elevavam os caídos, abençoavam e acariciavam as crianças, acolhiam os pecadores e pobres...
Olhando os pés de Jesus, os discípulos faziam “memória” dos pés peregrinos, que rompiam distâncias, que faziam a travessia em direção à “margem”, que os aproximavam dos excluídos, que ultrapassavam fronteiras religiosas e culturais... Contemplando as mãos e pés de Jesus, os discípulos tomaram consciência que eles estavam com as mãos atrofiadas e os pés paralisados pelo medo.
A experiência do encontro com o Ressuscitado destrava as mãos e pés dos discípulos, arrancando-os do lugar fechado e lançando-os para os outros. Suas mãos e pés são o prolongamento das mãos e pés de Jesus Ressuscitado. Mãos e pés marcados com as feridas da doação, da entrega; mãos e pés carregados de vida: pés que facilitam fazer-se presentes juntos às vidas feridas, excluídas...; mãos que se fazem vida ao sustentar a vida fragilizada.
A verdadeira identidade do(a) seguidor(a) de Jesus está nas mãos e pés que se comprometem com a vida, que se humanizam e humanizam os outros. Mãos e pés que despertam as mãos e pés petrificados e atrofiados dos outros. Somos chamados a ser testemunhas das mãos e pés do Ressuscitado.
Mãos e pés ressuscitados nos fazem sair de nossos lugares fechados e estreitos, nos arrancam de nossos preconceitos e de nossos medos... e nos movem em direção a largos horizontes.
Por isso, Ressurreição é movimento e ação: é movimento, porque é saída de si; é ação porque é construção, compromisso em favor da vida.
As cicatrizes que Jesus mostrou em seu corpo depois da ressurreição, nunca desaparecerão. Trazia uma mensagem nova registrada em seu próprio corpo: que só permanecerão em nossa vida as cicatrizes deixadas pela vivência do amor e da doação. Esse é o “céu” que somos chamados a “antecipar” e a encarnar: a cultura do encontro, a presença samaritana, o cuidado amoroso, o serviço gratuito, a vida nascida do amor esculpido à imagem e semelhança d’Aquele que viveu intensamente a Paixão pelo Reino.
As “marcas” com as quais se revestiu o Filho ao vir ao mundo são aquelas que perduram, porque são próprias do Ser Divino: pobreza, transparência, simplicidade, verdade... A mesma humildade que mostrou ao vir ao mundo nos saudará às portas da vida eterna; a mesma voz que nos convocou voltará a ressoar em nossos ouvidos; o mesmo corpo, despojado e livre de artifícios, nos abraçará; Aquele mesmo que se ajoelhou para lavar os pés dos discípulos nos receberá, convidando-nos a passar adiante.
Quais costumam ser nossas credenciais quando queremos nos identificar diante dos outros? Normalmente tiramos do bolso nossa carteira de identidade. E se a coisa é mais séria, apresentamos outros documentos. Ou seja, nos identificamos com papéis.
Qual deveria ser nossa verdadeira “carteira de identidade” como seguidores(as) de Jesus? Nossas mãos abertas em sinal de acolhida; nossas mãos estendidas para levantar a quem está caído; nossas mãos calosas de partir o pão que compartilhamos, endurecidas no trabalho para ajudar nossos irmãos; nossas mãos feridas de tanto atender os demais...
Nossa carteira de identidade deveria ser os pés feridos de tanto caminhar em busca daqueles que estão longe, de tanto peregrinar saindo ao encontro do irmão solitário; pés feridos pelos constantes deslocamentos para ajudar o irmão necessitado, para encontrar nossos irmãos marginalizados nas periferias das cidades...
Mãos crucificadas; pés crucificados. Ressuscitar é despertar, levantar-se, pôr-se de pé, renascer à nova e autêntica vida no Espírito. Ressuscitar é despertar para a Vida, transformar-nos e viver para sempre...
Portanto, à luz da ressurreição, o ser humano se define pelas mãos e pés, e não pelo rosto; não adianta ter um rosto se as mãos e os pés estão petrificados. As mãos e os pés expressam aquilo que vem do coração: se o coração está cheio de medo, dúvidas, perturbações, ressentimentos, mágoas... as mãos e os pés revelam-se atrofiados; se o coração está cheio de compaixão, de acolhida, de espírito solidário... as mãos e os pés se expressam como serviço, colocando a pessoa em movimento em direção aos outros.
As mãos e os pés são os membros que nos alargam, nos ampliam para o encontro; eles nos tiram de nossa estreiteza de atitudes, de ideias... Por isso são membros que mais nos “humanizam”, ou seja, nos fazem “descer” ao “húmus” de nossa existência, ao chão da vida, abrindo-nos aos outros.
Fazer a experiência da Ressurreição é ter mãos e pés do Ressuscitado: membros a favor da vida.
- em direção de quem nos levam os pés?
- em favor de quem usamos nossas mãos? A serviço de quem?...
Sempre que pretendemos fundamentar a fé no Ressuscitado com nossas vazias reflexões, nós o transformamos num “fantasma”. Infelizmente, muitos cristãos só estão preocupados em seguir um “fantasma”, pois não se identificam com o Jesus histórico, comprometido com a causa dos mais pobres e excluídos; seguem uma “religião fantasma”, feita de ritualismos e devocionismos vazios, sem compromisso com a transformação da realidade injusta, geradora de crucificados; vivem uma “espiritualidade fantasma”, constituída de discursos moralistas e fixações legalistas que alimentam culpa e angústia.
Quem vive focado nos “fantasmas” não tem “feridas” a apresentar, não têm consistência humana e sua história desaparecerá como fumaça. Para encontrar-nos com Jesus, temos de percorrer o relato dos Evangelhos: descobrir as mãos que abençoavam os enfermos e acariciavam as crianças, os pés cansados de caminhar ao encontro dos mais esquecidos; descobrir suas feridas e sua paixão. Esse é Jesus o que agora vive ressuscitado pelo Pai.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.04.2024
“...estando fechadas as portas do lugar onde os discípulos se encontravam...” (Jo 20,19)
O contexto do evangelho deste domingo é de obscuridade (“ao anoitecer”) e de medo (“com as portas fechadas”). Os discípulos têm a sensação de estarem sufocados, como numa prisão, na qual a inquietude, a insegurança, a confusão, o vazio, a ansiedade e a tristeza são inevitáveis. É nesse ambiente de morte que o Ressuscitado se faz presente e tudo se transforma: chega a paz e, com ela, a alegria e o consolo.
A ressurreição de Jesus é também uma vitória solidária; Ele vai ressuscitando seus amigos e amigas, reconstruindo vidas feridas pelo fracasso e pela dor, abrindo novo horizonte de sentido e impulsionando-os a prolongarem a Sua missão.
Neste relato catequético de João, que se prolonga com a cena de Tomé, há referência a alguns dados significativos. As duas aparições acontecem “no primeiro dia da semana”; o relato está simplesmente dizendo ao leitor duas coisas: que a ressurreição é uma “nova Criação”, e que as aparições “acontecem” no domingo, na celebração comunitária da eucaristia ou “fração do pão”. Com isso, o relato está nos convidando a descobrir o Ressuscitado na refeição comunitária compartilhada, onde é feita a memória das palavras e atos do Jesus histórico. De fato, Tomé não “vê o Senhor” porque estava ausente, fora da comunidade.
Por outra parte, o Ressuscitado ao se colocar no meio dos seus amigos, os convoca à missão e os envia para que prolonguem seu modo original de se fazer presente entre as pessoas, durante a vida pública: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. O centro da missão é a de comunicar e favorecer a vida, já que Ele veio “para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10). A missão confiada não tem nada a ver com fazer proselitismo ou comunicar uma nova religião. É algo muito mais profundo, gratuito e descentrado. Sentir-se “enviado” é, simplesmente, reconhecer-se como “canal” através do qual a Vida flui e se expressa; é possibilitar que todos possam viver já como ressuscitados.
Mas Jesus sabe que seus discípulos são frágeis. Mais de uma vez ficou surpreso com a fé tão pequena deles. Precisam de seu próprio Espírito para cumprir a missão. O leitor do evangelho já sabe que uma das grandes promessas de Jesus foi o dom do Espírito. Por isso, Ele se dispõe a fazer com os discípulos um gesto muito especial. Não lhes impõe suas mãos nem os abençoa, como fazia com os enfermos e os pequenos; “sopra sobre eles” e lhes diz: “recebei o Espírito Santo”.
O gesto de Jesus tem uma força que nem sempre conseguimos captar. O verbo “soprar”, usado por João, é o mesmo que encontramos em Gen 2,7. Segundo a tradição bíblica, Deus modelou o ser humano de barro e logo soprou sobre ele seu “alento de vida”; e aquele “barro” se tornou um ser “vivente”.
Isso é o ser humano: um pouco de barro, mas, ao mesmo tempo, portador da “Ruah de Deus” (Espírito). Agora Jesus lhes comunica o Espírito da verdadeira Vida. Trata-se da nova criação do ser humano. Essa nova Vida é a capacidade de amar como Jesus ama. O Espírito é o critério para discernir as atitudes que brotam dessa Vida. Jesus “desperta” seus discípulos para que se façam conscientes do dinamismo e da força do Espírito que os recria. É este Espírito que “rompe” o que está fechado, que derruba o que aprisiona, que mobiliza quem está paralisado.
Assim somos todos, seguidores(as) de Jesus: frágeis e de fé pequena, cristãos de barro, comunidades de argila... Só o Espírito de Deus nos converte em comunidade viva. Onde este Espírito não é acolhido, tudo permanece morto e causa danos a todos, pois impede atualizar sua presença viva entre nós.
Atualizando este texto, podemos dizer que o Espírito Santo hoje está “fechando muitas portas” de um tipo de sociedade, de economia, de política, de templos... que não geram vida, mas discriminação, violência, ódio e intolerância. O contexto tecnocrático pós-moderno e o sistema político-econômico vigente provocam mortes e vítimas. Não nos parece estranho que o Espírito feche portas e que isto gera em nós uma sensação de fracasso, de incertezas sobre o futuro, de caos e confusão.
Mas o Espírito, soprado pelo Ressuscitado, está “abrindo para nós outras portas”: um outro mundo possível, com uma economia solidária, com prioridade dos pobres e descartados da sociedade, um mundo mais ecológico, mais simples e participativo, que não invista em armas, mas em saúde e trabalho, um mundo mais interconectado e pacífico, mais próximo do projeto do Reino de Deus.
Para nós cristãos, o Espírito também nos abre uma porta para uma Igreja menos clerical e mais sinodal, a uma vida cristã com maior participação comunitária de todo o Povo de Deus, não fechado nos templos cumprindo práticas religiosas alienadas, mas formando uma “Igreja em saída”, mais fermento que cimento. Não tentemos abrir as portas que o Espírito já fechou!
Assim, a Páscoa se torna Pentecostes. Mas isto não é algo mágico pois pede a nossa colaboração, nossa criatividade, iniciativa e conversão para construir entre todos um mundo diferente, solidário e justo, para transfigurar esta realidade e abri-la à nova Terra, a uma Vida sem fim, o Reinado de Deus. Seremos capazes de discernir hoje, nestas portas que se fecham e se abrem, um novo sinal dos tempos, uma sempre nova e surpreendente ação do Espírito do Ressuscitado?
O mundo, aparentemente, continua igual, parece que não aconteceu nada relevante. A Ressurreição é também gestada na simplicidade do cotidiano e no extraordinário do ordinário. As mesmas “marcas” da Encarnação de Jesus, como as que estiveram presentes em sua vida e em sua paixão, continuam no acontecimento último de sua ressurreição gloriosa: o grão de trigo, o fermento na massa, a semente de mostarda, a moeda perdida e encontrada, a ovelha nos ombros, o semeador, a pequena esmola da viúva, os lírios do campo...; aí está a força do Vivente que não obriga, não se impõe, nem quebra, nem rompe; continua em meio a nós, na casa, na família, no povo, nos caminhos, lagos, esquinas da vida... As contas estão claras, na simplicidade e na humildade extrema, a tumba não pode reter nem acabar com o amor de Deus que se manifestou em Jesus de Nazaré. Já nada poderá nos separar desse amor, nem mesmo a morte que foi vencida e ultimada em uma vida que nunca acaba porque está cheia de plenitude, vida gloriosa e eterna.
Esta experiência de graça pascal pertence a toda comunidade cristã; não está reservada aos “doze” ou a alguns “iniciados”; todos com a mesma experiência; todos com a mesma missão. Falamos da grande comunidade de seguidores(as) que escutam a Palavra e recebem o “sopro” de Jesus. A Igreja inteira, a partir do dom pascal de Cristo, é sinal e princípio de paz, de perdão e de consolo sobre a terra. Ali onde a paz e o perdão se expressam e se “fazem carne” numa comunidade, está presente e se faz visível o Senhor Ressuscitado.
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: Aguce seus sentidos, abra o coração; há tantos que não podem mais esperar, pois ansiosos aguardam uma presença que acolha e uma palavra que os anime.
- Seja presença pacificadora e consoladora junto a tantos que vivem nos “túmulos” do fracasso e da dor.
- Ative seus impulsos de vida para que a Ressurreição seja um permanente “modo de viver”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
06.04.2024
Domingo de Páscoa
“Creio da ressurreição da comunidade”
Na vigília Pascal, o “fogo novo” do Círio vai acendendo paulatinamente os pequenos círios e velas dos fiéis participantes, enquanto percorrem o caminho que os conduz ao lugar da celebração, no interior da igreja. O gesto de compartilhar o fogo pascal, uns com os outros, vai constituindo uma comunidade de fraternidade e amizade (“Fratelli Tutti”), de interdependência, de cuidado mútuo, de serviço, de solidariedade, de inclusão. É um “fogo que acende outros fogos”.
Que podemos fazer para que a comunidade de nossas celebrações litúrgicas se transforme numa verdadeira comunidade, sustentável e duradoura? Que gestos iluminantes podemos ter para derrubar os muros sociais, econômicos, políticos e religiosos que nos separam, alimentando ódio, intolerância, preconceito e inimizades...? Quanta incoerência na vida de muitos cristãos que creem na Ressurreição de Jesus e são “presenças de morte”, são “sepulturas bloqueadas”, onde impera a podridão das mentiras, dos julgamentos, do racismo, das diferentes violências...! Na vigília pascal, a marcha dos fiéis com suas velas acesas é uma homenagem a Cristo Ressuscitado, é uma manifestação de alegria e esperança centradas n’Ele; mas, é também uma expressão de protesto por esta “cultura de morte” que estamos vivendo.
De fato, nas suas Aparições, o Cristo Ressuscitado reconstrói vidas quebradas, restaura relacionamentos rompidos, recria sua comunidade de amigos e amigas com um estilo de vida diferente e os envia em missão. Ele é o gerador e centro da nova comunidade de irmãos e irmãs. As aparições vão do individual ao comunitário, e do comunitário à missão.
O(a) seguidor(a) de Jesus, durante o percurso pascal, vai se revestindo de uma atitude profundamente eclesial, de maneira que o seu sentir, pensar, falar e agir refletem o sentir, pensar, falar e agir da grande comunidade cristã. Por isso, os encontros com o Ressuscitado desembocam na comunidade.
Nesse sentido, os evangelhos dão especial destaque à presença e ação do Ressuscitado na reconstrução e formação de sua comunidade; as aparições públicas têm como pano de fundo um sentido eclesial. Remetem à comunidade como lugar de encontro com o Senhor Ressuscitado que manifesta o “ofício de consolar” (S. Inácio - EE 224).
Consolar é o que define a ação do Ressuscitado, transformando a situação dos seus discípulos e discípulas: a tristeza se converte numa alegria contagiosa, o medo em valentia e audácia, a negação de Jesus em profissão de fé e martírio... Não se trata de um ato pontual senão de um “ofício”, que definirá para sempre a atividade de seu Espírito no mundo.
Nas cenas evangélicas das aparições, o efeito da presença do Ressuscitado sobre os discípulos e discípulas termina sempre em reconhecimento, em chamado e envio, em restauração de uma vocação e missão.
Jesus ressuscitado exerce sobre eles(elas) um original “ofício de consolar”, cujo efeito é iluminar o caminho pelo qual, em seu nome e com Ele, eles e elas hão de percorrer. O “ofício de consolar” é a marca do Ressuscitado, é força re-criadora e reconstrutora de vidas despedaçadas; Ele vai reconstruindo as pessoas quebrados(as) pelo fracasso, pela tristeza, pela decepção... Jesus “ressuscita” por dentro cada um dos seus amigos e amigas, ativando neles(as) o sentido da vida, refazendo os laços comunitários rompidos, e sobretudo, oferecendo solo firme a quem estava sem chão, sem direção...
A Campanha da Fraternidade deste ano nos recorda que a comunidade cristã é uma comunidade de amigos(as) que se deixa conduzir pelo mesmo Espírito do Ressuscitado, soprado sobre cada um deles(elas). O Espírito continuará atuando no(a) seguidor(a) através da comunidade cristã. Escutar o Espírito no interior de si próprio e no exterior visível da comunidade significa estar convencido de que é o mesmo Espírito que atua na própria interioridade e na comunidade dos seguidores de Jesus.
Sentir-se comunidade de irmãos(ãs) exige um contínuo discernimento para perceber o modo como Jesus Ressuscitado age na sua comunidade através do seu Espírito, que suscita diferentes carismas para o serviço.
Os laços fraternos vividos no interior da comunidade cristã se visibilizam na amizade com todos; podemos dizer que a comunidade cristã é “comunidade de amigos no Senhor”: amizade que vai se expandindo e se revelando como atitude aberta e acolhedora de todos; amizade que se manifesta como prolongamento do “ofício do consolar”, exercido pelo Ressuscitado.
O caráter apostólico, o senso de universalidade e o enfoque fraterno, tão característicos do Tempo Pascal, pedem uma expressão comunitária que, respeitando o princípio da encarnação em realidades concretas e diversas, abre a pessoa para a complexidade dos problemas do mundo e da Igreja, impulsionando-a a ultrapassar os limites geográficos, afetivos, sociais, religiosos...
Todos somos chamados a ser presença consoladora; a experiência da Ressurreição nos move a “descer” junto à realidade do outro (seus dramas, fracassos, perda de sentido da vida...) e exercer este ministério humanizador, ou seja, “vida que desperta outras vidas”. É vida plenificada, iluminada, integrada... pela experiência de encontro com o Ressuscitado e que flui em direção à vida bloqueada, necrosada... ativando-a, despertando-a... É movimento expansivo da vida.
Como homem e como mulher, trazemos esta força interior que nos faz “sair de nós mesmos” e criar laços, fortalecer a comunhão... Este movimento é fortalecido pela experiência da Ressurreição.
O ser humano não é feito para viver só; ele necessita conviver, viver-com-os-outros.
A fraternidade, a vida em comum se mede pelo amor, por atos e gestos de doação, por vivências de comunhão, por experiências reais de partilha...
O ser humano é um ser constitutivamente aberto, essencialmente em referência a outras pessoas: estabelece com os outros uma interação, entrelaça-se com eles, e forma um nós: a comunidade.
As duas realidades – pessoa e comunidade – não se opõem, mas se condicionam e se complementam.
“A pessoa faz a comunidade e a comunidade faz a pessoa”
O sentido da vida em comum é um dom de Deus, que nos foi dado a todos.
Uma comunidade de ressuscitados não é um fim em si mesma. Ela deve ser comunidade aberta à comunhão e partilha, apostólica, reunir para o serviço todos os que, nas pegadas do Mestre, querem se unir para trabalhar com Ele, seguindo-o de perto, na vocação específica de cada um.
Uma comunidade cristã é uma comunidade “conspiratória”.
Conspiração, palavra bonita de origens esquecidas.
Conspirar, com-inspirar, respirar com alguém, juntos.
Conspiradores: respiram o mesmo ar, o mesmo sonho, a mesma utopia do Reino.
+ Leia o evangelho de Jo 20,1-9; com a imaginação acompanhe Maria Madalena, Pedro e João até o sepulcro de Jesus; com eles, reviva a experiência de encontro com o Ressuscitado.
+ faça “memória” das experiências de consolação, suscitadas pela Graça de Deus ao longo desta Quaresma.
+ Recorde pessoas que foram “presenças consoladoras” em sua vida.
+ Traga à memória situações em que você foi o(a) mediador(a) da consolação de Deus.
+ Rezar sua comunidade eclesial, sua pertença e compromisso.
Iluminar a madrugada e tecer liberdade, nutrir a vida de compaixão e amizade, celebrá-la e oferecê-la de verdade, orar... Esse é o movimento de Ressurreição. É isto que o evangelista João quer destacar quando escreve que Madalena “saiu correndo”, que Pedro e João “corriam juntos”.
Que a Páscoa seja um tempo de movimento e cada um(a) descubra o seu ritmo e o horizonte de vida para onde se deslocar!
Um Santo Tempo Pascal a todos e todas!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.03.2024
Humanizar nossa Jerusalém através de relações mais amorosas
Depois de um longo percurso quaresmal chegamos às portas das celebrações centrais da nossa vida cristã: Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo.
Nas celebrações da Semana Santa, muitas vezes corremos o risco de nos deter no secundário e esquecer o essencial. E o mais essencial é que as diversas celebrações (procissões, via sacra, liturgias...) nos aproximem e nos façam crescer na identificação com o protagonista principal: Jesus de Nazaré.
Por isso, precisamos voltar constantemente ao Evangelho para compreender o mais essencial sobre Jesus. Recuperemos, como diz o Papa Francisco, o frescor original do Evangelho.
E a primeira coisa que o Evangelho nos diz é que Jesus foi um buscador de alternativas.
Ele não foi conivente e nem compactuou com a estrutura social-política-religiosa de seu tempo, que era profundamente desumanizadora. Sonhou novas possibilidades de vida e novas relações entre as pessoas. Por isso, ao anunciar o Reino, transgrediu a situação vigente e, a partir das periferias, foi despertando uma alentadora esperança nos corações dos mais pobres e excluídos, vítimas de um mundo fechado.
Jesus sempre sonhou com uma “nova humanidade”.
A Campanha da Fraternidade deste ano (“Vós sois todos irmãos”) constata esta realidade: há profundas divisões e conflitos em nossa sociedade, rompendo as relações fraternas e acentuando mais ainda os diferentes distanciamentos que estavam escondidos, mas que agora vieram à tona com mais força. A Paixão de Jesus continua na paixão dos excluídos, das vítimas e de todos os rejeitados de nossos ambientes.
A vida de Jesus foi uma grande subida em direção a Jerusalém; e nesta subida, segundo os relatos evangéli-cos, Ele desconcertou a todos. Evidentemente, desconcertou as pessoas mais religiosas e observantes da religião judaica: fariseus, escribas, sacerdotes, anciãos...
Ele desencadeou na história da humanidade um “modo de viver” que quebrou toda estrutura petrificada, sobretudo religiosa, constituindo um “movimento” ousado que colocava o ser humano no centro.
Este movimento, desencadeado na Galiléia, chega agora às portas da “cidade santa”, Jerusalém. Aquele homem que movia multidões por todo o país, por sua pregação e milagres, não é um revolucionário violento. E, no entanto, nem por isso deixou de ser provocativo, transgressor e perigoso. E tudo em nome da vida.
Jesus participava do sonho de todo o povo de Israel que via em Jerusalém a cidade da promessa de paz e plenitude futura, lugar para onde deviam vir em procissão todos os povos da terra. A tradição profética havia anunciado uma “subida” dos povos, que viriam a Jerusalém para iniciar um caminho de comunhão, de justiça e adorar a Deus no Templo, que estaria aberto para todos. Toda a cidade se converteria num grande Templo, lugar onde se cumpriria a esperança dos povos.
Jesus, presença de vida nos povoados, vilas e campos, quis também levar vida a uma cidade que carregava forças de morte em seu interior. Ele quis pôr o coração de Deus no coração da grande cidade; desejava re-criar, no coração da capital, o ícone da nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade...
Jesus entra na grande cidade de Jerusalém montado num jumentinho, sinal da humildade e da simplicidade; sinal da pobreza evangélica, que são os verdadeiros sinais de sua messianidade. E morrerá desnudo em uma cruz, em meio às chacotas e burlas de todos.
Não basta pregar a pobreza; é preciso descer ao mundo dos pobres. Não basta falar dos pobres; é preciso fazer-se pobres com os pobres, partilhando a mesma pobreza. É preciso menos sapatos lustrados e mais pés cheirando a pó dos caminhos. Deus não necessita de Ferraris e Mercedes; a Deus lhe basta um jumentinho.
As nossas cidades também estão se revelando, cada vez com mais intensidade, como espaço de grandes rupturas e violências, lugar de exclusão e isolamento, visibilização de uma desumanização trágica.
Também os muros estão voltando à moda. Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção. Os muros, no interior das cidades, são muito concretos: muros sociais, religiosos, políticos, culturais... Com tantos muros é impossível estabelecer relações de fraternidade e reconciliação.
O gesto profético de Jesus de “entrar em Jerusalém” nos convida a contemplar nossas cidades e nos desafia ser presença evangélica, portadora de vida nos nossos grandes centros urbanos.
Por causa de seu tipo de vida e de sua espiritualidade, o(a) seguidor(a) de Jesus desenvolve uma relação específica com o espaço urbano. Para ele(ela), a cidade é também o espaço para a busca e o encontro de Deus. Podemos falar de um “típico modo de proceder cristão” em sua referência ao espaço urbano.
A cidade é uma realidade humana que pode e deve ser iluminada pelo Evangelho, sustentada pela graça, animada pela esperança da vinda do Reino. É necessário aprender a ler a cidade com os olhos caridosos, pacientes, misericordiosos, amigos, fecundos, cordiais...
É preciso reconhecer o bem profundo que habita o coração de tantas pessoas da cidade; é necessário perce-ber e sentir a força da ação do Espírito em cada canto da cidade e em cada rosto anônimo que encontramos.
Deus constrói a cidade perene, a cidade sem muralhas, a cidade da plenitude e da amizade, a cidade da fraternidade na qual todos se reconheçam como irmãos e irmãs sob um único Nome e sob um único Céu. Deus é o grande arquiteto; é Ele quem constrói, para a humanidade, a imensa cidade na qual todos se reconhecem fraternos, próximos, ternos...
Como seguidores(as) de Jesus, é preciso voltar a “pôr o coração de Deus no coração da grande cidade”, para renová-la a partir de dentro.
Faz-se necessário uma opção por adentrar e viver imersos, com todas as consequências, no interior dos grandes centros urbanos, em seu coração, para aí descobrir o verdadeiro coração de Deus, que pulsa ao ritmo dos despossuídos, dos excluídos, dos sofredores e dos sedentos por uma vida mais digna.
Nosso zelo e amor pelo Evangelho e pela semente do Reino que nele está contida, deve favorecer o advento de uma “Nova Jerusalém”; é preciso cuidar o coração do “ser humano urbano”, esvaziá-lo, limpá-lo, aquecê-lo, transformá-lo em humilde receptáculo, para que o Espírito do Senhor possa pousar-se e habitar nele como num ninho acolhedor, transmitindo-lhe vida, luz, calor, paz, ternura...
Uma das tarefas prioritárias do cristão de hoje é ajudar as comunidades cristãs a criar espaços fraternos de silêncio, de oração, pulmões que impedirão a asfixia de nossas grandes cidades;
* encontrar lugares de “silêncio pacificador” na vida pública;
* nossas instituições devem ser “escolas do silêncio habitado”.
A espiritualidade urbana deve nos possibilitar “paradas” com a finalidade de olhar em profundidade e “ler” tudo à luz da Palavra de Deus. A cidade é o lugar por excelência do discernimento, porque é o espaço de decisão onde se constrói o futuro comum. Lugar da política, da cultura, da educação, da saúde... onde se forjam as mudanças, a capacidade de criar novos modos de existir, de romper com as estruturas que desumanizam e buscar o diferente, o novo, o desconhecido...
+ Leia atentamente o Evangelho indicado para a procissão de ramos; prepare-se para fazer uma contemplação: Mc 11,1-10
+ Com a imaginação recrie o cenário evangélico: a cidade de Jerusalém, o grande Templo, a diversidade de pessoas... Com a chegada de Jesus, montado em um burrinho e uma grande multidão, faça-se presente, procurando olhar as pessoas, escutar o que elas dizem, observar o que elas fazem...
+ Faça um colóquio com Jesus, expressando sua admiração pela atitude ousada e corajosa dele. Fale com Ele sobre sua presença na cidade onde mora: desejo de ser presença inspiradora, profética, de compromisso com a construção de relações humanizadoras...
+ Traga à “memória” o que é mais desumano na sua cidade: como você reage diante disso? passivo? suporta? denuncia? atua?...
+ Procure descobrir “sinais do Reino de Deus” no meio do ritmo frenético de sua cidade.
+ Traga à mente nomes de pessoas corajosas e criativas que contagiam e fazem crescer a esperança na sua cidade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.03.2024
O percurso quaresmal está chegando ao seu cume; aproxima-se o desenlace final de uma vida entregue em favor da vida. Jesus sente o clima pesado de rejeição por parte das autoridades religiosas. Estamos no cap. 12 do quarto evangelho. Depois da unção em Betânia e da entrada triunfal em Jerusalém, e como resposta aos gregos que queriam vê-lo, João põe na boca de Jesus um pequeno discurso que não responde nem aos gregos, nem a Felipe e André. Mais uma vez Jesus fala da Vida, da sua vida; Ele tem plena consciência que não viveu em vão: viveu descentrado, investiu suas melhores energias vitais em favor de uma causa, sua vida deixou transparecer um profundo sentido.
Compreendemos melhor o evangelho deste domingo se o situamos no contexto da última viagem de Jesus a Jerusalém: nesta viagem se entrelaçam a vida e a morte com muita força.
E, ao chegar a Jerusalém, proclama de novo o triunfo da vida, como fizera durante sua itinerância pela Galileia. Ele nos revela esta verdade, nem sempre muito clara para nós: embora pareça que a vida se decompõe como o grão de trigo, na realidade, o que acontece é uma eclosão de sua fecundidade. Embora pareça que amar os outros e entregar a vida, dia após dia, é uma perda, na realidade é o maior ganho, porque nossa limitada vida se transforma numa vida plena, intensa, com sentido (eterna). Embora pareça que pôr-se a serviço do Reino é perder a liberdade, na realidade significa investir o melhor que há em nós, potencializando nossos recursos para investir numa causa mobilizadora, que é a causa do mesmo Jesus. Embora estejamos tão perturbados como Jesus, desejando que nos livre de qualquer processo que conduza ao sofrimento e à cruz, há um horizonte de glorificação e plenitude. Onde nos situamos neste confronto entre a vida e a morte?
A vida e a morte não são inimigas que se destroem; elas são amigas, irmãs inseparáveis.
Morre-se ao longo da vida. Este é o caminho normal de morrer.
A vida é o lento amadurecer da morte. Morre-se na vida, durante a vida, na medida em que a morte é fruto maduro das opções de toda a vida. As decisões fazem e farão a nossa morte. A morte nos ronda e nós rondamos a morte. “Começamos a morrer no dia em que nascemos”.
A experiência cristã nos revela o caminho de uma morte preparada ao longo da vida, porque a entende em relação com a vida e a vida em relação com a morte. Vida sem morte é irresponsável; viver sem morrer é viver menos. Tira a seriedade da vida.
Só assumida em liberdade e ativamente, a morte se humaniza. Na fé, cristianiza-se.
A consciência de nosso próprio fim nos leva a pensar num sentido para a existência, para que não termine no vazio e no absurdo. Podemos afirmar, então, que “a morte está na vida”.
Entre os valores humanos fundamentais está o sentido.
A questão do “sentido da vida” ou a “vida com sentido” é fundamental na existência humana.
- Por que vivemos? Para que vivemos? Quanto vale uma vida e o que vale na vida?
- Quem quer ficar ancorado? Quem não aspira preencher a própria vida de relatos, encontros, paixões,
gestos, lições, projetos, ideias e sentimentos?
Qual o sentido da vida? Pergunta inquietante e parece que todos são por ela assombrados de vez em quando: “vale a pena viver?”
Ninguém tem uma razão pela qual viver se não tem ao mesmo tempo uma razão pela qual morrer.
O ser humano tem necessidade de uma causa, de canalizar todas as suas forças, seus desejos, energias, impulsos vitais e recursos internos e externos em direção a um objetivo no qual acredita apaixonadamente. E a ele dedicar-se com tudo que é e possui. Com intensa paixão.
Sabemos que, para viver uma vida verdadeiramente humana, precisamos de sentido. Segundo Nietzsche, “aquele que tem um porquê pelo qual viver pode tolerar praticamente qualquer como”.
Para Victor Frankl, fazemos a experiência do “sentido da vida” quando respondemos aos questionamentos da situação concreta em que vivemos, permitindo-nos a nós mesmos confiar em um “sentido último” que podemos chamar ou não de Deus.
Ao perder o sentido de sua origem e do seu fim, o ser humano perde o sentido da própria vida.
Portanto, o sentido da vida é algo que experimentamos visceralmente, sem que saibamos explicar ou justificar. Não é algo que se constrói, mas algo que nos ocorre de forma inesperada e não preparada, como uma brisa suave que nos atinge, sem que saibamos de onde vem nem para onde vai; é uma intensificação da vontade de viver a ponto de nos dar coragem para morrer por aquela causa que dá à vida o seu sentido.
É uma transformação de nossa visão de nós mesmos e do mundo, na qual as coisas se integram como uma melodia; isso nos faz sentir reconciliados com o universo ao nosso redor, possuídos por um sentimento oceânico, sensação inefável de eternidade e infinitude, de comunhão com algo que nos transcende, envolve e embala, como se fosse um útero materno de dimensões cósmicas.
Por trás do ritmo acelerado e estressante dos nossos tempos, esconde-se um enfraquecimento do sentido da existência. A crise pós-moderna que vivemos revela este traço sinistro: as pessoas não percebem mais razões e causas pelas quais se entregar, pelas quais dar a vida. E assim não encontram igualmente motivações para viver intensamente. Segundo S. Inácio, uma pessoa vale pela causa à qual se entrega.
Muitas vezes, nossas fomes viscerais, nossos desejos que nos devoram as entranhas, nossos sonhos que nos inquietam... não encontram canais amplos para jorrar. E então se atrofiam, permanecendo reféns de uma triste mediocridade. “E a mediocridade não tem lugar na cosmovisão de Inácio” (Pe. Kolvenbach).
Surge então a “normose” que mina as forças, atrofia os sonhos e mata a criatividade. E o pior de tudo: anestesia a paixão. Se não há paixão naquilo que fazemos, tudo vira rotina cansativa, não há empenho e nem compromisso possível.
“Viver a fundo” é não passar pela superfície da vida, é não perder a capacidade de amar, de vibrar, de buscar... Aqueles que são movidos pela paixão apostam que o ser humano tem potencial criador e foi feito para voar alto, para tentar, mil e uma vezes, alcançar cumes distantes.
Inspirados pelo evangelho deste domingo, somos convidados a tomar consciência de como estamos gerenciando esta dinâmica: viver para nós mesmos (ego) ou entregar a vida (oblação).
Enquanto o ego for o centro, doar soa estranho; ele só se preocupa consigo, conquista, executa, quer ser o melhor (“se outros perdem, eu ganho”) e é obeso por natureza (ego inflado); devorador.
“Se alguém quer me servir, siga-me...”. “Diakonos” significa servir, mas por amor. É no serviço e no seguimento de Jesus que as potencialidades de vida são ativadas.
Jesus convida a segui-lo no caminho que acaba de traçar, ou seja, doar a vida a serviço da vida. Seguir Jesus é entrar na esfera do divino, é deixar-nos conduzir pelo Espírito. Nossa vida só se reveste de pleno sentido quando se põe a serviço da Vida maior. Participando da morte de Jesus, podemos também fazer de nossa morte um ato de decisão, de entrega, de oblação.
Texto bíblico: Jo 12,20-33
Na oração: examine, à luz do coração misericordioso do Pai, o percurso quaresmal vivido; desvelar estas três dinâmicas: a da gratidão, a do perdão e a da compaixão.
Em que medida elas se fizeram presente ao longo deste tempo litúrgico.
- São três atitudes que mobilizam o “melhor” que há em cada pessoa; três dinamismos que dão sentido à própria existência e abrem horizontes inspiradores; três forças que revelam a essência da vida cristã: identificação com Aquele que as viveu em plenitude.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.03.2024
imagem: pexels.com
Avança o tempo quaresmal e, neste quarto domingo, nos encontramos com um discurso de Jesus, essencial para compreender seu percurso até a Páscoa. Este texto faz parte do profundo diálogo que Ele manteve com Nicodemos. Este era um rico fariseu, mestre em Israel e membro do Sinédrio, mas com uma concepção do judaísmo mais aberta e com o convencimento de que Jesus era um enviado do Deus de Israel.
Nicodemos foi encontrar-se com Jesus de noite; não queria ser visto pois não lhe convinha. Sua boa reputação como mestre fariseu poderia vir abaixo se as pessoas descobrissem que ele foi ao encontro de Jesus, aquele que, com sua presença, havia provocado agitação na cidade de Jerusalém.
Na realidade, a noite não só era o cenário que o envolvia; Nicodemos precisava de luz diante da obscuridade que o habitava. Suas dúvidas sobre quem era Jesus iam crescendo na medida que este realizava sinais em meio ao povo.
O evangelho deste domingo poderia ter vários títulos, todos eles interessantes: aqueles que buscam na noite da vida; os cristãos anônimos noturnos; diálogo noturnos que falam de grandes amanheceres... De fato, nesse encontro entre Nicodemos e Jesus fala-se de “grandes amanheceres”. É possível que Nicodemos visse algo estranho e interessante em Jesus e procurasse cooptá-lo para seu grupo. E, no entanto, Jesus inverte totalmente a situação e lhe faz grandes anúncios.
Talvez, se não tivesse sido de noite, Nicodemos não teria se colocado em caminho. Ele é nosso espelho; o que acontece com ele, também se faz presente em todos nós.
Assustam-nos as dúvidas, as interrogações, as dificuldades que encontramos para entender o que acontece ao nosso redor e em nosso próprio interior. Mas, bendita noite que nos inquieta e nos tira de nossa anestésica comodidade! Bendita noite que nos move a nos perguntar os “porquês” e os “comos” e põe em questão nossa vida! Bendita noite que nos faz buscadores de sentido!
Por isso, o mestre busca o Mestre, o homem busca o Homem. E este lhe fala de “nascer de novo”, de nascer do Espírito. “Como pode ser isto?” E Jesus resitua Nicodemos em seu caminho de fé.
Jesus, conhecedor de nossa humanidade, confirma a Nicodemos a existência da noite, a sua e a do mundo. Fala-lhe de obscuridades, da cegueira que nos leva, às vezes, a amar mais as trevas que a luz, do mal que provoca infelicidade.
Com suas palavras e ações, Jesus colocou em questão as verdades mais profundas de Nicodemos, aquelas certezas que o haviam configurado, aqueles pilares sobre os quais havia assentado, até então, sua vida e seu ensinamento da Lei.
Jesus reaviva sua memória para que Nicodemos não fique aí: “Deus não enviou seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”. Jesus lhe oferece palavras de vida, que lhe recordam a possibilidade de eleger o bem, de agir na verdade, de caminhar para a luz. E assim, no meio da noite, Nicodemos recupera a luz. Porque Jesus é a Luz; o Amor é a luz. Foi a Ele de noite, e n’Ele encontrou a luz.
Uma luz tão intensa que o tirou de sua obscuridade, transformando sua vida; e, na morte de Jesus, será o próprio Nicodemos quem abraçará o corpo do crucificado para envolvê-lo em lençóis e perfumes. O mestre dando testemunho público de seu amor ao Mestre; o homem fazendo-nos fixar nosso olhar no Homem, levantado na Cruz, para que n’Ele encontremos a Luz.
Quaresma é um tempo privilegiado para “descer” em nossas noites e responder estas perguntas: por que fugimos tanto de nós mesmos e de Deus? Por que preferimos viver iludidos, sem buscar a luz presente no nosso próprio interior? Porque costumamos praticar essa mentira com muita frequência: pensamos de um modo, mas em nossa maneira de viver não atuamos como pensamos, senão que buscamos manter as aparências, para que os outros tenham boa imagem de nós?
Jesus desmascara nossas mentiras existênciais; é preciso escutar suas palavras: “Quem age conforme a verdade aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus”.
O símbolo da luz está muito presente na Bíblia (e na vida). A luz é o princípio da criação da vida (Gen 1,3). O povo que vivia nas trevas, viu uma grande luz (Mt 4,16). Eu sou a Luz do mundo (Jo 8,12; 9,5).
A primeira ação e palavra de Deus no relato da Criação é precisamente dar existência à Luz, a Luz que é a consciência e a capacidade de compreender, de dar sentido à realidade criada. Deus separa a Luz das trevas e o evangelho de hoje nos recorda que viver na Luz nos encaminha para a verdade do que somos.
Podemos eleger entre viver a partir da força da Luz, que nos move a fazer o bem, a realizar ações inspiradas pelo Deus-Amor, a cocriar uma nova humanidade..., ou viver a partir da tirania das trevas que nos enreda na obscuridade das armadilhas, justificações e a supremacia de nossos egos. Caminho complexo, de avanços e retrocessos, mas se nos situamos sob a influência da Luz poderemos avançar sem perder o horizonte da Vida eterna, eternizando a nossa vida, como plenitude do que já somos, mas ainda não plenamente.
Costumamos empregar o símbolo da luz nos momentos mais importantes da vida: as mães “dão à luz”. Quando alguém morre, pedimos a Deus Pai que lhe “conceda a luz eterna”. Em situações difíceis não vemos a luz, a saída. Às vezes, nos encontramos com pessoas que “não tem luz” ou nós mesmos somos carentes de luz por fraqueza, cansaços, falta de sentido etc.
Como cristãos, nos aproximamos d’Aquele que é a Luz, para que Ele ilumine nossa vida e nós transmitamos, reflitamos um pouco de Sua luz. Como cristãos, somos como João Batista: não somos a luz, Cristo é a luz.
A vida nos convoca a ser luz: como pais e mães de família que iluminam a vida de seus filhos; como companheiros e amigos que se iluminam mutuamente; uma comunidade religiosa deve deixar transparecer a luz presente em cada membro; a responsabilidade de um educador, de um mestre é grande à hora de iluminar, de ensinar mais com seu testemunho que com sua ciência; os psicólogos, os médicos iluminam também a vida, os problemas das pessoas; os presbíteros, os catequistas tem a responsabilidade de transmitir a luz de Cristo. A luz cristã está presente nos corações compassivos e misericordiosos.
A chama não precisa fazer um “esforço” para iluminar. Na nossa essência, já somos luz, carregamos a chama da luz divina; o que se requer de nós é não bloqueá-la. Isso implica atitudes de autenticidade e de transparência; “andar na verdade”.
Assim como a chama ilumina por si mesma, a luz brota em nós quando vivemos de uma maneira oblativa, sendo canais transparentes pelos quais ela flui. A nós, como a chama, basta ser o que somos e viver em coerência com isso. Então, crescerá em nós uma atitude de esvaziamento do ego e de liberdade interior: deixaremos que a Vida flua, sendo presenças iluminantes em cada recanto e em cada situação de nosso cotidiano. Sejamos transparência da luz divina!
Texto bíblico: Jo 3,14-21
Na oração: Verificar, diante de Deus, se a experiência quaresmal está despertando em seu interior a faísca da luz divina, que o(a) tornará lúcido(a) para dar uma direção oblativa à sua vida; ao mesmo tempo, confirme se esta luz se revela como inspiração para viver o espírito solidário e o compromisso com aqueles que estão perdidos no mundo das trevas e da exclusão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.03.24
“...espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas” (Jo 2,15)
O simbólico ataque frontal ao Templo foi determinante para Jesus ser considerado como um subversivo e um blasfemo pelo sistema religioso e político de seu tempo. Os quatro evangelhos fazem referência a esse fato, o que mostra como indubitável e decisivo.
Jesus foi um profeta que viveu de tal maneira que quando começou a atuar e falar em público, entrou em conflito com os responsáveis da religião e os mais estritos observantes.
Jesus oferecia uma visão diferente daquela visão oficial do Templo; Ele olhava o mundo a partir de baixo, um olhar rente ao chão capaz de provocar uma reviravolta em tudo o que existe; Ele não se submeteu aos ditames das hierarquias políticas e religiosas de seu tempo.
Jesus foi o profeta da liberdade. Cumpriu perfeitamente a profecia de Isaías de proclamar a liberdade aos cativos da lei religiosa, e a liberdade aos oprimidos pelo sistema. Pensou e atuou completamente independente, à margem da mentalidade oficial imposta pela religião estabelecida e pela política do império.
Ao “virar as mesas e espalhar as moedas”, Jesus estava atacando diretamente o tributo ao Templo e, com ele, ao sistema econômico religioso dominante. O Templo era, para Jesus, uma empresa que explorava economicamente o povo. De fato, o culto proporcionava enormes riquezas à cidade e aos comerciantes, sustentava a nobreza sacerdotal, o clero e os empregados. A ação de Jesus atingiu, portanto, um ponto nevrálgico: o sistema econômico e ideológico que o Templo representava em Israel.
O Templo era “casa do mercado”, e ali o “deus” era o dinheiro. Ao chamar a Deus “meu Pai”, Jesus não o identifica com o sistema religioso do Templo. A relação com Deus não é “religiosa”, mas familiar, está no âmbito da casa familiar. A relação se dessacraliza e se familiariza. Na “casa do Pai” já não pode haver comércio nem exploração, sendo casa-família que acolhe a quem necessite amor, intimidade, confiança, afeto.
Jesus derrubou as mesas dos cambistas e jogou as moedas ao chão, para dizer que a vida não se faz de moedas, mas de intercambio direto de vida. Jesus está supondo aqui que pode haver um mundo sem bancos, um mundo de encontros pessoais... Um mundo onde o valor supremo é o corpo e a palavra...
Jesus, na sua vida pública, nos revelou que Deus não é propriedade de nenhuma religião ou sacerdócio e que ninguém pode reduzi-Lo a uma verdade única, porque Ele revela seu rosto naqueles que vivem no amor mútuo e na entrega da própria vida. Ao mesmo tempo, Jesus denunciou o “deus” manipulado pelos representantes religiosos e que justificavam os seus poderes sobre as consciências das pessoas.
A espiritualidade de Jesus planta suas raízes fora do Templo, em um território “profano”; é, pois, uma espiritualidade laica. Jesus de Nazaré se retira ao deserto para orar e a outros lugares não oficiais, e não é membro da comunidade dos essênios. Sente profundamente sua religação com o Pai, dialoga com Ele, se alimenta interiormente dessa relação íntima, mas retorna ao mundo, à história na qual se encarnou.
Os fariseus e sacerdotes, por sua vez, queriam um Deus e um céu que não se contaminassem com os deserdados desta terra; queriam um Templo como lugar de pureza e de perfeição, legitimado por uma ordem que se constrói sobre o sofrimento e a exclusão. Eles não queriam um Templo que fosse a casa dos impuros, dos abatidos e excluídos, dos encurvados e oprimidos, dos leprosos, cegos e coxos...
O Templo, como não pode ser o lar dos filhos e filhas afligidos da casa de Israel, será destruído.
O lugar da Presença que alimentava as esperanças de Israel se converteu em cova de bandidos; o Templo passou a ser gerido pelos traficantes da dor, aqueles que fazem sofrer em nome de Deus.
Tal denúncia desestabilizou o sistema religioso sobre o qual a instituição sacerdotal se sustentava.
Esta foi a principal fonte de conflitos de Jesus com os fariseus e sacerdotes que, em nome de Deus, exerciam o poder e a dominação sobre as pessoas e sobre o mais íntimo que há em cada um: sua consciência e sua liberdade para tomar decisões na vida e expressar sua fé em Deus.
O conflito de Jesus foi o conflito com o poder, mas o poder levado até sua raiz última: o “poder religioso”. Por isso, Jesus compreendeu que, para mudar o comportamento dos dirigentes do Templo, a primeira coisa a fazer era desmontar o “ídolo” que legitimava o poder autoritário daqueles que oprimiam o povo indefeso. No fundo, o que preocupava Jesus era o problema de “Deus”; e Deus não era como os dirigentes imaginavam e que estava de acordo com seus critérios e sua posição social.
Jesus desmontou o “seu deus” e atirou por terra “seus podres poderes”. Ainda hoje, de acordo com o Deus
em quem se crê, justifica-se o poder daqueles que socialmente aparecem como seus representantes.
De fato, o “poder religioso” é o mais nefasto e desumanizador.
Aquele “dia de entrada no Templo” foi uma autêntica manifestação de desafio; Jesus transgrediu ousadamente ao “expulsar os vendedores e cambistas” instalados no Templo. E essa foi a “sua hora”: desmascarar a manipulação e extorsão com as quais o poder religioso exercia sobre o povo oprimido.
Quando os chefes religiosos perguntam a Jesus com que autoridade desafia o poder estabelecido, Ele responde: “Destruí este Templo e em três dias o reedificarei”. E o evangelista acrescenta: “Ele se referia à própria pessoa”.
O lugar do verdadeiro culto é a Pessoa mesma de Jesus; culto que se expressa na identificação e no seguimento d’Aquele que se revelou radicalmente livre perante todas as instituições religiosas.
O templo e a lei devem ficar submetidos e devem estar a serviço do ser humano; portanto, este não pode ser objeto de nenhuma manipulação.
Jesus diz que o autêntico templo de Deus é cada pessoa e que esse templo não há quem o destrua. Ele revela que o ser humano é o grande valor querido por Deus, e que o sábado, a lei e o Templo são meios para facilitar a humanização; e a vida humana está revestida de sacralidade e não os altares, os templos e os costumes antigos.
Em outro relato (Jo 4, 23) Jesus afirmara que o Pai não é adorado em nenhum templo, mas em “espírito e em verdade”. Ali onde há “espírito”, ali onde há “verdade”, ali está Deus. Este mundo não precisa de templos, mas “espírito e verdade”. O ruído das ruas é também “eco de Deus” como o silêncio dos mosteiros. Pretender expulsar Deus de nossa realidade é pretender o impossível. São nossos olhos que estão cegos e que não consegue ver a Deus presente nela.
A grande tragédia é que aqueles que se consideram pessoas de fé tampouco O veem, ou melhor, não querem ver a presença de Deus em tantos lugares “profanos”. Aqueles que se consideram “religiosos” parece que só querem ver a Deus em determinados espaços, em seus templos e em seus ritualismos.
Mas Deus se revela presente em tantas pessoas pobres, necessitadas, nas realidades profanas nas quais há amor, embora talvez não haja ritos ou manifestações piedosas. Muitas vezes, os ritos religiosos não modificam nossas condutas, mas, o efeito que produzem é tranquilizar nossas consciências.
Chega-se ao extremo de harmonizar tanta fidelidade religiosa com tanta infidelidade ética ou simplesmente com tanta desumanização.
Texto bíblico: Jo 2,13-25
Na oração: Há um tipo de “templo” que está caindo também hoje. Que faremos? Chorar sua queda? Contemplá-lo indiferentes? Ajudar a derrubá-lo? Se não começamos a destruir nossos “templos sagrados” não faremos o caminho do Reino.
A ação profética de Jesus nos obriga a revisar nossa visão de “templo”. Todo ser humano é “templo de Deus”. O tema da CF deste ano – “Fraternidade e amizade social” - deve despertar em nós uma nova sensibilidade para alargar nosso círculo de amizade e nos aproximar daqueles que são “os amigos do Rei Eterno”, ou seja, os pobres e excluídos.
- Você consegue discernir a presença de Deus nas realidades “mundanas”: na vida concreta, no ambiente familiar e de trabalho, no protesto dos excluídos, na sensibilidade ecológica de muitos, nas buscas sinceras de muitas pessoas, nas diferentes expressões de amor daqueles que são considerados “ateus” ...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.02.2024
Imagem: El Greco
“Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha” (Mc 9,2)
Os bons montanhistas sabem que, para chegar ao cume, é necessário muito esforço e sacrifício. Subir vai contra à nossa natureza humana; a gravidade nos arrasta para a comodidade de uma poltrona.
A subida requer programar o caminho, buscar uma rota acessível, usar calçado e uma roupa adequada, exige uma preparação física, levar só o essencial; é imprescindível ter bons companheiros de aventura para reativar o ânimo, ajudar-se mutuamente diante dos perigos dos precipícios, dos escorregões, do mau tempo.
Mas, quando chegam no alto, não sentem mais as bolhas, os cansaços e os arranhões; o ar é como um frio punhal que enche seus pulmões, a luz é sua vestimenta, as nuvens são sua almofada, o céu é tão azul como nunca sonharam, e todos os problemas do seu pequeno mundo que ficaram para trás se tornam insignificantes como formigas. Nas alturas sentem-se mais eles mesmos, como se sua alma pudesse voar. E assim também aconteceu com Jesus e seus amigos Pedro, Tiago e João: Ele subiu o monte Tabor, para que, a partir do mais alto pudesse revelar sua verdadeira identidade, cheia de Luz e de Paz. O carpinteiro se revela como Pantocrator, custodiado por Moisés e Elias.
A compreensão do relato de Marcos nos revela que a realidade “transfigurada” de Jesus é uma realidade compartilhada: todos somos seres transfigurados.
Transfiguração: tempo de interioridade, desejo de contemplar-nos a partir de nosso “eu profundo”, “lugar” dos nossos recursos mais nobres, dos dinamismos de vida, da criatividade, da intuição e dos sonhos, das forças que nos impulsionam a viver em contínuas buscas... Todo ser humano possui dentro de si uma profundidade que é o seu mistério íntimo e pessoal; trata-se do “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside o que é mais nobre em cada pessoa, que só uma experiência de transfiguração é capaz de des-velar. É aqui, onde a pessoa encontra a sua identidade pessoal; trata-se do coração, da dimensão mais verda-deira de si, da sede das decisões vitais, lugar das riquezas pessoais, onde ela vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, de onde partem as suas aspirações e desejos fundamentais, onde percebe as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.
Uma das características do mundo pós-moderno é a transformação, a evolução, a mudança. O Evangelho deste segundo domingo da Quaresma nos revela que é possível “transfigurar-nos” se formos capazes de descobrir a Presença transformadora de Jesus em nós no caminho que nos cabe viver, na subida ao monte (Sinai, Hermón ou Tabor), símbolo do divino. É a subida da consciência, do conhecimento interior, dos sentimentos elevados, dos desejos mais nobres... que brotam do mais profundo de nós mesmos.
Diz o texto de Marcos que Pedro, Tiago e João acompanharam Jesus. Que foi que viram? Algo tão natural como cair na conta, em um momento concreto da existência, de uma faísca, uma sensação que vai mais além dos sinais superficiais: a percepção da presença do divino em si mesmos e a fonte da qual experimentaram um antes e um depois. Poderíamos chamar isso de experiência fundante, prazerosa, plenificante, quase nunca espetacular, mas que deixa uma profunda ressonância interior. Nessa situação, pode surgir uma expressão tão humana como a de Pedro: “é bom ficarmos aqui”.
Aqui, a pessoa experimenta algo essencial em sua vida: sente-se como filho(a) amado(a). Já paramos para pensar o que realmente significa ser “filho/a amado/a”?
Deus conhece nossas necessidades, nossos desejos, nos oferece a oportunidade de renascer, de transfigurar-nos. Em todo momento nos comunica sua Vida, a única. Somos portadores do divino. No mais íntimo de nosso ser ouvimos sua voz: “Escutai o que Ele diz!”. Uma voz que mobiliza o há de melhor em nós. É preciso distingui-la daquelas vozes que nos atordoam, confundem ou violentam, das palavras falsas, vazias, carregadas de promessas e mentiras que, lamentavelmente, são pronunciadas sem pudor.
Somos vida transfigurada na qual todos estamos implicados.
Diante de um contexto mundial tão obscuro faz-se urgente despertar em nós os atributos mais humanos e divinos para sermos pessoas de luz, pessoas que, através dos estilos de vida sintonizados com a natureza, brilham com luz própria. Somos, na essência, “seres translúcidos”, que deixam passar a Luz divina presente em nós. A Luz existe desde o princípio e a nós cabe sermos testemunhas dessa Luz e, portanto, seres que deveríamos transluzir essa Luz eterna em nosso agir cotidiano.
Seres translúcidos existiram e existem sempre; mesmo no escondimento, são tantos e tantas que deixaram e deixam passar a Luz em suas vidas e que deixam marcas impagáveis em nós. De fato, “ser translúcido” é nossa essência pois fomos criados por Amor, que é Luz, embora tantas vezes podemos ficar opacos quando impera em nosso interior o egocentrismo, o ódio, a intolerância, o medo, que nos atormenta e nos bloqueia.
Seguramente que não podemos ser translúcidos sempre e em todo momento; assim como o sol, um astro que brilha sempre, mas só chega a nós algumas horas do dia. Mas, podemos ser translúcidos a maior parte do tempo, levar a Luz que brilha desde toda a eternidade e fazê-la brilhar na obscuridade que nos rodeia. Sejamos translúcidos, mostremos a Luz!
A Transfiguração não é algo externo, uma mudança de disfarces como no carnaval, mas é um abrir-se à realidade cotidiana e cair na conta de que a vida e a história estão cheias de sentido, de vida.
A realidade é uma linguagem que nos fala de algo mais que a mera materialidade. Há pessoas que, no ambiente em que se encontram, transfiguram a vida e os problemas, criando um clima de paz e serenidade na vida familiar, comunitária, eclesial, laboral, etc... Há pessoas que transfiguram a guerra em paz, o pecado em graça, o ódio em respeito e amor, a enfermidade em fonte de reflexão e aceitação da própria finitude, o desespero em esperança...
Isso acontece também no campo da arte, da estética: no fundo, é uma transfiguração do ferro, da madeira, da pedra, da linguagem, dos sons e nos transportam a um “mais além”. Um entardecer, um encontro, uma oração, podem transfigurar nosso ser, nossa existência para a verdade, a bondade ou a beleza. Quando participamos de uma celebração de exéquias, evocando a morte dos seres queridos, somos transportados, transfigurados e isso nos leva a outras realidades de esperança, casa do Pai etc.
O mundo de hoje pede pessoas capazes de transformar, de transfigurar, de proclamar uma Palavra de verdade, de bondade, de estética, de ideais, valores, caminhos... Viver é transfigurar a existência, transcendê-la. A experiência, o encontro com Cristo transforma, transfigura nossa vida e a enche de paz, de luz, de sentido.
Texto bíblico: Mc 9,2-10
Na oração: Transfigura tua existência, eis a questão!
Desapega-te de teus problemas, suba, mesmo que te custe. Busque companheiros que te ajudem a situar-te a partir de uma perspectiva de pássaro, onde o ar seja mais puro e a Luz mais clara. Encontra teu Tabor, onde possas sentir a presença do Amor mais puro, onde possas descansar, onde possas descobrir tua verdadeira identidade e o que é essencial para tua vida. Desapega-te do celular, esquece tua agenda, silencia tantos toques. Abandona tua pesada bagagem de preocupações e coisas que não precisas. É teu Tabor.
De tempos em tempos é preciso subir teu Tabor, mesmo que custe desprender-te do passado e do pesado.
- Você é uma pessoa que transfigura um nascimento na família, um sofrimento, que transforma o trabalho, a convivência? Está aberto(a) à transfiguração da grande noite da vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.02.2024
“O Espírito levou Jesus para o deserto” (Mc 1,12)
O 1º. dom. da Quaresma nos conduz ao deserto; ali, na profunda solidão e silêncio, Jesus teve uma experiência fundante, que marcou profundamente sua vida, rompendo com a vida cotidiana anterior, em Nazaré. Enfrentou o que todos nós enfrentamos continuamente: todos nascemos e somos movidos por uma forte tendência a buscar poder, prestígio, riqueza; esta semente vai crescendo e se expandindo por todos os meios possíveis. Prestemos atenção naqueles que fazem da busca do poder, da riqueza e da vaidade, o centro de suas vidas, para ver os efeitos devastadores deste veneno, presente dentro de nós e no nosso contexto social. São as chamadas “tendências egóicas” que rompem toda possibilidade de viver a fraternidade e a acolhida do diferente.
Quando nos deixamos determinar pelo poder, para ter parte no “banquete de morte” dos poderosos, podemos chegar a nos ajoelhar diante deles e “adorá-los”. Diante desta perene tentação, Jesus, no deserto, vem nos diz: o amor e o serviço são duas atitudes que ativam e elevam a vida.
Quando queremos tirar os obstáculos de nosso caminho para tornar nossa vida mais fácil, procuramos transformar “as pedras em pães” com o que temos à mão: ameaças, extorsão, mentiras, ódios...Jesus vem nos diz: “que a Palavra sustente tua vida!”
Quando nos sentimos tentados a manipular Deus a nosso favor, queremos negociar e “comprá-lo” com nossos ritos e observâncias, acreditando que Ele está em dívida conosco. Jesus vem nos convidar a viver como filhos e filhas, sem tentar a Deus.
Para facilitar o esvaziamento dos “impulsos egóicos” e reordenar a vida, a liturgia nos convida a buscar inspiração junto a Jesus, durante sua estadia no deserto.
Ali, Jesus “vivia entre as feras e os anjos o serviam”; o texto grego e latino diz “animais selvagens”. Podemos entender a maneira como Jesus se situou na vida, em meio às “forças” que condicionam o ser humano, umas boas (Espírito, anjos), outras más (“demônios”, “feras”).
O relato do evangelista Marcos também faz alusão aos tempos idílicos do Paraíso, onde a harmonia entre seres humanos e a natureza inteira era total. Recordemos que o tempo messiânico fora anunciado como uma etapa de convivência harmoniosa entre seres humanos, os animais, a natureza...
Além disso, as tentações acompanharam Jesus durante toda sua vida, como apontam claramente os Evangelhos. Isto quer dizer, obviamente, que o discernimento que Jesus teve de fazer sobre sua própria vida e sobre sua missão, não foi experiência de um dia ou de um momento.
O Jesus dos evangelhos é Aquele que busca, que reza, que discerne, que se vê na encruzilhada de optar entre várias possibilidades, que se retira ao deserto para descobrir qual é a Vontade do Pai, que elabora progressivamente seu projeto global e passa depois às opções concretas.
Tudo isso iluminado e orientado a partir de uma opção fundamental: a opção pela solidariedade com todos aqueles que em suas vidas só experimentaram a exclusão. E isto, mantendo-se fiel até o final, mesmo às custas de encontrar-se em situações de conflitos e perseguições, até culminar em sua morte na Cruz.
Jesus não sai fragilizado de seu deserto. Sai tão fortalecido que seu compromisso posterior, fruto de sua relação direta com o Abba, que transforma a história em um antes e um depois. Portanto, quando nos perguntamos por que foi Jesus tão liberal naquilo que se refere às leis, normas e tradições religiosas, e porque foi tão radical a respeito da justiça, do amor e da proximidade junto aos pobres, doentes e excluídos, a resposta é clara. O segredo de tudo está na opção fundamental que Ele assumiu no batismo e a manteve durante suas tentações, ou seja, a opção pela solidariedade como meio e caminho para realizar sua missão.
O relato evangélico deste domingo termina nos dizendo que, após o batismo e o retiro no deserto, Jesus caminhava pela Galileia “proclamando a Boa Notícia de Deus” (Mc 1,14). Para Jesus, Deus é uma presença amistosa e próxima que faz viver e amar a vida intensamente. Jesus vive Deus como o melhor amigo do ser humano: um Deus “Amigo da vida”. O que contagia a todos é sua experiência de Deus como um “Mistério de bondade” que nos liberta de tanto peso e de tantas culpas, alimentadas por um legalismo e moralismo estéreis que acabam obscurecendo Seu rosto compassivo.
Quanta alegria se despertaria em muitos se pudessem ver em Jesus os traços do Deus da vida! Como se acenderia sua fé se pudesse captar com olhos novos o rosto de Deus encarnado em Jesus!
Muitos homens e mulheres de fé frágil, vacilante e quase apagada necessitam hoje escutar a notícia de um Deus bom e amigo: o Deus de Jesus Cristo, que só quer uma vida mais digna e feliz para todos.
Tudo aquilo que impede acolher a Deus como graça, libertação, perdão, alegria e força para crescer como seres humanos não leva dentro a “Boa Notícia de Deus” proclamada por Jesus.
Crer no Deus “amigo da vida” nos compromete a viver a “amizade social” como atitude oblativa.
Neste tempo quaresmal, a Campanha da Fraternidade nos motiva a viver a amizade social como um estilo de vida, fundado no modo de viver de Jesus. Viver como Jesus significa encontrar-se com “o mundo do sofrimento, da injustiça, da fome... e não ficar indiferente”. A fraternidade, que nasce da compaixão, nos leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação.
A amizade social se enriquece quando se deixa pautar pelo diálogo fecundo, pela cultura do encontro, pela paciência e tolerância com o diferente, pela renúncia a instrumentalizar e descartar o outro simplesmente porque “vive, pensa, crê, sente e ama de maneira diferente”.
O(a) discípulo(a) missionário(a) não é aquele(a) que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele(a) que, movido(a) por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença do Inefável; o mundo já não é percebido como ameaça ou como objeto de conquista, mas como dom pelo qual Deus mesmo se faz encontrar. O mundo não é lugar da exploração e da depredação, mas é o lugar da receptividade, da oferenda e do encontro inspirador.
Isso pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, re-descobrir com urgência a fraternidade como valor ético e como hábito permanente de vida.
Corremos o risco de viver em mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o convencional. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um mundo amplo, complexo e cheio de surpresas.
É urgente que nos deixemos “empurrar ao deserto” pelo mesmo Espírito de Jesus, para sermos mais fraternos e humanos. Vivamos com “sabor” a travessia quaresmal!
Texto bíblico: Mc. 1,12-15
Na oração: O Espírito de Jesus continua nos conduzindo ao deserto para desintoxicar-nos de todo resquício de poder, vaidade, indiferença, ódio, preconceito...; de tempos em tempos, precisamos nos deslocar para o deserto, para o lugar de discernimento das diferentes vozes que nos movem por dentro: vozes de morte (egóicas) e vozes de Vida.
É na escuta atenta do Espírito que seremos capazes de tomar decisões oblativas, descentradas, com sabor de Reino, e a dar passos em direção ao amor incondicional.
- O que prevalece e determina sua vida: as más tendências ou os sentimentos mais elevados, as vozes de morte ou as forças de vida?
- Que experiências de deserto sustentam sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro SJ
15.02.24
“Tu, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto,
para que os homens não vejam que tu está jejuando, mas somente teu Pai” (Mt 6,17-18).
Começamos a Quaresma com o rito da “imposição das cinzas”. Há um risco de vivermos a travessia quaresmal contentando-nos com atos externos de penitência, renúncia, mortificações... sem referência à pessoa de Jesus Cristo e sem abertura aos outros. O silêncio do deserto nos ajuda a encontrar nosso centro, a partir de onde podemos acertar em nossas opões vitais, sem cair nas armadilhas do ego.
A Quaresma é um tempo privilegiado de discernimento e mudança; ela desvela as grandes carências existenciais que nos afligem e nos desumanizam; ao mesmo tempo, ela nos faz ter acesso aos melhores recursos e dons, encontrados em nosso interior e que ainda não tiveram chances de se expressarem.
Há uma “carência radical” que nos afeta a todos e que, cada vez mais, assume um rosto assustador. Trata-se das profundas rupturas fraternas que se expressam numa cultura do ódio, da violência, da intolerância, do preconceito... Precisamos, neste tempo litúrgico especial, reforçar os nossos laços fraternos, reconstruir os vínculos quebrados e alimentar a comunhão entre os diferentes. A Quaresma pode ser um tempo de graça que ajuda a eliminar a “cultura da indiferença” de nossas vidas.
Para tornar a nossa vida mais fraterna, aberta e acolhedora, a Campanha da Fraternidade da Igreja no Brasil nos situa diante desta dura realidade que nos escandaliza.
Com o provocativo tema - “Fraternidade e amizade social” – e o lema – “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8) - somos chamados a despertar nossa sensibilidade solidária frente a esta grave situação de divisão que nos envergonha. Não podemos continuar passivos e indiferentes frente a esta realidade tão desumana. Onde há divisões e conflitos é sinal de que o Evangelho não está sendo vivido de modo coerente pelos cristãos.
O caminho da Quaresma passa pelo coração. Como seguidores(as) de Jesus, somos chamados(as) a retornar a Deus “de todo o coração”, a não nos contentar com uma vida medíocre, mas a crescer na amizade com o Senhor. E quando alimentamos a amizade com o Senhor também amadurecemos nossa amizade com os outros e, unidos fraternalmente, celebraremos a Páscoa, a plenitude da vida cristã.
Assim, em sintonia com o movimento humanizador de Jesus, a Quaresma se apresenta como um momento privilegiado para despertar os nossos recursos internos e ativar nosso espírito fraterno. Para isso, é preciso redescobrir o caminho do coração para viver um permanente processo de reconciliação e conversão.
O “Tempo Quaresmal” é uma excelente mediação para viver com mais sentido e inspiração. Ele nos abre a possibilidade de acessar nossa interioridade e destravar os impulsos relacionais que nos habitam: relação com Deus (oração), relação com os outros (esmola) e relação com as coisas (jejum).
Viver a cultura do encontro fraterno é ativar nossa própria capacidade de contemplação, de compaixão, de assombro, de escuta das mensagens e dos valores presentes no mundo à nossa volta. Ela nos mobiliza a viver uma relação sadia com todos; nosso centro se expande em direção aos outros e à criação, fazendo-nos viver uma conexão livre com toda a realidade, através da íntima solidariedade e do compromisso ativo.
O gesto de receber as cinzas sobre nossas cabeças tem o sentido de uma mobilização para começarmos a caminhar em direção ao “centro de nosso ser”, conscientes de que este caminho nos humaniza e nos diviniza ao mesmo tempo. A partir daí podemos sair ao encontro dos outros com outra profundidade, com um amor mais puro, com mais gratuidade e, com a força do Espírito, mais livres das redes egóicas.
Esta Quaresma pode ser um marco no nosso caminho, um caminho de Paixão que já estamos vivendo nestes momentos de profundas crises e rupturas sociais; quer ser também um caminho de Ressurreição e que não poderá ser uma experiência solitária; ou nos renascemos todos para uma nova humanidade ou este mundo será uma experiência falida.
Os grandes momentos de nossa vida (decisões, ano litúrgico...) pedem uma “parada”, um tempo de preparação. Há sempre o perigo da improvisação e do imediatismo; vivemos a cultura da pressa, buscando resultados rápidos. Sabemos que a vida tem seu ritmo, como a natureza tem suas estações. É hora de parar, quebrar o ritmo estressante, frear nossos pensamentos, sentimentos, afetos desordenados, sentidos..., esvaziar o nosso ego para nos deixar conduzir pelo mesmo Espírito de Jesus.
Existem aqueles que nunca freiam, que vivem sempre com pressa, indo de um lado a outro, de uma experiência a outra, de um momento a outro. A velocidade é a marca de nossos tempos. Mergulhados na rapidez, perdemos a memória, pois esquecemos rapidamente as vivências que nos marcaram.
Por isso, de tempos em tempos, é preciso parar, deter-nos, plantar os pés na terra firme, olhar ao redor e, também olhar para dentro. Perguntar o porquê da inércia ou da imediatez, perguntar pelas pessoas que fazem parte de nosso horizonte diário, pelas metas que guiam a nossa própria vida.
Para viver com mais intensidade o espírito quaresmal, a liturgia nos propõe três atitudes que nos descentram e nos fazem entrar no ritmo da radical gratuidade: a oração, o jejum e a esmola (caridade fraterna).
Uma vez no deserto com Jesus, devemos ativar a atitude de escuta daquela voz interior que se desperta diante da força da Palavra. A isso chamamos oração. Oramos quando dirigimos nosso olhar a Deus, ao mundo e a nós mesmos. Oramos com a Bíblia, com as notícias, com os desejos, com os medos... Oramos de mil formas diferentes...
E, se escutarmos profundamente com os sentidos ativos, brotarão gestos de atenção e sensibilidade diante de homens e mulheres que mais precisam de paz, pão e palavra. Chamamos isso de “esmola” (ou “caridade fraterna”), que significa porta aberta para viver a partilha e o encontro com todos, movidos pelo nosso olhar contemplativo e pelas nossas entranhas compassivas.
Depois da esmola e da oração, culminando a trilogia da “justiça” do evangelho de Mateus, vem o gesto da renúncia positiva, não por sadismo ou vitimismo, mas por elevação da interioridade pessoal e pela solidariedade humana. Este é o sentido do jejum da quaresma cristã: ao lembrar-nos de nossa precariedade, o jejum pode nos tornar sensíveis ao próprio mistério da vida que somos; é colocar em questão a razão de ser da vida. Para quê e para quem vivemos? Só para acumular e encher nossos “celeiros”...?
Se uma pessoa autosuficiente não aprende a renunciar, a jejuar, a contemplar Deus em tudo e amar os outros (para que eles se liberem, rompendo as cadeias, os muros da separação e o impulso egóico que mata) essa pessoa se destrói a si mesma, se torna enferma e perde o equilíbrio de sua vida mesma.
Sem um jejum como atitude de solidariedade, matamos os pobres e nos matamos a nós mesmos. Trata-se de um jejum não só dietético e medicinal, mas humano, espiritual e corporal no sentido mais profundo. Falamos de um jejum pessoal, que quebra nosso farisaísmo e nos conduz a uma autêntica solidariedade e maturação existencial.
Jesus, ao recuperar o sentido verdadeiro destas três práticas quaresmais, nos “revela” aquilo que os hipócritas escondem: o que a esmola, a oração e o jejum têm em comum é que precisam ser vividas no “escondimento”. O essencial da vida, que é o amor, sempre é discreto. O que não é essencial faz barulho, como a vaidade, o prestígio social, o querer despertar uma boa impressão nos outros...; tudo isso é pura hipocrisia.
Quaresma pede humildade e sinceridade de coração.
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Para fazer uma “travessia quaresmal” é preciso uma inspirada preparação e uma mobilização de todo nosso ser.
- Como você se propõe a viver as “três práticas quaresmais: oração, jejum e esmola?
- O tema da CF deste ano (fraternidade e amizade social) tem ressonância em seu interior? Que gestos concretos você poderia assumir para romper com essa cultura do ódio e da indiferença que provoca tantas divisões?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.02.24
“Eu quero, fica curado!” (Mc 1,41)
Continuamos no primeiro capítulo de Marcos que resume a habitual maneira de Jesus atuar. E o evangelho de hoje nos fala de um leproso cara a cara com Jesus de Nazaré! Um leproso em Israel não era, de modo algum, um enfermo qualquer: seu grau de impureza era tal que sua exclusão sociorreligiosa era a mais radical das exclusões ordenadas na Lei: “O homem atingido de lepra andará com as vestes rasgadas, os cabelos soltos e a barba coberta, gritando: ‘Impuro! Impuro!’. Durante todo o tempo em que estiver contaminado de lepra, será impuro. Habitará a sós e terá sua morada fora do acampamento” (Lev 13,45-46).
Não é fácil imaginar a carga de sofrimento e marginalização imposta pela enfermidade da lepra na Palestina do séc. I. O doente era obrigado a carregar não só o peso da enfermidade, da vulnerabilidade e do medo que procedem dela, mas também o estigma de ser considerado “pecador” e com a marca da rejeição que se concretizava numa severa norma de marginalização social. Tudo isso fazia com que o leproso fosse visto como um “empesteado” em todas as dimensões (física, social e religiosa). Mas, mesmo nos casos mais desesperados, ainda havia a esperança de recuperar a saúde e, com ela, a possibilidade de reintegrar-se mais plenamente na vida social. Compreende-se, então, que quem padecia de lepra desejasse, acima de tudo, “ficar limpo”. E essa é a petição que faz com que o leproso do relato se aproximasse de Jesus.
“Chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu: se queres tens o poder de curar-me”. Esta atitude indica ao mesmo tempo valentia, porque se atreve a transgredir a Lei, mas também temor de ser rejeitado, precisamente por isso. A ação terapêutica de Jesus acontece em quatro passos. O número quatro representa o aspecto terreno, o ser humano é reestabelecido em sua humanidade, à imagem do Deus que o criou.
O primeiro passo da cura: Jesus tem compaixão para com o leproso e se abre para o doente. O segundo passo: Ele estende sua mão, prolongando seu coração compassivo e estabelecendo assim um contato. O terceiro passo: o Mestre toca o leproso, quebrando uma norma legal que o excluía por ficar contaminado. Jesus não tem medo do contato físico; aproxima-se do doente, ativa todos os seus sentidos para senti-lo, demonstrando assim sua dedicação incondicional. O quarto passo: o Mestre diz ao doente “Eu quero, fica limpo”. Ele demonstra sua dedicação ao doente.
O gesto de Jesus de “tocar o leproso”, expressão de sua profunda compaixão, revela uma clara confrontação com o que era exigido pela Lei; fala, de um modo eloquente, da forte reação de Jesus diante da exclusão, à qual está submetido um ser humano.
Jesus despede o leproso já curado para que os sacerdotes do Templo de Jerusalém atestem sua cura e autorizem sua integração junto à sociedade: respeitoso do código social de pureza-impureza, o Galileu situa o homem curado diante da Lei como caminho para recuperar seu lugar na comunidade.
O leproso curado não permanece passivo, simplesmente acolhendo o dom que acabara de receber, senão que participa também, em certa medida, na cura da qual é o beneficiário. Mas, o curioso é que acontece algo fascinante: o excluído perde todo interesse em sua inclusão social a partir da Lei; em vez de ir ao Templo de Jerusalém, torna-se um propagandista da pessoa de Jesus. Sem dúvida, o ex leproso encontra no mesmo Jesus a possibilidade nova de inclusão em uma comunidade que não gira em torno à Lei, mas em torno à igualdade fraterna. É justamente o gesto da imposição de mãos de Jesus um desafio implícito ao mundo da Lei que abre ao leproso um horizonte radicalmente diferente: o Reino de Deus, no qual se sente incluído.
Permanece, então, a memória da mão estendida de Jesus de Nazaré sobre a pele do leproso como gesto crítico às leis de uma sociedade que rejeita todo aquele que não se acomoda aos seus pré-conceitos; ao mesmo tempo, tal gesto se revela como uma forte exigência à comunidade universal de discípulos que o Mestre fundara para ser o espaço de inclusão que, de modo alternativo, venha a ser o lar de todos os excluídos. O fato de que Jesus se aproximasse dos doentes e se deixasse tocar por eles, ou de que os curasse de forma pouco ortodoxa, era um atentado contra as normas de pureza que fora imposta à sociedade palestina daquele tempo. Jesus não teve receio em transgredir estas normas, pois só assim podia se aproximar daqueles que estavam em situação de exclusão.
O que chama a atenção é a “gestualidade” de Jesus: Ele se aproxima dos homens e mulheres de sua época, toca os enfermos, impõe as mãos, toma as pessoas pela mão, estende as mãos... As verdadeiras curas e milagres de Jesus são, antes de tudo, gestos de “humanização evangélica”. Curar é sua forma de amar e seu amor curador o impulsiona à proximidade, estima para com o enfermo, respeito à capacidade de cura da própria pessoa. Seu amor que cura é gratuito.
Ao curar fisicamente uma pessoa, Jesus busca fazer emergir um ser humano mais sadio e inteiro, a partir de suas raízes, a partir de seu coração, centro e fonte das decisões. Jesus se compromete com a saúde radical e integral do ser humano, e devolve às pessoas a saúde em seu corpo, em suas emoções, projetos, relações e abertura ao Transcendente.
Através das curas Ele mobiliza todas as dimensões da pessoa, reestrutura seu universo relacional e abre sua interioridade à alteridade; ao mesmo tempo Ele potencia a liberdade do ser humano, recuperando a autonomia e a capacidade de dar direção à própria vida. A enfermidade e o sofrimento têm muito a ver com a fragmentação, a dispersão e a divisão. A pessoa curada por Jesus recupera a harmonia, a unificação interior, a reconciliação com a vida e a relação com os outros.Ser curado implica assumir uma responsabilidade que leva a implicar-se na transformação pessoal e social. A saúde integral tem a “carga” da maturidade e da responsabilidade na própria vida e no próprio processo.
O evangelista Marcos destaca que, em Jesus, a “comoção das entranhas” é o núcleo de sua ação curativa.
O sofrimento das pessoas desperta n’Ele a compaixão e o amor. De fato, o primeiro sentimento que aflora em Jesus quando se vê diante dos enfermos é o da compaixão. Movido por ela, viola a lei que proibia aproximar-se e, muito mais, tocar o leproso. E assim revela que é a compaixão que cura as pessoas e não a simples observância da lei.
A compaixão constitui, ao mesmo tempo, o sentimento e a atitude nuclear de Jesus e um dos eixos do evangelho. Na realidade, todas as grandes tradições espirituais reconhecem a compaixão como o “teste” que verifica a autenticidade do caminho espiritual.
Não se trata de um mero sentimento superficial que brota de nossa sensibilidade diante do sofrimento do outro. É um sentimento infinitamente mais profundo, uma comoção interior que nos faz estremecer com a pessoa que sofre (“com-paixão”, “cum-passio” significa literalmente “sofrer-com”; no grego “sym-pátheia, termo eloquente que evoca atitudes de simpatia e de empatia); sentimento que nos põe na pele do outro, nos faz sentir com ele, e nos mobiliza a uma ação eficaz de ajuda.
Texto bíblico: Mc 1,40-45
Na oração: Há tantas dimensões de nossa vida nas quais o corpo fala mais alto: maneira de nos aproximar dos outros, de acolher, de cuidar, a delicadeza com que nos relacionamos... Nosso corpo pode expressar compaixão ou rigidez, calor humano ou frieza, acolhida ou preconceito...
- Suas mãos são o prolongamento das mãos divinas? Abertas, generosas, solidárias, que se estendem e envolvem os outros num abraço, sabem “bordar uma carícia”? Sabemos que nesses e em muitos outros gestos Deus está verdadeiramente ao alcance das mãos.
- “Devemos tocar a carne de Cristo” (Papa Francisco). Como você sente suas mãos? Elas são o prolongamento do seu coração compassivo para poder “tocar em Deus”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
08.02.2024
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