“...ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas” (Mc. 1,22)
No evangelho de Marcos, o começo da atividade pública de Jesus coincide com as primeiras curas. Isso nos sugere que é o início de um caminho ou itinerário pessoal que cada um(a) deve realizar. Trata-se de “ordenar” nossa própria “sinagoga” interior: carregamos pesadas imagens de Deus que herdamos ou foram reforçadas em determinados momentos de nossa vida; um Deus “cansativo” que impõe leis, normas e ritos que acabam travando o acesso à autêntica vivência humana, tecida de dignidade e verdade; um Deus “controlador” que manipula a liberdade de seus filhos(as) e condena aqueles que ousam desobedecê-lo; um Deus que tem prazer em complicar a vida de todos com ameaças e castigos. Tais falsas imagens de Deus impedem viver nossa condição humana com mais plenitude. Deus deixa de ser um aliado para se apresentar como inimigo de tudo o que é humano. Aqui está a fonte primeira das culpas, das angústias, dos sentimentos doentios, dos remorsos... que nos impedem viver com mais alegria e sentido.
As falsas imagens de Deus são nossos próprios “demônios” que devemos desmascarar em nosso interior para poder descobrir e nos abrir a uma experiência d’Aquele que é Presença íntima, Pai-Mãe de misericór-dia, Amigo incondicional que nos convida a viver de maneira criativa e livre; é Ele que ativa em nós a capacidade de amar a nós mesmos(as) tal como somos, amar os outros e amar toda a criação.
Quantas crenças tóxicas, normas e leis religiosas estéreis, ritualismos vazios, práticas piedosas alimenta-doras de culpabilidades... que as religiões, os mestres da lei, impuseram sobre nós ao longo dos séculos, asfixiando-nos, paralisando nossas vidas e impedindo-nos buscar o bem maior! Tudo isso são os “maus espíritos” que não nos deixam perceber a Luz e a Vida escondidas no interior de cada ser humano.
Foi nesse ambiente “religiosamente carregado” que Jesus marcou sua presença original e provocativa. Ele entrou em conflito com as “autoridades religiosas” que manipulavam a imagem de Deus para controlar as vidas das pessoas. Jesus começou a curar, libertando a todos de um “deus” opressor e dominador. Suas palavras ressoavam radicalmente diferente daquelas dos mestres da lei; e as pessoas, reunidas na sinagoga, ficavam surpresas ao escutá-lo. Jesus falava e agia com autoridade, a partir de sua experiência interior, não daquilo que ouvira; despertou a confiança e não o medo; reacendeu o amor a Deus-Abbá e não a submissão à lei que ignora o ser humano; sua presença ativou a liberdade e não a servidão; e, sobretudo, suscitou o perdão e não o rancor ou o ressentimento sempre presente. Jesus proclamou, com liberdade e valentia, um Deus pura bondade, que reconstrói com compaixão e misericórdia todos os seus filhos e filhas.
Marcos nos apresenta Jesus como o grande Mestre: seu ensinamento é novo, pois, ao mesmo tempo que ensina, liberta. É o início da missão de Jesus; e Ele começa justamente lá onde os “espíritos maus” produ-zem estragos no ser humano.
Diferentemente dos mestres da Lei e dos escribas, cujo ensinamento está centrado em “decorar” e conser-var a Lei, o ensinamento de Jesus parte da realidade humana de sofrimento, exclusão, preconceito...
Aqui estamos numa sinagoga em dia de sábado: lugar e dia de comunhão, de encontro, de festa... No entanto, na mesma sinagoga Jesus encontra alguém preso por “espíritos maus”, impedido de viver sua condição humana de maneira mais digna.
A missão de Jesus é a de aliviar o sofrimento humano; Ele reconstrói o ser humano ferido, fragilizado, privado de sua dignidade, sem poder dar direção à sua própria vida. Os “maus espíritos” podem ser sim-bolo de tudo o que desumaniza as pessoas. Podem ser os traumas, experiências de rejeição e exclusão, as feridas existenciais, falta de perspectiva frente ao futuro, o peso do legalismo e moralismo, a força de u-ma religião que oprime e reforça os sentimentos de culpa, as instituições que atrofiam o desejo de viver...
Enfim, tudo aquilo que prejudica as pessoas, provoca miséria, tira a dignidade do homem e da mulher.
Marcos reforça que Jesus fala e atua com “autoridade”, que é diferente de ter “poder”.
Jesus não exerceu poder porque o poder nunca é mediação para a libertação do ser humano (seja poder político, religioso, ou qualquer outra expressão de poder).
Jesus despoja-se do poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas”
Jesus revela sua autoridade e esta é o caminho para o serviço e a promoção da vida.
Por isso a autoridade de Jesus não tem nada a ver com o poder que se impõe ou a liderança que arrasta.
A palavra “autoridade” vem do verbo latino “augere”, que significa literalmente: aumentar, acrescentar, fazer crescer, dar vigor, robustecer, sustentar, elevar, levantar o outro, colocá-lo de pé, impulsioná-lo para frente... É a qualidade, a virtude e a força que serve para apoiar, para alentar, para ajudar as pessoas a serem elas mesmas, para fazê-las crescer, desenvolvendo suas próprias potencialidades.
“Autoridade” significa também recuperar a autoria, devolver a autonomia àquele que está impedido de optar e de fazer seu caminho. Nesse sentido, a autoridade nunca é perigosa para a pessoa, jamais é imposição ou atentado contra sua legítima autonomia ou liberdade. A autoridade é essencialmente amor.
Jesus tem “autoridade” porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir.
Quem tem “poder”, ao contrário, o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, impõe-se sobre o outro...
O “ensinamento” de Jesus, no entanto, é humanizador; parte da realidade humana ferida e liberta a pessoa, colocando-a no centro da sinagoga. Para Jesus, não é a Lei que deve ocupar o centro, mas o ser humano.
As pessoas percebem n’Ele um novo Mestre, cujo ensinamento desperta o assombro e a admiração.
Jesus é tão entranhavelmente humano que nos desconcerta, a ponto de parecer estranho, extravagante e, para muitos, escandaloso. Mas, precisamente dessa maneira, Ele nos revela não só sua profunda humani-dade, senão o grau de “desumanização” a que podemos submeter os outros.
Ao entrar na sinagoga, Jesus se volta para quem estava excluído e não recebia atenção; o homem “possuído” é o símbolo de todas as pessoas despersonalizadas às quais lhes foi negado o direito de falar e agir como sujeitos da própria vida, que dependem de “outros” que pensam, falam e agem por elas.
Chama-nos a atenção o fato de que Jesus, quando se aproxima dos endemoniados, não os toca como fará com outros enfermos: leprosos, cegos, paralíticos. Mantém-se à distância e ordena com sua voz para que os “maus espíritos” abandonem a pessoa escravizada. Com um taxativo “cala-te e sai dele!” Jesus provoca a reação pessoal para nos libertar de nossos “egos diabólicos”, algo que ninguém poderá fazer por nós.
Deslocar e afastar esses “egos” e acolher com firmeza e compreensão o “eu profundo” que fará desaparecer qualquer “demônio” que pretenda intrometer-se ou manipular nossa existência. A mesma coisa faremos quando nos encontrarmos diante de pessoas que, até em nome da religião, nos prendem com as amarras do legalismo, do ritualismo e da obediência infantil: “afasta-te de quem pretende desumanizar-te ou separar-te de Deus!”.
É urgente despertar em nós um “eu original”, que seja capaz de desmontar as armadilhas desses “egos” que pululam nossa mente e nosso interior; um “eu fiel” que recebe a Luz e a força de Deus ocultas no mais profundo de todo ser humano. Livra-nos, ó Abbá, dos espíritos que nos desumanizam!
Texto bíblico: Mc 1,21-28
Na oração: Proliferam os mestres, mas escasseiam os testemunhos de vida; aumentam os especialistas em leis, mas escasseia a vida; multiplicam-se os que discutem ideias, mas escasseiam aqueles que compar-tilham uma nova vida; cresce o número dos profissionais da religião e até da Palavra de Deus, mas são raros aqueles que, com suas vidas, sejam os melhores “exegetas” da Bíblia.
A Igreja precisa de homens e mulheres que ensinem a arte de abrir os olhos, de maravilhar-se diante da vida e interrogar-se com simplicidade pelo sentido último de tudo. Homens e mulheres que amem a vida, proclamem a vida, façam do prazer de viver a alegria da vida.
- Desça à sua sinagoga interior: quem é o “senhor” que ali atua? Os “maus-espíritos” do legalismo, do moralismo, do preconceito... ou os “bons espíritos” de vida, de comunhão, de compaixão...?
Pe Adroaldo Palaoro sj
26.01.24
imagem: J. Tissot
“Voltando-se para eles e vendo que o estavam seguindo, Jesus perguntou: o que estais buscando?”
Nem todas as perguntas são iguais. Às vezes surge uma pergunta, algo nos interessa e logo queremos saber; basta uma simples busca rápida para saciar nossa curiosidade; poucas curiosidades permanecem em nossa mente, pois logo são satisfeitas com muitas informações que não tem nenhuma ressonância em nossas vidas.
Tal pergunta superficial revela um perigo: pelo fato de serem respondidas em questão de segundos, nossos desejos mais profundos se acostumam a se mover nessa velocidade.
É preciso situar-nos diante de outro tipo de perguntas, as mais decisivas e essenciais, aquelas que não podem ser respondidas com um “click” e nos movem a uma tomada de decisão. São perguntas que exigem tempo, um ritmo diferente e tem a ver com o núcleo escondido do interior de nossas vidas: que quero fazer de minha vida? Que estou buscando? Por que há algo que sempre me remorde por dentro dizendo que eu poderia investir mais e melhor na minha missão? Que desejos me mobilizam, dando calor e sabor à minha vida?
Estas perguntas são mais difíceis de serem respondidas. Às vezes ficam ali, em um rincão de nossa vida, mas enquanto permanecem vivas são como umas brasas que voltam a se acender cada vez que a vida as sopra. Tais perguntas nos fazem mais humanos e são tão importantes como o ar que respiramos. Por isso, continuamente deveríamos nos perguntar: sinto vivas em mim as perguntas radicais?
É neste nível que se situa a pergunta de Jesus aos dois discípulos de João. O Mestre propõe a pergunta fundamental, “e vós, o que estais buscando?”; uma pergunta que exige deles um exame sério, que tomem consciência do que pretendem, que explicitem as reais motivações da busca por Ele.
A pergunta de Jesus é desafiadora, e não simples curiosidade e inquietação, e se dirige a todos nós. Cada um tem de dar sua resposta. Ela exige uma tomada de posição, um ato de fé. Por isso, o processo da busca dos dois discípulos se amplia, despertando nos outros igual movimento de busca; um encontro não termina em Quem encontra: a partilha da descoberta faz brotar uma “reação em cadeia”.
Porque buscam, os dois discípulos movem os outros à busca.
“O Evangelho é um itinerário para abrir com profundidade a interioridade humana” (R. Belloso), e nele vemos como Jesus provoca nas pessoas o retorno ao interior; sua pedagogia é a da pergunta que des-vela e move a pessoa a entrar no interior de si mesma para encontrar-se com a fonte que mana e corre.
Quando os discípulos de João descobrem a Jesus, este, em vez de dar uma explicação ou uma exortação, lhes dirige uma pergunta que os remete ao centro de seu coração, àquilo que os move: “quê buscais?”
O evangelho de João apresenta diferentes perguntas: no diálogo com a samaritana e com Nicodemos, o Mestre os conduz ao profundo deles mesmos; com Maria Madalena Ele se aproxima como desconhecido e faz a mesma pergunta dirigida aos primeiros discípulos: “Mulher, que buscas?”; com Simão Pedro, após a ressurreição, por três vezes lhe pergunta sobre o amor.
Podemos então afirmar que a busca de Deus e o encontro com Ele, a partir de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de nós mesmos, de modo que buscar a Deus é buscar-nos a nós mesmos, na nossa própria interioridade, onde o Senhor nos habita e nos move.
Encantam-nos as pessoas que têm mais perguntas que respostas. Aquelas que se apresentam com muitas respostas e poucas perguntas nos provocam tédio, nos cansam e acabam provocando afastamento. São encontradas em todos os lugares: nas igrejas, nos partidos políticos, no trabalho, nos meios de comunicação, nas redes sociais... Felizmente, também encontramos, em todos os lugares, muitas pessoas que têm mais perguntas que respostas. Embora tenham visões e crenças diferentes, nos sentimos em profunda comunhão com elas; com suas perguntas, elas nos provocam, nos enriquecem, mobilizam nossos melhores recursos e ativam a criatividade; essas pessoas nos ajudam a buscar, nos fazem perguntas novas que nos movem a sair de nós mesmos. Com elas podemos ver a realidade de maneira diferente, sob outra perspectiva. Suas perguntas despertam em nós outras perguntas e assim nossa vida entra em outro movimento. As perguntas movimentam, as respostas paralisam.
Alguém já afirmou que as perguntas têm uma força que não encontramos nas respostas. Só o fato de nos perguntar ou ouvir alguém que nos pergunta, pulsa em nós uma força, uma curiosidade que não se apaga com uma simples resposta. Perguntar-se na vida é o que nos mantém em busca. Como são nossas perguntas?
Deveríamos agradecer por tantas perguntas que nos foram feitas. Em um diálogo, as perguntas são a ponte entre as vozes, a confluência de corações, a faísca de luz partilhada. Todas e cada uma delas nos fizeram crescer, mesmo aquela mais trivial. Porque cada pergunta vem carregada de matizes: umas de carinho, outras de atenção ou de interesse, e inclusive, algumas de desafio. Umas foram respondidas, outras ainda não soubemos respondê-las, talvez nunca saibamos respondê-las...
Quantas perguntas deixamos de fazer com frequência! A pergunta verdadeira tem sempre o aroma da humildade: é o reconhecimento de nossa ignorância e o da capacidade de nosso irmão para nos ajudar. A pergunta é uma frase não concluída, um verso que busca palavras de outro para dar cumprimento à sua beleza e à sua mensagem. A pergunta tem a cor do respeito infinito pela liberdade do outro.
Jesus se revelou como um homem das perguntas mobilizadoras. Há uma infinidade de vezes que Jesus se aproxima das pessoas e as interroga. Desde o “que buscais?” inicial em João, à tríplice interpelação a Pedro – “tu me amas?” -, ou o apelo ao cego – “que queres que eu te faça? -, ou a delicadeza com o cego na piscina de Betesda – “queres ficar curado?”.
Aquele que é Verdade, Caminho e Vida também revela sua identidade através de perguntas que despertam o melhor que há em cada pessoa.
Não é fácil responder à pergunta simples, direta, fundamental, a partir do interior de uma cultura “fechada” como a nossa, que se revela como “cultura da superficialidade”, onde a preocupação está centrada só com as aparências, com a vaidade e o prestígio... Que é o que buscamos exatamente?
Para alguns, a vida é um grande supermercado e o único que lhes interessa é adquirir coisas com os quais poder consolar um pouco sua existência. Outros, buscam escapar da enfermidade, da solidão, da tristeza, dos conflitos e do medo. Mas, escapar para onde? Para quem?
Outros já não buscam mais; o que querem é que lhes deixem sozinhos: esquecer os outros e ser esquecidos por todos. Não se preocupam com ninguém e que ninguém se preocupe com eles.
A maioria busca simplesmente cobrir suas necessidades diárias e continuar lutando por ver realizados seus pequenos desejos. Mas, mesmo que todos eles se realizem, ficaria seu coração insatisfeito. Não apaziguaria sua sede de consolo, libertação, felicidade plena...
As verdadeiras perguntas estão empapadas de ternura e delicadeza. É impossível o diálogo sem perguntas; é impossível que uma criança fale com sua mãe ou pai sem perguntas, nem um amigo com outro amigo, nem um esposo com sua esposa. Não é possível o amor sem perguntas. Não é possível a oração sem perguntas. Chegará o “Dia do Senhor”, o dia da Grande Resposta. Mas, até lá, as perguntas farão parte de nosso viver, farão emergir o mais verdadeiro de nosso ser, darão sabor e calor ao nosso peregrinar.
Vive agora as perguntas. Talvez assim, pouco a pouco, sem dar-te conta, possas algum dia viver as respostas” (Rainer Maria Rilke).
Texto bíblico: Jo 1,35-42
Na oração: Ter os olhos centrados em Jesus deixando-se impactar pelo Seu modo de viver, Sua paixão pelo Reino, Sua missão, Suas perguntas...
- O que você busca ao fixar os olhos em Jesus? O que sente ao perceber os olhos de
Jesus fixos em você?
- que consequências tem para sua vida o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus?
- quais são seus sonhos? Quê esperanças você carrega no coração?
- a quê você se anima a gastar sua vida? Que medos o paralisam?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.01.23
“Nós vimos sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo”(Mt 2,2)
Epifania significa “manifestação”. No sentido original significa a primeira luz que aparece no horizonte, antes de sair o sol. Essa luz foi tomada como símbolo da iluminação espiritual em muitas religiões; por isso, a luz vem sempre do Oriente. Toda manifestação de Deus tem a marca da universalidade. Na relação com Deus estão excluídos os privilégios e exclusivismos. “Fora da Igreja há salvação!”
Na Epifania, não estamos celebrando a data de um acontecimento, mas a realidade de quem é Deus e a imensa alegria de poder descobri-Lo presente em tudo e em todos.
Se o Senhor não se manifestasse, sua Encarnação não teria chegado à toda a humanidade. Pois bem, a manifestação de Deus em Jesus tem um alcance universal, está destinada a toda humanidade.
É interessante que a tradição tenha interpretado que os Três Magos procediam dos três continentes até então conhecidos: África, Ásia e Europa. O mago negro aparece sempre. No Reino de Jesus Cristo não há distinção de raça ou de origem, não há diferenças nacionais, nem sociais, nem raciais. Todos somos filhos do mesmo Pai. Jesus Cristo une todos os povos e todas as pessoas, sem perder a riqueza de sua diversidade.
A tradição também relacionou os três reis com as três idades da vida do ser humano: a juventude, a idade madura e a velhice. Deste modo, todos podemos nos ver representados nos três magos que vão ao encontro do menino-Deus.
Mateus começa e termina seu evangelho dando a Jesus o título de “rei dos judeus”. Trata-se de um rei que nasce e morre rompendo todos os esquemas das realezas mundanas: nasce em uma gruta que acolhia animais e morre numa cruz. Em seu nascimento, os Magos vão em busca do “rei dos judeus”. Se estamos falando de um rei, compreende-se que eles o buscassem na cidade dos grandes palácios, ou seja, em Jerusalém. Equivocaram-se de caminho e de lugar, porque o rei que tinha nascido era tão diferente e tão novo que só podia nascer entre os pobres. O evangelista Mateus não se refere a nenhuma realeza que não seja a de Jesus. São as tradições populares posteriores que, usando muita imaginação, consideraram os Magos como “reis”. O evangelista só reconhece um rei, que é Jesus. Por isso os magos se prostram diante dele e o adoram.
Os Magos representam todos aqueles que vem dos confins da terra ao encontro do Menino, os estranhos ao povo judeu, os que não são da raça do recém-nascido, os afastados. Também para eles nasceu o filho de Maria. E também a eles deve chegar a boa notícia do Evangelho. Os Magos representam também a humanidade inteira em busca de paz, verdade e justiça. Representam o desejo profundo do espírito humano, a marcha das religiões, da ciência e da razão humana ao encontro d’Aquele que se “humanizou” plenamente.
À luz do relato de Mateus podemos afirmar: o Reino de Deus não se limita aos contornos de uma religião. O amor, a entrega, a capacidade de sair de si e ir ao encontro do outro, a compaixão... são os melhores recursos e possibilidades presentes no interior de todo ser humano. O que celebramos hoje é a revelação de Deus a todos os homens e mulheres, não a submissão de todos à doutrina ou disciplina de uma determinada religião. Onde se encontra uma pessoa que cresce em humanidade, amando os outros, ali está se manifestando Deus; onde a compaixão, o cuidado e o serviço se revelam como atitudes gratuitas, ali Deus está revelando seu rosto. Não podemos entender a abertura aos pagãos como proposta para que se convertam à religião cristã. O importante é potencializar o que há de mais nobre e humano em cada pessoa, mesmo que não conheça Jesus.
Os Magos, discernindo os sinais da natureza, se depararam com o forte esplendor de uma “estrela”, e puseram-se a caminho. Talvez o relato dos Magos e a estrela tenha suas raízes na bonita tradição judaica que diz: quando uma criança nasce, “acende-se” uma estrela no céu. Por isso no céu há tantas estrelas. Quando nasce uma criança, acende-se uma luz, um mundo de possibilidades, um universo pessoal no espaço da comunidade humana.
Jesus Cristo como “estrela”, é guia da humanidade e por isso desce à terra. De fato, a estrela se deteve no presépio, onde estava Jesus. A estrela, portanto, é Jesus presente no cosmos; logo, o cosmos fala implicitamente de Cristo, embora sua linguagem não seja totalmente decifrável para o ser humano.
A Criação deixa transparecer os atributos do Criador: bondade, compaixão, verdade, justiça... Desperta também a expectativa, mais ainda, a esperança de que um dia este Deus se manifestará plenamente.
A partir de então, as verdadeiras estrelas da humanidade são as pessoas que nos mostram o novo caminho para o Deus encarnado.
Também hoje continuamos necessitados de estrelas que iluminem nossos caminhos e guiem nossos corações, porque a noite é escura, as certezas se debilitam ou se petrificam, os abusos de poder violentam, destroem e marginalizam, a esperança continua sendo um desafio para quem consentiu acreditar.
Essas estrelas são pessoas, gestos, conversações que iluminam nossa vida cotidiana e nos recordam a verdade salvadora que se encarna em Jesus. Mas também são acontecimentos, sinais dos tempos, mudanças que ajudam a crescer e a melhorar, porque guiam para esses lugares que nos fazem mais humanos, que nos ajudam a compreender que nem tudo está dito e nos recordam que Deus continua sendo surpresa e impulso, que sua salvação não é algo do passado ou de um futuro distante e enigmático, mas presente e atuante em cada geração e em cada pessoa.
Como Igreja e como cristãos temos de repensar muitas coisas, mas não a partir do poder (Herodes e Jerusalém), mas a partir da Luz. A revelação, a estrela, estão no fluxo da história da Igreja e da humanidade; precisamos procurar fazer nossa essa luz para que ilumine cada situação humana e eclesial.
A Boa Notícia de Jesus nos levanta, nos convida a caminhar com a certeza de que sempre haverá estrelas que alimentem nossa esperança, orientem nossos projetos, nos sustentem nos momentos vulneráveis, nos abram na obscuridade. Nem sempre é fácil pôr-se de pé, fugir das seguranças do poder e do êxito, começar de novo... Mas, aí está uma multidão de estrelas que continuarão comprometidas em acompanhar-nos em todos os nossos esforços.
Mais uma vez somos convidados(as) a ser “magos/as”, caminhantes e buscadores que sabem seguir a estrela sem medo a que nos leve a lugares desconhecidos, surpreendentes ou inesperados. Magos/as que presenteiem perdão, bondade e solidariedade sem esperar outra coisa em troca a não ser fraternidade e empatia. Magos(as), em definitiva, que coloquem a confiança naquilo que constrói e liberta, e abandonem tudo aquilo que é imposto, violento ou interesseiro. Não é um caminho fácil. Não basta escutar o chamado do coração; é preciso pôr-se em marcha, expor-se, correr riscos.
O gesto final dos magos é sublime. Não matam o menino, mas o adoram. Inclinam-se respeitosamente diante de sua dignidade; descobrem o divino no humano. Esta é a mensagem de sua adoração ao Filho de Deus encarnado no menino de Belém
Texto bíblico: Mt 2,1-11
Na oração: Como cristãos, devemos nos sentir capazes de acolher todas as expressões religiosas e culturais de todos os povos. Só nesse sentido se pode falar de “epifania”. Não se trata só de ir e levar aos outros o que temos. Trata-se de receber aquilo que os grandes “magos” dos povos também nos oferecem. Epifania não combina com preconceito, fundamentalismo, proselitismo...
- “Fazer memória” das pessoas que foram “estrelas” inspiradoras em sua vida.
- Situações em que você foi “presença iluminante”, apontando horizontes de sentido para muitas pessoas.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.02.23
imagem: Bartolomé Esteban Murillo
“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido” (Lc 2,20)
“Começar de novo...”, diz o refrão de uma conhecida música; pois é exatamente o dom de re-começar, sempre, que nos caracteriza como humanos.
Hoje começamos um Novo Ano. Mas, o que pode ser para nós algo realmente novo? Quem fará nascer em nós uma alegria nova? Quem ativará em nós novos sonhos? Quem ensinará a sermos mais humanos? O decisivo é estar mais atentos ao melhor que se desperta em nós e viver sintonizados com a eternidade de Deus. Esta união com Deus faz com que o tempo seja pleno. Também para nós o tempo pode ser de plenitude na medida em que vivemos unidos a Deus e nos abrimos aos irmãos pelo amor. Pois o amor é o que faz com que o tempo deixe de ser enfadonho e caduco e se abra a uma plenitude que se renova cada dia.
Neste início de um Novo Ano, somos impelidos a caminhar para algo novo: novo tempo, novas relações, novos desafios, novas experiências... Não é este o momento de permanecermos imóveis só porque o caminho está obscuro e inexplorado. O que deve impulsionar a vida cristã atual é a espiritualidade da criação, da iniciativa, do momento presente... Nossa experiência nos diz que todo começo põe em marcha novos recursos, novas atitudes, abre novas possibilidades, amplia nossas expectativas...
Quando celebramos um “Ano Novo”, celebramos precisamente isso, que é “novo”. Somos presenteados com uma nova oportunidade preciosa para superar intrigas, inaugurar tempos de acolhida e perdão, olhar para a frente, despojar-nos de tudo aquilo que não nos faz mais humanos e, se somos cristãos, mais evangélicos, tolerantes e compassivos. Viver em chave de “possibilidade”, “oportunidade” ou “novidade” nos afastam de afirmações estéreis como estas: “sempre foi feito assim”, “eu te disse que não ia funcionar”, não se poderia esperar outra coisa desta pessoa...” Certamente que isso não nos conduz pelo caminho da humildade, de sentir-nos companheiros de caminho, irmãos em missão e, sobretudo, homens e mulheres enraizados na esperança.
A lógica da nossa sociedade de consumo reprime nossa criatividade, nos faz retroceder em nossa humanidade e nos impede de aproximar de toda experiência mais profunda. Marcados por tradições e hábitos caducos, dialogamos com o possível, o já esperado, o já testado, o “sempre fizemos assim”... Por isso, sentimos o desejo do retorno à espontaneidade e de aventurarmos na descoberta de um mundo diferente, ainda que assustador e incerto. “A princípio, estranha-se. Depois, entranha-se” (Fernando Pessoa).
Porque acreditamos no “novo” é preciso nos afastar de uma ingenuidade alienada, de uma visão pouco perspicaz, de um senso comum que não confia na bondade do ser humano...; caso contrário, nos tornaremos incapazes de ler este “novo tempo” e de oferecer uma proposta criativa, a partir de nossa opção e maneira de viver. Talvez estejamos ainda muito marcados por um clima de ódio e de suspeita, de divisões nos relacionamentos, de identidades pouco éticas, de narcisismos institucional ou pessoal, de incapacidade para alegrar-nos com quem se alegra, de relações doentias que aumentam as distâncias e a frieza diante de quem pensa, sente e ama de maneira diferente.
Tais atitudes insanas escondem algo que é mais triste: a falta de propostas à luz do Evangelho, de liderança humanizadora, de criatividade mobilizadora dos nossos melhores recursos... Quando isso não acontece, mergulhamos na segurança do “costumeiro”, confundimos poder com autoridade, acreditamos estar em posse do monopólio da verdade, provocamos confusão de funções...; tudo isso nos enreda na mediocridade da vida e mata a criatividade.
Sem dúvida, o “Ano Novo” não chega simplesmente pela mudança de alguns dígitos, nem por arrancar uma página do calendário. Talvez o “tempo novo” já esteja começando naquelas pessoas que não negociam valores inegociáveis, não se compactuam para manter uma estrutura social injusta, não se envolvem em “redes sociais” carregadas de “fake News” e mensagens preconceituosos, não fomentam guetos nazifascistas, não estimulam conflitos, mas se abrem à riqueza da pluralidade, respeitam e acolhem o bom que vem dos diferentes, alimentam uma presença que se revela inspiradora, focada na mensagem da Boa Notícia. Dizer “evangelho” é dizer “terra de oportunidades”, o lugar a visão teológica que nos faz amar e compreender que todos “somos”. Bendito “tempo novo” que nos faz recordar tudo isto!
A sabedoria deste Novo Ano vai, progressivamente, ativando uma luz que nos indica, de novo, que o caminho é de Deus e que Ele nos convida a nos deslocar, a entrar em sintonia com seus sinais surpreendentes, a colocar-nos em caminho como os pastores em direção à Gruta, onde um Menino os espera; ali, ficam assombrados pela Vida que se visibiliza nas margens, abrindo um horizonte de sentido para todos.
Para iniciar este Novo Ano, nada melhor que ativar a atitude contemplativa dos pastores na Gruta em Belém: “viram o Menino”. E isso fez toda a diferença. Tudo se tornou “novo”; voltaram para o cotidiano do pastoreio carregando uma presença na memória. O sentimento de gratidão aflorou: “voltaram glorificando e louvando a Deus”.
Quem contempla a realidade com os olhos simples dos pastores, não faltarão ocasiões para reconhecer a criatividade de Deus em ação, a inovação do Espírito movendo corações, criando cenários novos, mais humanos, com mais profundidade, mais do Reino... A experiência de colocar-nos a caminho, a abertura ao mistério, o fato de estarmos conectados, despertos e abertos à passagem de Deus, permite que Sua Graça desbloqueie as nossas amarras interiores e nos mobilize a uma presença diferenciada, no deserto da vida.
Por isso, o sentimento dominante que precisa ser ativado neste momento de transição é a da gratidão.
Sabemos que a gratidão autêntica constitui uma unidade íntima com a vida, flui com ela. Nasce e se apoia na compreensão de que, para além dos juízos que nossa mente possa fazer, tudo é graça.
A gratidão, como força que esvazia nosso ego, nos faz tomar distância de nossos pequenos interesses e nos abre à compreensão profunda de que, em último termo, tudo é dom, tudo é dado, tudo é Graça.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: Esperança, indignação, coragem.
Preciosas atitudes para este novo tempo em que temos o privilégio de viver.
- Você se atreveria assumir tais atitudes?
- Você se arriscaria, por um novo começo?
- Que riscos concretos você se sente chamado a assumir?
Um abençoado Ano Novo feito de promessas, de caminhos... de ternura infantil.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
31.12.23
imagem: pexels.com
Celebramos, neste último domingo do ano, a festa da Sagrada Família. Os textos da liturgia fazem referência a temas familiares. A partir de uma visão cristã, a família revela sua missão insubstituível: ser uma comunidade de amor, onde aqueles que a integram possam se abrir aos demais com uma total sinceridade e confiança. As exortações de S. Paulo à mansidão, à paciência, ao perdão e, sobretudo, ao amor, é o fundamento para as famílias de nosso tempo.
O espaço familiar é tão essencial para o amadurecimento e crescimento das pessoas que Deus escolheu a família de Nazaré como lugar de “humanização de seu Filho”. No cotidiano do lar de Nazaré, Jesus deixou transparecer que a “Trindade é a Família fontal”; nela, todas as famílias devem buscar inspiração.
De fato, Nazaré e a casa familiar foi para Jesus uma parábola trinitária. José, o artesão que lhe ensinou e o treinou para fazer suas mesmas obras, era o símbolo vivente do Abbá. Maria era a presença inspiradora, a que mantinha viva a chama do amor e da criatividade, a que transformava a casa em lar e em seio fecundo. Era ela o ícone vivente do Espírito. E Jesus, o aprendiz.
Foi na escola cotidiana da família de Nazaré, que Jesus foi se humanizando: “Ele crescia em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e diante dos homens” (Lc 2,52)
Nazaré nos revela o sentido do cotidiano, das horas, dos meses, dos anos escondidos, da vida tranquila, provinciana, não-escrita, de uma família simples e iluminada.
Essa atenção à simplicidade do cotidiano, à natureza da Galileia, à mensagem que Deus esconde nos corações das pessoas, nas coisas, nas horas…, é uma constante na vida e na família de Jesus. Nazaré é o sinal da epifania de Deus nas pequenas coisas, é o sinal da palavra divina escondida nas vestes humildes da vida simples e familiar, é o sinal da presença graciosa de Deus em todas as casas.
O ritmo da sociedade atual e, sobretudo, o culto à novidade, ao efêmero, ao superficial, ao consumismo, nos mantém muito distantes do ambiente familiar de Nazaré.
Estamos mergulhados numa cultura onde, normalmente, o cotidiano é rotineiro, convencional, repetitivo, e, não raro, carregado de desencanto. Fechado em si mesmo o cotidiano torna-se pesado, desinteressado e frustrado. Geralmente não nos damos conta de que estamos envolvidos pelo cotidiano.
No entanto, as grandes histórias são tecidas na trama do cotidiano; os “tempos” de Deus não são os da eficácia, da produção, do ritmo estressante... Também são os tempos do silêncio, da rotina inspirada e da aprendizagem silenciosa. Todo crescimento pessoal demanda previamente tempo, ritmo, reconhecimento e aceitação da própria verdade, sólidos fundamentos sobre os quais podemos construir nossa pessoa.
É a “mística” que nos desperta da letargia do cotidiano. E despertos, descobrimos que o cotidiano guarda segredos, novidades, energias ocultas, forças criativas... que sempre podem conferir novo sentido e brilho à vida. O Reino também se revela no pequeno, no anônimo, no despojamento.
É o cotidiano que nos prepara para as grandes decisões. É a fidelidade ao cotidiano que possibilita a transformação da realidade; é o cotidiano que abre espaço à ação do Espírito para que Ele nos expanda, nos alargue e nos impulsione em direção a uma nova vida.
O texto de Lucas deste domingo nos revela que junto às crianças, protagonistas do tempo natalino, estão os idosos. O acontecimento da apresentação de Jesus no templo nos situa diante do encontro de gerações: as crianças e os anciãos. Crianças e idosos constroem o futuro dos povos. As crianças porque levarão a história para frente, os anciãos porque transmitem a experiência e a sabedoria de suas vidas.
É interessante o que Lucas indica: dois anciãos do povo tinham passado a vida inteira esperando e com os olhos bem abertos para descobrir o menor indício de que se aproximava a libertação para o povo. Não causa estranheza que Lucas mostra Maria e José assombrados diante daquilo que se dizia do menino.
Aqueles que acolhem a Jesus e o reconhecem como Enviado de Deus são dois anciãos de fé simples e coração aberto, que viveram sua longa vida esperando a salvação de Deus. Seus nomes parecem sugerir que são personagens simbólicos. O ancião se chama Simeão (“o Senhor escutou”), a anciã se chama Ana (“presente”). Eles representam tantas pessoas de fé simples que, em todos os povos de todos os tempos, vivem com sua confiança centrada em Deus.
Os dois pertencem aos ambientes mais sadios de Israel. São conhecidos como o “Grupo dos Pobres de Javé”. São pessoas que não tem nada, só sua fé em Deus. Não pensam em sua fortuna nem em seu bem-estar. Só esperam de Deus a “consolação” que seu povo precisa, a “libertação” que andam buscando, geração após geração, a “luz” que ilumine as trevas em que vivem os povos da terra. Agora sentem que suas esperanças se cumprem em Jesus.
Pertencemos a uma geração atravessada pelo imediatismo e pressa, com enorme dificuldade para respeitar processos de longa duração: somos vítimas da rapidez das redes sociais, navegamos pela internet, usamos meios de transportes cada vez mais rápidos, cozinhamos no micro-ondas, consumimos sopas instantâneas...
Vivemos uma quantidade de experiências rápidas, amontoadas, sem possibilidade de avaliação... e vamos perdendo, pouco a pouco, o sentido da história pessoal e comunitária.
O problema é que, com frequência, buscamos aplicar estes mesmos ritmos às relações humanas; no entanto, nem uma amizade, nem um casal, nem uma família, nem uma comunidade, são forjadas com essa medida ultrarrápida do tempo; elas precisam de processos lentos de crescimento e amadurecimento, e isto se torna cada vez mais difícil de respeitar.
É preciso recuperar a dimensão de profundidade em nossa vida cotidiana.
É preciso "nos deixar surpreender por Deus" constantemente. E Deus espera que nos deixemos “surpreender por seu amor, que acolhamos as suas surpresas”.
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novas vivências, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer.
O velho Simeão e a profetisa Ana, a quem Lucas nos apresenta esperando toda sua vida pela chegada do Messias e glorificando a Deus por tê-lo encontrado em seus últimos dias, nos oferece a sabedoria do saber esperar. A imagem que o evangelista nos dá deles é que ficaram sumamente recompensados por terem passado a vida inteira à espera e que, como a espera não foi frustrada, mas premiada de maneira abundante, sua alegria se transbordou no louvor e no agradecimento.
Esperar algo ou alguém requer uma capacidade que costumamos traduzir por “paciência”, mas que implica muito mais acolher que suportar. Revela uma capacidade de ser receptivo e isso só é possível com uma confiança que se instala no coração e que dá forças para assumir a vida concreta, os acontecimentos e as atividades que trazem em si algo de custoso, penoso, contrariante...
As imagens que o NT usa para falar dessa atitude sugerem que aquele que espera já começa a desfrutar no presente daquilo que é objeto de sua espera, embora a posse total daquilo que já começou a ser saboreado é ainda objeto de promessa.
Os idosos Ana e Simeão, podem nos comunicar algo do segredo da esperança, sobretudo no ambiente familiar, lugar dos lentos processos de maturação humana, tanto dos pais quanto dos filhos.
Texto bíblico: Lc 2,22-40
Na oração: A vida cotidiana exige não apenas fidelidade, mas também amor, gratuidade. É o lugar que inspira a viver encontros com a marca da surpresa, da acolhida do diferente, do respeito ao outro...
- Como é o seu cotidiano familiar? rotina e repetição ou desafio e criação? Espaço de encontros inspiradores ou alimentador da indiferença? Nele há lugar para a esperança e o novo?
- Suas atividades diárias formam parte do seu caminho para Deus? Você tem consciência que cada dia é um “tempo de graça”? Você “apalpa” a presença de Deus nos “ritmos familiares”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.12.23
“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)
Contemplando o mundo, tal e como está hoje, não há dúvida que é preciso uma revolução: ecológica, política, social, econômica, religiosa...; mas, fundamentalmente, o que mais precisamos é de uma revolução do afeto e da ternura. Nosso corpo, nossa psicologia e nosso coração já não suportam mais tanto ódio, intolerância, preconceito, violência, mentira, brutalidade, julgamento... Não podemos continuar alimentando mais desconfiança, mais medo e mais indiferença. Fomos feitos para o amor, para o encontro, a acolhida...
Somos seres limitados e não podemos viver ignorando a realidade de nossa fragilidade e finitude. Não podemos viver sem amor e sem reconhecimento; precisamos uns dos outros para sentir o calor da estima e da amizade, para consolar-nos em nossos fracassos, para acompanhar-nos em nossa solidão essencial. Precisamos uns dos outros para sentir-nos vivos, para estar vivos e viver a “cultura do encontro”.
Não há afeto e ternura sem o outro a quem amar. O afeto e a ternura se expressam com palavras, gestos, atitudes e atos; mobilizam a pessoa inteira, abrem a cabeça, os sentidos e o coração. No abraço, nos abraçam; no olhar, nos olham; na cordialidade, o coração se aquece; na carícia, a pele se sente reconfortada...
Não há riqueza que compre a ternura ou desterre o ódio, não há dinheiro que alimenta a esperança e a confiança. É missão de cada um de nós viver a ternura como despojamento de nossa humanidade; é tarefa de toda a comunidade humana confiar que no coração de cada homem e cada mulher Deus já semeou a “faísca do Amor”. Sem afeto e ternura, sem dedicar tempo e energia para nos cuidar, estamos percebendo o alto custo que isto implica. Quem paga? Nosso corpo, nossa afetividade, nossas relações, nossa família, nossos amigos, os mais vulneráveis e excluídos deste mundo, a natureza...
Neste contexto tão hostil à vida e à humanidade, que petrifica nosso coração e nos desintegrada, o Natal pode ser uma ocasião privilegiada para reivindicar a “revolução do afeto e da ternura” como ponto de partida para uma nova humanização. Na sua essência, a festa natalina nos situa diante deste grande Mistério: “Deus se humanizou para que nos tornemos mais humanos”.
O Papa Francisco, na “Evangelii Gaudium” afirma que o “Filho de Deus encarnado nos convidou à revolução da ternura”. Poucas vezes podemos encontrar estes dois vocábulos juntos. Revolução sugere rebeldia, ruptura, protesto, rebelião, choque de poderes, transgressão... Ternura evoca abraço, carícia, cuidado, proteção da vida. A frase não é exagerada pois somente se pode preservar a vida a partir da ternura. É o atributo humano mais elevado para combater o ódio e construir a paz. Ternura não é sinônimo de debilidade, mas é uma das expressões mais profundas e vigorosas do amor, é a seiva mesma do amor, sem a qual este se apaga. A ternura é a expressão profunda e gratificante do amor que sente o outro como outro, que o respeita em tudo o que ele é, o admira com intuição e fina sensibilidade.
Esta é a “ternura essencial” (Leonardo Boff) e não mero sentimentalismo estéril. Partindo desta perspectiva, podemos dizer que a ternura é uma força capaz de transformar os mais pesados ambientes, porque no detalhe do abraço, das palavras consoladoras e conciliadoras, dos gestos de proximidade, etc, revela-se aceitação, tolerância, respeito, dignidade e uma grande sensibilidade humana.
Assim, pois, a ternura no campo político, social, racial, religioso... nos ajuda a construir coletivamente pontes de reconciliação e colher o fruto da paz. Com razão dizia Tomás Borge que “a solidariedade é a ternura dos povos”. “Jamais devemos ter medo da ternura” (Papa Francisco).
O grau de humanidade (ou de barbárie) de nosso mundo se mede pelo grau de sensibilidade diante da dor e da miséria humana. E é a ternura a melhor expressão dessa sensibilidade e humanidade. Ela é, antes de tudo, uma experiência relacional que nos compromete a ver o mundo e as pessoas de maneira diferente e nos relacionar também de maneira diferente. E como a ternura brota do coração, é ali, no coração, onde os olhos se purificam para ver e sentir a realidade que nos envolve. Ternura é o contrário da apatia, da indiferen-ça e da violência. É o amor que abraça, envolve, protege e salva.
Natal é manifestação da ternura de Deus pela humanidade e pela Criação inteira; no nascimento de Jesus “apareceu a bondade e a ternura de Deus” (Tit 2,11). Apareceu um Menino; apareceu a ternura e a doçura de Deus que salva. Por sua ternura, Deus reveste o ser humano de uma “pele divinizada”, capaz de amar, de manifestar compaixão, de expressar uma nova sensibilidade.
No Natal celebramos precisamente que Deus se fez “pele” e se deixou impactar por tudo aquilo que o rodeava. No fluxo da Ternura divina, nossa ternura é aquecida e nossos afetos despertados. Ninguém pode viver sem afeto e sem ternura.
Só quem experimenta a ternura sabe ser possuidor de uma “segunda pele” que certamente o faz mais vulnerável, mas ao mesmo tempo mais humano, ou ao menos, mais apto para penetrar no segredo de uma humanidade capaz de sentimento e estremecimento nunca imaginados, capaz de adornar a existência de uma luz acariciadora e expressar uma relação afetuosa com tudo e todos.
A ternura emerge assim como algo que é, antes de mais nada, próprio de Deus. Segundo a Revelação, Deus é Aquele que instaura o primeiro movimento de ternura para com a humanidade, e que encontra a expressão máxima numa Criança nascida numa gruta em Belém.
O coração de Deus é coração com “entranhas de ternura”, entranhas que se comovem e que O fazem sair e transbordar-se como amor terno sobre a história e sobre a humanidade.
Ou seja, como experiência fontal, há uma ternura divina que atravessa a fibra do humano, divinizando-o.
À imagem desse Deus de ternura fomos criados como seres capazes e necessitados de ternura. Uma ternura que é um simples reflexo dessa “forma suprema de ternura”, que é o Amor de Deus e que se aproxima da realidade humana como Ternura amorosa.
Na gruta de Belém “descemos” ao chão da nossa humanidade para recuperar e projetar dimensões humanas que estiveram esquecidas ou desprezadas. Entre elas está a mais importante e que carrega grande significado: a ternura. A humanidade está carente de ternura e precisa despertar para a ternura, atributo essencial para uma personalidade sadia. Sem ternura, a personalidade sofre deformação. Trata-se de “necessidade básica” para o desenvolvimento normal de nossa condição humana enquanto seres pessoais e sociais.
A ternura mantém a reciprocidade com o diálogo, a afetividade, a compreensão, a amizade, o respeito, o direito, a solidariedade; ela é aberta, não se fecha, ajuda o mundo a ser mais humano, e não selvagem, alegre, e não triste, pacífico, e não belicoso, justo, e não injusto, limpo e não sujo. Assim, a ternura ética preserva a humanidade, ventilada pelo sopro d’Aquele que “renova a face da terra”.
Texto bíblico: Lc 2,1-14
Na oração: Natal: a estrela misteriosa brilhou numa Gruta; Deus já não deve ser procurado para além dos astros. Ele está deitado em cima de palhas, Ele está no coração da humanidade, Ele revela sua “face” na ternura de uma criança.
- Entre em sua “gruta interior” e deixe que a ternura do Deus-Menino ative a ternura escondida em seu coração. Quando isto acontecer, você estará vivendo o verdadeiro espírito de Natal.
Um abençoado e terno Natal a todos!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
23.12.23
Imagem:
Adoration of the Shepherds
Gerard van Honthorst (1592-1656)
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“Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38)
Estamos nos aproximando da festa do Nascimento de Jesus; a liturgia deste domingo nos coloca diante da atitude de Maria que abriu espaço para que “Deus se fizesse carne nela”. Com seu “sim” radical, a distância entre Deus e o ser humano foi quebrada, o divino se humanizou e o humano se divinizou.
O “Amém” de Maria, seu “Fiat”, é um Amém ao “Sim” de Deus à humanidade. Deus é para nós “Sim” e um “sim” sem arrependimento, sem volta atrás. Nosso “Abbá” é aliança fiel, permanente, definitiva. Sua oferta de Aliança de amor sempre paira sobre a humanidade. Por isso, derrama seu Espírito com abundância sobre toda a terra e sobre “todo ser vivente”.
Maria disse “fiat” (“faça-se”) a essa oferta. Nela, a humanidade, cada um de nós, é chamado a dizer “fiat”. O “sim” proferido por ela é o melhor que a humanidade apresentou a Deus e desencadeou outros inúmeros “sins oblativos” na história.
Maria é o verdadeiro Templo, é espaço de presença do Espírito, lugar sagrado onde habita a divindade para, a partir dela, expandir-se depois a todo o povo. Ela é lugar de plenitude do Espírito, terra da nova criação, templo do mistério. Evidentemente, esta presença é dinâmica: o Espírito de Deus está em Maria para fazê-la mãe, lugar de entrada do Salvador na história. Ela não é um instrumento mudo, não é um meio inerte que Deus se limitou a utilizar para que fosse possível a Encarnação. Maria oferece ao Espírito de Deus sua vida humana para que através dela o mesmo Filho Eterno pudesse entrar na história. Toda envolvida pelo amor divino, Maria soube colocar-se, em total disponibilidade, nas mãos de Deus, para cumprir sua santa vontade: “Eis a serva do Senhor, faça-me em mim conforme a tua palavra”.
O Evangelho deste domingo nos convida a contemplar Maria como aquela que, movida pela Graça, realizou-se como pessoa que acolhe o desejo de Deus e lhe corresponde com seu mais profundo desejo. Ao encarnar-se por meio dela, Deus não se impôs a partir de cima ou de fora, mas deseja e pede sua colaboração; por isso lhe fala e espera sua resposta, como indica o texto de Lucas, uma cena simbólica que pode apresentar-se como diálogo do consentimento: Maria respondeu a Deus em gesto de confiança sem fissuras; confiou n’Ele, lhe deu sua palavra de mulher, pessoa e mãe. Ambos se uniram para compartilhar uma mesma aventura de amor e de graça, a história divino/humana do Filho eterno.
No mistério da Encarnação a razão silencia. Agora começa a narração do evento da ternura, da compaixão... que revela a radical proximidade de Deus para com a humanidade, abraçando-a complemente, especialmente ali onde o ser humano está mais fragilizado e ameaçado. Aqui se faz “visível” o contínuo êxodo do amor trinitário para o encontro com a humanidade.
Partindo da afirmação de Jesus – “Deus amou tanto o mundo...” (Jo 3,16) – compreendemos que a Encarnação é uma oferta aberta a todos. Nada fica fora do “olhar trinitário”, ninguém fica excluído do dom da Vida. A história humana se faz “História da salvação”. A partir de agora, a humanidade pode acolher o dom da presença trinitária e iniciar com ela um novo diálogo, um caminho de vida.
A Encarnação não só desvela a nova imagem de Deus, mas revela também a “re-criação” do ser humano. Nela descobrimos a imagem do “ser humano novo”; imagem a que todo ser humano é chamado a ser, fundamento de sua dignidade e plenitude de sentido. S. Atanásio afirma que a nossa carne está como que “verbificada”, pois o Verbo vem restaurar a imagem de Deus nos seres humanos. Neste corpo de carne, de alegrias e dores, Deus quis resgatar toda a sua Criação.
Assim, todas as dimensões da pessoa (corpo, mente, afetividade, coração...) são mobilizadas para se deixar “afetar” pelo mistério da Encarnação.
“No ventre de Maria, Deus se fez homem.
Mas na oficina de José, Deus também se fez classe.
O Verbo se fez carne. O Verbo se fez pobre, o Verbo se fez índio...
Planta entre nós a sua maloca” (D. Pedro Casaldáliga)
A Encarnação não é um evento isolado da história. Toda a Criação é “afetada” de maneira definitiva e irreversível; toda a humanidade é integrada no interior deste mistério; todos os fatos da história recebem nova luz e encontram seu sentido.
Assim como na Encarnação o Verbo “desceu” e se fez visível através das fendas e feridas da humanidade, Ele continua “descendo” e se fazendo “carne” nas profundezas de nosso ser, integrando e pacificando tudo.
“Assim novamente encarnado” (EE 109), nos diz S. Inácio.
Deus não só se encarna; Ele “é” encarnação contínua, desde toda a eternidade. A Encarnação, portanto, não é um evento ou ato isolado da história; a Encarnação é atitude eterna de Deus. Se descobrimos Deus encarnado em Jesus, podemos afirmar que Deus é Encarnação e se encarna em todos.
Deus “não faz atos”; tudo o que Ele faz é porque “Ele é”; Deus não faz atos de bondade, de misericórdia, de amor... Ele é misericórdia, é bondade, é amor... Assim, Ele “é” Encarnação; é da sua essência. Por isso, S. Inácio, na contemplação da Encarnação, reforça que as Três Pessoas divinas “determinam, em sua eternidade, que a Segunda Pessoa se faça homem...” (EE 102). A contemplação da Encarnação nos situa nesta Vontade fontal, primeira, eterna.
A Encarnação de Jesus Cristo, portanto, não foi “determinada” pelo pecado da humanidade. O ser humano não “obrigou” Deus a se encarnar, porque a Encarnação é um “sair de si” contínuo de Deus, é um “êxodo” permanente da Trindade em direção à humanidade. Tal mistério tem a marca da pura gratuidade. Deus “é” Encarnação porque não vive fechado em si mesmo, mas é contínuo deslocamento, “descida”, fazendo-se presente em tudo, em tudo habitando e em tudo deixando-se transparecer.
A Encarnação (mistério fundante) encontra diferentes expressões na História da Salvação; sua máxima revelação acontece em Jesus Cristo, mas ela está presente na Criação, na história do povo de Israel, no “hoje” da nossa história: “assim novamente encarnado” (S. Inácio).
O termo “novamente” expressa a atualidade, desde sempre e para sempre nova, do Verbo, isto é, a sua eternidade. Pois, algo que para sempre e desde sempre é novo, é eterno. Quando dizemos que “o Verbo se fez Carne” não fazemos referência a um evento externo à nossa própria existência, senão que acontece a partir de “dentro” da humanidade, a partir de dentro de cada ser humano concreto, e a partir de dentro da história, que vai se transformando em História de Salvação.
Assim compreendido, todos somos “terra da Encarnação”. O Verbo continua se fazendo “carne” na nossa carne; Ele continua se humanizando em nossa humanidade; Ele se “historiza” em nossa história.
“A carne é o eixo da salvação” dizia Tertuliano.
Texto bíblico: Lc 1,26-38
Na oração: Deus continua enviando mensageiros para comunicar-nos sua vontade; o que nos falta é ter o espírito desperto para discernir e reconhecê-los. As pessoas dispostas, os cristãos vigilantes, os santos e santas se encontram com muitos mensageiros que lhes comunicam mensagens do Senhor. Advento é realizar uma limpeza de ouvidos para escutar cada vez mais fielmente os mensageiros (anjos) do Senhor.
- “Sentir Maria” é reencontrar em nós mesmos aquilo que diz sim à vida, quaisquer que sejam as formas que esta vida tomar. “Sentir Maria” é superar toda expressão de desconfiança, de dúvida, de temor diante daquilo que a vida vai nos oferecer para viver.
- Faça memória das experiências de “anunciação” em sua vida: o que mudou? quê movimentos vitais surgiram?
Pe Adroaldo Palaoro sj
20.12.23
“Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz” (Jo 1,8)
É curioso como o quarto Evangelho apresenta a figura de João Batista: “surgiu um homem”, sem revelar outros dados pessoais. Não diz nada a respeito de sua origem ou condição social. O próprio Batista sabe que isto não é importante, pois ele mesmo afirma que não é o Messias, não é Elias, nem sequer o Profeta que todos estão esperando. Ele só se vê a si mesmo como a “voz que grita no deserto: aplainai o caminho do Senhor”.
Certamente a figura dos sacerdotes que falavam no Tempo não despertavam curiosidade e nem eram escutados por ninguém; as pessoas se deslocavam ao Tempo não por causa deles, mas por causa do próprio Templo. No entanto, a simples figura de João no deserto, longe do Templo e do poder religioso, arrastava multidões, despertava em todos o desejo de uma profunda conversão.
A voz de João nas periferias provocava inquietações e preocupações nos responsáveis do Templo. É possível que ninguém tenha perguntado aos sacerdotes: “E vocês quem são e que dizem de si mesmos?”
A estrutura religiosa do Templo se sentia questionada por esse homem estranho do deserto, sem ornamentos luxuosos a não ser uma veste de pele de camelo e uma vida de austeridade. Mas, sua vida, por si só, falava de algo diferente, de algo novo. Uma voz que encontrava ressonância no interior das pessoas.
Essa é a verdadeira identidade de João: ser uma “voz” diferente daquela que todos estavam acostumados a ouvir e que mantinha tudo como estava. No entanto, Deus o envia como “testemunha da luz”, capaz de despertar a fé de todos; uma pessoa que pode contagiar luz e vida.
Que é ser “testemunha da luz”? É ser como João: viver em função de Outro. Não alimenta seu ego, não busca ser o centro nem chamar a atenção sobre si mesmo; não quer provocar impacto em ninguém. Simplesmente vive sua vida de maneira inspirada; é presença que ilumina porque deixa que o Deus da Luz atravesse sua vida. Irradia luz em sua maneira de viver e de crer.
A testemunha da luz não fala muito, mas é uma “voz”; vive de uma maneira inconfundível. Comunica Quem lhe faz viver. Não proclama “teorias” sobre Deus, mas contagia “algo”; não ensina doutrina religiosa, mas convida a crer. Como testemunha da luz, sua vida atrai e desperta interesse. Não culpabiliza ninguém, não condena, mas contagia confiança em Deus, liberta dos medos, abre sempre caminhos novos. É como o Batista, “aplaina o caminho do Senhor” para facilitar do encontro de todos com Ele.
A testemunha da luz se sente frágil e limitada. Muitas vezes comprova que sua fé não encontra apoio nem eco social. Vê-se, inclusive, rodeado de indiferença e rejeição. Mas quem é testemunha de Deus não julga ninguém, não vê os outros como adversários que devem ser combatidos ou convencidos: Deus sabe como encontrar-se com cada um de seus filhos e filhas.
Na Igreja, ninguém é a “Luz”, mas todos podem irradiá-la com suas vidas. Ninguém é “a Palavra de Deus”, mas todos podem ser uma voz que desperta e move a centrar a vivência cristã na pessoa de Jesus Cristo. Diz-se que o mundo atual está se convertendo em um “deserto desolador”, mas a testemunha da luz revela que experimenta algo de Deus e do amor, experimenta algo da “fonte” e sabe como acalmar a sede de felicidade presente no interior de cada ser humano.
A vida está cheia de pequenas testemunhas da luz: são pessoas de fé com a marca da simplicidade, da humildade, conhecidos somente em seu entorno; pessoas entranhavelmente boas e transparentes, pois vivem a partir da verdade e do amor. Elas “aplainam o caminho” para Deus. São o melhor que temos na Igreja. Há vidas que não dizem nada; há vida silenciosas, mas que dizem muito. Há vida anônimas, mas que inquietam. Há vidas cujo silêncio desperta interrogações. Há vidas que são palavras e atos em favor da vida.
Que maravilhosas são essas pessoas que, sem fazer muito ruído, são capazes de questionar as vidas e os corações dos outros. Há aquele que fala muito e não diz nada. Há aquele que apenas tem “nome” e sua vida questiona o resto. Há quem passa sem fazer ruído, mas sua passagem desperta curiosidade.
João Batista, a partir do deserto, deixa transparecer sua identidade na relação com um Outro que não é conhecido por todos. “No meio de vós está Aquele que vós não o conheceis”. O Batista fala de uma presença velada que não é fácil descobrir; ele é a memória daqueles que custam reconhecer a presença de Jesus. Precisamente toda sua preocupação está em “aplainar o caminho” para que aquelas pessoas pudessem crer n’Ele. Essa dificuldade permanece hoje. Mas as palavras do Batista estão redigidas de tal forma que, lidas hoje por nós que dizemos ser cristãos, provocam perguntas inquietantes. Jesus está no meio de nós, mas, nós o conhecemos de verdade? Comungamos com Ele e com a causa do Reino? O modo d’Ele ser e viver nos seduz?
Muitos cristãos se limitam a seguir uma religião, a realizar alguns ritos vazios, a cumprir algumas devoções estéreis e que não tem impacto no modo de ser e viver. São inúmeros aqueles que não tem Jesus como referência inspiradora e nem tem significado algum em suas vidas. No melhor dos casos, o único que lhes interessa é a doutrina, a moral e os ritos oficiais para alcançar uma segurança externa. E isto acaba “ocultando” a pessoa de Jesus.
Talvez, esteja aqui a maior incoerência do cristianismo: são tantos homens e mulheres que se dizem “cristãos”, em cujo coração Jesus está ausente. Não o conhecem, não vibram com Ele, não se sentem atraídos e seduzidos por Ele. Jesus é uma figura inerte e apagada. Está mudo. Não lhes diz nada especial em suas vidas. Suas existências não estão marcadas pelo projeto vital de Jesus.
O mundo de hoje e a Igreja precisam de cristãos que sejam “testemunhas da luz”, que ajudem a aplainar os caminhos que conduzem a uma identificação profunda com Aquele que sempre está presente e que nem sempre é reconhecido. Cristãos, cujas vidas anônimas e sem necessidade de dizer muitas coisas, inquietam e despertam interrogações nos outros.
Vivemos imersos num oceano de luz; carregamos dentro de nós a força da luz. Ela sempre está aí, disponível; basta abrir-nos a ela com a disposição de acolhê-la e de fazer as transformações que ela inspira.
Pelo fato de ser benfazeja e criadora, a luz nos permite dizer com o poeta Thiago de Mello, no meio de impasses, ameaças e conflitos que pesam sobre nossa vida: “Faz escuro, mas eu canto”.
O ser humano é luz quando expande seu verdadeiro ser, ou seja, quando transcende e vai mais além, desatando os originais recursos e possibilidades de humanidade que o habitam. A luz, por si mesma, é expansiva: “Vós sois a luz do mundo”. A vida inspirada pela fé é um “caminhar na Luz”.
Somos portadores da “luz nova”; não extinguir essa luz que ilumina dentro. Abafar essa luz é menosprezar a vida da Graça, o tesouro que nos foi confiado no batismo. Devemos guardá-la ciosamente, velar por ela, valorizá-la pela nossa colaboração, estimá-la e protegê-la, como a chama olímpica que nos levará à vitória.
Texto bíblico: Jo. 1,6-8.19-28
Oração: Despertar a consciência de que o Advento é um tempo especial de densidade mobilizadora, dentro de nós. Revela-se como uma liturgia cósmica: quatro semanas de evolução para a Luz, trazendo à nossa consciência todas as imagens da natureza e da humanidade, através de textos proféticos inspiradores, de anúncio da Vida.
- Deixemo-nos iluminar por Aquele que é Luz; levemos a luz nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos do nosso cotidiano.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.12.23
imagem: pexels.com
“Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!” (Mc 1,3)
Desejo, anseio, expectativa... Isso é o que nos invade quando sentimos que se aproxima algo/alguém que esperamos profundamente. Pois isso é o Advento. Tempo para os grandes sonhos. Só os medíocres ou os desesperançados renunciam sonhar. Pois bem, se um grande desejo nos move, é tempo para levantar a cabeça de novo, ampliar o olhar, tanto para fora quanto para dentro. Deixar que ressoe como uma promessa o grito de um Deus que atravessa o tempo para nos dizer: “aproxima-se vossa libertação!”.
O Advento é um tempo inspirador. Talvez porque seja um tempo de espera. Como na gravidez, um tempo de interioridade, onde uma vida vai crescendo no escuro e protegido ventre materno. Advento nos chama a olhar-nos por dentro, a descobrir aquilo que já não serve para deixá-lo; também descobrir a vida que pulsa buscando sair à luz. Ali podem se esconder os brotos verdes dos quais ainda não se manifestaram.
Por isso, viver o Advento é viver em permanente travessia, em contínuo deslocamento. A imagem do “fazer caminho” perpassa todo esse tempo litúrgico. E o apelo mobilizador que emerge é este: “fazei-vos itinerantes!”. O Advento vem ao nosso encontro e nos desafia: “Tu és caminho!”.
Os caminhos estão dentro de nós; temos “fome e sede de estradas”. Todo ser humano é “homo viator”, um caminhante pelos caminhos da vida; ele não recebe a existência pronta. O “ser humano é terra que caminha” (Yupanqui). Seu caminho pessoal tem de ser desbravado com criatividade, ousadia e destemor.
O caminho não é só o trajeto de uma pessoa para Deus, mas também o trajeto de Deus em sua aproximação a cada um de nós. A realidade está perpassada por um Deus que também empreendeu um caminho em direção à humanidade.
O ser peregrino por parte do ser humano corresponde ao ser peregrino por parte de Deus.
O caminho se converte, então, em caminho para um encontro mútuo, um encontro de dois peregrinos.
Todo caminho é um mundo de relações; relações livres porque não sabemos com quem vamos encontrar; falamos de igual para igual, compartilhamos alegrias e tristezas, nossa conversação, nossa ajuda. Não há pré-juizos no trato mútuo, ajudamos e somos ajudados, carregamos a mochila de nosso irmão cansado, curamos suas bolhas nos pés; aproximamo-nos das pessoas sem barreiras, superando fronteiras de raça, credo e cultura.
O caminho faz do peregrino um obsessivo-apaixonado, pois está centrado numa única preocupação que é fazer o percurso, chegar à meta. “Nós pensamos e sentimos a partir de onde estão nossos pés” (Frei Betto).
O caminho nos põe em contato conosco e ajuda a nos conhecer melhor (o percurso externo é visibilização da viagem interior). O caminho externo é prolongamento do caminho interno, percorrido e saboreado. Só quem transita com liberdade pelos caminhos interiores será capaz de ir ao encontro dos outros e entrar em sintonia com eles pelos caminhos da vida. Viver percursos internos expande a mente, alarga o coração, eleva os sentimentos.
No contexto pós-moderno, onde predomina o uso dos meios eletrônicos, os “lugares virtuais” acabam determinando nossa vida, nosso modo de pensar, nossa visão, nosso sentir... Enquanto a tecnologia nos permite transitar por todos os lugares e encontrar pessoas mais distantes, cresce, no entanto, o medo do outro, daquele que é “diferente” de nós, daquele que não pensa como nós, encerrando-nos em pequenos mundos. Assim, os “percursos virtuais” acabam atrofiando nosso horizonte, nossos desejos e inspirações; as relações são frias, neutras, não nos comprometemos com o outro e não permitimos o confronto. Não tem sentido fazer caminho externo se nossa mente permanece estreita, se nosso coração continua insensível, se nossas mãos estão atrofiadas, se nossa criatividade sente-se bloqueada...
Portanto, Advento significa contínuo êxodo do lugar estreito e dispersivo ao lugar expansivo e unificante, travessia dos lugares auto-referenciais para os amplos lugares humanizadores. Assim, este tempo litúrgico nos pede deslocamento de nossos lugares onde controlamos; supõe travessia para espaços onde não somos o centro. Falamos de diferentes espaços: religioso, afetivo, gênero, ideias, crenças, ideologias...
Assim, ampliar os espaços do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade, solidariedade e abertura às mudanças e às novas descobertas. Quando os caminhos interiores são abrasados e iluminados pela força do Espírito peregrino, começam a cair nossas falsas seguranças, suspeitas e preconceitos e a nossa vida se abre à grande novidade que o Deus surpreendente nos reserva.
O caminho é a experiência de uma grande liberdade pela via do desprendimento (coisas, apegos, ideias fixas, posturas fechadas, conservadorismo...) e aí se abre a possibilidade de um encontro com o Transcen-dente, com Deus; é muito comum que uma pessoa, ao fazer esse caminho exterior e interior, espontane-amente eleve os olhos ao alto, expresse gratidão, ou se retire para orar... Assim, Advento nos move à conversão pois se manifesta como um chamado a uma vida mais simples, partilhada, apaixonada, natural, livre, transcendente, intensa, comprometida...
Nosso caminhar pessoal, familiar, social, histórico... é um caminhar para frente, para o melhor, para a superação constante...; é um caminhar que se abre a nós cheio de possibilidades, que alimenta a esperança, que nos enche de novas energias..., porque Deus, que é novidade constante, nos impulsiona a partir de dentro.
Se considerarmos o novo ano litúrgico a partir desta perspectiva, seremos capazes de romper com a rotina para deixar-nos surpreender, comover e mobilizar. Já não será “outro Advento a mais”, senão “um Advento novo e diferente”; nem “um Natal a mais”, senão “um Natal novo e inesquecível” ...
“Aplainai o caminho do Senhor!”. É o grito do profeta João. O que devemos ter em conta hoje é que “o Senhor” não tem que vir de fora, mas deixá-lo surgir a partir de dentro. Como conseguir isso? Afastando de nós tudo o que impede a manifestação do divino em nós.
Por isso, preparar o caminho do Senhor implica desejo, conversão, empenho e confiança. Tudo na vida requer preparo, e toda preparação exige empenho e mudança..., envolve uma espera. Somos feitos disso: desejo, súplica, anseio, busca, esperança... No mais profundo de cada um há uma carência que nos faz bradar ao Eterno, pedindo ajuda: “Vem, Senhor, nos salvar! Vem sem demora nos dar a paz!” Tudo aponta para o vazio infinito dentro de nós, ressoando uma certeza: Ele vem!
Despertos e libertados podemos sair ao encontro d’Aquele que nos quer encontrar.
Texto bíblico: Mc 1,1-8
Na oração: O caminho que temos de percorrer durante o ano litúrgico é longo: entrar em nossa casa, entrar em nosso interior requer tempo. Como dizia S. Bernardo: “não se trata de atravessar mares, de escalar o céu, de ultrapassar as nuvens, de cruzar vales ou de escalar montanhas. É para ti mesmo que deves caminhar; habitar-te e não ser casa vazia ou cheia de espíritos que não são teu espírito, tu mesmo”.
- Aproveita este Advento para sacudir a preguiça e sair para Aquele que vem ao teu encontro; propicia espaços nos quais possas escutar a voz do Espírito que em teu interior te recorda quem és: filho(a) e irmão(ã)!
-Está dentro de ti o caminho que tens a percorrer; para o mais profundo teu; é ali onde Deus te espera e deseja encontrar-se contigo, realizar o Natal.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.12.23
“Atenção! Estai despertos, porque não conheceis o dia nem a hora” (Mc 13,33).
Estamos no primeiro domingo do Novo Ano litúrgico. Começamos com o Advento, que não é somente um tempo litúrgico, mas um “modo de viver”. Trata-se de uma atitude vital que precisa atravessar toda nossa existência. Não teremos entendido nada da mensagem de Jesus se ela não nos inspira a viver em constante busca daquilo que já está presente em nosso interior.
O importante não é recordar a primeira vinda de Jesus; isso é só o pretexto para descobrir que Ele já está presente em nós e na nossa realidade. Também não se trata de nos preparar para a última vinda, que é só uma grande metáfora. O importante é descobrir que Ele está vindo neste instante, a cada instante.
Através de uma simples parábola Jesus nos anima à espera ativa e à atenção consciente frente à passagem de Deus por nossa vida. O Deus de Jesus não é inacessível, distante, impassível; seu desejo é vir sempre ao nosso encontro, de forma surpreendente e desconcertante. Mas, nem sempre estamos mobilizados para entrar em sintonia com a presença providente d’Aquele que habita em tudo e em todos.
A vida é um constante Advento que nos pede estar despertos para acolher a novidade de Deus em cada momento e situação. A pergunta fundamental não é tanto “onde está Deus?”, mas “como Deus está atuando?”. Às vezes Ele irrompe como grito persistente para fazer-nos despertar de nossas sonolências cúmplices, de nossas dispersões, impulsionando-nos a sair de nossas falsas seguranças ou das “zonas de conforto” frente à injustiça, à violência, à marginalização dos outros; outras vezes, Ele atua com a suavidade de uma carícia que nos cura e nos capacita para sermos canais de consolo e libertação frente às feridas do coração do mundo e da história; outras vezes, nos instiga a pôr no centro a vida, a alegria e a esperança, em meio a tanta destruição que está acontecendo, desfigurando o rosto d’Aquele que é sempre Presença Amorosa.
O apelo de Jesus no evangelho deste domingo (“ficai atentos!”, “vigiai!”) pode muito bem ser traduzido por “ficai despertos!”. O oposto à atenção é a rotina e o modo “normótico” de viver, sem inspiração e criatividade. A rotina tem a “vantagem” de nos facilitar as coisas e nos confere uma certa sensação de segurança: nós nos movemos por caminhos trilhados nos quais tudo se revela familiar. Os hábitos repetitivos permitem que façamos muitas coisas sem precisar perguntar pelo sentido daquilo que estamos fazendo, sobre o “porque” e “para quem” fazemos; tudo é realizado no “piloto automático”.
No entanto, se não estivermos atentos, esse modo de viver tem um preço muito alto que pode chegar a manifestar-se como desânimo, cansaço e vazio. Perdemos a novidade e o frescor da vida. Na realidade, mais que viver, vegetamos, sobrevivemos ou agimos mecanicamente. A atenção, pelo contrário, nos conecta com a vida, porque nos traz ao presente. E o presente é o único lugar da vida. Graças à atenção, habitamos o momento presente, deixando-nos fluir com a vida mesma. Graças à atenção, vivemos na consciência, acolhendo tudo a partir da lucidez e amando tudo a partir da sabedoria. Sintonizamo-nos com a corrente da vida e fazemos a descoberta maior à qual podemos aspirar: que a consciência não é só uma atitude que podemos favorecer, senão que constitui nossa verdadeira identidade.
Estar atento é ousar renascer, advir, vir-de-novo, recomeçar...
Nessa atenção vislumbramos detalhes decisivos: a vivência da ternura, a reinvenção da vida em cada amanhecer, o criar asas e alçar vôo, o despertar de sonhos, a gratuidade amorosa, a alegria transbordante...
Vemos assim que, no dizer de Jesus, o tempo da ausência do “dono da casa” que partiu em viagem não é um “tempo morto”, mas um tempo de intensa gestação. Não é uma espera vazia, angustiante e ansiosa, provocadora de medo, mas uma espera centrada no Senhor que vem e centrada na responsabilidade que foi confiada: serviço.
O Advento vem nos dizer: “há uma esperança para o teu futuro” (Jer 31,17)
A esperança é algo constitutivo no ser humano. Para ele, viver é caminhar para um futuro. Sua vida é sempre busca de algo melhor. O ser humano “não só tem esperança, senão que vive na medida em que está aberto à esperança e é movido por ela” (H. Mottu).
Por isso, quando numa sociedade se perde a esperança, a vitalidade decai, a marcha se paralisa e a vida mesma corre o risco de degradar-se. Esperança é uma palavra vencedora. Quando tudo parece perdido, irremediável, destruído, ela comparece para salvar. Ela é capaz de transformar a derrota em vitória, o perigo em alívio, o desespero em alegria. A esperança é tão poderosa que consegue tirar do domínio da morte os que não veem mais razão para viver.
Vivemos de esperança; se não fosse assim já teríamos desaparecidos há muito tempo. Vivemos e continuamos avançando sobre um abismo de ameaças, mas temos de despertar para viver mais um ano, com inspiração e criatividade, superando os desafios da vida.
A esperança, hoje como sempre, não é virtude de um instante. É a atitude fundamental e o estilo de vida daqueles que enfrentam a existência “enraizados e edificados em Jesus Cristo” (Col.2,6) Todo o AT está atravessado pela promessa e pela espera. Segundo o relato bíblico, Deus vai lhes prometendo o que eles mais aspiravam em cada momento. A Abraão, Deus promete descendência; aos escravos no Egito, promete liberdade; aos famintos no deserto, promete uma terra que mana leite e mel; quando conquistaram Canaã, promete uma nação forte e poderosa; quando estão no Exílio, promete fazê-los voltar à sua terra; quando o Templo é destruído, promete reconstruí-lo. No AT, Deus sempre lhes promete bens, liberdade e descendência, porque é o que eles esperavam.
Jesus promete algo muito diferente: “Vim para que tenham vida e a tenham em abundância” Jo 10,10
A esperança cristã é chamada a “abrir horizonte” ao ser humano contemporâneo. No meio desta nossa história, às vezes medíocre e insensata, está sendo gestado o verdadeiro futuro do ser humano.
Frente a uma “visão imediatista” da história, sem meta e sem sentido algum, a esperança cristã leva a sério todas as possibilidades latentes na realidade presente. Precisamente porque quer ser realista e lúcido, o cristão se aproxima da realidade, vendo-a como algo inacabado e “em marcha”; não aceita as coisas “tal como são”, mas “tal como deverão ser”.
Quem ama e espera (esperançar) o futuro (“novos céus, nova terra”) não pode “conformar-se” com a realidade tal como é hoje. A esperança não tranquiliza, inquieta; introduz “contradição” com a realidade; gera protesto; nos desperta da apatia e da indiferença próprias deste tempo; nos desinstala.
Graças à esperança, avançamos; graças à esperança, sonhamos, evoluímos. Isso porque, sem dúvida alguma, a esperança é o motor de nossas vidas.
Para viver com intensidade o tempo do Advento, é preciso seguir o Espírito, deixando-se surpreender pelos novos rumos que Ele aponta, seduzir pelos novos horizontes que Ele descortina, desafiar pelas novas provocações que Ele lança, a partir da realidade histórica e dos novos sinais dos tempos.
Texto bíblico: Mc. 13,33-37
Na oração: No Advento, a vigilância se revela como atitude-chave. Os Evangelhos repetem-na constantemente: “vigiai”, “estai alertas”, “vivei despertos”. Não se trata de um chamado a mais; é o apelo por excelência.
Já se passaram vinte séculos de cristianismo. Que foi feito deste apelo de Jesus? Como vivemos as atitudes que Ele ativou nos seus seguidores? Continuamos despertos? Mantém-se viva nossa fé ou foi se apagando na indiferença e na mediocridade?
- Temos sentido a necessidade de despertar e intensificar nossa relação com Jesus? Quem, a não ser Ele, pode libertar nosso cristianismo da imobilidade, da inércia, do peso do passado, da falta de criatividade? Quem poderá nos contagiar com seu entusiasmo e alegria? Quem nos dará sua força criadora e sua vitalidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
01.12.23
Imagem: pexels.com
“Todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes” Mt 25,40
Com a festa de “Cristo Rei” chegamos ao final de mais um ano litúrgico; e o evangelho indicado para este último domingo é o conhecido texto do Juízo final (Mateus) que, devido a interpretações fundamentalistas, tem alimentado muito mais medo que confiança. Não podemos aplicar ao termo bíblico “juiz” o mesmo significado que conhecemos dos termos “juiz” e “juízo” em nossos tribunais.
Deus não é um “juiz”; são nossas obras ou omissões diante daqueles que foram despojados de seus direitos mais básicos e de sua dignidade como pessoas, que julgam o êxito ou o fracasso de nossa vida.
O que verdadeiramente nos move e nos interessa na parábola do Juízo Final não é especular sobre as realidades últimas, mas dirigir nossa atenção e nosso pensamento sobre a realidade presente: o que estamos fazendo com o dom da vida nesta vida? Deveríamos nos preocupar muito mais com os chamados “juízos intermédios” que vamos enfrentando cada dia, ou seja, se estamos ajudando a aliviar o “inferno” que muitos estão vivendo nesta terra, oferecendo-lhes um pouquinho de “céu”.
Assim, fechando o ano litúrgico, volta a ressoar de maneira inquietante, nas paredes da história, a pergunta fundamental: “que tens feito, que estás fazendo com teu irmão?”
O Evangelho deste domingo nos recorda que a pergunta pelo Deus de Jesus e seu Reino não remete a uma teoria, ou a um “princípio”, ou a uma “doutrina”, mas a algo tão concreto, histórico e cotidiano como é sempre a pergunta pelo próximo. Por isso, nas relações com os outros, especialmente com os mais empobrecidos e sofredores, é que se fundamenta nossa relação com Ele.
Não há relação nem culto possível ao Deus de Jesus que não passe pela prática da misericórdia, da solidariedade e da justiça com nossos irmãos e irmãs mais vulneráveis. Suas situações de indigência, exploração, expropriação de bens e direitos são padecidas pelo mesmo Deus, porque eles e elas são seus representantes; por isso o que fazemos a um destes humildes, fazemos a Deus.
A parábola que Mateus relata resume muito bem o que é essencial na proposta de Jesus sobre o Reino: os gestos de misericórdia frente às diversas formas de sofrimento. Para caminhar em direção à maturidade no seguimento de Jesus, devemos nos perguntar frequentemente, durante o nosso percurso, o que é mais importante, o imprescindível, o inegociável de nossa fé.
Muitas vezes, nossa vida cristã se perde num emaranhado de normas, doutrinas, leis, práticas “piegas”, que acabam nos afastando da essência do evangelho e da vida de Jesus. Bem sabemos que, segundo os evangelhos, o compromisso primeiro de Jesus foi o de aliviar todo sofrimento humano. Ele não estava preocupado em constituir uma nova religião, com cargas e cobranças sobre os ombros dos seus seguidores. Sua verdadeira religião era a vida; sua missão era reconstruir vidas feridas, excluídas e marginalizadas. Jesus foi um “biófilo”, amigo da vida.
O mais interessante na parábola deste domingo está no fato de apresentar uma pergunta que nos será feita no último “cara-a-cara” com Deus: o que fizemos com nosso irmão sofredor?
Esta mesma pergunta já apareceu no início da humanidade, frente ao fratricídio de Cain sobre Abel: “onde está teu irmão? O que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra a mim” (Gen 4,9-10).
Uma mesma pergunta que parece ser a única e decisiva em toda a história da salvação. Não seremos perguntados sobre a quantidade e qualidade de nossas orações, santas missas, peregrinações, novenas, penitências, práticas devocionais... Tudo isso só tem sentido quando nos fazem mais sensíveis e nos levam ao compromisso com o irmão que sofre, prolongando o modo de ser e agir de Jesus.
Com efeito, o vers. 40 do texto de Mateus nos revela o fundamento teologal do juízo: “o que fizestes a estes meus irmãos menores, a mim o fizestes”, diz o Filho do Homem. Há, portanto, uma “identificação sacramental” entre Jesus e o sofredor. O texto não diz: “é como se tivessem feito a mim”; ele é muito taxativo: “a mim o fizestes”, ou, “foi a mim que não o fizestes”.
O sacramento primeiro é o compromisso com aquele que é excluído, vítima das estruturas injustas, o rejeitado... Os outros sacramentos só têm sentido quando nos movem para as margens, para uma presença solidária com aqueles que são os prediletos de Deus.
Inspirando-nos na parábola do bom samaritano (Lucas) podemos afirmar que é Jesus quem – identificado com o assaltado – jaz ferido nas margens da história e, portanto, somos nós que devemos “salvá-lo” da morte. Portanto, é o próprio ser humano que é convocado a evitar a dor de Deus na história. E, por isso, a pergunta que normalmente dirigimos a Deus em meio ao sofrimento – “por que não fazes algo?” – nos é devolvida a partir do alto: “o que vocês estão fazendo para aliviar o meu sofrimento?”.
Em nossas mãos está a possibilidade de evitar a dor dos excluídos e das vítimas, que é a dor de Deus na História. Deus sofre na dor dos seus filhos e filhas. Somos nós que devemos dar um copo de água, visitar o enfermo ou o encarcerado, consolar o triste, incluir o excluído... Deus colocou a história em nossas mãos e nos dotou de nobres recursos para que possamos continuar a mesma missão do seu Filho: “aliviar o sofrimento humano”.
A parábola indicada para a festa de Cristo Rei afirma que quem deseja entrar no Reino, não deve comportar-se como um “vassalo” de um rei, mas como um servidor dos mais fracos e excluídos. Todo ser humano que se “humaniza, humanizando os outros”, faz presente o Reino. No Juízo, a única coisa que se leva em conta na hora de valorizar o ser humano é sua humanidade; nas exigências do “Juiz” não aparece nenhuma conotação “religiosa”, no sentido de práticas religiosas. A pertença ou não ao Reino, não depende de uma atitude religiosa, mas de uma atitude vital de compaixão para com os mais fracos.
Os rostos sofredores dos pobres são rostos sofredores de Cristo. Eles interpelam nossos compromissos. Tudo o que tem a ver com Cristo tem a ver com as vítimas sofredoras e tudo o que é relacionado com os sofredores, diz respeito a Jesus Cristo.
O envolvimento com o “outro” (excluído, pobre, marginalizado...) nos conduz à autenticidade, à libertação de apegos e avareza, à liberdade para partilhar e receber e a uma imensa felicidade. Em seus olhos “vemos o calor da atenção, o brilho da dignidade, o lampejo do humor, a faísca do protesto. Vemos também as lágrimas da tristeza, do medo e da insegurança, o sofrimento da rejeição, a escuridão do desespero”.
Aproximar-nos do “pobre” e deixar-nos “afetar” pelo seu sofrimento torna-se a maior fonte de nossa espiritualidade. Suas “fraquezas” suscitam em nós o melhor de nós mesmos e ao nos envolver afetivamente em suas vidas, fazem com que vivamos um misto de ternura e indignação a que chamamos compaixão.
Nas experiências de “convivência” com os pobres adquirimos os valores evangélicos da capacidade de celebrar, da simplicidade, da hospitalidade... Eles têm um jeito de nos trazer de volta para o essencial da vida. Eles são uma fonte de esperança, uma fonte de autenticidade. Eles se tornam nossos amigos.
“Nosso compromisso de seguir o Senhor pobre, naturalmente nos faz amigos dos pobres” (Inácio de Loyola).
Texto bíblico: Mt 25,31-46
Na oração: Rezar as “obras de misericórdia” encontradas na parábola de Mateus, neste domingo.
No Documento de Aparecida, as tradicionais obras de misericórdia ganham nova feição, traduzindo-se em afirmação da dignidade humana, defesa incondicional da vida, promoção do bem comum, justa distribuição de renda, inclusão social, defesa dos direitos humanos, acesso aos bens culturais, salário justo e segurança alimentar (nn. 358-359).
- Sua experiência de Deus se reduz a algumas práticas religiosas autocentradas, ou é mobilizadora para ativar uma presença solidária e profética junto aos mais sofredores? Qual é o “lugar” do seu encontro com Deus?
24.11.23
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Os textos evangélicos destes últimos domingos do ano litúrgico nos convidam a velar, a estar mobilizados, numa atitude de expectativa diante do Deus que sempre está vindo ao nosso encontro. Ele não nos espera no final do caminho para nos submeter a um juízo. Não, Deus está em nós todos os instantes de nossa vida para que possamos levá-la à plenitude, ou seja, para salvar-nos n’Ele.
É preciso estar alerta, porque o tempo passa. Se estamos distraídos e adormecidos, é preciso despertar, porque do contrário perderemos a oportunidade de “entrar na festa de casamento”.
Neste domingo, a parábola de Jesus nos convida a não ficarmos sem azeite em nossas humildes lamparinas, para que nossa presença cristificada brilhe como luz potente nos momentos oportunos. É o momento de nos perguntar sobre qual fundamento está assentada nossa esperança (espera ativa).
Nas esperas, muitas vezes esquecemos de manter a chama acesa. A parábola das dez virgens nos chama atenção para isso. Talvez porque passamos a vida esperando passivamente, sem saber o quê ou quem, e não desfrutamos dos encontros que a mesma vida nos proporciona. Muitas vezes vivemos condicionados pelo anseio de algo que está à frente, de um futuro que sonhamos e que, às vezes, quando chega, não corresponde às nossas expectativas. Nestas esperas indefinidas e estéreis vamos desperdiçando o azeite das lamparinas, vamos nos gastando a nós mesmos na superficialidade e na falta de compromissos.
Lida em seu sentido literal, a parábola deste domingo parece cair numa contradição, já que as jovens “sensatas” aparecem como egoístas, quando se negar a partilhar seu azeite com as do outro grupo.
Mas, toda parábola busca ser provocativa e não podemos nos limitar a uma leitura literalista da mesma. Trata-se de identificar o objetivo que ela indica. E, neste caso, parece claro que ela procura destacar outra questão: a importância decisiva de ter acesso às reservas de “azeite”, como reserva de “vida” diante da vinda surpreendente do “noivo”.
No relato, o azeite é aquilo que alimenta a lamparina, ou seja, que torna possível a luz. Com isso, o eixo da parábola nos remete a esta questão: que é que possibilita, mantém e alimenta a luz em nossas vidas?
Qual é o azeite que faz arder a nossa lamparina existencial?
Toda pessoa possui reserva abundante de azeite em seu interior, como algo próprio dela e é, portanto, intransferível: é o dom da existência, a vida em seu sentido mais profundo. O azeite não é algo que se possa dar e receber, que é oferecido a partir de fora, como uma coisa objetiva que um homem ou mulher pudessem dispor de si mesmos; o azeite é vida profunda, a mesma vida humana que o homem e a mulher devem cultivar, sendo eles mesmos.
Homens e mulheres são ‘azeite” que ilumina enquanto se consome, fazendo-se luz diante de Deus e dos outros. Este é o distintivo mais precioso do ser humano, sua essência original: o bom azeite que ilumina.
Em nossa identidade profunda, “somos luz”, afirmação que o evangelista Mateus põe na boca de Jesus: “Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14). No entanto, com frequência desconhecemos essa realidade, desco-nectados dela e, como consequência, permanecemos na obscuridade da ignorância essencial, com a confusão e o sofrimento que isso traz. Nessas condições, faz-se vital esta questão: qual é o “azeite” que alimenta nossa luz e nos permite viver em conexão com ela?
A resposta só pode ser esta: a compreensão experiencial daquilo que somos.
Para começar, a pessoa interessada pode verificar isso por si mesma a partir de um questionamento elementar: que é o que lhe traz serenidade, paz, plenitude, amor, vitalidade, criatividade...? De onde brota tudo isso e que se mantém mesmo em circunstâncias adversas? Ou, pode-se também fazer o mesmo questionamento sob outro ângulo: o que é que lhe altera, lhe fecha, lhe faz sofrer, lhe desconecta da vida...?
Em resumo: tudo se concentra no fato de vivermos ou não conectados ao que realmente somos. Essa compreensão experiencial é luz; sua carência é obscuridade.
O passo seguinte surge por si mesmo: como fazermos a provisão de “azeite”? Conectar-nos continuamente, de maneira consciente, com aquilo que somos, com aquilo que está mais além do corpo, da mente, do psiquismo, do ego, ...
Nas dimensões mais profundas de nosso ser continuam existindo lugares onde a luz permanece brilhando e nos quais o azeite transborda. São esses lugares invisíveis que só percebemos quando vivemos a partir do coração. Tais lugares invisíveis coincidem com as dimensões sadias que nos habitam: sentimentos elevados, desejos nobres, pensamentos oblativos... São sadias porque a sensatez de seu candil vai nos indicando o valor das coisas pequenas que passam quase desapercebidas. São realidades pequenas (como o grão de mostarda, uma medida de fermento ou uma moeda perdida), mas carregadas de eternidade. Quando habitamos estes lugares, o tempo se faz mais denso e palpável, a sensibilidade se torna mais refinada, a visão se amplia e um sentimento de profunda gratidão nos invade. Não estamos nas montanhas inacessíveis ou nos desertos impossíveis; estamos no cotidiano luminoso que não percebemos devidos às pressas estressantes ou pelo esquecimento de buscar o perfeito que não existe. É questão de sensatez de vida.
“Há dentro de nós uma chama sagrada coberta pelas cinzas do consumismo, da busca de bens materiais, de uma vida distraída das coisas essenciais. É preciso remover tais cinzas e despertar a chama sagrada. E então irradiaremos. Seremos como um Sol”. (L.Boff)
No fundo, todos somos as dez jovens da parábola; todos vamos fazendo um caminho de aprendizagem para o amor. Mas, é preciso retomar a questão central: quem sou eu diante de Deus que vem, que está conduzindo minha vida? Tenho azeite o suficiente, sou portador da luz de Deus?
Esta é a esperança que Jesus alimentava: Ele queria constituir um povo de pessoas luminosas, uma cidade de pessoas transformadas em luz. Assim quer Jesus que seja sua Igreja: uma multidão de gente que ilumina de forma generosa, presenteando sua luz, gratuitamente, para que todos vejam e vivam em concórdia.
Aqui não há luta da luz contra as trevas, mas iluminação de vida: que todos possam ver, porque a luz recebida é presenteada a todos.
O ser humano é portador de uma luz que o transborda e que se expressa no seu corpo, nos seus gestos, nas suas ações solidárias e que são a verdadeira lâmpada de Deus no mundo. Um ser portador do melhor azeite e transparente: essa é a benção de Deus, o dom maior, a vida mesma feita luz e comunicação.
Somos “luz do mundo”, uma chama que nunca se apaga. Somos “sarça ardente” para os outros, consumindo-nos constantemente, na entrega e no serviço.
Somos uma lamparina humilde, brilhando na janela da nossa pobre casa, indicando aos outros o caminho da segurança e do aconchego.
Texto bíblico: Mt 25,1-13
Na oração: Dentro de ti deves descobrir o azeite, pois teu interior tem reservas deste precioso dom. Se acessas a ele, darás luz que iluminará teus passos. Essa chama, se é autêntica, não poderá ficar oculta, mas que iluminará também todos os outros.
É preciso descobrir teu próprio azeite: é o que há de mais original e divino em teu coração. Ninguém pode emprestá-lo, porque é tua própria vida. Toda vida se move de dentro para fora.
Deixa-te iluminar, leve a Luz nas tuas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos do teu cotidiano.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.11.23
“Amarás o Senhor teu Deus... Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,37-39)
Vivemos tempos de profundas rupturas desumanizadoras no campo social, político, racial e sobretudo religioso; são tempos de ira e de ódio, frutos do fundamentalismo e da intolerância que envenenam as relações inter-pessoais, se visibilizam na internet e nas redes sociais, se alimentam de sentimentos putrefatos que brotam de corações rígidos e mentes doentias. As mentiras e as fake-news são servidas em pratos indigestos, através de coações, insultos e ameaças. Há excessivas palavras que afogam, companhas sórdidas, comentários maldosos, notícias sem fundamento e que destroem reputações... Quando, carregado de ódio, alguém desqualifica o outro em nome de uma “pretensa verdade”, na realidade o que está fazendo é inocular em pequena escala o mesmo vírus que, em grande escala, desencadeia guerras e terror.
Este cenário macabro parece dominar tudo. O amor está sendo banido das esferas públicas, dos ambientes familiares, dos espaços religiosos, das relações sociais. Sabemos que, onde não há amor, impera o funda-mentalismo, o moralismo, o negacionismo, o fanatismo... Onde não há amor, a verdade se corrompe. Onde o amor é exilado ali transparece a podridão da desumanização. E o mais escandaloso: tal ambiente fétido é alimentado por “cristãos vestidos em pele de lobo” que, hipocritamente, mostram uma “cara lavada”, mas o “interior está cheio de roubos e maldades” (Lc 11,39).
Mas, como seguidores(as) d’Aquele que também foi vítima de estruturas políticas e religiosas injustas, somos movidos a renovar a esperança de que, apesar de tudo, o amor é mais forte que o ódio e a morte.
Infelizmente, a palavra “amor” se banalizou tanto que muitos a usam para justificam a violência. É preciso resgatar a sacralidade do amor. Não dispomos de um nome melhor para imaginar a Realidade Última, Deus, senão dizendo que ela é amor.
Segundo S. João, “Deus é amor”. Esta afirmação perpassa, carregada de mistério e de promessa, toda nossa história; nela se toca o coração mesmo do cristianismo. É expressão nuclear, irradiante. Ela sozinha já seria capaz de manter a esperança no mundo. Captar sua profundidade significa apalpar seu mistério, encontrar a chave do sentido, entrar no seu fluxo e chegar à fonte da vida.
É dessa fonte que a força do amor brota das entranhas d’Aquele que é Puro Amor, que atravessa todas as etapas da evolução da criação e une todos os seres, dando-lhes afeto profundo e beleza. Trata-se de um “amor cósmico” que perpassa tudo por pura gratuidade. O místico Angelus Silesius afirma: “A rosa não tem um porquê. Floresce por florescer. Não se preocupa se a admiram ou não. Ela floresce por florescer”. Assim é o amor: não tem “porquês”, “sem-razões”. Ama porque ama. O amor floresce em nós como fruto de uma relação livre entre seres livres e com todos os demais seres.
A liturgia deste domingo está dedicada ao tema do amor, à experiência do amor, a descobrir em nós esse fogo que nos circula, de mil formas, em mil direções, de dentro para fora, de fora para dentro.
Que é o amor? O melhor é não o definir, mas vivê-lo. Sentir-se amado, amar, é uma experiência inefável. Estão aí os poetas, os músicos, os artistas para confirmar isso.
Jesus condensou (“compactou”) a Lei inteira e os profetas em dois mandamentos: “ama a Deus e ama a teu próximo”. Neles estão contidos todos os documentos, leis, discursos, programas, mensagens e declara-ções que foram sendo criados ao longo da história da vida cristã.
A Lei, que em princípio serviu para orientar o caminho do povo de Israel, contaminou-se e se viu reduzida a um fardo de prescrições que se impunham aos mais fracos.
O amor não é uma norma ou lei, no estilo dos 248 preceitos e das 365 proibições da religião judaica. O amor é esse modo de viver que abre nossa existência aos outros. Não é lei que se impõe a partir de fora, mas impulso que brota do mais profundo de nosso ser, pois, na essência somos semelhantes ao Deus Amor.
Deus é puro dom, amor total. Trata-se de descobrir e ativar em nós esse dom incondicional de Deus e que através de nós deve chegar a todos. O amor a Deus sem entrega aos demais é pura farsa. Portanto, aqui estamos diante da essência da vida cristã. E é tão simples: basta amar.
Infelizmente, como gostamos de complicar as coisas! Quantas leis, preceitos e normas criamos! Quantos ritos estéreis e devoções vazias estabelecemos! Quantos códigos promulgamos! (o código de direito canônico contém mais de 1700 cânones ou “artigos”).
A espiritualidade de muitos cristãos frequentemente está associada a cumprir ritos, realizar algumas práticas piedosas auto-centradas, carregadas de penitências e mortificações impostas pelos outros e que acabam alimentando culpas e angústias.
No entanto, Jesus Cristo, com poucas palavras, deixou tudo muito claro, simples e fácil de entender para qualquer um. Poucas palavras foram suficientes para deixar as autoridades religiosas surpresas: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo teu coração, com toda tua alma, com todo teu ser”. Este mandamento é o principal e o primeiro. O segundo é semelhante a ele: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
Amar a Deus e ao próximo são totalmente inseparáveis. Jesus deixa isso suficientemente claro nestas duas afirmações, pois o texto grego de Mateus diz que o segundo é “omoía” (igual) ao primeiro. Esta palavra grega significa “equivalente, igual, o mesmo, que tem a mesma força”. Portanto, trata-se de um mesmo e único amor. Não é possível um sem o outro. Da mesma forma que para formar uma cruz são igualmente necessários o tronco vertical e o horizontal, e se falta um não há cruz, assim acontece com o amor a Deus e ao próximo: são inseparáveis um do outro.
Mas, qual dos dois amores é primeiro? É preciso privilegiar o tronco vertical, dirigido a Deus, ou o horizon-tal, dirigido ao próximo? No final de nossa existência, seremos perguntados pelo tronco vertical: “tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, estive nu e me vestistes, enfermo e me atendestes, no cárcere e me visitastes”.
Mas, é muito mais fácil e menos comprometedor limitar-se ao tronco vertical e reduzir nossa fé a ritos, cultos, penitências, mortificações, novenas, devoções vazias, sacrifícios, procissões..., e permanecermos tranquilos porque já cumprimos o que está prescrito, embora nossa vida vá por caminhos totalmente contrários ao evangelho, ou seja, sem compromisso com a justiça, a fraternidade, a solidariedade, o amor, a ética, a misericórdia, o empenho por transformar as estruturas sociais injustas que geram e alimentam profundas desigualdades, misérias e violências.
Por isso, o que distingue o(a) seguidor(as) de Jesus tem como eixo o amor a Deus e aos irmãos, sobretudo os mais rejeitados e excluídos. “Ama e faze o que quiseres” (S. Agostinho). Amar é tirar o outro do anonimato, dar-lhe rosto, nome, vida, é ativar nele a autonomia, a autoria de sua vida. O amor não é algo que eu dou, mas uma maneira de ser alguém diante do outro, para o outro, com o outro.
Assim, o núcleo da vivência cristã se revela como uma iniciação no amor intenso. O amor que procede de Deus (que nos move) deverá iluminar todas as nossas opções e ações em favor da vida.
Vida cristã quer dizer vida vivida com intensidade, pois o amor é o motor dessa vida. É o próprio Deus que, por sua iniciativa totalmente gratuita, nos ama e nos capacita para amar.
A vida no amor revela uma existência integrada a partir do coração. Isto supõe lucidez, ter uma motivação inspirada em todas as coisas particu-lares e em todas as decisões da vida. “A Ele amando em todas as criaturas e a todas as criaturas n’Ele” (S. Inácio)
Texto bíblico: Mt 22,34-40
Na oração: O Amor originante e fontal de Deus lhe envolve permanentemente; marcado pela gratidão, queira entrar em sintonia, “ajus-te-se” ao modo de amar de Deus: amor descendente, amor sem fronteiras, oblativo, aberto, e que se “revela mais em obras do que em palavras”.
- Movido pelo Amor transbordante de Deus, entre no fluxo desse Amor criativo, “descendo” à realidade cotidiana e ali deixando transparecer esse mesmo Amor através de sua presença humana e humanizadora.
- Faça “memória agradecida” de sua presença amorosa na realidade cotidiana. Viva em contínua “ação de graças”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Devolvei a César o que é de César, e dai a Deus é que é de Deus” (Mt 22,21)
No evangelho de hoje (29º Domingo do Tempo Comum) continua o confronto entre Jesus e as autoridades religiosas. Os sacerdotes, anciãos e escribas tinham sido criticados e denunciados por Jesus na parábola da vinha. Agora, os mesmos pedem aos fariseus e herodianos para armar uma cilada contra Jesus - “é lícito ou não pagar imposto a César”? -, a fim de poder apanhá-lo e condená-lo.
O tema era muito polêmico em tempos de Jesus. Vai mais além do simples pagar imposto ou não. Revela uma concepção de vida que tem a ver com ser livres ou escravos. São o povo de Israel, povo eleito por Deus: como, então vão se submeter a César?
Jesus percebe a hipocrisia. Na sua resposta, ele não perde tempo em discussões inúteis, e vai direto ao cen-tro da questão. Ele não cai na armadilha (pagar ou não pagar), mas propõe um caminho diferente: devolver a moeda a César, dar o que é seu, sair de seu império econômico, para assim ocupar-se verdadeiramente das coisas de Deus.
Este é um tema antigo, mas também atualíssimo, que nos situa diante do ideal de uma humanidade fraterna em gratuidade (sinal de Deus) e a realidade de uma política e economia sustentadas por tributos que, em princípio, poderiam e deveriam estar a serviço de todos, mas que na realidade tendem a ser controlados por alguns.
Diante da pergunta sobre o pagamento de impostos, Jesus dá à sua resposta uma profundidade que seus adversários não esperavam e que não lhe perguntaram: “e dai a Deus o que é de Deus”.
Que é de Deus? Para os judeus, como para nós, tudo é de Deus. Se a moeda tem a imagem de César, toda pessoa humana é, em si mesma, imagem de Deus; todos somos filhas e filhos seus. E, a partir dessa realidade, tudo muda em nossa vida. Portanto, não se trata de estar a serviço de dois senhores, de dividir os afetos entre eles, de estabelecer proporções e equilíbrios entre Deus e César. Jesus não coloca Deus e “César” no mesmo plano; são tantos “césares” a quem pagamos tributo e de quem nos fazemos súditos que até esquecemos que “Deus é o único Senhor”. Deus não pede impostos, nem se impõe sobre nós, é pura gratuidade. Sua presença é sempre providente e cuidadosa e que desperta em nós uma profunda gratidão: devolver a Ele todos os bens e dons que recebemos.
A única coisa que Deus deseja para todos é esta: uma vida mais humana desde agora e uma vida que alcance sua plenitude na vida eterna. Por isso, nunca se pode dar a nenhum “César” o que é de Deus: a vida e a dignidade de seus filhos e filhas.
Só ali onde é devolvida a César a moeda é que se pode dar a Deus o que é de Deus, ou seja, tudo o que somos e temos, inaugurando um tipo de vida diferente, em gratuidade, isto é, sem “capital” de império, sem a violência política e econômica que o tributo simboliza, sem o poder que desumaniza.
A resposta de Jesus aos fariseus e herodianos revela a existência de dois dinamismos, duas forças, ou duas presenças em nosso interior. Nossa liberdade sente-se movida e atraída em duas direções; estas tendências encontram-se instaladas no cento mesmo do coração.
Nele se encontram, com efeito, as raízes dessa dinâmica que, por um lado, se deixa conduzir pelo “cézar da vida” fechando a pessoa no seu próprio ego e fazendo-se o centro; e, por outro, quem se deixa conduzir pela presença do Espírito, entra no fluxo da expansão de vida em direção à alteridade, ao serviço, à partilha. De um lado, o impulso para ir além de si mesmo; de outro, o movimento de retração e fechamento em si.
É preciso despertar a consciência da presença destas duas forças opostas (uma de alargamento ou expansão de si mesmo em direção aos outros, à criação, a Deus; e outra de fechamento, resistência e medo).
Aqui não se trata de alimentar um combate entre “Deus” e César”, entre o bem e o mal; tampouco se trata de uma leitura moralista diante da presença das chamadas “tentações” (tendências, impulsos, inclinações... presentes em todos nós).
O seguimento de Jesus não é luta interna que desgasta, levando ao sentimento de impotência e desânimo. O combate dualístico (entre o bem e o mal) desemboca no puritanismo, no farisaísmo, no legalismo, no perfeccionismo, no voluntarismo... onde o centro sou “eu”.
A questão de fundo é saber: quem alimentamos em nossa vida? “Deus” ou “César”? quem ocupa o centro da nossa vida? estamos a serviço de quem? onde estão nossos afetos: ordenados para Deus ou para “César”? Aqui nossa liberdade é ativada para deixar-nos conduzir pelo Espírito, assim como as águas do riacho se deixam conduzir em direção ao Grande Oceano. O centro é o Espírito.
Na perspectiva bíblica, há uma incompatibilidade radical entre “Deus” e “César”, entre o “Deus de Amor” e o “César do poder”, entre a paixão pelas riquezas e a paixão pelo Reino. Ninguém pode servir a dois senhores, pois não se pode investir afetivamente em duas direções.
Não é possível amar a Deus, isto é, amar a generosidade, a entrega, a solidariedade, a compaixão, a misericórdia, e ao mesmo tempo amar o “César”, isto é, amar o poder, a acumulação de riquezas que é base de toda injustiça e de todo desamor: fome, violência, exclusão, exploração...
A fidelidade ao Deus único fica interditada e o seguimento de Cristo fica fragilizado.
O apego aos “césares” dos bens, das riquezas, do poder... apresenta-se como uma das tentações mais poderosas para todo seguidor de Jesus. Como todo ídolo, o “César” provoca o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas. Daí surgem as racionalizações com a desculpa de servir a Deus; no fundo, manipulamos Deus para santificar nossos afetos desordenados. “Eu quero um Deus que queira o que eu quero”.
A proposta dos Evangelhos, nesse sentido, é clara e contundente. Eleger a partilha e o despojamento é a base e condição para poder seguir Jesus no trabalho do Reino. A escolha de uma vida despojada expressa a liberdade para colocar-se a serviço do Reino.
A afeição aos bens, ao poder, à vaidade..., pelo contrário, acarreta o enorme risco de se ficar cego e surdo para atender ao chamado de Jesus.
No centro da mensagem do evangelho encontramos a revelação de Deus como Pai e a proclamação da igualdade e da fraternidade de todos os homens e mulheres. A criação de uma comunidade onde o com-partilhar substitua a acumulação, e que se apresente como alternativa àquilo que o mundo propõe, configura-se como uma das propostas mestras na proclamação do Reino de Deus.
A quantos “césares” pagamos tributos? Em chave de interioridade, alimentamos muitos “césares”, de quem nos tornamos súditos e dependentes, e que se impõem a nós com seus “impostos”. São os nossos apegos, instinto de posse, busca de poder e prestígio, posição social, títulos... que exigem alto investimento afetivo. Carregamos “nocivos hospedeiros” que um dia entraram em nossa vida, foram crescendo lentamente, ali-mentando-se de nós mesmos e acabam nos paralisando como em teias de aranha, destruindo-nos por dentro. É preciso re-ordenar todos os dinamismos e potencialidades humanas em direção a um horizonte de sentido: o Reino. O discípulo pela metade não pode ser discípulo. Deus é Santo, mas em sua santidade pede sinceri-dade na vontade e verdade no coração. Não servem as entregas pela metade. Deus não pode se contentar com “amor a prestações”, com retalhos de vida.
Texto bíblico: Mt 22,15-21
Na oração: Você se sente pessoa livre, que busca e escuta a verdade, Aquele que é a verdade?
- Você está a serviço da verdade, ou da mentira, das “fake-news”? Seus afetos estão ordenados no serviço do “Deus do Reino” ou “césar do poder”?
Pe.Adroaldo Palaoro sj
19.10.2023
Imagem: Dinheiro de César.
Entre 1600 e 1640. Por Rubens, atualmente no Fine Arts Museums of San Francisco, na Califórnia, nos Estados Unidos.
“Quando o dono da vinha voltar, o que fará com os vinhateiros?” (Mt 21,40)
Na perspectiva bíblica, a vinha aparece sempre como aliada do ser humano; ela nos ensina a viver em harmonia com a água, com a terra e com todos os seres, numa relação de aliança. A vinha é dada por Deus em função da vida. Ela deve, por isso, ser recebida como fecundidade, não como algo que é objeto de conquista e domínio. Por isso a Vinha é sagrada e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador; ela é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina.
E o ser humano é chamado a “trabalhar com” o Criador, cuidando da Vinha, para que ela seja fecunda e alimente a alegria de todos. Aqui já não cabe mais nenhuma atitude de dominação, de exploração, de depredação e de posse. O cuidado e a beleza da vinha impõem-se ao desejo consumista desenfreado, pois somos jardineiros e não exploradores.
O Evangelho deste domingo revela que, quando as pessoas rompem a aliança com Deus e se afastam d’Ele, a vinha fica estéril. Quando uns poucos se apropriam dela como donos, ela passa a ser o lugar da espoliação, da devastação, da morte e deixa de ser espaço para a convivência fraterna e solidária.
De fato, contemplando a “grande Vinha do Senhor”, percebemos que o poder-dominação sobre a nature-za e o consumismo exacerbado destruiu o sentido cordial das criaturas e legou-nos um devastador vazio existencial.
Todo ser humano, chamado à comunhão e à união com o seu Criador, com os outros e com as criaturas, experimenta em si, ao mesmo tempo, a tendência egóica de se apoderar do grande dom da Vinha, que limita, trava, perturba seu desejo de viver em sintonia com o Senhor e em harmonia com os demais.
Na perspectiva bíblica, o pecado aparece em primeiro lugar como a ruptura de uma aliança com o Criador, com os outros e com as criaturas. Não se trata de uma mera infração, uma quebra de lei, nem mesmo de uma falta contra nós mesmos, mas sim de quebra de uma relação de amor e de amizade. A Bíblia nos falará da situação do pecador como sendo, radicalmente, uma situação de fechamento, de estar bloqueado, inca-paz de viver a vocação de jardineiro e de cuidado. Em uma palavra, trata-se de uma recusa a viver e a amar.
Segundo a revelação bíblica, no cenário da Grande Vinha, as criaturas não estão colocadas umas ao lado das outras, em justaposição, mas são todas sinfônicas, inter-ligadas, inter-dependentes. Há uma grande unidade, feita de muitos níveis, de muitos seres diferentes, todos eles ligados e religados entre si. E, por isso, num profundo e intenso dinamismo.
O drama do ser humano é não se sentir em comunhão num todo maior e perder a memória de que é parte do todo; é não se sentir um elo vivo e esquecer que este é um elo da única corrente de vida.
A antropologia bíblica é iluminadora ao reconhecer a vida humana numa estreita interconexão com outros seres, como uma teia interdependente.
“A terra não pode ser vendida para sempre porque a terra é minha e vocês são inquilinos e hóspedes meus” (Lev. 25,23). Desta afirmação podemos deduzir claramente que o ser humano não é senhor da terra e não pode fazer com ela e com os outros seres aquilo que quiser.
Ao predominar a auto-afirmação e o domínio do ser humano sobre a Vinha, produziu-se a quebra da “re-ligação” com tudo e com todos. Ele se colocou num pedestal solitário a partir de onde pretende dominar a Terra e os céus; como consequência dessa atitude temos a devastação da vinha.
O embrutecimento do ser humano, de sua interioridade, a perda do gosto pela verdade, pelo bem e pelo belo, o extravio da ternura e da transcendência, repercutem em falta de respeito pela natureza, em ruptura com as outras criaturas, em insensibilidade ecológica.
Há um clamor generalizado que emerge da realidade desafiante enfrentada pela humanidade: o planeta Terra está gravemente enfermo. As consequências trágicas estão presentes por toda parte: degradação do meio ambiente, diminuição acelerada das fontes de água potável, desertificação, degelo das calotas polares
com a consequente elevação do nível do mar, grande incidência de furacões e de queimadas, extinção de milhares de espécies de animais, escassez de alimento, proliferação de doenças, migrações forçadas... - Estrangulou-se a capacidade de enternecimento, de encantamento e de reverência diante da profundidade da vida; o ser humano não é mais capaz de “louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor”.
Enfim, o desequilíbrio dos ecossistemas pode comprometer, de forma irreversível, todas as formas de vida sobre a terra.
Ferir a Vinha é ferir o próprio Criador. Quando observamos vinhas outrora verdejantes e agora destruí-das ou entulhadas de lixo, uma sensação de violação, de tragédia, quase de sacrilégio, se manifesta no nosso interior. E uma voz ecoa das profundezas da destruição: “Quê fizestes de minha vinha?”.
Como seres humanos, somos convocados a desenvolver uma consciência criatural, em que a Vinha deixa de ser vista como objeto de domínio. Ela é um dom de Deus que deve ser acolhido com reverência, respeito e louvor.
É nesse momento dramático que uma nova cosmologia se revela inspiradora. Em vez de “dominar” a natureza, situa-nos no seio dela em profunda sintonia e sinergia.
O que caracteriza essa nova atitude é o cuidado em lugar da dominação, o reconhecimento do valor de cada criatura e não sua mera utilização humana, o respeito por toda forma de vida e os direitos e a dignidade da natureza, não sua exploração.
A primeira relação do ser humano com a Vinha, portanto, não é a da posse, nem a da pergunta pelo seu porquê, mas a da acolhida em seu ser dado. A forma dessa acolhida é o assombro de sua presença e o temor diante de sua possível perda.
Enfim, a parábola do evangelho deste domingo aponta para uma relação de acolhida agradecida e reconheci-da para com a Vinha, pois ela é o lugar no qual não só existimos, mas somos chamados a uma plenitude de vida, em aliança e comunhão com o Deus Trindade.
Assim, o exercício do senhorio, ou a dominação, por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina e contribuir com o crescimento e a evolução da natureza em todas as suas dimensões; igualmente, cuidar e fazer da vinha uma fonte de bênçãos, ou seja, de comunhão com ela e, a partir dela, crescer em harmonia interior, comunhão com as outras pessoas e e estreitamento de relações com o próprio Criador.
O evangelho nos dá a única alternativa possível ao desastre ecológico: fazer do amor a pedra angular.
A primeira lei não é a superioridade do ser humano em relação ao cosmos senão a solidariedade cósmi-ca. “Tudo foi criado” para uma imensa e cósmica solidariedade.
Texto bíblico: Mt 21,33-43
Na oração: Mobilize seus sentidos para ver, ouvir, tocar, sentir e saborear a beleza de nossa terra.
- Considere sua conexão com esta beleza e como ela lhe faz perceber o amor da Trindade ao cosmos, em constante evolução.
- Considere o novo sentimento de maravilha que cresce em seu coração e como dá novo sentido à sua missão de colaborador(a) no grande jardim do Criador.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
06.10.23
“Qual dos dois fez a vontade do pai?” (Mt 21,31)
Em nosso contexto social e religioso reina a diplomacia do “transitar entre o sim e o não”, ou seja, dissimular, não ser claro, nem transparente, deixar as coisas numa certa e intencionada ambiguidade. Quando é pedido um “sim” ou um “não”, costuma-se deixar levar pela “covardia do meio termo”.
De fato, há tantos modos de evitar dar uma resposta clara, de não nos comprometer; até usamos desculpas convincentes para ocultar nossa incoerência. Dizer “sim” ou “não”, é rotundo, é radical, é ser coerente.
É isso que Jesus pede de seus seguidores(as).
O texto do evangelho deste domingo (26º Tempo Comum) nos convida a entrar no significado do “sim” e do “não” na vivência do seguimento e na nossa vida.
Procuremos entender o texto em seu contexto: o povo judeu disse “sim” ao aceitar a Lei de Moisés, mas se negou, através de seus dirigentes, a aceitar a proposta de Jesus. No entanto, os pagãos e os pecadores, que primeiro disseram “não”, ao final são aqueles que aceitaram o Reino, pois se deixaram impactar pelo modo de ser e de agir de Jesus. O “sim” foi sendo modelado a partir do chão da vida e não da Lei.
Para Jesus, a fidelidade a Deus não passa pela mera observância da Lei, mas pela prática de um amor incondicional. Ele transforma o modo de nos relacionar com o Pai, fundamentado no modo como Ele mesmo vive, não como o distante Deus do Templo, mas como o Abba próximo e comprometido com a vida. Isto desmonta o pedestal de uma religião super-estruturada ao redor das normas e das leis de pureza, de impureza, de sacrifícios como pagamento pelos pecados e que foram determinados pelos hierarcas que imitam a um “deus” distante, frio, a quem é preciso acalmá-lo com oferendas, sacrifícios e mortificações.
Para denunciar esta atitude petrificada e dúbia das autoridades religiosas, Jesus utiliza o inteligente e oriental recurso das parábolas. A “parábola dos dois filhos” chamados a trabalhar na vinha do pai está dirigida especialmente à infidelidade dos dirigentes religiosos: dizem, mas não fazem; são fiéis por fora, mas incoerentes por dentro.
Jesus nos pede hoje mais valor, mais audácia, mais claridade. Quer que o “sim” esteja acompanhado da obediência. Mas, obediência a quê e a quem?
Trata-se de uma obediência filial. O senhor da vinha convida seus próprios filhos para que vão trabalhar nela. Há um filho que tem sempre o “sim” na boca. Encanta-lhe viver do favor do pai e manter uma boa imagem de filho obediente. Mas, à hora da verdade, não trabalha na vinha; dedica-se a outras coisas. É um hipócrita.
O filho que tem um “não” na boca, vai e trabalha na vinha. Não se preocupa com sua boa imagem. Trabalha na vinha a partir do anonimato, a partir da não-ostentação. Ele é verdadeiramente o filho obediente.
O Evangelho deste domingo, usando a imagem de dois filhos chamados pelo pai a trabalhar na vinha, realça o verdadeiro sentido da “obediência”: significa dar audiência a quem merece. Se sabemos que Deus nos mostra um caminho incomparável, então obedecer-lhe é o melhor que podemos fazer; obedecemos por amor e não por medo. Neste caso, a obediência já não pode ser meramente formal, do tipo “sim, senhor”. Ela será um movimento do interior do coração, ela mexerá com o nosso íntimo.
A obediência não se restringe a cumprir mandatos, nem a seguir leis, pois ela está profundamente unida ao crer no outro; porque “entregamos o coração”, obedecemos, ou seja, entramos em sintonia com o coração do Outro. Porque “entregamos o coração”, na obediência nosso coração pulsa no mesmo ritmo do coração de Deus. Tal obediência, inspirada pela obediência de Jesus, não alimenta dependência nem atrofia nossa autonomia; pelo contrário, nos faz mais libres, criativos.
A obediência de Jesus brota de um autêntico e pleno exercício de sua liberdade. Por isso, a verdadeira obediência só é possível a partir da autonomia da pessoa e supõe necessariamente o exercício da liberdade.
Esta entrega radical só é possível no ambiente do amor e da intimidade.
Assim, a obediência pressupõe a liberdade; ainda mais, é uma expressão de ser livre frente à própria liberdade, quando a pessoa reconhece um referente superior que a fundamenta, porque só a partir deste referente chega a encontrar o sentido sobre si mesmo.
A originalidade da parábola está na afirmação que Jesus lança aos dirigentes religiosos daquela sociedade: “Eu vos asseguro que os publicanos e as prostitutas entrarão antes de vós no Reino de Deus”.
Sem dúvida, as palavras de Jesus soaram não só provocativas, mas diretamente heréticas e inclusive blasfe-mas aos ouvidos das pessoas “religiosas” que o escutavam. Afirmar que “publicanos e prostitutas” vão entrar na frente no Reino de Deus causa um profundo incômodo nas pessoas que reduzem suas vidas a cumprir leis, ritos, doutrinas, sem nenhuma sensibilidade solidária com aqueles que são colocados à margem.
Para a religião, o valor mais importante costuma ser a crença e a norma, não tanto a atitude nem o comportamento ético das pessoas.
Para Jesus não importam as crenças e normas, mas o amor e a bondade, ou seja, aquelas atitudes e ações que são coerentes com a verdade do que somos. Na nosso “eu profundo” temos reservas de bondade, de compaixão, de mansidão... e que devem ser ativadas continuamente.
Seguramente nem todos os publicanos e nem todas as prostitutas eram exemplos de amor e de bondade, mas Jesus via em seus corações mais verdade, humildade e humanidade que nos egos inflados dos chefes religiosos.
Que podia ver Jesus naqueles homens e mulheres desprezados por todos? Talvez sua humilhação. Quem sabe, um coração mais aberto a Deus e mais necessitado de seu perdão; ou ainda, uma compreensão e uma proximidade maior para com os últimos da sociedade. Talvez menos orgulho e prepotência que a dos escribas e sumos sacerdotes.
No entanto, hoje e sempre, vivem a verdadeira vontade do Pai aqueles(as) que traduzem em atos o evangelho de Jesus e aqueles(as) que se abrem com simplicidade e confiança ao seu perdão.
Em chave de “interioridade”, podemos dizer que estes dois filhos, estas duas atitudes, convivem dentro de nós. Somos aquela boa pessoa que diz “sim” ao projeto de Jesus, mas, quando toca o nosso ego ou os nossos interesses usamos desculpas mesquinhas, ou seja, não nos definimos, não nos comprometemos...
Quando não há coerência com nossas atitudes, com nossos “sins” e nossos “nãos”, um sentimento de ansiedade vai emergindo de nosso interior. Ou seja, nosso interior geme, porque sofremos certa angústia que pode se tornar crônica. Tal angústia vai, aos poucos, nos tornando rígidos, legalistas, marcados por uma tristeza interior causada pela mediocridade, pela falta de fôlego em colaborar com o projeto de Jesus.
“Sacerdotes e anciãos do povo” x “publicanos e prostitutas”: tais grupos estão também presentes, e em constante conflito, em nossa própria interioridade.
Como integrá-los e como conviver com eles para que nossa vida seja criativa e expansiva?
A parábola deste domingo nos convida a reconhecer e abraçar o “publicano” e a “prostituta” que cada um de nós carrega em nosso interior.
Simbolicamente, “publicano” e “prostituta” é aquela dimensão nossa que temos reprimida e escondida, nossa própria sombra. É claro que, enquanto não a reconhecermos, projetaremos nos outros o que em nós mesmos rejeitamos. Só quando abraçamos nossa “negatividade”, nos humanizamos, porque nos abrimos à humildade. E só então poderá emergir a bondade e a compaixão para com os outros.
Texto bíblico: Mt 21,28-32
Na oração: coloque-se diante de cada um dos filhos da parábola: qual deles determina sua vida?
- que atitudes prevalecem em seu “trabalho” na Vinha do Senhor?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.09.23
Imagem: Sieger Koder
“Estes últimos trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós, que suportamos o cansaço e o calor o dia inteiro” (Mt 20,12)
A liturgia deste domingo nos faz encontrar com uma parábola simples, mas reveladora de uma força impactante. Chega até nós como uma Boa Notícia que nos surpreende, nos desloca e pode até provocar em nós algumas reações controvertidas, inclusive resistências.
A parábola começa como muitas outras: “O Reino dos Céus é como a história do patrão...”. Ela vai desve-lando o modo provocativo de agir deste personagem, o mistério mais profundo de seu ser, a profundidade e a coerência de sua bondade e de seu amor. Diante deste mistério não podemos permanecer indiferentes.
A parábola nos coloca diante de um senhor que sai de sua casa e vai, pessoalmente, buscar trabalhadores para sua vinha, em diferentes horários do dia. A seguir vem o núcleo do relato, o fato que muda o tom e provoca reações diferentes. No fim do dia paga a todos o mesmo valor que lhes havia prometido. E, o mais estranho, é que começa a pagar pelos últimos. Tal atitude provoca reações de protesto nos ouvintes.
O dono da vinha parece estar sendo muito injusto. Os primeiros que foram chamados trabalharam várias horas a fio e aturaram o calor do dia. Como, então, o senhor pode dar o mesmo salário àqueles que trabalha-ram apenas uma hora? Parece que estamos diante de uma tremenda “injustiça”. Vivemos a cultura da meritocracia; cada um deve receber segundo seu esforço ou suas conquistas.
Quanta importância é dada aos méritos: na vida, na sociedade, na educação, na religião! Para isso existem as homenagens, premiações, reconhecimentos públicos, livros comemorativos, nomeações honoríficas...
Escutamos com frequência: “mereceu pelo que fez!”; “depois de tanto esforço realizado, era justo que ganhasse o prêmio!” Cremos que faz parte da justiça “ganhar quem merece, que trabalhou mais, quem se esforçou mais...” Inclusive, quando fazemos elogio a uma pessoa que faleceu, destacamos sempre seus méritos: o que ela fez, a qualidade de suas obras, o prestígio que foi conquistando, o trabalho que realizou...
A ideia do mérito perpassa todas as dimensões da existência, incluída a dimensão religiosa, onde dá lugar a uma “religião mercantilista”, que conduz facilmente ao farisaísmo: o fiel não só presume de suas boas obras, mas se considera “justo”, acima dos outros, e merecedor dos favores divinos (ou com “direitos” diante de Deus). É a “religião do ego”. Porque não é justo que “os últimos sejam os primeiros”.
O evangelho deste domingo revela-se desconcertante, porque rompe o sistema vigente da retribuição dos méritos. O Senhor do Universo não é “deus mesquinho” que estabelecer uma “contabilidade” para premiar ou retribuir seus filhos e filhas. “Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”, afirma Jesus com contundência. “Trabalhar na vinha do Senhor” não é questão de quantidade, mas de qualidade. Já é um privilégio o fato de sermos chamados a colaborar e devemos aproveitar da oportunidade que nos é oferecida. Aqui não há lugar para comparação, competição e inveja.
Os trabalhadores da primeira hora revelam que sua vida tem um sentido interesseiro. Eles trabalham e, ao final do dia, recebem um salário adequado: o pagamento combinado de um denário, que na época corres-pondia ao preço justo de uma diária. Mas, assim que começam a se comparar com aqueles que trabalharam menos do que eles, ficam insatisfeitos e pensam: “teria sido mais fácil se tivéssemos começado a traba-lhar mais tarde”. Assim confessam que, para eles, o trabalho significa um fardo; e o calor, sofrimento.
Há um outro aspecto interessante revelado pela mesma parábola. Aqueles de primeira hora que se queixam do mesmo tratamento dado a todos pelo senhor, mostram-se incapazes de compreender a atitude do dono da vinha. Eles não têm direito a exigir, porque foi combinado um “denário” pela diária, mas se sentem mal que os últimos recebam o mesmo tratamento que eles.
Com esta parábola o evangelho pretende fazer saltar pelos ares a ideia de um Deus que reparte seus favores segundo o grau de fidelidade às suas leis, ou pior ainda, segundo seu capricho. Salta à vista a novidade da mensagem de Jesus, uma novidade que pode ser resumida numa palavra: gratuidade.
Infelizmente, continuamos cultuando a um “deus mesquinho” e que nos interessava manter. Na realidade, nada temos que “esperar” de Deus; Ele já nos deu tudo desde o princípio; basta nos abrir ao seu dom total, que é já uma realidade, embora ainda não tenhamos descoberto isto.
A mensagem da parábola é evangelho, boa notícia: Deus é igual para todos: amor, dom infinito. Devemos proclamar isso para todos, sem exceção. Não podemos ter a pretensão de aplicar a Deus nosso conceito de “justiça religiosa interesseira” que consiste em sermos bons para que Deus nos premie ou, pelo menos, para que não nos castigue.
No fundo, o que a parábola deixa transparecer é a queixa daqueles que se sentem “injustiçados” porque foram chamados ao amanhecer e receberam a mesmo valor daqueles que foram chamados ao longo do dia. É a queixa que brota da comparação com os outros e que expressa nossa mentalidade estreita e nossos cálculos mesquinhos. Tal atitude nos revela que não conhecemos o nosso Deus. Relacionamo-nos com Ele como o assalariado com seu empregador, ou seja, mais trabalho, mais soldo.
A queixa também revela um pecado de raiz, escondido em todos nós: a inveja. Sentimos inveja porque os outros têm algo que não temos, sentimo-nos prejudicadas por Deus e pelo destino. Quanto mais nos comparamos com outros, mais insatisfeitos ficamos. Sentimo-nos injustiçados e bloqueamos nossa própria vida. Poucos sentimentos humanos causam tanto sofrimento e interferências nas relações entre as pessoas como a inveja. Esta emoção negativa só serve para produzir lamúrias, queixas, amarguras, naquele que é invejoso, e provoca desconcerto e incompreensão naquele que é invejado.
A inveja nos corrói por dentro, nos morde, nos faz dobrar sobre nós mesmos. E, ao mesmo tempo, coloca uma barreira entre nós e aqueles a quem invejamos. Assim, nos convertemos em rivais, em inimigos, em objeto de menosprezo. Na realidade, o objeto invejado é o de menos. Pode ser o trabalho, um bem material, uma relação pessoal, uma conquista... O terrível é como a inveja mata a relação. E como vamos nos fechando em um poço de amarguras e queixas, esquecemo-nos de todos os dons e benefícios que temos.
Que atitudes sadias devemos assumir para não deixar que a inveja e a comparação determinem nossa vida?
Frente à comparação e à inveja, talvez o mais urgente seria despertar a gratidão, o olhar lúcido e consciente à nossa própria vida. Aprender a valorizar os muitos dons que temos, os benefícios que continuamente recebemos e que são oportunidades que nem todos têm. Aprender a reconhecer e celebrar os dons próprios, os recursos originais, as conquistas pessoais...
Uma outra atitude seria a de ativar a alegria pelo bem alheio, aprender a vibrar com as conquistas dos outros.
Alegrar-se com a alegria do outro é a expressão máxima de maturidade, de descentramento, de gratuidade.
A gratidão nos revela que tudo o que somos ou temos foi dado por Deus e recebido por nós; tudo foi e é graça, como se lê na carta de Paulo: “em que você é mais que os outros? O que é que você possui que não tenha recebido?” (1Cor 4,7). O fato mesmo de “ir à vinha na primeira hora” já é um presente, um privilégio, uma oportunidade a ser vivida com intensidade, em comunhão com os outros.
Quando compreendemos a verdade do que somos, ou seja, plenitude de vida, deixamos de nos apropriar dos resultados; atuamos sem a ganância do fruto; nossas ações nascem e fluem a partir da compreensão do que somos; o orgulho no êxito e a culpa no fracasso se esvaziam; acabam a comparação, o juízo e a desqualificação dos outros.
Texto bíblico: Mt 20,1-16
Na oração: Alimente uma “memória sadia”, reconhecendo que tudo é Graça, “de graça”, que você é uma pessoa “agraciada”, “cheia de graça”...
- O agradecimento é, para S. Inácio, a experiência humana que mais pura e decididamente mobiliza a generosidade da pessoa; a gratidão é a mais agradável das virtudes: que virtude mais leve, alegre, mais luminosa, mais humilde, mais feliz!!! É por isso que ela se aproxima da caridade, que seria como a gratidão sem causa, uma gratidão incondicional. Gratidão = desfrutar a eternidade no cotidiano da vida.
- Viva em contínua “ação de graças”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.09.23
“Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (Mt 18,22)
O evangelho deste domingo também faz parte do chamado “discurso comunitário”, onde Jesus insiste na importância decisiva do perdão como atitude permanente para manter unida sua comunidade de seguido-res(as). Ele insiste fortemente sobre esta virtude porque esta é uma necessidade vital quando a vida é ferida por ofensas, rupturas, conflitos... O perdão re-situa as pessoas na grande corrente da vida; busca restabele-cer um vínculo positivo entre vidas feridas, vidas que se ferem e vidas que as rodeiam.
Jesus vive comprometido com a vida saudável, e faz a vida crescer de forma integral, sem divisões. Ele devolve às pessoas a saúde em seus corpos, em suas emoções, projetos e relações; ele reconstrói os vínculos quebrados e move sua comunidade a viver o perdão como atitude contínua de vida.
De fato, o perdão é uma experiência forte de querer re-conectar-se com a vida; quer, para as partes envolvidas no conflito, abrir uma porta à vida; manifesta-se como força capaz de derrubar um muro feito de ódio, de violência, de sentimentos feridos, de agressividade destrutiva. O perdão busca estabelecer uma aposta pela vida. É uma atitude realista, vivida em profundidade e a longo prazo.
O perdão não é esquecimento e negação do mal-feito, mas recriador e portador de nova vida.
A experiência do perdão, mais forte que o mal, alarga o coração e nos convida a ter mais compaixão.
Por ser um atributo tão nobre, o perdão configura o ser humano à imagem de Deus.
O perdão é divino porque, para o ser humano, ele é verdadeiramente divino em seus efeitos e em seu próprio processo; ele traz em si algo de divino, que significa efetivo recomeço, como um novo momento inaugural (uma nova criação, segundo a Bíblia).
O perdão é um dom que abre para uma história nova. Ao se fazer oferta, o perdão se propõe abrir um novo caminho; ele evoca uma nova aliança. Por isso, o perdão não é apenas um ato criador, mas “re-criador”, portador de uma nova vida. Restaura o amor e seu mais belo fruto, a comunhão das pessoas.
O perdão abre uma nova história. O perdão não deleta o ato causador do mal; ele toma a iniciativa de uma nova oportunidade de vida. E como houve uma ruptura de continuidade, ele se propõe abrir um novo caminho, virar a página e escrever um novo capítulo.
“O perdão não é o esquecimento do passado, é o risco de um futuro diferente daquele que foi imposto
pelo passado ou pela memória” (Christian Duquoc).
Os recursos do verdadeiro perdão são infinitos. Eles jamais acabam. O perdão é “alargamento do coração humano”, é movimento, é expansão de si, é des-centramento... e impulso na direção do outro.
O prefixo “per” é o mesmo que encontramos nos verbos per-correr, per-durar, per-fazer..., e leva à ple-nitude a ação expressa pelo verbo. O prefixo “per” denota intensidade, profundidade.
No latim, “per-donum” significa dom levado à perfeição; ou “per-donare”, significa dar prova de uma extrema generosidade. O perdão é um dom que nos permite ir além de nós mesmos; é um dom em excesso.
Perdoar é doar-se em plenitude; é dar mais que o ofensor merece.
O perdão é o dom realizando-se no supremo grau de sua gratuidade; é uma atitude de quem não se prende ao que o outro merece e nem se escandaliza com sua miséria.
“Devemos perdoar como pecadores e não como justos”.
A plenitude do dom é a vida. Perdoar é restituir a vida a quem nos ofendeu.
Toda ofensa, em qualquer grau, é um atentado contra a vida.
O perdão restabelece a ordem da vida. Quem perdoa e quem é perdoado saem mais verdadeiros, mais inteiros, mais humanos depois desse gesto.
O perdão realmente transforma vidas. Quando nós vemos o que acontece quando as pessoas se perdoam, nós sabemos que estamos diante de uma das mais eficazes forças na experiência humana. Por isso, segundo Jesus, o verdadeiro perdão não tem limite (77x7). O perdão precisa ser um gesto repetido muitas vezes até se tornar um “hábito do coração”.
É um processo voluntário no qual, quando perdoamos, optamos não por revidar, mas, pelo contrário, optamos por responder de maneira amorosa e criativa a quem nos causou danos ou ofensas. Perdoar se revela uma atitude virtuosa porque nos coloca inclusive acima de nós mesmos, do nosso primeiro instinto de vingança; nos situa no melhor de nós mesmos.
Em si mesmo, o perdão é um ato não de justiça, mas de amor; sua gratuidade é superior a tudo o que a justiça poderia requerer. Perdoar é ir mais longe que a lei, mais longe que a consciência.
O perdão é uma recusa ética de julgar o outro, quer dizer, um “alargamento do coração humano”; em outras palavras, um amar mais. Quem ama gosta de perdoar, porque dessa forma demonstra melhor seu amor.
Quanto mais se ama mais se perdoa, porque a delicadeza do coração permite perceber todas as feridas infligidas à comunhão das pessoas. Perdoar é amar mais. De fato, não perdoar é sempre amar menos, é viver sob o regime da aspereza, da amargura, da tristeza que acabam por se estender aos mais próximos e envenenar as relações dos seres mais queridos.
O perdão restaura o amor e seu mais belo fruto, a comunhão das pessoas.
Enfim, perdão é amor que reconstrói o passado. Só quem doa amor ao ofensor dá-lhe as condições profundas de contrição, compunção, compaixão e arrependimento, as quatro vias através dos quais o ser humano pode renascer de si mesmo e das trevas, trocando a morte pela vida.
Por ser o gesto mais difícil e elevado, o perdão é a única forma de permitir ao ofensor a entrada de amor no seu coração. Qualquer forma de cobrança, punição e vingança reforça a crueldade do ofensor e, de certa forma, vai fazê-lo sentir-se justificado.
Quem não busca perdoar e quem resiste receber o perdão correm o risco de ficarem com uma liberdade atrofiada e uma vida diminuída. Todo obstáculo ao perdão é um obstáculo ao amor.
O perdão busca precisamente esse desbloqueio, para que a vida possa fluir.
Portanto, é no perdoar que somos divinizados: “errar é humano, perdoar é divino”.
O perdão reconstrói a paz interior, a paz na família e nas relações sociais, a paz entre os povos. E essa reconciliação entre nós se torna sacramento da reconciliação com Deus, o último elo e o mais importante do perdão. Perdoados por Deus e transformados interiormente por tal graça, nascemos de novo.
Texto bíblico: Mt 18,21-35
Na oração: Fazer “memória” dos momentos em que você experimentou a força criativa do perdão do outro, ou foi presença por onde fluiu o verdadeiro perdão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.09.2023
imagem: pexels.com
“Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles” (Mt 18,20)
O evangelho deste domingo (23º Dom Tempo Comum) faz parte do chamado “discurso comunitário”, onde Mateus recolhe os ensinamentos de Jesus a respeito das “relações oblativas” que devem reinar em sua comunidade.
De fato, em seu ministério público, Jesus não só se revela como o “fundamento” da comunidade dos seus discípulos, mas ativa aqueles “atributos” que são essenciais para alimentar os vínculos entre aqueles(as) que o seguem: “tornar-se como criança”, “não ser pedra de tropeço para os pequenos”, “cuidado com a ovelha que se perde”, “a vivência do perdão”, “a correção fraterna”, “a oração em comum”...
Profundo conhecedor da condição humana, Jesus tinha plena consciência que o ser humano é frágil, limitado, e que nenhuma comunidade subsiste sem uma contínua atitude de abertura e de acolhida do “outro”.
Sabemos por experiência que a presença do outro (“alter” em latim) sempre nos “altera”.
O ser humano é incapaz de amadurecer em solidão. Desde nosso nascimento, viemos ao mundo em um estado de fragilidade que faria morrer muitos animais; por isso, precisamos uns dos outros. Fomos concebi-dos dentro de uma matriz de relações e vivemos sempre em um mundo densamente povoado de surpreen-dentes presenças humanas, que são imprescindíveis para chegarmos a ser “pessoas”.As relações interpessoais são fundamentais em nossa vida. Portanto, somos chamados a acolher os outros, reconhecer sua dignidade, sentir-nos responsáveis por eles, assumir a alteridade como princípio e lugar de crescimento e de formação pessoal...
O Evangelho de hoje aponta para esta realidade: nós nos constituímos como “humanos” pelas nossas relações; em outras palavras, só nas relações com os outros podemos crescer em humanidade.
Estamos sempre em contato com o “outro”. E o outro é pessoa. O outro revela certa magia, ao mesmo tempo sedutor e enigmático. O outro é plural, apresenta múltiplos rostos; é diferente, inédito... Só seremos nós mesmos quando alguém nos descobre, nos acolhe, nos aceita... respeita nossa verdadeira identidade. O outro é a realidade que nos permite tomar consciência de nós mesmos.
Essa identidade se revela por meio das relações: ninguém cresce sozinho, precisamos dos outros; preci-samos viver relações sadias e maduras com os outros (família, amigos, trabalho, grupos, comunidades...). Nesse sentido, uma pessoa encontra somente sua realização na interação com o ambiente que a cerca.
O ser humano está comprometido com os outros; por sua própria natureza, ele se torna pessoa humana somente em interação com os outros; ele possui impulsos naturais que o levam em direção ao convívio, à cooperação, à comunhão...; ele é reserva de humanidade e compromete-se com a dignidade humana.
O ser humano é um ser constitutivamente aberto, essencialmente em referência a outras pessoas: estabe-lece com os outros uma interação, entrelaça-se com eles, e forma um nós: a comunidade.
Mas, o “discurso comunitário” em Mateus nos adverte que não podemos partir de uma comunidade de “perfeitos”, mas de uma “comunidade de irmãos” que reconhecem suas limitações, fragilidades... e necessitam do apoio mútuo para superar as dificuldades e reforçar os laços internos.
“Em verdade vos digo, tudo o que ligardes na terra será ligado no céu...” Esta expressão fora dita, anteriormente a Pedro (cf. Mt 16,19), como presença de unidade e comunhão da comunidade. Agora Mateus expõe que a graça (e o dever) de perdoar é concedido a toda a comunidade, a cada membro. Ninguém fica excluído da busca de diálogo ou de soluções diante de um conflito. É de todos a responsabilidade da marcha comunitária e do bem comum. A todos lhes é exigido uma maturidade que vai sendo alcançada, pouco a pouco. Para isso, a correção fraterna e o acompanhamento mútuo se fazem indispensáveis.
A comunidade é a última instância de nossas relações com Deus e com os demais. O Evangelho de hoje insiste que é preciso esgotar todos os recursos para ajudar o outro a sair de seu erro. Qualquer pessoa que, sem saber, vai pelo caminho equivocado, agradeceria se alguém lhe indicasse, com amor, seu erro e lhe mostrasse o verdadeiro caminho. Se ao fazer hoje a correção fraterna, damos por suposto que o outro tem má vontade, será impossível que ele aceite a retificação. A partir dessa perspectiva estamos dando por suposto que nós somos bons e o outro é mau.
A correção fraterna é um sinal de grandeza e delicado amor; começa com a correção a sós; caso não tenha resultado, chamar outros dois ou três e, se for preciso, recorrer à comunidade.
Numa comunidade cristã todos devemos ser acolhidos com nossas limitações e capacidades, com nossos erros e acertos; a comunidade cristã, se é comunidade e se é cristã, não é espaço de acusação e julgamento quando nos equivocamos; nela somos absolvidos quando somos culpados, somos buscados quando nos perdemos, somos perdoados quando erramos.
A correção fraterna não é condenar, ou castigar, ou expulsar, mas des-velar as limitações, sem ódio, sem espírito de crítica, de vingança, sem rancor. O objeto da correção fraterna não é dizer que eu tenho razão e que o outro está equivocado e, por isso, é mal. O objeto da correção não é sancionar para servir de lição. O objeto da correção fraterna é “ganhar” o irmão.
É no horizonte do amor que a correção fraterna acontece e não no horizonte da lei. O amor e a caridade são muito superiores a uma justiça entendida a partir de uma mera aplicação da lei corretiva.
É muito difícil cumprir hoje esse encargo da correção fraterna porque ela está pensada para uma comunidade, e o que hoje mais falta é precisamente o sentido de “comunidade”.
O sentido da relação, sadia e amorosa, com os outros é um dom de Deus, que nos foi dado a todos.
Deus nos fez amor para o mútuo encontro, para a doação, para a comunhão...
Fomos criados “à imagem e semelhança” do Deus Trindade, comunhão de Pessoas (Pai-Filho-Espírito Santo). Como criaturas, fomos atingidos pela marca trinitária de Deus. Quanto mais unidos somos, por causa do amor que circula entre nós, mais nos parecemos com o Deus Trindade. “Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu Amor em nós é perfeito” (1Jo. 4,12).
Deus colocou em nossos corações impulsos naturais que nos levam em direção ao convívio, à cooperação, à acolhida, à solidariedade...
Deus é o ponto focal para enxergarmos o outro. Se há “eu” e se há “tu”, então a presença de Deus se revela.
A fraternidade, a vida em comum se mede pelo amor, por atos e gestos de doação, de perdão, por vivências de comunhão, por experi-ências de partilha do mesmo ser, da mesma vida, da entrega mútua...
O amor é olhar o outro com olhos tão limpos, bondosos, desinteres-sados, tão profundos, que só desejamos que o outro seja único e ori-ginal, na sua verdadeira identidade.
O autêntico seguimento de Jesus, portanto, significa que a qualidade da comunidade possibilita encontros cheios de graça.
As duas realidades – pessoa e comunidade – se condicionam e se complementam. “A pessoa faz a comunidade e a comunidade faz a pessoa”.
Texto bíblico: Mt 18,15-20
Na oração: Não podemos esquecer que cada um de nós é um “outro” para os outros.
E poderíamos nos perguntar que espécie de “outro” temos sido para os outros.
- Ser “outro” é mandamento, é apelo à responsabilidade, à ajuda mútua, ao perdão re-construtor...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07 de setembro de 2023
“Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16,24)
A paixão-morte de Jesus foi, para os primeiros cristãos, o ponto mais impactante de suas vidas. Seguramente, o primeiro núcleo dos evangelhos foi constituído pelo relato da paixão-morte de Jesus. Não nos deve estranhar que, ao relatar o restante de sua vida, se faça a partir dessa perspectiva.
Por isso, até quatro vezes Jesus anuncia sua paixão e morte no evangelho de Mateus. Não era preciso ser profeta para dar-se conta de que a vida d’Ele corria sério perigo. O que Ele dizia e o que fazia ia contra à religião oficial, e os encarregados de sua custódia tinham o poder suficiente para eliminar uma pessoa tão perigosa para seus interesses. Até seus familiares mais próximos quiseram impedi-lo, forçando-o a levá-lo para sua casa, porque havia escolhido um caminho de loucos.
Pedro se rebela só de imaginar Jesus Crucificado. Não quer vê-Lo fracassado; só quer seguir a Jesus vito-rioso e triunfante. Também nossa sociedade, marcada pelo imediatismo, competitividade, busca de resulta-dos e rejeição a todo tipo de fracasso, a presença da Cruz é um escândalo inaceitável. De fato, nela mesma, a Cruz não tem sentido. Se a Cruz é de tal modo exaltada, fazendo com que a vida e a ação de Jesus fiquem reduzidas a ela, então acontece que ela se torna angustiante e aflitiva, incapaz de motivar ao seguimento ou de acender a esperança.
Jesus não morre na cruz para buscar o sofrimento, mas por ser consequente até o fim com sua mensagem: o amor incondicional do Deus da vida. Ele não fugiu, não contemporizou, não deixou de anunciar e testemunhar, embora isso o levasse a ser crucificado.
Nesse sentido, a Cruz de Jesus não permanece confinada em si mesma; ela se insere no interior da paixão dolorosa do mundo e seu sentido mais profundo reside em sua solidariedade para com todos os crucificados da história.
Com a Cruz “descemos” com Jesus até à cruz da humanidade. A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, nos fazem descer aos porões das contradi-ções sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o Crucificado, identificado com os crucificados da história. Como diz Jon Sobrino, não podemos crer no Crucificado de um modo coerente se não estamos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela.
A cruz e a morte só são dignas quando são consequência da luta contra a “cruz” e a “morte” impostas às pessoas e quando expressam solidariedade com os crucificados. Aqui há espaço de transformação.
A cruz se ilumina quando requer o abraço de uma situação inevitável. Se a enfermidade não tem cura, se a morte de um ser querido nos arrebata, se uma catástrofe natural nos deixa impotentes, se a denúncia profética de uma injustiça acarreta perseguições etc., crescemos quando abraçamos essa cruz e a superamos espiritualmente.
A Cruz liberta quando não termina nela mesma, mas na ressurreição. Enquanto a carregamos é leve se ela aponta para um horizonte de esperança. “Vinde a mim, vós todos que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso... Porque meu jugo é suave e meu fardo é leve” (Mt 11-28-30). Mas, para carregar a Cruz como Jesus, é preciso passar por um processo de esvaziamento de nosso “falso eu” que, continuamente, busca seus interesses, alimenta vaidades, quer ser o centro das atenções, sem nenhuma sensibilidade solidária com os sofredores e vítimas de uma sociedade que violenta e exclui.
O chamado de Jesus a “renunciar a si mesmo” é um convite ao descentramento, a não viver girando obsessivamente sobre o próprio eu. Os místicos falam com frequência da “morte do próprio eu”, e da felicidade que brota do interior quando a pessoa se deixa possuir pelo amor de Deus.
Há uma forma de viver agarrada ao próprio eu, que é fonte permanente de sofrimento. Muitas vezes, o que mais sofrimento gera na pessoa é precisamente esse modo de viver apegado a ela mesma, buscando cegamente e acima de tudo o próprio êxito, a boa imagem, a aprovação e a estima dos demais. Esse cultivo equivocado do ego inflado se converte em fonte de preocupação e sofrimento.
Inconscientemente, a pessoa pode alimentar falsamente seu “ego” e inclusive agigantando-o de forma desproporcional, organizando todo seu entorno a partir dele: minha pátria, meu partido, minha igreja, minha ideologia; o ego vai então ficando cada vez mais seduzido e mais exposto a toda sorte de problemas.
A atitude mais saudável está em tomar consciência de que a origem de tanto sofrimento inútil está no indivíduo mesmo, nesse coração cheio de egoísmo, de apegos, de invejas, de falsas ilusões, de sede de poder, de ressentimento, de vazio interior... Da mesma forma que a dor física é um sinal de alerta que avisa que algo funciona mal no organismo, existe todo um conjunto de sofrimentos que revelam modos equivocados de viver: apegos, servidões, contradições e incoerências que impedem um desenvolvimento sadio da pessoa.
Este sofrimento não é uma cruz que devemos carregar, mas uma carga que devemos “soltar”, se quisermos viver com o espírito de entrega de Jesus
No que se refere à experiência específica de seguimento, deveríamos retomar o sentido da mensagem de Jesus referente ao “negar-se a si mesmo” para poder viver. “A negação de si” enquanto negação daquilo que nega a vida. “Negar-se a si mesmo” é deixar de identificar-nos com a tirania das mensagens de nossos pequenos “eus”, que se refletem em nossa própria linguagem.
“Negar-se a si mesmo” é um conselho sábio: significa negar o que na realidade “não somos”, despertar da ilusão e do engano, deixar de girar em torno de um suposto “eu” que não existe, para viver a unidade de todos e de tudo em Deus e agir assim de um modo coerente na vida.
Não somos um pequeno “ego” que cremos ser. Precisamos despertar dessa ilusão e entrar em contato com nosso verdadeiro Eu, nosso Ser e, a partir dele, olhar a vida, olhar nossa atividade e olhar os outros, a fim de viver em conformidade com quem somos em profundidade. É esse o modo de “ganhar a vida”.
Precisamos perceber que aquilo que para nosso ego é “perda” e perigo, para nosso Eu verdadeiro é ganho profundo e libertação. Ganhamos mais vida quando ela se esvazia de “ego” e se deixa conduzir pelo amor oblativo que procede d’Aquele que é pura fonte de Amor.
Texto bíblico: Mt 16,21-27
Na oração: Todos nós somos habitados por um conjunto de “eus”, alguns conscientes, outros inconscientes. São os “pequenos amores” ocultos (um eu orgulhoso, irado, triste, prepotente, avarento, luxurioso...) que habitam reprimidos nosso interior. São elementos de nossa própria sombra, aos quais deveremos prestar atenção se quisermos avançar rumo a uma pleni-tude humana e espiritual. Uma experiência espiritual profunda consiste em estar cada vez mais lúcidos com relação a eles e identificando-nos prazerosamente com nosso Eu verdadeiro.
- Quais são seus “amores” (afetos desordenados que exigem alto investimento) que fragilizam e atrofiam o seguimento de Jesus?
- Diante da presença inspiradora da Graça, dê “nomes” aos seus “falsos eus” para não se deixar determinar por eles. Ao mesmo tempo “dê nomes” às expressões do seu “eu” original, que plenificam e dão sentido à sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.08.23
“Tu és pedra, e sobre esta rocha eu construirei minha Igreja” (Mt. 16,18)
O evangelho deste domingo (21º Dom. Tempo Comum) nos situa num destes momentos em que Pedro, com sua habitual ousadia e rapidez, responde à pergunta que Jesus lhes dirige sobre sua identidade: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. Diante da pronta confissão Jesus o chamou, em hebraico, “Kephas”.
O texto grego usa duas expressões: “petros” e “petra”. Simão é por si mesmo um “petros” (pedregulho, cascalho), mas, através de sua confissão messiânica, afirmando que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo, ele realizou uma missão essencial no princípio da igreja; assim, o mesmo Jesus acolheu esta profissão de fé e lhe chamou bem-aventurado (“makarios”), acrescentando que sobre a rocha da confissão de Pedro (“petra”) edificará sua Igreja.
Por ter recebido uma revelação muito alta de Deus, o próprio Simão que em si mesmo é “petros” (pedra movediça, incapaz de ser alicerce) se converte, de maneira muito profunda, em Petra/rocha firme, revelan-do-se o alicerce da nova comunidade. O texto distingue e vincula assim duas palavras fundamentais: a) Pe-tros (Pedro masculino), pedra-cascalho do caminho; b) Petra (rocha, feminino), na qual se expressa a reve-lação do Pai (“não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu”).
A realidade de Pedro está vinculada à sua história familiar, ao mundo conhecido ao qual pertence, à sua personalidade: é Simão (“petros”). No entanto, o olhar intenso e profundo de Jesus vai mais além, “perfura” essa realidade, descobrindo em Pedro a sua verdadeira identidade para o qual foi chamado a ser, ao se abrir à Graça: é “Petra” (Cefas). A missão para a qual foi chamado a ser, Pedro ainda não a conhece, mas é um dom que lhe foi dado já desde antes de nascer.A acolhida de Jesus se expressa na palavra de verdade oferecida e não imposta, uma palavra que o leva a dialogar consigo mesmo e a aprofundar: “Tu és ‘petros’ e sobre esta ‘Petra’ construirei a minha Igreja”.
Pedro aparece, então, como o primeiro discípulo que manifesta sua fé pessoal em Jesus. E o evangelho faz um convite para que cada pessoa, cada seguidor(a), expresse para si mesmo qual é sua fé em Jesus.
Como consequência, essa mesma fé, que aflorou na primeira comunidade cristã, é a que emerge e se prolonga, ao longo dos séculos, em cada seguidor(a) de Jesus, com sua fortaleza (petra-rocha) e, ao mesmo tempo, com sua fragilidade (petros-pedra); sem dogmatismos nem doutrinas, mas com a modesta manifes-tação de alguém que se sente interpelado e animado pelo modo como Jesus viveu e pelos estímulos que Ele lhe deu para caminhar na direção da nova humanidade.
Por isso, continua sendo decisiva a pergunta de Jesus: “E vós, quem dizeis que eu sou?” No entanto, não basta ter uma ideia clara sobre Ele ou um conceito teológico apurado, mas viver uma relação que se expressa como adesão a um estilo de vida cristificado.
O seguimento de Jesus não é questão de razão ou um profundo conhecimento da cristologia; é questão de sedução, de atração, de paixão... Só podemos responder à sua pergunta com o coração. Se a pessoa de Jesus – seu modo de ser e viver – não provoca um impacto afetivo em nosso interior, o seguimento vai se tornando estéril e sem maiores implicações na vida.
A pergunta sobre “quem é Jesus para nós” é fundamental para radicalizar nosso seguimento, e é fundamental para entendermos a nós mesmos; cada um precisa se situar de maneira única e original diante da mesma pergunta feita a todos. Em muitas ocasiões as perguntas nos ajudam a avançar mais que as nossas próprias respostas. As “perguntas existenciais” são provocativas e mobilizadoras pois sacodem nossas vidas e desper-tam os recursos mais nobres em carregamos em nossa interioridade. Por isso, a pergunta por Jesus se volta a nós mesmos; perguntar por Jesus é perguntar por nós mesmos. Nesta rede de perguntas e respostas o que está em jogo não é tanto a identidade de Jesus, mas a nossa identidade de seguidores(as) seus(suas). No centro das perguntas que nos fazemos na vida vão surgindo respostas com as quais vamos configurando nossa existência, identificada com a vida de Jesus. Mas hoje, talvez num gesto de ousadia e atrevimento, poderíamos inverter as perguntas. No Evangelho, é Jesus quem pergunta e nós respondemos; agora somos nós que fazemos as perguntas a Jesus. Se Ele está interessado em saber o que os outros pensam dele, também nós estamos interessados em saber o que ele pensa de nós:
“Senhor, que dizes, que pensas de mim?” “Senhor, que pensas e dizes de mim como batizado(a) e teu(tua) seguidor(a)? Sou realmente essa imagem do(a) homem/mulher novo(a) nascido(a) de tua Páscoa?” Senhor, que pensas e dizes de mim como: jovem? adulto? cristão/ã? trabalhador(a)...?”
“Senhor, Tu que pensas de mim como pessoa? Porque tu me deste a vida não para que a conserve atrofiada, mas para que me realize humanamente e chegue a ser uma pessoa livre, madura e comprometida. Tenho amadurecido no amor, chegando a ser essa pessoa que Tu esperas de mim?”
Talvez, de início, possamos sentir um pouco de medo da verdade que Ele dirá sobre nós. Mas, pensando bem, podemos concluir que Jesus pensa melhor sobre nós que nós sobre Ele. E se nos dá vergonha responder às suas perguntas, certamente que Jesus não sentirá vergonha alguma em responder às nossas.
Ao responder nossas perguntas, Jesus nos faz ter acesso àquilo que é o fundamento, a rocha sobre a qual construímos nossa vida. Assim como Ele respondeu, afirmando a verdadeira identidade de Pedro, podemos afirmar que “petros” é o que em nós é fragilidade, incoerência, vulnerabilidade, limitação... “Petra”, ao contrário, é o que é sólido, firme, consistente, sobre o qual fundamentamos a vida. “Carregamos um tesouro em vaso de barro” (2Cor. 4,7). Como seres humanos vivemos a integração de “petros” e “petra”.
Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que temos, para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis resistências na vivência do seguimento de Jesus. O “eu profundo” constitui-se como um centro sólido, consistente e estável de nosso ser, radicalmente diferente das experiências fluidas que o atravessam. Existem camadas sólidas da experi-ência do “eu” que devem se contrapor às experiências passageiras de sentimentos vazios, desejos peri-féricos, sonhos sem paixão.
É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para nos ajudar a crescer dia-a-dia, tornando-nos aquilo para o qual fomos chamados a ser. Trata-se da dimensão mais verdadeira de nós mesmos, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde vivemos o melhor de nós mesmos, onde se encontram os dinamismos do nosso crescimento, de onde brotam as nossas aspirações e desejos fundamentais, onde percebemos as dimensões do Absoluto e do Infinito da nossa vida.
Vivemos um contexto social e cultural no qual se constata um modo de vida que não favorece o contato com a nossa rocha interior. Seduzidos por estímulos ambientais, envolvidos por apelos vindos de fora, cativados pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizados por ofertas alucinantes... nós nos esvaziamos, nos diluímos, perdemos a interioridade e... nos desumanizamos. Tudo se torna líquido: o amor, as relações, os valores, a ética, as grandes causas... (cf. Bauman).
Diante desta “cultura líquida” é urgente gerar espaços que facilitem o acesso à rocha da interioridade, possibilitar o retorno à “base interior” onde é gestada a nossa identidade e as nossas opções mais firmes.
Somos um mistério no meio de mistérios, em um mundo de surpresas e de assombros.
Texto bíblico: Mt 16,13-20
Na oração: Muitos caminhos conduzem à nossa própria interioridade. A oração é a chave de acesso; ela é esse silencioso exercício de deixar que Deus nos habite para que possamos abrir as portas do coração e janelas da mente àqueles que encon-tramos. Onde o Deus de Jesus tem liberdade de atuar, ali desaparece todo resquício do medo que desumaniza.
- Deixe que a “chave” da oração abra as portas do seu coração e mostre todos os seus tesouros escondidos nas arcas de seu interior. Permita que a “petra” de sua existência brote com leveza das profundezas de seu ser.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
24.08.2023
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