“Saíram e entraram na barca, mas não pescaram nada naquela noite” (Jo 21,3)
A vida é constituída de momentos de luta e de coragem, de sonhos e de esperança, de vitórias e de derrotas. Este é o material com o qual são construídas nossas histórias, pessoais e coletivas.
Todos nós já vivemos experiências de fracassos, quando tudo desmorona, quando tudo nos é tirado, quando perdemos o chão, quando parece que evapora tudo aquilo sobre o qual tínhamos investido todo o nosso amor e toda a nossa energia e criatividade.
Mas, no horizonte da Ressurreição, o fracasso tem seu lugar. Ele pode ser percebido como chance para crescimento ou amadurecimento, ou pode ser integrado à luz de outras experiências positivas. Aprendemos mais pelos nossos fracassos do que pelos nossos êxitos.
O fracasso pode ser, à luz da Ressurreição, des-velador da natureza do ser humano, que vai amadurecendo, superando o sentimento infantil de onipotência, descendo do pedestal de sua soberba para tornar-se mais humano, mais amoroso, mais confiante... Os fracassos podem se revelar como ocasião privilegiada para ativar outros recursos humanos que não tiveram chance de se expressarem.
Integrar os fracassos significa assumir as perdas ou carências que aparecem como uma negação de vida, mas que contém potencial de nova vida, de crescimento, de maturação pessoal. Em definitiva, de criativida-de humana, base da evolução pessoal e social.
Em nosso contexto social, o fracasso é vivido como uma perda de prestígio e poder. Mas se o situamos no horizonte da Ressurreição, ele pode ser elaborado saudavelmente e, então, poderemos descobrir que o fracasso pode ser fonte de fecundidade. A Ressurreição nos ajuda a re-siginificar, a re-ler, a re-interpretar todos os nossos dramas, crises, feridas, fracassos... Tudo é acolhido, tudo é integrado, tudo é mobilizado para dar um novo passo em direção a um novo futuro de vida.
Há um relato que sempre nos impacta muito e que aparece no capítulo 21 do evangelho de João. Trata-se da aparição do Ressuscitado aos discípulos no lago da Galiléia.
Normalmente nosso imaginário concebe a Ressurreição como uma grande “apoteose”; mas, se algo está ausente nas aparições do Ressuscitado, tal como os evangelhos nos relatam, é precisamente a apoteose.
O dicionário Houaiss da língua portuguesa a define como o ápice, o momento mais importante de um acontecimento, o apogeu, a glorificação, o júbilo, o entusiasmo, o cume... Mas, por mais que busquemos algo disso nos relatos pascais, não é possível encontrar nenhum rastro de semelhantes exaltações, resplen-dores, arrebatamentos...
Ao relatar como o Ressuscitado se conectava com os seus amigos e amigas, o que nos assombra é sua discreta maneira de fazer-se próximo, de surpreender-lhes em seus trajetos habituais, de lhes saudar com o “Shalon” de cada dia, de apresentar-se sob as aparências mais comuns: um trabalhador de parques e jardins, um forasteiro desinformado a quem é preciso atualizá-lo sobre os últimos acontecimentos, um desconhecido ocioso que, a partir da margem do mar, pergunta como foi a pescaria.
Mas há um dado constante nos relatos das Aparições do Ressuscitado: Ele se faz presente no meio do fracasso, da dor, da tristeza, da ferida..., e, aos poucos, vai iluminando a situação dramática de cada pessoa ou do grupo, vai reconstruindo vidas despedaçadas, vai abrindo horizonte de sentido e confirmando a missão de prolongar o “movimento de vida” iniciado na Galiléia.
No relato pascal deste domingo, o evangelista João revela que, à primeira vista, parece que a situação dos discípulos não tinha mudado; eles tinham perdido sua condição de seguidores, tocaram fundo na decepção que a morte lhes produziu e atrofiaram o sonho no qual acreditavam que estavam fundadas suas vidas.
Novamente eles se encontram junto à praia e entre redes, como no começo; o vazio, o abandono, a solidão, a escuridão da noite, a rotina de um trabalho cansativo e ineficaz, dominam a paisagem do texto; novamente a dureza de cada dia, em um cotidiano sem a presença de Jesus.
Mas, um “estranho”, muito cedo, da margem do lago, atreve-se a provocá-los, fazendo uma pergunta onde mais doía: “moços, tendes alguma coisa para comer?”
Diante de um “não” ríspido, o Ressuscitado faz um convite ousado: “Lançai a rede à direita da barca e achareis”. É como se dissesse: mudem de atitude, pesquem de maneira diferente, busquem outros lugares, saiam da rotina, sejam criativos... Também para lançar a rede existem dois lados: um lado conhecido e rotineiro; e outro lado alternativo e novo. Revendo o passado, os discípulos reconheceram que estavam trabalhando no lado errado, determinados pelo peso de uma tradição que não os deixava crescer.
Saber escutar os outros sempre pode ser útil. O pior é a auto-suficiência que leva a acreditar que sabe tudo. Até o conselho de um desconhecido pode ser princípio do êxito.
A nova consciência transforma tudo. A vida ganha a plenitude da rede, torna-se vida em abundância.
Uma frugal refeição e a presença que se faz companhia foram a estratégia encontrada por Jesus para retomar o movimento de vida que fora bloqueado pela sua paixão; ao mesmo tempo, tornam-se o ambiente favorável para confirmar a missão dos seus mais íntimos, sobretudo de Pedro, que passara por uma profunda experiência de fracasso: negara a amizade com Jesus.
Há algumas brasas, que recordam aquela fogueira em torno da qual, alguns dias antes, o velho pescador jurou não conhecer Jesus, negando-o três vezes. Agora, junto ao fogo irmão, Jesus lavará com misericórdia a fraqueza de Pedro, transformando para sempre seu barro frágil em pedra fiel.
O relato deste domingo (3º da Pásco) nos revela que é do meio do fracasso que pode brotar o impulso para uma adesão mais radical Àquele que no fracasso “desceu” ao mais “inferior” (“infernos”) da condição humana, Àquele que “se fez fracasso” para se fazer mais solidário com todos os fracassados da história.
Assim aconteceu com Pedro e os seus companheiros. Foi no contexto do fracasso (morte de Jesus, retorno à profissão de pescadores, pescaria infrutífera...) que Pedro foi perguntado três vezes sobre o “amor”.
Foi também nesse contexto que Pedro teve chance de se deixar reconstruir em sua identidade pela presença do Ressuscitado; também por três vezes expressa a radicalidade de seu amor à pessoa de Jesus Cristo, que se faz visível na identificação com Ele e na confirmação de sua missão: “apascenta minhas ovelhas”.
As perguntas de Jesus a Pedro nos revelam que a cura das feridas emocionais é, antes de tudo, um caminho novo que envolve afeto, amizade, amor.
Antes, um Pedro valente o suficiente para cortar a orelha do servo do Sumo Sacerdote com a espada, mas que perde a valentia em seguida, a ponto de negar conhecer o próprio Jesus.
O Pedro que emerge deste contato terapêutico com o Ressuscitado é um Pedro corajoso, decidido, mas também muito mais amoroso, humano, pronto para exercer o “ministério do cuidado” do rebanho, confiado pelo Ressuscitado.
Texto bíblico: Jo 21,1-19
Na oração: O encontro com o Ressuscitado possibilita re-ler a vida, ressignificar fatos, “reci-clar” perdas e feridas, “processar” fracassos..., para sair do “fatal ponto morto” e entrar no movimento expansi-vo da Vida.
- Diante das crises, feridas, fracassos..., qual é a sua tendência? Tentar deletá-los através do retorno ao cotidiano normótico (voltar a pescar)? Ou oportunidade para um despertar a outras dimensões da vida, mais ricas e ousadas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.04.22
Imagem: Sieger Koder
“Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (Jo 20,20)
O relato pascal deste 2º domingo da Páscoa é chave para entender o sentido de todas as aparições do Ressuscitado aos seus amigos e amigas. Ele não tem a intenção de nos querer dizer o que “aconteceu”, mas transmitir-nos uma vivência, uma experiência.
Ao refletir sobre os relatos das Aparições padecemos de um míope e estéril realismo: quê viram? quê aconteceu? como Ele apareceu?... Interessa-nos muito mais a curiosidade do investigador. Lemos os Evangelhos mais como jornalistas do que como pessoas de fé. Nosso desejo era ter estado ali e ver tudo com nossos próprios olhos.
Mas, se tivéssemos estado ali, teríamos acreditado no Crucificado? Esta é a pergunta decisiva. Esta é a finalidade do relato de João, especialmente do conjunto Paixão/Ressurreição: “que creiais no Crucificado”. Aquele que não sente sua fé interpelada pelo crucificado e pelos crucificados do mundo, não tem uma fé bem enraizada.
A experiência pascal dos(as) seguidores(as) de Jesus revela que é na comunidade onde se pode descobrir a presença do Ressuscitado. A comunidade é a garantia da fidelidade a Jesus e ao seu Espírito; sobretudo, é a comunidade que recebe a nobre missão de expandir a grande surpresa realizada pelo Pai em Jesus.
Jesus aparece no centro da comunidade dos seus amigos e amigas, como presença de unidade, porque, agora, Ele é para eles e elas a única referência e fator de comunhão. A comunidade cristã está centrada em Jesus: sua saudação elimina o medo; as chagas, sinal de sua entrega, evidenciam que é o mesmo que morreu na cruz; o sopro do seu Espírito lhes reacende a alegria e a coragem; desaparece o medo da morte...
A verdadeira Vida não pode ser tirada de Jesus nem tirada dos seus seguidores. A permanência dos sinais de sua morte (chagas) indica a permanência de seu amor. Além disso, garante a identificação do Ressuscitado com o Jesus crucificado. A comunidade tem agora a experiência de que Jesus vive e lhe comunica essa mesma Vida.
O evangelista João é o único que divide em dois o relato da aparição aos apóstolos reunidos. Com isso personaliza em Tomé o tema da dúvida, que é capital em todos os relatos de aparições. Bastavam os sinais anteriores: o dom da paz, a memória de sua entrega (mãos e lado), o perdão, o sopro do Espírito. Mas o texto joanino continua dizendo que faltava Tomé, precisamente um dos Doze. Não é um cristão comum aquele que estava ausente da comunidade, mas um dos antigos companheiros de Jesus, um de seus doze seguidores. Precisamente Tomé, um dos líderes da igreja primitiva, corria o risco de entender a ressurreição de um modo “espiritualista”, “desencarnada”, fora da comunidade.
Não há experiência pascal sem um retorno à corporalidade do Cristo, que continua sendo o mesmo Jesus da história que morreu por sua fidelidade à causa do Reino: trazer vida em abundância a todos.
Neste segundo encontro do Ressuscitado com os discípulos, João destaca a exigência de “tocar” as feridas de Jesus, para conservar assim a memória de sua paixão, descobrir sua presença pascal e encontrá-lo nos feridos da história. “Tocar” em Jesus significa tocar e curar as feridas da humanidade que sofre.
A fé pascal expressa-se, dessa forma, como experiência mística (mas realíssima) do sofrimento e morte do Messias, que continua morrendo nos crucificados e enfermos deste mundo. O Ressuscitado não se apresenta com força e poder, mas com amor e a partir do amor, exercendo o “ofício do consolar” (S. Inácio). Por isso, às vezes não é fácil reconhecê-lo. E, no entanto, é Ele mesmo. Aquele que foi crucificado é o que Deus ressuscitou. Esta igualdade fica expressa por meio das chagas que o Ressuscitado traz em seu corpo. Mas estas chagas são algo mais que um modo de dizer “sou eu mesmo”. As chagas são expressão de identidade, ou seja, pertencem a seu novo ser de ressuscitado; elas são as “marcas” da entrega e que nunca desaparecerão.
Dito de outro modo: Jesus, vencedor da morte, não abandona a fragilidade da existência humana. A fragilidade da carne mortal foi assumida na glória do corpo ressuscitado. A ressurreição não O separa da condição humana anterior. Não é a passagem a uma condição superior, mas a mesma condição humana levada à sua culminação. A Jesus e a nós o Pai nos acolhe com toda nossa realidade, purificada e transformada.
Ao contemplar as chagas do Ressuscitado, somos movidos a olhar e acolher também nossas chagas: medos, traumas, fracassos, feridas...
Jesus, que conhece bem nossas obscuridades e resistências, medos e bloqueios que nos habitam, se faz presente em meio às nossas vidas abrindo as portas fechadas e pacificando nosso interior: “a paz esteja com vocês!”. Assim, no-lo repete, continuamente, insistentemente, pacientemente.
Ele vem ao nosso encontro e se empenha em re-criar-nos, comunicando seu Sopro sobre nós, como o Criador fez no princípio de tudo. Ali onde continua habitando o caos, a incerteza e a desconfiança, Ele nos oferece alegria, paz e fortaleza. Alenta nossa fé e renova nossas relações pessoais e comunitárias. Gratuitamente; com infinito amor. Com o mesmo amor com que nos anunciou a Boa Nova e nos libertou de nossas enfermidades; com o mesmo amor com que se pôs a nossos pés para lavá-los; com o mesmo amor com que fez de sua vida uma doação radical.
A experiência do encontro com o Ressuscitado nos faz também encontrar o verdadeiro lugar do nosso corpo em nossa vida. Normalmente tratamos mal nosso corpo: há muito de stress, de suspeita, medo e submissão. Sabemos muito sobre nossa mente e muito pouco sobre nosso corpo; temos uma alma livre num corpo rígido.
A nossa vida é uma bela história de ressurreição, um milagre de fortaleza na fragilidade que nos impulsiona continuamente a nos despertar da letargia, a sair de nossos lugares fechados, a colocar-nos de pé, a pisar firme sobre a terra, abandonando nossos túmulos e fechamentos, e continuar caminhando, com a cabeça erguida e os olhos fixos no horizonte da vida, onde se revela a Vida plena do Ressuscitado.
A este Vivente seguimos, pois Ele sempre nos oferece a oportunidade para nos encontrar com Ele e reconhecê-lo, apesar de nossas cegueiras, medos e pesadelos. Ele sempre nos toma pela mão para aproximá-la de suas feridas abertas e mostrar-nos, nas marcas deixadas pelos cravos, que a morte não tem a última palavra. Aproximar de suas feridas reacende em nós a solidariedade e o impulso para sair de nossos espaços fechados e entrar em sintonia com os chagados da história. As chagas do Crucificado, por graça, nos transformam em testemunhas de sua presença em todos os feridos e sofredores.
Que sua paz alente nosso anúncio alegre para que outros possam crer e, crendo, todas tenham vida em seu Nome!
Texto bíblico: Jo 20, 19-31
Na oração: Abrir espaço interno para que o Ressuscitado tenha liberdade de transitar por suas feridas existenciais (traumas, fracassos, rejei-ções, crises...) integrando-as, ressignificando-as, iluminando-as...
- Como ser presença ressuscitada neste mundo onde impera a cultura da morte, do ódio e da violência...? Como se fazer próximo e “tocar” as vítimas chagadas?
- Sua fé no Ressuscitado tem implicações sociais, políticas, relacionais..., ou se revela mais como uma “espiritualidade desencarnada”, intimista, alienada...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.04.22
+ Na alegria da ressurreição, prepare a oração, criando um clima de profunda intimidade com o Ressuscitado.
+ Suplique a Deus o dom da alegria com Cristo Ressuscitado; que a experiência da Ressurreição o(a) impulsione a viver com mais intensidade em comunhão com toda a humanidade e toda a Criação.
+ Antes de “entrar em contemplação”, repasse os “pontos” seguintes:
Mestre Crucificado, Mestre Ressuscitado. O ensinamento de Jesus revelou-se inseparável de sua vida; em outras palavras, Ele ensinou com sua vida. Certamente, Jesus ensinou com parábolas, com gestos ousados... Mas, no final, o que educa de verdade é sua própria vida de Mestre amigo, terapeuta, compassivo, crucificado, ressuscitado... Por isso, não basta dizer que o ensinamento de Jesus “segue adiante”, mas que devemos acrescentar: Jesus mesmo, ressuscitado por Deus, é o autêntico educador.
Os relatos de suas Aparições nos revelam como Ele foi reconstruindo as pessoas, amigas e amigos, quebrados(as) pelo fracasso, pela tristeza, pela decepção... Jesus os(as) ressuscitou por dentro, despertando a vida bloqueada e abrindo o horizonte da missão.
“Olhar o ofício de consolar que Cristo nosso Senhor exerce” (EE. 224). S. Inácio utiliza esta expressão quando apresenta, na 4ª Semana dos Exercícios, a contemplação das aparições do Ressuscitado.
Consolar é o que define a ação do Ressuscitado, transformando a situação dos seus discípulos e discípulas: a tristeza se converte numa alegria contagiosa, o medo em valentia e audácia, a negação de Jesus em profissão de fé e martírio... Não se trata de um ato pontual senão de um “ofício” , que definirá para sempre a atividade de seu Espírito no mundo.
Nas cenas evangélicas das aparições, o efeito da presença do Ressuscitado sobre os discípulos e discípulas termina sempre em reconhecimento, em chamado e envio, em restauração de uma vocação e missão.
Jesus ressuscitado exerce sobre eles(elas) um original “ofício de consolar”, cujo efeito é iluminar o caminho pelo qual, em seu nome e com Ele, eles e elas hão de percorrer. O “ofício de consolar” é a marca do Ressuscitado, é força recriadora e reconstrutora de vidas despedaçadas. Jesus “ressuscita” cada um dos seus amigos e amigas, ativando neles(as) o sentido da vida, reconstruindo os laços comunitários rompidos, e sobretudo, oferecendo solo firme a quem estava sem chão, sem direção...
O verbo “consolar” tem, no hebraico, um sentido mais amplo e forte que nas línguas latinas, porque, muito mais que animar a alguém abatido, expressa a ação eficaz de conseguir com que desapareçam os motivos de seu abatimento. Neste sentido, consolar não é tão somente acompanhar senão, também, inclui a ação de dar esperança, uma esperança fundada, capaz de produzir uma mudança radical no estado de ânimo do outro.
Nos relatos das aparições de Jesus Ressuscitado, esta experiência de ficar consolado aparece muito evidente, porque passa-se da angústia do túmulo vazio à consolação na presença d’Aquele que vive; é a passagem da ausência desconcertante à presença significativa.
O Ressuscitado se aproxima como Presença viva que comunica Vida: deixa-se ver, caminha, fala, interpela, corrige, anima, transmite paz e alegria. Em uma palavra, presenteia seu Espírito.
Sua maneira de se fazer presente é pessoal, personalizante, identificadora: dizer o nome, suscitar recordações e experiências comuns, fazer vislumbrar projetos de futuro.
Outra vez Jesus recria a comunidade que, depois da Paixão, estava se desintegrando; e seus discípulos experimentam novamente o chamado e o envio, a serem testemunhas e cúmplices do Espírito, porque vivem a certeza existencial de que o Crucificado é o Ressuscitado, que a morte foi vencida, que Deus está constituído como Senhor.
Em meio à dor, os(as) discípulos(as) aprendem a confiar em Deus e a não se deixar levar pela tristeza.
A alegria não começa quando acabam as dores; a alegria é uma opção de vida, expressão da confiança em Deus, que torna possível enfrentar o sofrimento com esperança. A alegria não suprime o sofrimento, mas lhe dá sentido. A alegria não desconhece o sofrimento, senão que o enfrenta com confiança.
Em nosso uso habitual, a palavra “consolação” e o verbo “consolar” apontam para um profundo e rico significado: revelam um tipo de proximidade e comunhão com o outro capaz de lhe transmitir compreensão, alento, acolhida, impulso... ou seja, uma transmissão de energia que desperte nele suas próprias capacidades de reação diante de uma situação de tristeza, de fracasso, de desespero ou sofrimento...
Nos Exercícios Espirituais de S. Inácio, consolação e consolar são a linguagem e ação de Deus no ser humano, comunicação do Criador com a criatura, iniciativa de Deus que, quando é recebida com agradecimento e pureza, isto é, como dom gratuito e como escuta disponível, nunca deixam a pessoa consolada no mesmo lugar ou situação onde estava antes.
A consolação de Deus é sempre dinamizadora daquilo que é mais divino no ser humano.
Por ser manifestação da comunicação do Espírito de Deus ao espírito humano, gera sempre na pessoa, amor, alegria, fé, entusiasmo..., e desemboca sempre na missão.
Deus nos consola para que possamos consolar.
Na consolação, Deus nos chama a ser seus colaboradores. A consolação que recebemos do Senhor não nos é dada tendo em vista um desfrute narcisista e fechado deste dom espiritual, mas tem a finalidade de capacitar-nos para o “ministério da consolação”.
É um dom para a missão; se alguém se apropria dela como coisa pessoal, morre.
Dessa consolação de Deus, da qual nós mesmos e nosso mundo tanto necessitamos, somos chamados a fazer-nos receptores e mediadores.
Trata-se de uma consolação que é pura graça, que não está ao alcance de nossa mão dá-la a nós mesmos, nem dá-la aos outros, mas da qual podemos ser agradecidamente receptores e gratuitamente mediadores. Com isso, a consolação pode estender-se a outros muitos rincões da existência humana.
É tempo de autocompreender-nos e atuar frente aos outros como enviados a exercer ativamente o “ofício de consolar”, tendo sempre presente que a consolação verdadeira pertence somente ao Espírito, já que não é outra coisa que a gratuita autocomunicação do Deus trinitário à humanidade.
É Ele mesmo quem deseja compartilhar conosco este ofício, o ofício de consolar.
Consolação e “ofício de consolar” nascem e vem precedidas pela experiência de uma alegria pura e totalmente desinteressada pelo Senhor. Alegria interna e verdadeira que procede e provoca a missão.
Nada mobiliza tanto como o agradecimento e nada revela tanto o agradecimento como a alegria pura pelo bem do outro. A gratuidade é o habitat natural da consolação e do consolado.
Todos somos chamados a prolongar este “ofício de consolar” de Jesus; a experiência da Ressurreição nos move a “descer” junto à realidade do outro (seus dramas, fracassos, perda de sentido da vida...) e exercer este ministério humanizador, ou seja, ministério entre iguais, “vida que desperta outra vida”.
É vida plenificada, iluminada, integrada... pela experiência de encontro com o Ressuscitado e que flui em direção à vida bloqueada, necrosada... ativando-a, despertando-a...
É movimento expansivo da vida.
Assim como a consolação é o canal privilegiado pelo qual Deus se comunica e atua em nós, o ofício do consolo” é o canal por onde flui a vida.
Textos bíblicos: Jo 20,11-18 Lc 24,13-35
Na oração: faça “memória” das experiências de consolação, suscitadas pela Graça de Deus ao longo desta Quaresma
- Recorde pessoas que foram “presenças consoladoras” em sua vida.
- Traga à memória situações em que você foi o(a) mediador(a) da consolação de Deus.
Iluminar a madrugada e tecer liberdade, nutrir a vida de compaixão e amizade, celebrá-la e oferecê-la de verdade, orar... Esse é o movimento de Ressurreição? É isto que o evangelista João quer destacar quando escreve que Madalena “saiu correndo”, que Pedro e João “corriam juntos”?
Que a Páscoa seja um tempo de movimento e cada um(a) discirna para onde correr!
Um Santo Tempo Pascal e todos e todas!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.04.22
“No lugar onde Jesus foi crucificado havia um jardim e, no jardim, um túmulo novo...” (Jo 19,41
É Sábado e Jerusalém voltou à sua normalidade: nada mudou, ao menos aparentemente, na história. Silêncio gélido, desconcerto, frustração e indiferença cobrem a cidade santa como um manto de densa neblina.
Como seguidores(as) de Jesus vivemos nossos adventos, natais, quaresmas, páscoas e pentecostes; vivemos nossas sextas-feiras; é preciso aprender a viver o incômodo silêncio dos sábados santos.
No caminho do seguimento de Jesus há “Sábados Santos”, tanto no nível pessoal como comunitário: passamos por contínuas mortes, noites escuras, crises, silêncios carregados de tristeza, falta de esperança, dúvidas de fé, fracassos, traumas...
A humanidade inteira vive um grande “Sábado Santo”; há uma espera angustiada dos povos. Envolve-nos a “noite sabática”, que deve realimentar a paixão pela vida.
Sábado Santo da dor, da tristeza, do fracasso..., mas também Sábado Santo da espera e da esperança. É o Sábado Santo que nos abre às surpresas de Deus.
Onde encontrar, então, a razão, o segredo e o sentido deste dia que dá a sensação de um “dia morto”?
Certamente está neste fato: se o Crucificado não tivesse descido até os “infernos” da vida, em quem os homens e as mulheres que ali vivem poderiam se apoiar? A quem poderiam ter por companheiro, amigo e irmão? De quem poderiam sentir uma presença consoladora?
Somente porque Jesus desceu nos “infernos” da vida é que pode salvar-nos deles, transformá-los em caminho. “Porque foi provado no sofrimento, pode ajudar os que são provados” (Heb. 2,18).
Os “crucificados da história”, os sofredores e as vítimas são lugar de encontro, sempre e para todos; eles são sacramento do mundo que Jesus veio transformar, porque não corresponde ao que o Pai sonhou a respeito deste mesmo mundo; são um compromisso obrigatório para encontrar Aquele que viveu a verdadeira Paixão em favor da vida.
Talvez nem todos possamos estar ao lado das vítimas e dos últimos, próximos deles, participando de sua vida. No entanto, todos devemos estar a favor deles, junto Àquele que, na sua morte, faz-se solidário com todos e caminha ao lado de todos eles.
As “mediações” que Deus utiliza em sua ação salvífica são o amor humilde, a pobreza solidária e a participação no sofrimento humano. Loucuras do amor de Deus. Só o amor que se entrega, salva.
É em sua morte na Cruz que Jesus desce até o extremo de sua condição humana. Com estas duas palavras, “descer” e “subir”, o evangelista João descreve o mistério da Redenção realizada por Cristo.
“Ninguém subiu ao céu senão Aquele que desceu do céu, o Filho do Homem” (Jô. 3,13)
A Igreja primitiva viu a “descida entre os mortos” como paradigma da Redenção. No Sábado de Aleluia, ela lembra este “descer” às profundezas da terra e da humanidade.
Na “descida aos infernos”, lá onde o ser humano chegou ao extremo, onde ele se encontra excluído de toda comunicação e comunhão, onde não pode fazer mais coisa alguma, aí Jesus o toma pelas mãos e ressurge com ele para a vida. Jesus Cristo acolheu tudo quanto é humano e desta maneira tudo redimiu. Ele “subiu” ao céu porque “desceu” às profundezas da terra.
A descida aos “infernos” é imagem da descida de Jesus às regiões sombrias de nossa existência.
Descobrimo-Lo presente nos nossos “infernos interiores. As profundezas de nosso ser se iluminam, e tudo quanto foi reprimido, recalcado, ferido... é tocado e assumido por Jesus e nos desperta para a vida.
É preciso descer, com Jesus, ao túmulo de nossa interioridade, transitar pelos espaços e dimensões não integradas. Só quem desce às profundezas de si mesmo é capaz de vislumbrar potencialidades de vida que não foram ativadas. É preciso morrer ao “ego”, “descer” aos “infernos” interiores e sociais para expandir a vida em novas direções.
“Descer” e “subir”, portanto, são imagens para descrever o processo de transformação realizado por Jesus morto, e também sepultado, no interior de cada um de nós.
Se com Ele quisermos subir ao Pai, temos primeiro de descer com Ele à terra, afundar os pés na nossa própria condição humana. Não podemos subir ao céu se não estivermos dispostos a descer com Jesus aos nossos “húmus”, às nossas sombras, à condição terrena, ao inconsciente, à nossa fraqueza humana.
Nós “subimos” a Deus quando “descemos” à nossa humanidade. Este é o caminho da liberdade, este é o caminho do amor e da humildade, da mansidão e da misericórdia.
O coração, a quem nada do que é “humano” lhe é estranho, alarga-se, enche-se do amor de Deus, que transforma e ressuscita tudo o que é humano.
Ao fazer, junto com Jesus Cristo, o caminho da “descida”, vamos ao encontro de nossa realidade e nos colocamos diante de Deus para que Ele transforme em amor tudo quanto em nós existe, para que sejamos totalmente perpassados pelo Espírito de Deus.
O evangelista João nos diz que Jesus, após sua crucifixão, foi colocado em um “sepulcro novo”.
O sepulcro representa a “passagem” entre o antigo e o novo. Ao ser fechado com uma pedra, no entardecer da Sexta-Feira Santa, encerrava-se um ciclo. Ao se abrir, na madrugada do domingo, inaugura-se um novo tempo, uma nova Criação. Os sinais estão ali, no ventre aberto da Terra. Sinais que podem ser mudos para nós e fazendo-nos deter no passado, ou podem ser umbral de novas significações.
Neste Sábado Santo, situemo-nos junto ao sepulcro, lugar onde tivemos os últimos sinais ou notícias d’Aquele que foi fiel até o fim. Ali podemos permanecer com as velhas interpretações ou podemos nos dispor a acolher a surpresa que irrompe, o novo que quebra o que é caduco e sem sentido.
“O Sábado Santo é o tempo de uma gravidez: podemos dizer de uma “segunda gestação” de Jesus Cristo. Se a “primeira gestação” de Jesus foi a entrada de Deus na carne humana, no Shábbat se gesta a divinização do ser humano e da história na carne de Deus. O sepulcro é o ventre da terra onde foi sepultado o cadáver de Jesus. Nesse corpo inerte, torturado e deformado, acontecerá uma metamorfose. Ali a matéria se divinizará. Toda a criação, contida na corporeidade de Jesus, é chamada a ressuscitar. O Verbo se fez carne para que a Carne se divinize.
Tudo isso acontecerá secreta e simbolicamente entre o Shábbat e a alvorada de uma nova criação. A terra está ameaçada e grávida de ressurreição.
O Sepulcro era novo, dizem os relatos, como virgem era o ventre de Maria. Disponível, inocente, livre. O vazio como possibilidade, como fecundidade: “Feliz tu, cheia de graça, porque está vazia de ti mesma. Teu espaço interior te faz matriz do Verbo, da Palavra pela qual Deus se historiza”.
Assim como as entranhas de Maria albergaram o primeiro nascimento de Jesus, as entranhas da Terra e da história albergam as sementes de seu segundo nascimento.
O sepulcro é uma manjedoura de vida nova, de humanidade inaugurada por uma Presença nascente. Tudo está grávido de ressurreição”.
(Javier Melloni – El Cristo interior – Herder).
Textos bíblicos: Jo 19,38-42 Mc 15,42-47
Sábado Santo ajuda a dar sentido à solidão: há solidão vazia, que deprime, mas há solidão (solitude) que nos faz ter acesso às dimensões desconhecidas de nossa vida... As experiências de fracasso, de crise, de desolação... ativam outros recursos e nos motivam a purificar nossa adesão a Deus.
Santo Inácio de Loyola nos convida a passar este dia na casa de Maria, em comunhão com seus sentimentos e sua esperança.
É a única que tem certeza de que a Vida do seu Filho não permanece na morte.
Sua atitude revela-se antecipadora da Ressurreição, assim como ela antecipou o primeiro “sinal” de Jesus nas Bodas de Caná.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.04.22
“Tudo está consumado!”
+ A oração de hoje é profundamente silenciosa: trata-se de acompanhar Jesus no seu caminho em direção ao Gólgota e sua morte na Cruz.
+ Silenciar o corpo, a mente, o coração... através dos “preâmbulos”: oração preparatória, composição vendo o lugar, petição da graça...
+ Antes de “fazer o caminho” com Jesus até à Cruz, leia as indicações abaixo, como motivação para a experiência:
Jesus, o Justo e Santo, foi Aquele que não ficou indiferente diante da fome, da doença, da violência e da morte... Seu modo de ser, suas opções, sua liberdade diante da lei, da religião, do templo, seus encontros escandalosos com os pobres e excluídos..., desestabilizou tudo, pôs em crise as instituições e as pessoas encarregadas da religião. Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos. Tornou-se um perigo a ser eliminado.
“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é conseqüência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.
Existem cruzes que são vazias, sem sentido, insensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida.
São cruzes impostas sobre nossos ombros ou sobre os ombros dos outros. São cruzes que nascem dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de vida; elas se fixam no passado, na morte... e nos deixam no túmulo.
Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus que leva a Cruz da fidelidade nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no desespero.
Na vida e missão de Jesus encontramos duas paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o fim.
A segunda paixão é a da cruz, imposta pelos poderes religiosos e civis. Ela não é fruto da opção de Jesus e nem faz parte da vontade do Pai. Ela é a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.
No grego, “cruz” é “staurós” e significa: prontidão, preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé...
Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou o “staurós”, ou seja, a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.
Assim entendemos a afirmação de Jesus: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com os outros, sobretudo com os mais sofredores.
Infelizmente, a história da espiritualidade cristã confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-staurós” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da renúncia... como se isso fosse agradável a Deus. A Paixão e Morte de Jesus foi “desconectada” de sua vida comprometida em favor dos pobres e sofredores, dando a impressão que só a “paixão de Jesus” é salvífica. Toda a vida de Jesus é salvação porque é vida que destrava vida e abre para elas um novo sentido.
Com isso, privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tal concepção desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, alienada, descompromissada...
Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus (a cruz patíbulo). Mas Jesus integra a “cruz patíbulo” e revela sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta Cruz assumida é também visibilização da salvação.
Mas o sofrimento não pode ser buscado nele mesmo; não tem sentido e não abre futuro esperançador.
Na Paixão e morte de Jesus, o Silêncio de Deus não é um silêncio vazio. É um silêncio eloqüente, que nos fala: revela, desvela sem dizer, mostrando uma vida que não necessita palavras, a vida de Jesus que é puro amor até o fim e que, por sua vez, desvela o puro Amor de Deus.
No silêncio do seu coração, coloque-se, em atitude contemplativa, diante da escultura do Crucificado; notemos que um de seus braços está crucificado e o outro está estendido, com a mão aberta para acolher quem d’Ele se aproxima. Quanta vida e comunicação silenciosa nesse gesto! Trata-se de um grito de amor, silencioso e cheio de comunicação.
Aquela mão estendida nos chama a depositar a nossa mão na sua e estar aí, em silêncio, um longo tempo.
Que nos transmite esta imagem? Não precisamos palavras, nem ritos, pois é um gesto que nos conecta, como um cordão umbilical, ao Crucificado que nos revela o caminho da doação radical: como viver nosso dia-a-dia? Como usar nossos recursos? Como conectar-nos com o coração de Deus, com o coração do planeta Terra e de toda a humanidade?
Podemos também sentir que essa mão estendida nos chama e nos envia; primeiro, nos chama a segurá-la e sustentá-la. E como se Ele dissesse: “aproxime-se e permaneça comigo, pois preciso abrir-lhe meu coração; sinta minha pulsação e deixe seu coração pulsar no ritmo do meu; una-se ao meu coração, carregado de amor, e prolongue-o através do seu coração”.
E tudo acontece no silêncio; um silêncio que nos enche de vida, de paixão partilhada, de compaixão, de solidariedade... No fundo desse silêncio nos encontramos com a mão aberta de um moribundo que nos ama e que é revelação do rosto do Deus vivo e feito carne entre nós.
A mão quente do Crucificado é a mão de todos os irmãos e irmãs violentados, vítimas da cultura do ódio e da morte; a mão do Crucificado que pulsa é a mão latejante de nossa Terra, violada e abusada pela ânsia do lucro de uma minoria aterradora.
O silêncio pode ser também a escuta do coração aberto da realidade, enquanto apertamos a mão que nos comunica o pulsar e o amor do crucificado.
Esse silêncio nos dignifica porque nos vacina contra os outros silêncios covardes e auto-centrados.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.04.22
“Compreendeis o que acabo de fazer? Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou.
Portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros”
+ Prepare sua oração, ativando uma disposição interna para viver o Mistério do Lava-pés.
+ Dê especial atenção às “adições”: lugar, posição corporal, pacificação interior, consciência de estar diante de Deus...
+ Faça sua oração preparatória, bem como a composição vendo o lugar, a petição da graça...
+ Mobilize seus sentidos para que eles o ajudem a fazer uma contemplação; os “pontos para a oração”, podem preparar o terreno interior para acolher o gesto ousado de Jesus no Lava-pés:
No gesto do Lava-pés, Jesus, antes de sua Paixão e com sua original sabedoria, nos oferece uma outra perspectiva de vida. Sem dúvida alguma, Jesus como Mestre era um provocador, no sentido etimológico da palavra, (provocar: chamar para frente, desinstalar), que motivava as pessoas a verem as coisas a partir de uma perspectiva diferente daquela que era habitual.
Desconcertante: exatamente assim foi Jesus; Ele foi um homem que viveu e falou de tal maneira que se revelou desconcertante para aqueles que o conheceram e se aproximaram dele. Jesus desconcertou sua família que o considerava louco; desconcertou àqueles que o acusavam de “blasfemo”, de “escandaloso”. Jesus desconcertou todo mundo, até o final de sua vida, que foi o mais desconcertante de tudo.
Desconcertou porque assumiu uma postura diferente frente ao contexto social, religioso e político no qual viveu. Jesus não se “encaixou” em nenhum grupo e deixou transparecer sua liberdade frente às leis, às tradições de seu povo, ao templo, aos poderes... Por isso foi incompreendido e rejeitado.
Desconcertante também foi o gesto de Jesus realizado na Última Ceia. O gesto do “lava-pés” tornou-se inspirador e provocativo para todo(a) seguidor(a); constitui um dos gestos mais expressivos da missão e da identidade daqueles(as) que exercem algum serviço em sua comunidade.
Lava-pés é revelação e ensinamento. É amor e mandamento. É gesto-vida, gesto-horizonte, gesto-luz... É gesto que nos ensina a olhar a vida sob outra perspectiva, pois nos mobiliza a fazer uma contínua travessia dos lugares que controlamos aos lugares onde não somos o centro.
Custa-nos muito modificar nossa perspectiva; estamos acostumados a um modo fechado de viver, com umas viseiras que não nos permitem captar a vida em sua plenitude e riqueza; com isso nos instalamos no já adquirido e conhecido e atrofiamos em nós o dinamismo que busca abrir a mente e alargar o coração à realidade que nos cerca.
Ver as coisas “por uma outra perspectiva” é muito mais instigante. Um ponto de vista novo, limpo e original é uma grande ajuda para uma vida sadia.
O que Jesus pretende, no gesto do “lava-pés”, é nos oferecer um novo ponto de vista, um novo ângulo, um novo ensinamento, fazendo-nos ver a realidade do outro como se fosse pela primeira vez, com um olhar límpido e uma atitude compassiva.
Rente ao chão e em contato com os pés dos outros, Jesus realiza uma mudança e uma amplitude de visão que lhe faz perceber tanto as riquezas e dons de cada um, como captar a desnudez, a fragilidade e as limitações das pessoas. E, olhadas a partir daí, Ele deixa transparecer que qualquer pretensão de superioridade ou domínio se revela como ridícula e falsa.
Nesse deslocamento a um “lugar entre tantos outros”, Jesus viu de perto e por dentro àqueles que eram considerados distantes e excluídos. Porque, para Ele, os maiores e os mais importantes são aqueles que, segundo nossos critérios, não são contados. O lugar em que Jesus decidiu se situar deu origem à “revolução nas relações pessoais”, que tanto nos sobressalta e ao qual tanto nos resistimos. Só o fato da possibilidade desse deslocamento se revela ameaçadora porque nos tira do terreno do conhecido e nos convida a descobrir novos significados que não coincidem com os que consideramos evidentes.
Com o gesto do lava-pés e ao deslocar-se para o lugar do servo, Jesus rompe a verticalidade e a relação senhor-escravo, os de cima e os de baixo, os de dentro e os de fora, inaugurando, assim, a nova ordem circular do Reino, onde ninguém é descartável.
Ali também Ele nos revela um rosto novo de Deus: o Deus cuidadoso e compassivo, identificado com os últimos e que a partir do último, serve, sustenta, universaliza, iguala, inaugurando, deste modo, a horizontalidade do Reino e denunciando toda hierarquia e pretensão de poder-dominação.
A verdadeira grandeza humana está na identificação com Jesus que se doa, sem por condições nem reservas.
Como aconteceu com Pedro, o gesto de Jesus no Lava-pés continua nos escandalizando, porque se há algo que incomoda é deslocar-nos até os últimos e nos colocar no lugar deles.
Não é comum deslocar-nos para o lugar do outro, sobretudo o outro que pensa e sente diferente. “Nós pensamos e sentimos a partir de onde estão nossos pés” (Frei Betto).
É tão natural perceber, delimitar, defender e fechar-nos no nosso próprio lugar. E isso o fazemos de maneira tão zelosa que nem vemos o que está para além do nosso próprio lugar.
São grandes os riscos de vivermos em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O nosso próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que fazemos.
Compreendemos claramente que o que ali estava em jogo, no Lava-pés, não era a humildade, nem sequer uma boa exortação para praticar a caridade. A intenção de Jesus foi muito mais longe, tão longe que Ele mesmo teve de perguntar aos discípulos aturdidos: “Compreendeis o que vos fiz?”
Em muitas culturas e tradições espirituais (como no Evangelho), o Mestre lava os pés dos seus discípulos. De um ponto de vista simbólico, “lavar os pés” de alguém é devolver-lhe a capacidade de sentir-se enraizado, é recolocá-lo de pé, ativar nele a autonomia para que possa dar direção à sua vida.
A palavra “pé”, “podos” em grego, está estreitamente relacionada à palavra “paidos”, usada para significar criança. Assim, um “pedagogo” é um especialista que cuida dos pés do ser humano, desde que cuidar dos pés de alguém significa cuidar da criança que está nele.
Eis a missão do(a) seguidor(a) de Jesus: ajudar as pessoas a se colocarem de pé, resgatando-as em sua dignidade para serem capazes de andar pelos seus próprios pés.
Não cabe ao cristão carregar as pessoas com seu paternalismo. Antes, sua missão é vê-las maduras, entrando por seus próprios pés na presença de Deus e assumindo o compromisso com a vida.
“Depois que lhes lavou os pés, retomou o manto, voltou à mesa e lhes disse: ‘compreendeis o que vos fiz?’” Jesus volta ao lugar em que estava antes, mas volta diferente.
Ele repõe o manto, mas não depõe a toalha-avental. Ele assume e visibiliza uma nova realidade que caracteriza o novo modo de ser e viver, que é próprio dos cristãos. O amor-serviço tem como primeiro símbolo o avental. O avental é o selo de autenticidade que orienta, credita e dignifica a autoridade que se faz serviço. A autoridade cristã nasce do serviço, se sustenta nele, só persevera servindo.
“Tal Cristo, tal cristão”: na vivência do serviço evangélico, somos chamados a vestir o “avental de Jesus”.
“Vestir o coração” com o avental da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, da presença atenciosa, do serviço desinteressado...
Jesus pede que a dinâmica iniciada por Ele tenha continuidade, seja progressiva e circular, partindo do meio para a periferia, a fim de atingir a todos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.04.22
+ Leia saboreando o relato evangélico de Jo 13,1-15
+ Na contemplação do Lava-pés, observe silenciosamente os gestos de Jesus. Todos os gestos possuem uma sacralidade própria, uma reverência, uma paz e calma especial. Não há pressa, não há agressividade, não há nada que possa dar a mínima aparência de algo que fosse obrigado.
+ Depois de contemplar com “todo acatamento” os gestos de Jesus, converse com Ele sobre a sua admiração e sobre o seu desejo de prolongar estes mesmos gestos no seu cotidiano.
+ Traga à memória as pessoas que você precisa lavar os pés...
+ Revele sua gratidão para esta experiência tão íntima e tão intensa.
+ Registre no seu caderno as “moções” mais fortes experimentadas na oração.
“Ao cair da tarde, Jesus pôs-se à mesa com os doze discípulos”
+ Prepare-se para viver este momento denso da Última Ceia; disponibilize todo seu ser (sentidos, razão, afetividade, coração) para “sentir e saborear” este Mistério.
+ Um cuidado especial com os preâmbulos: oração preparatória, composição vendo o lugar, petição da graça...
+ Leia os “pontos para a oração”: isso pode ajudar a aquecer o coração para viver mais intimamente o encontro com o Senhor que está às portas de sua Paixão.
Mais uma vez a liturgia nos convida a “fazer memória” desta Ceia tão especial. Jesus havia transitado por muitas refeições, participado de muitas mesas (especialmente com os pobres e pecadores) e agora Ele nos deixa uma “mesa” como “marca” dos seus seguidores. Mesa da partilha e da inclusão, mesa da festa e da comunhão.
É em torno a esta mesa que os(as) seguidores(as) de Jesus se constituem como verdadeira comunidade.
Ao “recordar” a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus, os cristãos se comprometem a prolongar os Seus gestos, atitudes, valores, compromissos... “Fazer memória” de Jesus junto à mesa é comprometer-se com a vida; é colocar a própria vida a serviço da vida.
Entre a traição de Judas e a negação de Pedro, Mateus colocou a instituição da Eucaristia
Deste modo, ele destaca para todos nós a inacreditável gratuidade do amor de Jesus, que supera a traição, a negação e a fuga dos amigos. O seu amor não depende do que os outros fazem por ele.
Jesus quer cear com os seus amigos e por isso precisam encontrar uma sala na qual haja espaço para estar juntos. O ritual pascal dá lugar aos gestos simples que se fazem entre amigos: partilhar o pão, beber da mesma taça, desfrutar da mútua intimidade, entrar no clima das confidências...
Jesus sempre buscou companhia; havia nele uma necessidade irresistível de contar com os seus como amigos e confidentes. Sua relação com eles vinha de longe: levavam longo tempo caminhando, descansando e tomando refeições juntos, partilhando alegrias e rejeições, falando das coisas do Reino. E continuará considerando-os como amigos, mesmo quando um deles irá traí-lo e os outros fugirão.
Nos evangelhos, nós encontramos pessoas que não faziam parte do grupo dos Doze e que revelaram uma presença que fez toda a diferença junto a Jesus. Viviam o verdadeiro sentido do seguimento, sem buscar prestígio, vaidade, poder, competição... Pessoas que se revelaram muito mais em sintonia com Jesus e sua proposta de vida do que os Doze. Uma delas foi a do homem do Evangelho de hoje: anônimo, mas deu sua contribuição decisiva e que ficou registrada na história; sua casa foi o lugar onde aconteceu a última Ceia.
Jesus era da Galileia, não tinha casa em Jerusalém. Nos dias da festa de Páscoa, a população de Jerusalém triplicava. Não era fácil para Jesus encontrar uma sala ampla para poder celebrar a Páscoa junto com os seus mais íntimos. Ele pede para os discípulos encontrarem uma pessoa em cuja casa decidiu celebrar a Páscoa. O Evangelho não oferece mais detalhes e deixa que a imaginação complete o que falta nas informações. Era um conhecido de Jesus? Um parente? Um discípulo?...
Aquele homem desconhecido, que abriu sua casa para Jesus, representa todos nós; cabe a nós mostrar o caminho do local da Ceia, cabe a nós preparar a mesa da partilha, abrir o espaço interior para acolhida, indicar o rumo que leva à casa do Pai. Orientadores(as) do povo de Deus, abrimos as portas da grande sala e a confiamos ao Mestre para que realize, ali, o imenso dom da Eucaristia, “como aquele que serve”.
Chama-nos a atenção, no Evangelho proposto para hoje, a maneira como Jesus indicou aos discípulos o local onde queria que a Ceia fosse celebrada. Ele mandou-os seguir um homem que encontrariam à entrada da cidade. Junto a personagens conhecidos nos Evangelhos, outros, sem rosto, nem identidade, nem prota-gonismo, surgem inesperadamente, deixando sua “marca”, como este desconhecido homem que emprestou sua casa para que Jesus e seus discípulos pudessem celebrar a Páscoa.
Anônimo perante a posteridade e seguido pelos que vinham detrás dele, este homem, de certo modo e do modo certo, serviu a Jesus como a Igreja deve serví-Lo, sem perguntar qual seria seu lugar à mesa.
O que teve lugar dentro de sua casa, transformada no mais importante templo material da história humana, seria mais do que suficiente para arrancar dele alguma expressão de vaidade capturada pelo evangelista. Mas não é isso que acontece com ele; oferece a casa sem perguntar quem viria celebrar a Páscoa, sem pedir garantias, sem cobrar aluguel pelo espaço; enquanto os sacerdotes e Judas pechinchavam o valor da vida de Jesus, este desconhecido, por pura gratuidade, oferece sua casa ao mesmo Jesus. Certamente, ele e sua família foram testemunhas desta ceia única e especial, e que será a marca de todo(a) seguidor(a) de Jesus.
Ontem o Evangelho falou da traição de Judas e da negação de Pedro. Hoje, fala novamente da traição de Judas. Apesar da convivência de quase três anos, nenhum dos discípulos ficou para tomar a defesa de Jesus. Judas traiu, Pedro negou, todos fugiram. Mateus, no Evangelho de hoje, quer ressaltar que o acolhimento e o amor de Jesus superam a derrota e o fracasso dos discípulos. Ele deixa entender que nós podemos romper com Jesus, mas Jesus nunca rompe conosco. O seu amor é maior do que a nossa infidelidade.
Estando todos reunidos pela última vez, Jesus anuncia quem é o traidor. É "aquele que põe a mão no prato comigo". Para os judeus, a comunhão de mesa, colocar juntos a mão no mesmo prato, era a expressão máxima da amizade, da intimidade e da confiança. Mateus nos indica que, apesar da traição ser feita por alguém muito amigo, o amor de Jesus é maior que a traição.
Que aconteceu no coração de Judas nessa noite da Última Ceia? Rodeado de um mundo de mistério, de um clima de bondade, de amor e salvação, e, no entanto, o coração de Judas está em outro lugar. Está impermeável à verdade que se celebra; está seco em seu interior, fechado ao mistério da graça.
Poucas experiências destroem alguém por dentro como a traição.
A traição que, à primeira vista, pode parecer ser prejudicial apenas àquele que foi traído, de maneira geral, vem acompanhada de um forte sentimento de culpa para o traidor. E ao sentir a culpa pela traição, a pessoa entra em conflito emocional; algumas caem até no desespero.
Aquele que traiu sofre, pois este não confia em si mesmo, não consegue acreditar que mereça confiança. O traidor condena-se à solidão e à culpa existencial, destrói-se e destrói todos ao seu redor, culpando o mundo por seu sofrimento; trai-se a si mesmo, torna-se, aos seus próprios olhos, um monstro, não merecedor de amor, o que o leva a trair mais ainda.
Se a pessoa trai a si mesma, ela fracassa em sua busca, frustrando-se na tentativa de realizar-se enquanto ser humano. E, na ausência de respostas, angustia-se mais, trai mais, atropela os outros que a amam, machuca a todos ao seu redor, procurando justificativas para seus atos e destruindo-se a si mesma em cada nova tentativa de ser amada.
+ Leia atentamente o relato do Evangelho indicado para hoje: Mt 26,14-25
+ Prepare-se para uma contemplação. Com a imaginação, faça-se presente à cena, indo com os discípulos para preparar o ambiente da Última Ceia.
+ Procure ativar todos os sentidos: olhe as pessoas da cena, escute o que elas dizem, observe o que elas fazem, saboreie o pão e o vinho dados a você por Jesus...
+ Participe, com alegria, deste evento único; deixe-se afetar por tudo o que acontece durante a refeição.
+ Faça um colóquio ao Senhor: converse com Ele sobre os sentimentos contraditórios que nascem da fidelidade d’Ele e da traição de Judas.
+ Termine a oração, dando graças a Deus por este momento tão intenso; se possível, registre os apelos, luzes, inspirações, que brotaram da oração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.04.22
+ Busque criar um ambiente propício para a oração deste dia: espaço externo, atitude interna, silêncio... para viver mais intensamente os “momentos finais” da vida de Jesus.
+ Faça a oração preparatória (de entrega), a composição vendo o lugar (a última Ceia), e peça a Deus a graça de participar dos sentimentos de Jesus, às vésperas de sua morte.
+ Leia as “indicações” abaixo como ajuda para “entrar em contemplação”:
Estamos na terça-feira da Semana Santa, às vésperas da execução de Jesus. Como ontem, somos convidados a participar de outra ceia de despedida. A ceia em Betânia foi rica em símbolos de amor, de amizade, de festa..., um esbanjamento de humanidade. A ceia de hoje (em Jerusalém) é marcada por uma comoção profunda, onde Jesus se vê traído, vendido, enganado e abandonado por aqueles que juravam fidelidade e amizade profunda. Esta noite, Jesus começou a sentir que estava sozinho. É o sentimento mais duro e doído que alguém pode passar.
Jesus está celebrando a última ceia com os seus discípulos; tinha acabado de lavar os pés deles e de ter falado do dever que temos de lavar os pés uns dos outros. Judas já tinha tomado a trágica decisão, e depois de receber o último pedaço de pão das mãos de Jesus, saiu para cumprir sua traição.
Enquanto Jesus está fazendo aquele gesto de serviço e de total entrega de si mesmo, ao lado dele um discípulo está tramando a maneira de como traí-lo naquela mesma noite. Jesus expressa a sua comoção e diz: “Em verdade lhes digo: um de vós vai me trair!” Não diz: “Judas vai me trair”, mas “um de vós”. É alguém do círculo da amizade dele que vai ser o traidor.
O anúncio da traição foi desconcertante para o grupo dos discípulos. Independentemente de qualquer cultura, a traição é sempre um ato abominável. De modo especial, entre pessoas cujas vidas estão vinculadas por laços profundos, e nas quais se deposita toda confiança. Isto explica a surpresa dos discípulos quando Jesus anunciou que um deles haveria de traí-lo. E essa surpresa foi maior, quando o traidor foi identificado com Judas, filho de Simão Iscariotes.
O evangelista João dirá várias vezes que se tratava de um ladrão. Logo, alguém de caráter duvidoso, de quem se pode esperar tudo. A traição seria apenas mais uma manifestação da personalidade doentia deste discípulo. Os evangelhos, em geral, referem-se a Judas como alguém que vendeu sua própria consciência ao aceitar entregar o Mestre por um punhado de moedas.
Uma coisa é certa: Judas estava longe de sintonizar-se com Jesus. Algo parecido acontecia com Pedro, que haveria de negá-lo. Só que este recuou e abriu-se à misericórdia do Senhor.
Mas, o que vem a ser a traição? Como ela se manifesta na nossa vida? Por que traímos a confiança do outro?
A palavra “trair” vem do latim “tradere”, que significa entregar, enganar, denunciar ou delatar.
Mas ela pode ser pensada também no sentido de “quebrar” uma ideia, um ideal, um objetivo, trazendo mudanças de planos, estratégias ou ideais.
O ato de trair implica romper um pacto que o sujeito fez com o outro e consigo mesmo. Trair é uma ação que implica conseqüências, e, quando se fala de relacionamento humano, envolve sofrimento e sensação de abandono, gerando um estado de desconfiança generalizada naquele que foi traído.
Judas está na ceia pascal de Jesus com os discípulos. Ceia que o Mestre preparou com cuidado, sem que escapasse nenhum detalhe. É uma ceia para amigos onde Ele vai revelar sua entrega, totalmente; esse é o sentido da Eucaristia: “memória” de uma entrega.
Mas Judas só participa do ritual, está ausente; permanece aí só por uns instantes, pois tem coisas a fazer, e desaparece sem ter presenciado o que ali aconteceu. Outros assuntos exigem sua atenção.
A ceia pascal não lhe serviu para nada: nem se surpreendeu, com seus maravilhosos detalhes, nem provocou mudança nele, porque, na realidade, não estava atento, nem sentia necessidade de mudar.
Há pessoas que sempre estão “ausentes” do grupo, da comunidade, quando se celebra algo importante; costumam ser pessoas muito “ocupadas”, mas que não comungam com a comunidade. De fato, só pensam em si mesmos e não sabem desfrutar com os outros de um momento festivo.
Sentimos pena de Judas, porque é um homem decepcionado com o chamado de Jesus e sua própria vocação. Não se sente como os outros, e nem sequer é tão espontâneo como Pedro ou os Zebedeus, que queriam ser importantes; ele não quer só ser importante, quer estar em tudo por cima dos outros. Está “amargo” porque Jesus não correspondia às suas expectativas como Messias e está perdendo o tempo com os discípulos em vez de prepará-los para a revolução e formar um grupo político, não religioso. Judas perdeu a admiração por Jesus.
Judas não compreende o gratuito, ou seja, o que recebeu de Jesus, as possibilidades de ser apóstolo e sair de si mesmo, entregando-se, doando-se... e tudo quer justificar a partir de seu próprio ponto de vista.
Judas não sabe participar e desfrutar de uma agradável refeição em companhia dos outros, nem se preocupa em agradecer a Jesus pela admirável ceia. Judas caminha para a decepção, a solidão e a morte. Abandona o grupo, sai à noite para alimentar seu “ego inflado”, sofre a decepção frente seus “falsos” amigos, vê que sua vida já não tem saída nem sentido.
No fundo é fraco, tira a própria vida, não faz dela uma entrega, como Jesus. Mas, a Eucaristia é o ato de comensalidade que vai além das traições e dos abandonos, das negações, das covardias e dos comportamentos hipócritas. Não se trata de excluir da Eucaristia os covardes e os traidores. Jesus não excluiu ninguém. Judas comeu do mesmo prato em que comia o próprio Jesus.
Jesus não impôs excomunhões. Respeitou a todos até o extremo; o respeito e o trato que Jesus manteve com todos foi, dessa forma, delicado, tolerante e respeitoso até o fim.
E isso, por uma razão muito simples: a eucaristia não é possível onde há exclusões, desqualificações, ameaças, reprovações, julgamentos...
+ Leia atentamente o Evangelho da liturgia de hoje: Jo 13,21-33.36-38
+ Comece a contemplação ativando todos os seus sentidos, para poder participar intensamente da Última Ceia.
+ Faça-se e sinta-se presente na sala da refeição pascal, como um “humilde servidor”: observe o ambiente preparado, a disposição da mesa, o jarro e a bacia para o lava-pés, os pães ázimos, ervas amargas, vinho...
+ À meia-distância, observe a seriedade do momento, escute as palavras de Jesus ao tomar o pão e o vinho... Sinta-se desconcertado quando Jesus anuncia que um do grupo vai ser o traidor.
Veja as reações dos discípulos, a tristeza de Jesus...
+ Diante de “Jesus traído”, recorde experiências pessoais de traição: quando foi traído? Quando traiu? Como se sentiu?
+ Passe um bom tempo nesta sala, onde está acontecendo um evento histórico e essencial para os seguidores de Jesus: a instituição da Eucaristia. Participe também você da refeição.
+ No final da oração dê graças por poder participar deste momento.
- Faça exame da sua oração e registre no “caderno de vida” os movimentos (moções) do coração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
12.04.22
Imagem: The Treachery of Judas - Andrey Mironov
“Jesus foi a Betânia...; lá, ofereceram-lhe um jantar” (Jo 12,1-2)
+ Prepare-se para a oração, criando um clima de silêncio e escuta amorosa.
+ Permaneça, por uns instantes, saboreando o silêncio do seu coração, pois onde há silêncio, aí está Deus presente.
+ Peça a Deus a graça de poder transformar a sua casa/comunidade em nova Betânia: casa da acolhida, da amizade, da partilha solidária, da convivência sadia...
+ Antes de “entrar em contemplação”, leia os “pontos” abaixo:
Para inspirar sua missão como seguidor(a) de Jesus, sinta-se conduzida pelo Espírito a viver Betânia, a ser Betânia, a assumir Betânia. Sinta-se convidado(a) a entrar na casa em Betânia: casa de encontro, comunidade de amor e coração de humanidade. Deixe-se inspirar por este ambiente humanizador, para prolongá-lo em seu cotidiano familiar, social, comunitário...
O relato evangélico em Betânia confere um intenso clima pascal à oração: a ceia é prelúdio da morte de Jesus, visibilizado pela unção que Maria fez em honra ao Mestre. Mas também é anúncio da Ressurreição, mediante a presença do Lázaro ressuscitado, testemunho eloquente da vitória da vida sobre a morte.
E foi neste ambiente de relações de amizade que Jesus encontrou a estabilidade e o ânimo para viver sua entrega radical.
Betânia é um lugar simbólico e instigante para a vida cristã; ela é o ícone de uma comunidade de seguidores(as); nela busca-se inspiração e motivação para viver a seguimento de Jesus na missão.
Buscamos Betânias, somos gratos quando as encontramos, sentimos saudades quando elas nos faltam... É um espaço de nutrientes e de alimento em sentido amplo: afeto, calor, cuidados, atenção, presença, ternura e contato.
Betânia significa “casa dos pobres” (Beth-anawim): nela, em primeiro lugar, habitam as pobrezas pessoais e comunitárias, a pequenez e a fragilidade; mas, também, onde as pobrezas de nosso mundo, da humanidade, têm lugar e tocam nosso estilo de viver, de nos relacionar, de nos mobilizar em nosso seguimento de Jesus.
Betânia é lugar da acolhida, da hospitalidade, da escuta, da amizade e do serviço, onde todos são irmãos(ãs) sentados(as) à mesma mesa, junto ao Mestre, em quem se centra a hospitalidade e a atenção.
Betânia é espaço educativo, onde todos expressam o melhor e mais original que há no interior de cada um; espaço de aprendizagem mútua, onde todos se enriquecem com os dons compartilhados. Em Betânia não aprendemos doutrinas, mas gestos humanizadores, gestos descentrados e carregados de vida.
Betânia é o templo onde Jesus percebe a presença e o agir de Deus nos fatos mais simples da vida cotidiana; Betânia é, para Jesus, um prolongamento de Nazaré, o lugar do cotidiano, do pequeno, do simples: o lugar da revelação.
Neste ambiente, já não há mais rivalidade entre as duas irmãs, Marta e Maria, mas colaboração, complementariedade e reciprocidade. Servem à mesa e ungem os pés. Juntas se fazem transparentes para algo maior que elas mesmas. Certamente Jesus se deixou impactar por aquilo que viu fazer estas duas mulheres. E Ele, como eterno aprendiz, vai prolongar os gestos delas na sua última Ceia.
Jesus se deixou fazer, para poder fazer isso com outros e quis tomar para si os gestos destas mulheres para fazer memória de sua vida. Agora é Jesus quem se mostra necessitado, e elas são as verdadeiras educadoras, pois expandem sua capacidade de cuidado e de ternura.
Preparar a mesa e ungir os pés: dois gestos que se complementam mutuamente; amor que se faz serviço, serviço que é feito com amor; amor e serviço vividos como unção.
Marta nos ensina que servir não é algo que acrescentamos à nossa vida, nem algo que seja mérito nosso; o serviço é a expansão natural daquilo que somos, a visibilização de nossa interioridade.
Maria pode ser considerada como um ícone da sensibilidade nova que o evangelho nos oferece; ela expande todo o seu afeto num gesto de enorme ternura para com Jesus: suas mãos acariciam os pés do Mestre e enxuga-os cuidadosamente com seus próprios cabelos.
Sua criatividade feminina encontrou no perfume um símbolo para expressar com grande delicadeza o que nesse momento seu coração transbordava. Maria investiu num gesto gratuito e desmedido, expressão de um amor exagerado. O perfume de Maria é o símbolo da vida e do amor da comunidade. É um amor que não tem preço. Aqui, no centro do Evangelho de João, a comunidade, reconstruída no amor, exala o bom perfume que enche toda a casa.
Na cena do jantar em Betânia, outro personagem aparece compartilhando a mesa com Jesus. Lázaro é um personagem pascal, um ressuscitado; presença silenciosa, não tem nenhuma ação a realizar. Lázaro é símbolo do humano pobre, enquanto necessitado e frágil, dependente... Ele pode representar os membros de nossas famílias e comunidades, marcados pela vulnerabilidade, enfermidade e idade avançada, carentes de ajuda e cuidado; mas ele pertence à casa, é companheiro de mesa com Jesus. Percebemos que não são suas ações, trabalhos, compromissos ou qualidades que fundamentam sua amizade com Jesus; podemos pensar que Jesus o amava “porque sim”, para além do que Lázaro pudesse fazer algo por Ele.
Frente aos enganos que acompanham com frequência nosso “fazer”, com suas tendências insanas, o caminho do seguimento de Jesus nos convida a fomentar o “ser” e o “estar” mais que o “fazer”.
Lázaro, “o passivo”, nos ajuda a reconhecer com alegria que, em nossa vida, tudo é dom gratuito e o melhor dela não depende de nosso esforço: é um presente do qual somos fundamentalmente “receptores”.
Mas, neste jantar festivo que os três amigos oferecem a Jesus, há um personagem que destoa: Judas. Ele não consegue entrar em sintonia com aquilo que está acontecendo durante a ceia; não compreende que em torno a Jesus tudo é gratidão e gratuidade; não compreende o gesto amoroso de uma mulher secando com seus cabelos os pés de seu amigo e derramando perfume sobre ele.
Judas aparece nos três relatos evangélicos destes dias (segunda, terça e quarta-feira). Não como protagonista, mas como contraponto, deslocado.
Há atitudes e gestos que estão mais além do valor monetário: a delicadeza com as pessoas, com os irmãos mais necessitados, a acolhida carinhosa, a companhia amigável... A vida de comunidade é feita de detalhes carinhosos, não de racionalizações e conveniências ao nosso gosto.
A entrega amorosa de cada dia revela seu verdadeiro sentido. Só o que brota do amor tem sentido na Igreja. A infinidade de cristãos que lavam os pés de Jesus nos pobres do mundo, enche “toda a casa” (a Igreja) de um extraordinário perfume.
- Como preparação para a contemplação, leia uma ou duas vezes o texto do Evangelho indicado para este dia (Jo 12,1-11).
- Com a imaginação, faça-se presente à casa em Betânia; procure olhar atentamente cada uma das pessoas (Jesus, Lázaro, Marta e Maria); sinta o clima de alegria e amizade; procure escutar o que elas dizem; observe as reações, gestos, acolhida... de cada uma das pessoas.
- Naquele espaço inspirador, deixe que eles lhe ensinem a descobrir a força sanadora da amizade, a amadurecer-se nas perdas, a tecer afetos em momentos de adversidade, a servir a partir do coração, a ungir com as mãos terapêuticas, expressão do amor oblativo.
- Sinta o perfume do frasco quebrado tomando conta da casa.
- Participe ativamente da cena, conversando, perguntando, ajudando a servir...
- Faça um colóquio com Jesus, falando do clima “pesado” que existe em Jerusalém, pois estão à procura dele para matá-lo. Permaneça aí, deixando-se impactar pelo clima humano reinante nesta casa.
- Finalize sua oração, dando graças por esta convivência amistosa.
- Registre no caderno de vida os sentimentos predominantes durante a oração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.04.22
“... alguns dos fariseus disseram a Jesus: ‘Mestre, repreende teus discípulos!’
Jesus respondeu: ‘Eu vos declaro: se eles se calarem, as pedras gritarão” (Lc 19,39-40)
- Entre em seu “santuário interior”, espaço sagrado, tenda de encontro consigo mesmo(a) e com Deus; prepare a “terra do coração” para receber a Palavra e que ela possa fecundá-lo(a).
- Comece sua oração, mobilizando todo o seu ser (corpo-mente-afetividade) para o encontro com Jesus que vive a fidelidade ao Reino até sua entrega radical.
- Faça uso dos preâmbulos: oração preparatória, a composição vendo o lugar, petição da graça...
- Antes de fazer uma contemplação, aqueça o seu coração com as “considerações” abaixo:
Jesus participava do sonho de todo o povo de Israel que via em Jerusalém a cidade da promessa de paz e plenitude futura, lugar onde deviam vir em procissão todos os povos da terra. A tradição profética havia anunciado uma “subida” dos povos, que viriam a Jerusalém para iniciar um caminho de comunhão e justiça e adorar a Deus no Templo, que estaria aberto para todos. Toda a cidade se converteria num grande Templo, lugar onde se cumpririam as esperanças dos povos.
Com sua entrada em Jerusalém, Jesus quis recuperar a cidade como lugar do encontro e da comunhão, como espaço da paz e da solidariedade..., desalojando aqueles que se fechavam a qualquer tentativa de mudança. Por isso, seu gesto provocativo e escandaloso de entrar na cidade montado num jumentinho, símbolo da simplicidade e do despojamento de qualquer pretensão de poder e força, causou violenta reação naqueles que se beneficiavam da estrutura política e religiosa da cidade.
Jesus entra em Jerusalém rodeado pelo povo simples. Este povo, escravo e oprimido, o aclama porque vê n’Ele uma luz de esperança, de vida, de libertação; escutou seus ensinamentos e viu seus feitos durante alguns anos; sentiu-se tocado pelas palavras de vida, de justiça, de amor, de misericórdia, de paz... Também viu seus gestos de cura dos enfermos, de defesa dos fracos, de oferta de alimento aos famintos, de reabilitação dos desprezados, de acolhimento dos marginalizados, de denúncia dos opressores...
Jesus quis continuar anunciando e realizando na cidade de Jerusalém aquilo que fizera na região excluída da Galiléia; quis também humanizar esta cidade para que ela fosse sol de justiça e paz para todos os povos. E nós, se queremos continuar percorrendo o caminho que Jesus abriu, temos de ser também buscadores de alternativas em nossos espaços urbanos. Vivemos em uma sociedade na qual parece que já não é mais possível outra economia, outra educação, outra política, outra justiça...; a impressão que temos é a de que é preciso nos resignar com o que nos é imposto, que não há alternativas, que só são possíveis pequenos retoques no sistema sócio-econômico-político que nos rodeia.
O Deus, presente nas cidades, é um Deus que nos chama e nos interpela a partir do reverso da história, a partir dos últimos e dos excluídos, a partir dos lugares ocultos, dos “outros-espaços” mais inspiradores.
Esta é a cidade que Deus deseja: uma praça de encontro, uma mesa celebrativa para todos, um espaço educativo que inspira. A praça é de todos e todos podem ter acesso a ela, todos podem circular livremente, criar relações e convivência, fazendo a experiência de serem aceitos e reconhecidos como humanos.
A mesa, no centro da praça, é lugar de hospitalidade, de festa e de memória, lugar de chegada e de inclusão da pluralidade e da diversidade.
O espaço educativo, aberto e inclusivo, ativa a criatividade, a construção do saber alternativo e a mobilização dos recursos e dos dons de cada um.
“Entrar na nossa Jerusalém” é comprometer-nos com uma cidade mais humana e humanizadora; a cidade que sonhamos e que queremos: a Cidade Nova. E o(a) seguidor(a) de Jesus tem em quem se inspirar.
A cidade é o lugar por excelência do discernimento, porque é o espaço de decisão onde se constrói o futuro comum. Lugar da política, da cultura, da educação, da saúde... onde se forjam as mudanças, a capacidade de criar novos modos de existir, de romper com as estruturas caducas que desumanizam e buscar o diferente, o novo, o desconhecido...
Nossas cidades devem ser o espaço das inovações, dos riscos, dos experimentos e da criatividade.
Nelas se encontra o lugar dos sonhos, dos desejos, da liberdade e autonomia.
“Cristificar” o espaço urbano é ter como meta a formação integral das pessoas; o ser humano deve ser considerado como ser em movimento, protagonista da mudança,
Vivemos, em nosso contexto urbano, o deserto assolado pelos ventos da pobreza, da exclusão, da violência cotidiana, da corrupção, da falta de educação... Ou seja, o deserto da perda do horizonte de sentido, da fragmentação cultural, com sua carga de rupturas de vínculos de pertença, onde custa reconhecer-nos uns aos outros, onde as identidades se confundem e as responsabilidades se esvaziam...
O mundo urbano é, certamente, área de missão da Igreja e dos cristãos. Sua principal preocupação deve ser a defesa integral da vida e de seu sentido último, o mundo dos valores éticos que iluminam o homem e a mulher na sua ação no mundo. Para concretizar essa missão, os cristãos devem assumir uma atitude testemunhal, tendo como proposta uma ética comunitária, fundada no valor sagrado da pessoa humana e de suas relações, sobretudo com o mais fraco e pobre como interpelação do Deus vivo.
Inspirados no “Divino Mestre”, “todos somos educadores e exercemos esse ministério o tempo todo”; todos somos chamados a ser guias e responsáveis uns dos outros nos desertos das grandes cidades. E guias para orientar, animar, motivar; testemunhas e garantidores de sentido.
Guiar no deserto da educação é desafiante e requer fortes doses de ousadia. Mas, acima de tudo, assumir o deserto é ativar, pessoal e comunitariamente, a esperança.
É preciso recuperar o sentido de educar como um ato vital de entrega para ajudar a construir ou resgatar vidas. Com a educação se trata de abrir possibilidades para que todos, desenvolvendo suas próprias riquezas, sejam capazes de viver em plenitude e com dignidade, de assumir com responsabilidade sua condição cidadã, de desejar humanizar e transformar sua realidade.
O(a) educador(a) na cidade, para tornar eficaz sua ação, deve estar sempre na porta de entrada, com o olhar voltado para as necessidades do interior das cidades. Sua função é ser “fermento na massa”.
É aquele(a) que ultrapassa todas as fronteiras, com uma alternativa sempre nova: a Boa Notícia. O Evangelho ilumina a vida das cidades e exige dos evangelizadores atitudes novas, propostas ousadas...
- Leia atentamente o Evangelho indicado para este dia (Lc 19,28-40);
- Prepare-se para fazer uma contemplação.
- Com a imaginação recrie a cena evangélica: a cidade de Jerusalém, o grande Templo, a diversidade de pessoas... Com a chegada de Jesus, montado em um burrinho e uma grande multidão, faça-se presente, procurando olhar as pessoas, escutar o que elas dizem, observar o que elas fazem...
- Em quê lugar da multidão você se encontra? Como reage diante do gesto de Jesus? Como você participa? Ou você fica olhando de longe, sem se comprometer...
Deixe-se conduzir pelo movimento dramático da cena...
- Faça um colóquio com Jesus, expressando sua admiração pela atitude ousada e corajosa dele. Fale com Ele sobre sua presença na cidade onde mora: desejo de ser presença inspiradora, profética, de compromisso com a construção de relações humanizadoras...
- Faça “memória” daquilo que é mais desumano na sua cidade: como você reage diante disso? passivo? suporta? denuncia? atua?... Relate a Jesus.
- Você participa de alguma instituição, organismo, Ong... que ajuda a humanizar mais a sua cidade?
- Faça uma “leitura orante” deste tempo de oração e registre os principais sentimentos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.04.22
“De madrugada, voltou ao templo, e todo o povo se reuniu ao redor dele.
Sentando-se começou a ensiná-los” (Jo 8,2)
O tempo litúrgico da Quaresma é um tempo privilegiado para nos deixar ensinar pele Mestre da Galileia; somos alunos(as) da escola da vida, centrados no ensinamento e na mensagem de vida de Jesus.
A imagem de Jesus educador atravessa os evangelhos. De fato, o cristianismo é um projeto de educação messiânica, uma escola de vida universal, fundada por Jesus na Galileia.
Seu ensinamento entrou em conflito com os representantes do judaísmo oficial, centrado no templo e na prática da lei, e com o poder romano, que não admitia um ensinamento diferente. Jesus foi perseguido e morto por seu magistério, mas sua mensagem foi recolhida e expandida pelos seus discípulos.
Jesus não fundou uma escola de especialistas, mas quis educar a todos os homens e mulheres, nas vilas e campos, nas sinagogas, no Templo ou em suas próprias casas. Ele não tinha nenhum doutorado na Lei judaica, não tinha nenhum Master em questões do Templo; não era um perito a quem consultar sobre as leis. Diferentemente dos mestres da Lei e dos escribas, cujo ensinamento estava centrado em “decorar” e conservar a Lei, o ensinamento de Jesus partia da realidade humana de sofrimento, exclusão, preconceito...
Jesus era Ele mesmo; seu único título era sua verdade, sua honestidade, sua bondade, sua capacidade de sanar a dor daqueles que sofriam e libertá-los dos maus espíritos que os escravizavam. Era a identidade de si mesmo, plena: a identidade entre o que dizia e fazia, entre o que era e o que ensinava.
Podemos afirmar que Jesus era um “pedagogo da vida”, um “mestre da vida humana digna”. Não tinha estudado em outra universidade a não ser a universidade da vida, do amor, da liberdade...
Jesus, o Grande Mestre, contemplava os rostos das pessoas e via, no interior delas, ricas possibilidades humanas, ainda latentes. Sua presença humanizadora reconstruía a humanidade ferida e abria sentido para sua existência.
No seu magistério, Jesus foi semeando humanidade, um conhecimento criativo e inspirador, que se fazia vida naqueles que escutavam e acolhiam sua palavra. Esta era a sua missão: ensinar aos homens e mulheres, para que fossem eles mesmos em liberdade, para que descobrissem e ativassem a verdade por dentro, sua verdade fontal, para que todos se guiassem e se ajudassem e, assim, fossem e vivessem em plenitude.
Frente aos sábios e entendidos, representantes do poder estabelecido, Jesus descobriu e cultivou a sabedoria de Deus nos pequenos que acolhem sua Palavra e se deixam transformar por ela.
O evangelho deste domingo nos diz que Jesus se encontrava na esplanada do Templo ensinando o povo, quando levaram até ele uma mulher surpreendida em adultério. De um lado, rostos dos fariseus e Mestres da lei, endurecidos pela lei, com pedras no coração e nas mãos; de outro, o rosto de Jesus, que transparece amor, compreensão, bondade. Suas mãos acolhedoras e seu coração misericordioso estão mobilizados para dar segurança e abrir nova possibilidade de vida à pecadora.
Uma “nobre” justificação era apresentada pelos escribas e fariseus e, assim, condenar uma mulher ao apedrejamento: “a lei” mata. Salva-se a lei, mata-se a pessoa.
A lei manda apedrejar; mas a lei não tem coração, não tem misericórdia; ela é fria, fixa no passado, condena e não oferece chance de um novo futuro.
É o eterno conflito do ser humano entre fidelidade à lei ou fidelidade ao coração. A fidelidade à lei prefere a morte do(a) pecador(a), prefere as pedras que ferem e matam; a fidelidade ao coração e ao amor prefere a vida do(a) pecador(a), prefere o abraço acolhedor que devolve a confiança e esperança de vida.
Partindo da perspectiva da lei, a mulher não tinha possibilidade nenhuma de viver; não havia saída nenhuma. Só a misericórdia poderia destravar a vida, colocar a mulher em movimento, arrancá-la do círculo legalista de morte e abrir para ela um novo e amplo horizonte de sentido.
A retirada de cena dos mestres da lei e dos fariseus é patética. É o sistema legalista e opressor que termina cedendo o lugar a uma nova relação, instaurada por Jesus, centrada na misericórdia. A mulher permanece aí, no centro, porque o sistema que decretava sua morte terminou. Agora, inicia-se um novo diálogo, entre Jesus e a mulher. Não é um diálogo inquisitório, mas uma oferta de salvação: esta mulher, humilhada e condenada por todos, envergonhada de si mesma, se encontra com Jesus que lhe diz: “Eu também não te condeno”. Desde modo, Jesus nos ensina que não se extirpa o mal eliminando quem o cometeu, mas oferecendo ao pecador condições de vida nova e plena. E a mulher, talvez, se sentiu profundamente amada pela primeira vez.
Jesus é o “pedagogo misericordioso” pois ativa nas pessoas as melhores possibilidades, riquezas escondidas, capacidades, intuições... e faz emergir nelas sua verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis...
A força criativa da sua presença misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos da vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe sempre uma possibilidade de vida nova nunca ativada.
O “princípio misericórdia” é o núcleo e a essência do Evangelho. E a misericórdia é o “amor em excesso”. Na misericórdia, Deus sempre nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, abrindo caminho a partir de nossas fragilidades. Só o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destravando-nos e abrindo-nos em direção a horizontes maiores de coragem, responsabilidade e compromisso.
A misericórdia constitui a resposta de Deus à nossa indigência. A misericórdia é expansiva, pois abre um novo futuro e desata ricas possibilidades latentes em cada um. Ela não se limita ao êrro e às fragilidades, mas impulsiona cada um a ir além de si mesmo.
Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano. A misericórdia, portanto, não só é a mais divina mas também a mais humana das virtudes. É aquela que melhor revela a essência do Deus Pai e Mãe de infinita bondade. É a que revela, igualmente, o lado mais luminoso da natureza humana. Por isso, ela é o atributo que mais humaniza as relações entre as pessoas.
Fundamentalmente, a misericórdia significa assumir como própria a miséria do outro, inicialmente como sentimento que comove, mas que, logo em seguida, leva à ação. A misericórdia parte das “entranhas” e se dirige instintivamente ao próximo na forma de presença, acolhida, compaixão, ternura e consolo. Misericórdia é exatamente: “ter coração” para o outro, dando preferência aos mais frágeis e limitados.
A misericórdia é a caridade que “toma mãos e pés”, ou seja, o amor que se expressa em uma ação decidida e generosa, capaz de transformar e libertar.
Ser presença misericordiosa é um “modo de proceder”, um “estilo de vida” que não está ligado a uma transgressão; é muito mais um estilo de bondade, compreensão, magnanimidade, estilo de quem não se fixa no que o outro merece, nem se escandaliza com sua miséria.
"Devemos ser presença misericordiosa como pecadores, não como justos”. A misericórdia é fundamentalmente uma mensagem de estima e confiança no outro, crer na sua amabilidade e bondade. Por isso, a presença misericordiosa é força que provoca no outro a redescoberta de sua própria identidade (uma pessoa amada e acolhida pelo Deus misericordioso).
Quem é misericordioso está convencido de que o irmão é melhor que aquilo que aparenta ser.
Texto bíblico: Jo 8,1-11
Na oração: Uma vez mais somos chamados(as) a aprender de Jesus, que sempre olha o que há de mais autêntico em cada pessoa, isto é, a imagem de seu Pai.
- Entrar no movimento da misericórdia nos humaniza e nos cristifica. Como seguidores(as) de Jesus, somos seu coração, seus olhos, suas mãos e seus pés juntos aos que mais sofrem rejeições, julgamentos, condenações...; somos “canais de misericórdia” por onde flui a Misericórdia e a Compaixao de Deus Pai-Mãe.
31.03.22
"...este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (Lc 15,32)
Lucas, o poeta da misericórdia, soube pintar com palavras a parábola de Jesus que tanto nos comove.
Por que a parábola do “Pai Misericordioso” nos comove e provoca tanta ressonância em nosso interior?
Evidentemente, a parábola fala dos nossos anseios mais profundos: de retornar de terras estranhas para nosso lar, de sair da insignificância para encontrar nossa essência, de deixar a morte para trás e voltar à vida. É o desejo que nos diz que, independentemente da situação em que nos encontremos e de quão perdidos estejamos, sempre é possível mudar a direção de nossa vida perdida, retornar e encontrar nosso verdadeiro lar.
Na realidade, a parábola deixa claro o que nos distancia e nos aproxima do nosso ser essencial.
Toda a parábola do “Pai Misericordioso” acontece entre dois polos: distanciamento e proximidade.
Quando Lucas escreve que o filho mais novo “partiu para uma região longínqua”, ele se refere a uma quebra drástica da maneira de viver, pensar e agir que ele recebeu como um legado sagrado através das gerações, e uma traição aos valores cultuados pela família e pela comunidade.
O “país distante” é o mundo no qual não se respeita o que em casa é considerado sagrado.
As consequências da ruptura com o pai serão a miséria extrema e a degradação máxima. Quando atravessou o limiar da casa paterna e deu as costas ao pai, o filho estava partindo para a solidão, para a alienação, para a perdição.
No início, parece que só o filho mais novo estava longe do pai e da sua casa: lá, numa situação de extrema miséria e morte, ele sente saudades da casa do pai e da presença do amor e da vida que ali reinava.
Mas, a volta do filho “distante” ressalta, inesperadamente, a distância do filho mais velho, o “perfeito”, que sempre esteve em casa e que servia ao pai de modo irrepreensível. Na realidade, porém, também ele vivia, sem se dar conta, como estranho e... distante.
O “filho mais velho” apresenta uma aparência de perfeição que camufla um medo de viver, uma falsa submissão, uma rejeição do outro, uma incapacidade para receber os dons do pai. Ele ignora que, para entrar na festa, é insuficiente não transgredir as leis, mas ter uma outra disposição do coração. Não é criativo, não assume nenhum risco. Percebe-se que ele não é feliz naquilo que vive: o peso da lei o torna uma pessoa amarga, cheia de ressentimentos, de julgamentos, de indiferença...
Por outro lado, o “retorno” do filho mais jovem deixa também transparecer a grandeza de um coração transbordante, quase inimaginável, de um pai absolutamente “surpreendente” e, “incompreensível”, no seu modo de lidar com os fracassos e limitações dos seus filhos.
Enquanto os filhos demonstram todo o seu “distanciamento”, o pai se aproxima, sempre mais, fazendo-os descobrir não só o fato de serem filhos, mas também de irmãos.
Para ambos os filhos, torna-se necessário percorrer a estrada do “retorno reconstrutor”, não só para a redescoberta do próprio pai, mas também, da própria dignidade e da verdade sobre si mesmos.
O filho mais novo, decidido a uma realização pessoal e autônoma, distancia-se daquela casa, onde tudo parecia ser muito tranquilo e monótono. No entanto, quando se encontra em estado de completo abandono, com a ameaça da morte diante dele, volta, em seu coração, a lembrança de casa e a saudade da segurança, que lá podia encontrar com abundância. Enquanto estava mergulhado nas trevas da morte, a luz da vida, finalmente encontra espaço nele.
Então a lembrança se torna decisão; a decisão... caminho, retorno... aproximação. No momento de maior distanciamento e solidão, esse filho se dá conta, em seu íntimo, da proximidade da ternura e do amor do pai. A centelha que ilumina o caminho, que conduz à liberdade e à vida, se manifesta precisamente nas trevas da derrota, da morte, da falência, da miséria...
A lembrança e a saudade da casa do pai se tornam caminho no coração do filho distante, exatamente no pior momento da sua existência: ele não tinha mais nada, nem dignidade e nem comida para sobreviver.
O fracasso, a impotência, a limitação... podem se tornar momento regenerador e inédito: o encontro do caminho da liberdade e da vida. À luz da misericórdia, o fracasso, a derrota, a ferida... se revelam como bênção e uma ocasião privilegiada para a quebra do “ego inflado e autosuficiente”.
Na solidão e na indigência, o filho, que estava “perdido”, contemplou o rosto amoroso de seu pai e encontrou a força para levantar-se e ir bater à porta de casa.
Aquele filho que antes era “pedra de tropeço” agora se torna “pedra angular”, sobre a qual se derrama a misericórdia gratuita do pai e sobre a qual se constrói uma história nova, que envolve todos os que vivem naquela casa.
Os dois filhos, apresentados a nós nessa parábola, têm trajetos fundamentalmente distintos; contudo, possuem em comum o fato de não conhecerem de verdade o Pai e o fato de não terem nenhuma consciência das consequências de suas rupturas. Um, está seguro de saber o que quer: partir, estar em outro lugar. O outro, tem a certeza de estar no caminho certo: o dever.
Ambos perderam o caminho do coração. Um, esqueceu-o; o outro, endureceu-o.
Nenhum deles tinha vivido uma relação sadia com o pai: nem aquele que partiu, nem aquele que permaneceu a seu lado. Ambos perderam a sua fonte e não recebiam mais a água do amor. Não eram mais iluminados a partir do coração; tornaram-se cegos. Caminhando dia e noite, vão tropeçar: um, na desordem; o outro, no excesso de ordem.
O fracasso do filho mais novo e sua volta imprevista abalarão a ambos; um será sacudido pela tristeza, pelo fracasso, pela humilhação; o outro, pela revolta, pela explosão de uma raiva reprimida há muito tempo. O retorno foi um acontecimento revelador, para os dois, de um possível ponto de partida para uma nova vida, de uma ocasião oferecida para a recuperação da dignidade de filhos.
“E foi ao encontro de seu pai”. O filho mais novo muda de direção. Vira-se, dá meia-volta, abandona o caminho de morte e decide não cuidar mais dos porcos. A memória da misericórdia do pai o torna capaz de colocar-se a caminho. Não se imobiliza mais na infelicidade, no vitimismo, na culpabilidade estéril: é o tempo da determinação, da opção em favor da vida e da comunhão.
O filho pródigo reencontra o movimento da vida. Sabe tirar proveito de um acontecimento catastrófico. Decide retomar o caminho de casa a partir do estado em que se encontra, mesmo não tendo uma clara compreensão de tudo, mesmo quando sua preocupação primordial é a sobrevivência. Está pronto para assumir esse retorno sem glória, pois agora é livre. É iluminado por um desejo encontrado no fundo de si mesmo: “levantar-me-ei e irei ter com meu pai”. Renuncia às antigas vestes, entra numa vida renovada, pois percebe a possibilidade de dar um passo em direção à vida.
É então que vai viver, nos braços do pai, o encontro que irá fazer dele um filho. Quebra-se o seu coração autosuficiente, e ele está pronto a deixar-se moldar. A misericórdia do pai o reconstruirá como filho.
Segundo o texto evangélico, o pai não diz uma única palavra ao filho no momento em que o acolhe.
Ele deixa transparecer seus sentimentos através dos gestos: corre ao seu encontro, abraça-o e cobre-o de beijos. Não há aqui o menor sinal de rejeição ou repreensão. Antes que o filho diga algo, o pai é acolhida total, compaixão visceral, perdão incondicional.
O relato evangélico acentua, em primeiro lugar, a compaixão e a ternura sentidas pelo pai.
Ele viu o filho no caminho de volta para casa “quando estava ainda longe”. Na verdade, não tinha deixado de esperá-lo, com o coração e com os olhos, desde o dia inesquecível em que o filho saíra de casa. Este tinha, sim, partido; mas nunca tinha se afastado do afeto, do amor sofrido do pai, que contemplava todos os dias, com sua vista cansada e com os olhos do coração, o caminho percorrido pelo filho, na esperança de vê-lo voltar.
Texto bíblico: Lc 15,1-3.11-32
Na oração: Diante do Pai Misericordioso, perguntar a si mesmo:
- o que em mim está “perdido”, “distante”, “isolado”...?
- o que em mim é “dever”, “ressentimento”, “legalista”...?
- o que em mim é acolhida, compaixão, proximidade...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.03.22
Imagem: Rembrandt -
“Vou cavar em volta da figueira e colocar adubo” (Lc 13,8)
Temos perdido as raízes? Como conectar-nos com elas? Quê raízes nos alimentam? Onde estamos enraizados? Quais são as raízes que nutrem atualmente nossa vida? São as melhores?
Enraizamento, fincar raízes, viver da profundidade das raízes... O “novo” vem das raízes, vem de baixo, da base, do chão da vida. É preciso relançar uma nova radicalidade. Viver a partir das raízes, projetar a partir das raízes, criar a partir das raízes. Quaresma é tempo para colocar novo adubo e fortalecer as raízes; e viver o tempo das raízes para ser presença “diferenciada”, “enraizados” na realidade cotidiana.
“Descer” às raízes é uma oportunidade privilegiada para nos descobrir e conhecer nosso reino interior, para encontrar nossos recursos mais nobres e assim experimentar a transformação.
O caminho para uma nova qualidade de vida passa pelo encontro com as próprias raízes. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido.
Este é o caminho da espiritualidade que brota do húmus; “descer” até o fundo, mergulhar nas dimensões mais profundas onde estão escondidos os “tesouros” que dão significado e sentido às nossas vidas.
Vivemos um contexto social-político-religioso marcado por um profundo desenraizamento, onde somos mobilizados a viver em mundos “sem raízes”, em espaços criados pela tecnologia, comunicando-nos através de relações virtuais com pessoas distantes, desconectando-nos do nosso próprio chão existencial; no emaranhado das imagens e sons perdemos a noção daquilo que é essencial e decisivo para a vida; vivemos na superfície dos acontecimentos e de nós mesmos; esvaziamos a consistência interior e fundamento sobre o qual se apoia a nossa própria vida; congelamos toda proximidade e relação com o outro; petrificamos todo compromisso com as causas mais nobres...
Desenraizar-se é desumanizar-se.
A “nova radicalidade” é a maneira original de seguir a Jesus. É uma radicalidade amável e expansiva, porque quem chega às raízes descobre-se implantado na natureza humana, naquilo que todos compartilham e, por isso mesmo, descobre-se e sente-se enraizado no Outro.
Ninguém pode viver sem raízes, pois não se sustentaria de pé. Quando perde suas raízes, o ser humano se atrofia e fica privado de algo decisivo, essencial: de uma fonte de vitalidade.
Superfície significa aqui o esquecimento da raiz, significa viver na distância da vida, desconectado da fonte interior, desarticulado e ocupado com o que não é essencial. Muitas pessoas passam pela vida assim, distraídas como turistas, como “voyeurs”, que consomem, sem descanso, paisagens e imagens de si mesmas, cujo olhar está sempre ocupado com as vitrines ou o próprio umbigo e assim nunca repousam, nunca chegam à raiz de nada.
Jesus, o “homem enraizado” em seu povo e sua cultura, traçou seu caminho em parábolas.
No evangelho deste domingo Ele usa a imagem da “figueira estéril” que não recebera o nutriente necessário. A figueira é uma das árvores mais comuns na Palestina e seu fruto, muito apreciado, é abundante. As flores da figueira são um sinal da primavera. “Sentar-se debaixo da videira e da figueira” é uma expressão proverbial da paz e serenidade da vida no campo (cf. 1Rs 5,5; Mq, 4,4; Zc 3,10).
A isso, precisamente, aponta a parábola da figueira plantada no meio da vinha. Ela também destaca a paciência do vinhateiro. Apesar de “levar” três anos sem dar frutos, o vinhateiro continua confiando nela, ao mesmo tempo que lhe oferece todos os cuidados com esmero: “vou cavar em volta dela e colocar adubo”.
Jesus quer destacar a paciência divina, porque compreende e respeita o momento e o ritmo de cada pessoa. Conhecedor do coração humano, sabe dos condicionamentos de todo tipo que pesam sobre ele: sofrimentos pendentes ou não elaborados; vivências não integradas; feridas não “processadas”; mecanismos de defesa ativados ao longo da vida para poder sobreviver; ignorância básica de quem é e como quer viver...
Precisamos tempo e paciência para crescer em lucidez e em consciência, assim como em liberdade interior, frente aos próprios medos e necessidades, para podermos ser coerentes e fiéis ao melhor de nós mesmos.
A partir dessa fidelidade, tudo começa a adquirir sentido: abrimo-nos a quem somos e vamos construindo relações harmoniosas. Isso é o que significa, segundo o evangelho, “dar fruto”.
Numa chave de leitura interior, a parábola da figueira ativa a virtude da esperança que alimenta, dá sentido à nossa existência e ilumina as profundezas de nosso ser cristão. Na vivência do evangelho, a terra interior também pode ser cavada e adubada, através de diálogos e do encontro com nossa verdade pessoal.
A parábola da “figueira” toca o nosso “eu” mais profundo; é preciso escutá-la e deixá-la ressoar em nosso coração, a terra do nosso campo interior que é cavada e fertilizada. Mas a parábola não só alimenta a esperança; ela também nos desafia a corresponder ao “divino agricultor”, dando frutos.
Talvez tenhamos que parar de exigir certos frutos da nossa árvore; basta os frutos menores ou a sombra que a árvore providencia.
Escavar a terra é o primeiro requisito a ser cumprido para que a árvore interior dê fruto. O segundo é o adubo, que pode ser símbolo para a atenção e o amor, que nos fazem bem e podem nos conduzir ao florescimento e frutificação da nossa árvore. Normalmente, usamos esterco para fertilizar a terra, o esterco da nossa própria biografia pode ser usado como adubo.
Dia após dia, o agricultor leva o esterco ao campo, e, após um ano, o campo dá seus frutos. É uma imagem consoladora, pois, justamente aquilo que consideramos o esterco da nossa vida – os fracassos, as feridas, as derrotas, as fragilidades – se torna o adubo para a nossa árvore da vida e a faz florescer.
A questão está em como cavar, que adubo depositar e que frutos esperamos alcançar. É importante cavar para sanear as raízes, nossas raízes mais profundas onde está a força de Deus vitalizando nossa existência; o alimento, talvez seja conectar mais com a mensagem de Jesus, com o Evangelho e entrarmos em sintonia com o Deus da Vida. Os frutos, sem dúvida, terão mais a cor e o sabor da visibilidade, da ousadia, da liberdade, da denúncia daquilo que atenta contra a dignidade humana, de atrever-nos a abandonar o rotineiro e gerar novas formas de viver o Evangelho nestes tempos tão conflitivos.
Deus é o “paciente Cuidador” e nos alcança na medida em que nos abrimos à sua ação; Sua presença expande e multiplica o melhor de nossa vida. Ao contrário, quando permanecemos reclusos na identificação com nosso ego, irremediavelmente, dia após dia, nossa existência se atrofiará e se empobrecerá.
É fora de dúvida que, dentro de cada um de nós, continuam existindo “figueiras estéreis”, experiências com pouca profundidade, vivências asfixiantes e atrofiantes... que limitam a liberdade de Deus em atuar em nós. Mas, o ponto de partida é que comecemos por reconhecer nosso terreno interior, reconciliando-nos com ele, abraçando-o com humildade. É no meio da “vinha” que está situada nossa “figueira”.
Desse modo, ao crescer em unificação – integrando também os aspectos mais obscuros e vulneráveis de nossa própria vida -, um bom “húmus” estará se disponibilizando e constituindo a “terra boa” onde a figueira crescerá por si mesma e dará frutos. Devemos descobrir, em cada um de nós, o que atrofia, limita e bloqueia o fluxo da seiva que brota das profundidades de nossa terra interior.
Texto bíblico: Lc 13,1-9
Na oração: Uma vida que se enraíza, é uma vida firme, consistente. Por outra parte, as raízes na planta, são as que se introduzem na terra e crescem em sentido contrário do tronco, servindo-se como sustentação.
Graças a elas, a planta pode absorver o alimento necessário para seu crescimento.
- o que está “estéril” em sua vida?
- quais são e onde estão as raízes onde seu coração se alimenta? Quais raízes precisam ser sanadas, adubadas... para que deem frutos?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.03.22
Imagem: pexels.com
“Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência...” (Lc 9,29)
Para viver com mais intensidade o caminho quaresmal, a liturgia deste domingo nos apresenta o relato evangélico que nos dá uma luz para continuar avançando bem orientados. Caminhamos para a vida, para a essência de nosso ser, para a comunhão com tudo e com todos. Precisamos, de tempos em tempos, de um “Tabor”, como parada estratégica, para “sentir e saborear” a presença próxima e amorosa de Deus Pai que nos transforma, nos transfigura e deixa ressoar em nós sua instigante voz: “este(a) é o(a) meu(minha) filho(a), o(a) Eleito(a)”.
Voz que nos desperta e nos faz tomar consciência de que há possibilidade de “ir mais além”, ao essencial de nosso ser. A experiência da Tabor nos arranca do caminho rotineiro e nos abre para um horizonte maior. Podemos reconhecer que a nós também nos foi dado o “gene” da transfiguração, que é força que nos move continuamente a não nos deixar determinar pela nossa auto-imagem, pela aparência, e sim, centrar nosso olhar n’Aquele que é pura transparência do Pai.
Trata-se de eleger entre continuar cuidando do exterior (as roupagens, os aplausos momentâneos, a presença nas redes sociais, o número de seguidores que temos...) ou cuidar dessa outra “dimensão” que nos conduz ao mais profundo, que nos tira do caminho estreito e repetitivo para nos fazer descobrir Aquela presença que nos transfigura e transfigura a realidade de nosso entorno.
O relato da “transfiguração” de Jesus se situa expressamente em um contexto de oração. É ali onde, através da luminosidade do seu rosto, Ele deixa transparecer algo da sua verdadeira identidade.
Por isso, na transfiguração, a humanidade de Jesus se revela como pura transparência do Pai. Ou seja, o que há de divino em Jesus está em sua humanidade. Só no humano transparece Deus.
A Transfiguração está nos dizendo quem era realmente Jesus e quem somos nós. Ela nos revela também nossa identidade e nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade. Por isso, uma pessoa transfigurada é uma pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano é transparência de Deus. Em outras palavras, a vivência do humano nos diviniza.
A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Transfigurar é descentrar-se e expandir-se na direção do outro.
A Transfiguração nos possibilita cultivar um “olhar” que sabe ver em profundidade, descobrindo em cada ser humano, para além de suas aparências, um ser transfigurado, porque somos capazes de vê-lo em sua beleza e bondade originais; um olhar que sabe se deixar impactar por tudo aquilo que nos cerca e é capaz de ficar assombrado diante do Mistério.
O Tabor não só é o lugar do encontro íntimo com o Senhor; implica também o encontro com o melhor de nós mesmos (nossa identidade); a Montanha nos “transfigura”, revelando nosso ser essencial; no silêncio do monte poderemos perceber nosso verdadeiro rosto, iluminado por Aquele que se deixa “trans-parecer” em tudo. “O evangelho é um itinerário para abrir com profundidade a interioridade humana” (Rovira Belloso) e nele vemos como Jesus promove o retorno ao interior; o mistério da transfiguração nos des-vela e nos move a ultrapassar nossas “falsas imagens” e encontrar-nos com a luz que nos habita. Podemos “entrar” em nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, de transparência, de divino.
Transparente é um modo de ser; a transparência faz referência à luz, à vida interior, ao conhecimento próprio, ao desejo de deixar-se ver, à pureza de intenção, à simplicidade e ao deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito de Jesus.
A experiência orante no alto do “Tabor” é o meio privilegiado para voltarmos a mergulhar continuamente nessa Luz de onde procedemos. Entramos na corrente universal, até a Vida de Deus. Orar é deixar-nos conduzir até às profundidades trinitárias onde Deus nos forma e nos configura à sua imagem. Não devemos ficar surpreendidos se, interiormente, sentirmos uma plenitude de alegria e de superabundância.
A oração ajuda a evangelizar até as profundidades do nosso ser. Ela é o caminho interior do Tabor que nos faz chegar até nosso próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado mais positivo de nós mesmos, mas o próprio Deus. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde mergulhamos no silêncio, à escuta de todo o nosso ser.
Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser. Deus libera em nós as melhores possibilidades, recursos originais, riquezas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis...
Assim, a divina pedagogia evoca a verdade do ser humano, comporta uma pro-vocação, uma proposta que o move a potencializar ao máximo seus recursos internos, revelando aquilo que ele é capaz...
Deixar-se “iluminar” pela Luz do Tabor significa uma autêntica experiência e que tem efeitos explosivos: é novidade que surpreende e às vezes assusta, cria novas expectativas e solicitações, traz clareza e mobilização, pede a mudança dos costumes e dos velhos estilos de vida, leva adiante o equilíbrio da pessoa em direção a horizontes imprevisíveis, abre uma nova fase de vida...
Situados no alto do nosso Tabor atingiremos experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconheceremos, através do murmúrio dos ventos, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que darão sentido e consistência ao nosso viver.
A subida ao Tabor nos potencia, libera energias e recursos escondidos, torna-nos criativos, coloca-nos em movimento, tirando-nos de nossa acomodação...
“Subir” o Tabor é deixar-nos conduzir pela presença do Espírito de Jesus, para “descer” com mais vigor e ânimo ao vale do cotidiano e ao compromisso na prática do bem e da justiça.
Tabor significa sair de nosso pequeno e limitado mundo cotidiano, de nossa visão estreita das coisas, da vida corriqueira do vale...; significa alargar nossa visão da realidade, abrir novos horizontes... Por isso, a transfiguração no Tabor implica ter “mais portas e janelas” em nossa vida interior.
O Monte Tabor nos oferece janelas que permitem ampliar nossa visão. Através delas purifica-se o ar denso, pouco respirável que geramos quando fechados em nós mesmos. As janelas nos situam em comunhão com a natureza e com a humanidade. Elas revelam aos outros algo original que é só nosso; elas apontam para a porta que se abre, para que os outros se aproximem e entrem em nossa vida.
O mergulho em nós mesmos, para além de nós mesmos, realiza a metamorfose que nos devolve à vida transfigurados pelo amor que nos habita e plenifica.
Texto bíblico: Lc. 9,28-36
Na oração: Para realizar-se e desenvolver toda a sua potencialidade, busque, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de seu ser, o núcleo original de sua personalidade. É no mais profundo de sua interioridade que você escutará o Senhor. Deixe-se invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.
- Só há um caminho para ter acesso ao Tabor: procure entrar em seu espaço interior; investigue e examine suas raízes nos recantos mais profundos de seu coração; sinta-se convidado(a) a despojar-se de suas medidas de segurança, a desnudar-se de todos os personagens e máscaras.
- Extraia de dentro de si uma resposta profunda, um sentido novo, uma esperança ousada...
- Construa sua vida de acordo com esta descoberta.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.03.22
“Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (Lc 4,1)
O primeiro domingo da Quaresma sempre apresenta o relato das tentações de Jesus no deserto, que ajuda a desvelar o sentido de sua missão, seu caminho, seu destino. É relevante o fato de que se vincule a ida de Jesus ao deserto após o batismo, sendo conduzido pelo Espírito.
O deslocamento de Jesus ao deserto está em profunda sintonia com a experiência vivida pelo povo judeu.
Foi no deserto que Israel aprendeu a descobrir e a confiar em Deus. Longe da segurança do Egito, emergiu o que havia no fundo do seu coração. Os profetas cantaram o tempo do deserto como tempo das obras maravilhosas de Deus. Foi no deserto que o povo de Israel sentiu profundamente sua pequenez e total dependência de Deus.
Não existiam caminhos prontos. Era preciso discutir, planejar, rezar, lutar e sonhar para fortalecer a caminhada. No fundo, o Êxodo foi um profundo tempo de discernimento coletivo, que desembocou numa radical opção pela liberdade, porque um povo só é livre quando pode decidir o rumo de seu caminhar:
Deserto: lugar da Aliança, escola da intimidade com o Senhor; expressão que, mais do que um determinado lugar, indica uma experiência forte de Deus.
Jesus, como todos os profetas, antes de assumir sua missão, foi conduzido pelo Espírito ao deserto. Frequentemente Ele recorria a esta experiência em meio à sua vida ativa: afastava-se para lugares solitários, confrontava a sua missão com a Vontade do Pai.
Todos os personagens bíblicos, todos os(as) santos(as) passaram pela experiência de deserto: peregrinação interior, confronto com a própria vida, comunhão com o Senhor, descoberta da própria missão...
“Eu o(a) levarei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração” (Os. 2,16).
Segundo os evangelhos, as tentações experimentadas por Jesus no deserto não são propriamente de ordem moral. Não se trata de uma eleição entre o bem e o mal. São tentações que apresentam maneiras falsas de entender e viver sua missão. O tempo do deserto foi, para Jesus, um tempo de discernimento sobre os melhores “meios” para viver seu messianismo. As tentações não diziam respeito ao “ser Messias” de Jesus; isto estava claro e fora confirmado pela experiência do seu batismo: “Tu és o meu filho amado”.
As tentações de Jesus aconteceram no campo das mediações: entre pensar em seu próprio interesse ou deixar-se conduzir pela vontade do Pai; entre impor seu poder como Messias ou colocar-se a serviço daqueles que mais precisam; entre buscar a própria glória e prestígio ou manifestar a compaixão de Deus para com aqueles que sofrem; entre evitar riscos para fugir da perseguição ou entregar-se fielmente à sua missão, confiando somente no Pai.
De fato, os meios apresentados pelo “tentador”, humanamente falando, são os meios mais eficazes que ninguém poderia imaginar: possibilidade de transformar as pedras em pão, o prestígio indiscutível de quem salta do alto do templo, sustentado pelos anjos e, para culminar, todo o mundo a seus pés.
Quem resiste a um homem com tais meios?
Todos seriam atraídos porque, em definitiva, teria entre suas mãos o poder total e o domínio absoluto.
Eis aqui a intuição e a genial proposta do tentador: salvar e libertar toda a humanidade, mas mediante o poder, o prestígio e a dominação. O tentador não pretende que Jesus se afaste de seu fim, senão que procure atingir esse fim, usando os meios que são exatamente o oposto da solidariedade.
Para a Liturgia, parece ser de uma evidência fundamental que a pedagogia quaresmal devesse começar por des-velar (tirar o véu) a desordem na afetividade. No caminho da vivência cristã, percebemos uma “aderência afetiva” (fixação afetiva) a coisas, posses, pessoas, ideias, cargos, poder, prestígio, status, ídolos, dependências.... que somada a outras, passa a constituir uma estrutura de “maus afetos” (“afetos desordena-dos”), esvaziando ou atrofiando o seguimento de Jesus
A Quaresma, nesse sentido, apresenta-se como uma pedagogia para aprender a ordenar nossos afetos”, libertar-nos dos afetos desordenados e assim percorrer o caminho do desejo mais profundo: estratégia centrada em Deus, leve e cheia de graça, uma aventura...
O desejo de poder, de possuir, de ser o centro (ego inflado) confunde nossa vida. E já não se trata mais de uma lição moral sobre o vício ou a virtude, mas do impacto psicológico e espiritual que se dá em nós pelo fato de nos sentirmos apegados a algo ou a alguém, com a consequente perda de liberdade e o perigo da dependência que esse apego causa. O apego às coisas e às pessoas impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o “fluxo” da vida, o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
“Diga-me o tamanho dos seus apegos, e eu lhe direi o tamanho do seu sofrimento”.
É necessário introduzir um princípio “ordenador” em nossa vida, que inspire todo o nosso ser e o nosso agir, até que a “afeição” se converta em identificação existencial com Jesus Cristo.
Esse novo objeto deve ter uma repercussão decisiva na configuração da vida. Isto é, somos chamados a modificar profundamente o mundo de valores, pensamentos, condutas...
É necessário, ao iniciar o percurso quaresmal, detectar os condicionamentos afetivos (amarras) que de fato limitam a nossa liberdade, bloqueando-nos diante da proposta de vida que Jesus nos apresenta.
O que está em jogo no “deserto quaresmal” é chegar a conhecer-se profundamente, encontrando a raiz do próprio ser nos afetos desordenados.
Esse conhecimento interior, profundo, é condição indispensável para poder dispor de si, em maturidade de liberdade. Sem ordenar os afetos o ser humano não é verdadeiramente livre. A “desordem” nos afetos produz em sua liberdade uma essencial falsificação: faz tomar como absolutos o que são coisas relativas.
Só ordenando os afetos a pessoa se situa diante de Deus, reconhecendo-O como Absoluto.
Há afetos organizados negativamente por acúmulo de “experiências negativas”. Para atingi-los, a pedagogia quaresmal coloca “cargas afetivas opostas” (pessoa de Jesus, sua missão, o Reino, ...)
Sabemos que não se pode suprimir (matar) os afetos; o que se pode fazer é mudar a orientação (“ordenar”) dos afetos, ou seja, reorientar as “aderências afetivas” de certos objetos ou pessoas para um horizonte de sentido: amor a Jesus Cristo e a seu Reino.
Nesse sentido, nossa quaresma torna-se um “estar com Jesus” no deserto, para, como Ele, dar a Deus o lugar central de nossa vida.
A quaresma é um tempo em que damos maior liberdade a Deus para agir em nós; é abrir espaço, alargar o coração para a ação de Deus. É tempo de reconstrução de nós mesmos (conversão), de retomada da opção fundamental por Deus e pelo seu Reino (maior serviço, mais compaixão, mais solidariedade...).
Nossos “apegos” se assemelham às construções à beira do rio que nos fixam num determinado lugar que nos parece confortável, desejável e seguro. Mas, se assim agirmos, afastamo-nos da correnteza da vida e não vai fluir em nós nem crescimento e nem progresso rumo à liberdade dos filhos de Deus.
A experiência de deserto passa a ser “tempo e lugar” de decisão, de orientação decisiva da vida, de enraizamento de nossos valores, de consciência maior da nossa identidade pessoal e da nossa missão... O mestre do deserto é o silêncio; o deserto tem valor porque revela o silêncio, e o silêncio tem valor porque nos revela Deus e a nós mesmos.
O deserto é o grande auditório para ouvir Deus; “solidão” cheia de presença. Ainda que sozinhos, sentimo-nos solidários, em comunhão com todos. O decisivo é “deixar-nos conduzir” pelo Espírito. Aqui não há engano.
Texto bíblico: Lc 4,1-13
Na oração: Temos muitas atitudes, posses, ideias, cargos, posições, bens... que consideramos ser Vontade de Deus; na realidade é tudo “projeção” de nossos medos, de nossa insegurança...
O desafio permanente é este: examinar as “coisas” que estão ocupando por completo nossa existência e “tomando conta de nós” a ponto de bloquear o fluxo da graça e da vida.
- Quais “tentações” estão travando sua vida, impedindo-o de seguir a Jesus mais livremente?
- Rezar suas “pulsões desordenadas” que atrofiam sua sintonia com Deus e sua abertura aos outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
03.03.22
Imagem: pixels.com
“Fala com sabedoria, ensina com amor” (Prov 31,26)
Mais uma vez somos convidados a viver a Quaresma como uma escola de vida. Nestes dias, ao entrar no deserto da aprendizagem, teremos a oportunidade de experimentar um novo modo de compreender a vida: ativar os recursos, dons, capacidades… e integrar os limites, fragilidades, crises…
Ensinados por Deus, a Quaresma poderá ser uma escola inspiradora para o resto de nossas vidas.
Com a cerimônia da “imposição das Cinzas”, toda a Igreja dá início ao percurso Quaresmal. Neste tempo litúrgico, inspirados pelo tema da CF2022, teremos a oportunidade de experimentar um modo diferente de viver, de nos deixar conduzir pelo Espírito, o Grande Mestre que “nos ensina com amor”. É preciso alargar o espaço no coração e na mente para acolher as “coisas novas” que Deus quer nos ensinar.
Em sintonia com toda as comunidades cristãs, somos chamados a viver o “tempo quaresmal” sempre de maneira nova e inspiradora. O centro de nossa vida é Jesus Cristo, sua pessoa, seu ensinamento, o mistério de sua morte e de sua ressurreição. O caminho do seu seguimento é sempre rico e surpreendente.
Muitas vezes, corremos o risco de viver o tempo litúrgico como uma celebração rotineira, algo já conhecido. Somos todos alunos na escola do seguimento de Jesus, constituindo a grande comunidade de aprendizes. Como alunos da “escola quaresmal” viveremos, em primeiro lugar, um deslocamento interno, mobilizando as nossas riquezas, despertando nossos desejos e reacendendo o impulso para uma identificação maior com o Mestre de Nazaré; em segundo lugar, viveremos uma travessia externa para alimentar um compromisso solidário e sermos presenças que fazem a diferença na grande escola da vida.
Tendo como inspiração o lema da Campanha da Fraternidade deste ano, “fala com sabedoria, ensina com amor”, seremos movidos a desatar todas as ricas possibilidades e recursos que querem se expressar e que se encontram no mais profundo de nossa interioridade.
Nesse sentido, a vivência quaresmal é uma verdadeira “escola de vida”, cujo aprendizado nos leva ao centro do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração da Trindade, dele saborear a seiva da “divina sabedoria” e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus.
A pedagogia da interioridade apresenta-se como uma proposta sempre atual, que favorece a redescoberta do mundo interior, ou seja, tudo o que se refere à dimensão do coração, das intenções profundas, das decisões que partem das raízes internas. O coração de cada um é habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; ele é a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde se encontram os dinamismos do crescimento, de onde partem as aspirações e desejos fundamentais.
A pedagogia da interioridade, portanto, possibilita viver a “sabedoria do coração”.
O Evangelho da 4ª. feira de Cinzas fala das “práticas quaresmais” da oração, esmola e jejum, onde nossas relações são iluminadas e questionadas pelo modo de viver e de proceder de Jesus. Tais “práticas” não são uma carga pesada sobre nossas costas, mais uma autêntica experiência de saída de nossa “ignorância existencial” para poder viver com mais sentido e inspiração.
Na escola da oração nos situamos diante do olhar compassivo do Senhor para poder nos conhecer mais em profundidade e colocar nossa vida em sintonia com o que Ele deseja para cada um de nós.
Na escola do jejum temos a oportunidade para aprender a integrá-lo, não como sacrifício vazio, mas por inspiração amorosa, ou seja, deixar o Senhor nos ensinar a jejuar de tudo aquilo que atrofia nossa vida: pré-juizos, intolerância, egoísmo, soberba, mentiras, ignorâncias...
Por fim, a escola da esmola revela-se como chamado a nos descentrar, a fazer da nossa vida uma contínua saída em direção aos outros, sobretudo os mais pobres e excluídos. O exercício da “esmola” libera os braços para acolher, alarga o coração para ser mais compassivo, movimenta os pés para uma maior prontidão no serviço, desperta uma presença inspiradora junto àqueles que estão abatidos e desolados.
Assim, o jejum, a oração e a esmola criam um clima favorável para nos “deixar educar por Deus”, para que nos tornemos mais humanos. “Educação divinizada” que se expande em múltiplas direções: consigo mesmo, com Deus, com os outros e com a natureza.
A vivência quaresmal revela-se, portanto, como um processo educativo, e isso acontece, em primeiro lugar, no mais profundo de cada um de nós, onde o verdadeiro Mestre faz do nosso coração sua “sala de aula”.
Como percurso espiritual, a Quaresma nos proporciona “sentir e a saborear” o modo como Deus se deixa encontrar pelo ser humano, como Ele “conduz” cada pessoa, sua maneira original de entrar em diálogo com cada um... Essa relação “Deus – ser humano” se revela como longo processo de aprendizagem, onde Deus é o verdadeiro “pedagogo”.
“Ser educado por Deus”: o princípio da divina pedagogia perpassa todo o percurso da Quaresma.
Inácio, que se deixou educar por Deus, afirma que Ele o tratava “da mesma maneira que um professor trata um aluno, ensinando-o” (Aut. 27)
A “divina pedagogia” possibilita “e-ducar”, no sentido de “e-ducere”: trazer para fora ou extrair o melhor e mais humano presente nas profundezas de cada um, a verdade e a essência de cada pessoa, para que consiga ter uma visão ampla de si mesma e realizar-se da melhor maneira possível, ativando seus recursos e potencialidades.
Na escola quaresmal, nossa atitude primeira é a de dar o maior e mais amplo espaço possível ao Mestre interior, deixando-nos conduzir por Ele em todas as circunstâncias, em todo tempo e situações da vida.
Tudo isso confirma que Deus é “o” Pedagogo. Ele nos conhece como ninguém e como ninguém sabe fazer emergir tudo aquilo que Ele colocou em nós como criatividade, imaginação, intuição, desejos...
A experiência de Deus como “o” Pedagogo não é uma experiência à margem daquilo que é a experiência da vida cotidiana. Experiência, conhecer por experiência, fazer experiência... A própria vida é uma grande experiência. E cada experiência pode ser uma experiência de Deus, um deixar-se “transbordar” e “surpreender” por Ele, de Quem provém toda iniciativa.
De fato, a experiência é a sabedoria da vida. S. Inácio resume essa intuição numa frase:
“encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”.
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Deus, divino pedagogo, vem ao nosso encontro e arranca nossa vida dos limites estreitos e atrofiados, expandindo-a em direção a horizontes inspiradores;
- quais as dimensões de sua vida que precisam se expandir, para viver com inspiração seu compromisso cristão?
- Nesse tempo quaresmal, você sente que sua vida necessita um novo salto de qualidade? Em que direção?... Qual é o seu estado de ânimo ao iniciar o percurso da Quaresma?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
01.03.22
“Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho?”
O evangelho deste domingo nos situa no mesmo cenário onde Jesus havia proclamado as bem-aventuranças. O Mestre da Galileia está ensinando a um amplo grupo de seguidores(as), buscando despertar neles(as) a radicalidade que o Reino de Deus pede, a partir de uma vida que se sabe sustentada pelas mãos providentes de Deus e aberta à bondade, ao encontro e à solidariedade.
O ensinamento de Jesus tinha começado um pouco antes com uma afirmação taxativa: “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados” (Lc 6,37). Depois da proclamação das bem-aventuranças e os “ais” contra aqueles que buscavam honras, riqueza e poder, Jesus vai proferindo uma série de afirmações que orientam o seu discipulado e revelam um “modo de ser e proceder” original e humano. Ele também adverte das armadilhas nas quais se pode cair quando alguém se apresenta como “juiz” que quer ser a referência para corrigir as limitações dos outros, afastando-se do bom caminho.
No discurso, encadeiam-se uma série de sentenças que alertam contra quem vive autorreferenciado e considera que só ele tem a verdade.
* Por quê somos tão rígidos, tão duros, tão insensíveis, tão julgadores...?
* O que nos faz ficar petrificados por dentro? Que forças internas nos mobilizam a ser o centro?
* Por que temos medo do desconhecido, daquele que pensa e sente de maneira diferente?
Em cada um de nós o instinto do julgamento está enraizado profundamente. Podemos dizer que todos nascemos municiados de uma cadeira de juiz. Há muitos que cultivam ardorosamente esta profissão e encontram ocasiões abundantes para praticá-la, submetendo-se, inclusive, a um horário esgotador.
Como proliferam os “tribunais ambulantes e permanentes”!
Tal atitude julgadora nos petrifica em todo o nosso ser, deixando-nos estagnados: emoção congelada, relações congeladas, imagem de Deus congelada, visões congeladas...
Somos submetidos ao grande risco de ficarmos imobilizados, emparedados em nosso corpo, petrificados em nossos pensamentos, em nosso coração e em nosso espírito.
Podemos estar muito retraídos, autocentrados, tensos... e isso nos impede viver com maior fluidez.
* Como passar do coração de pedra para a morada da fonte de água viva?
* Como libertar o nosso coração dos medos que nos levam a excluir e rejeitar os outros e fechar-nos numa fria rigidez?
* Como reencontrar, no nosso cotidiano, a fluidez que habita em nós?
No Evangelho deste domingo encontramos algumas expressões categóricas que nos movem a abandonar este ofício julgador, bastante perigoso e rompedor de relações. Há um apelo forte que nos convida a fazer em pedaços a cadeira de juiz que todos levamos presa às nossas costas.
No entanto, em muitos seguidores e seguidoras de Jesus vai amadurecendo, ao longo da vida, a convicção de que há coisas muito mais importantes a fazer do que se dedicar ao ofício de juízes.
É preciso “cristificar” nossa visão para que ela não se deixe determinar pelas aparências ou pelas limitações do outro, mas, consiga vê-lo em profundidade, percebendo o que há de mais humano e divino em seu interior. A sabedoria de Jesus recorda algo elementar: o outro é nosso espelho, pois o cisco que vemos em seu olho nos está falando de uma “trave” que há no nosso; é preciso estar sempre com os olhos e ouvidos bem abertos para nos deixar impactar pelos dons, recursos e potencialidades humanas presentes em cada um.
“Guia cego” é aquele que, centrado na lei, se situa acima do outro, exigindo dele qualquer tipo de “submissão”. Isso acontece porque tal “guia” carece de compreensão, fala a partir da fria lei e só busca alimentar e fortalecer seu próprio ego.
O guia autêntico, pelo contrário, considera-se a si mesmo como “acompanhante”, fala a partir de sua própria experiência e remete cada pessoa a si mesma, na certeza de que o único “guia” é sempre o “Guia interior”, ou “Mestre interior”, que se expressa em cada ser humano.
Assim, enquanto o “guia cego” acaba caindo no buraco, o acompanhante autêntico oferece luz e espaço amplo para que cada qual vá encontrando seu próprio caminho.
Jesus está sempre nos chamando à autenticidade, ou seja, Ele nos provoca a descer ao mais profundo de nosso próprio ser e descobrir ali o que está de acordo com o que na realidade somos. Por isso, Ele está sempre combatendo uma acomodação externa às normas e preceitos. A única Lei definitiva é a que está escrita em nosso interior e tem a marca do amor. É preciso descer ao coração e descobri-la, para que ela inspire nosso ser e nosso proceder.
Como cristãos temos copiado a atitude dos fariseus, dando mais valor ao cumprimento de normas que à busca interior das exigências de nosso verdadeiro ser. Esta é a causa de nosso fracasso na vida espiritual.
A originalidade do Evangelho está na aventura da descoberta do “mundo interior”, esse mundo desconhecido e surpreendente, que é o coração, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa. “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração” (Lc 6,45).
É preciso ser discípulo(a) da “escola do coração” onde aprendemos a nos acolher como dom totalmente gratuito de Deus e a entregar-nos totalmente ao seu Reino.
No nosso contexto cultural, a imagem do coração perdeu muito de sua expressão, tornando-se muito banalizado: corações nas emoções, nos desenhos, talhados em árvores, nas taças e chaveiros; corações em canções, rompidos, roubados, feridos, apaixonados, pesados, leves; corações que sentem, e outros insensíveis. O coração parece como um depósito de sentimentos.
Por outro lado, vivemos também um contexto de muitos “corações de pedra”, intransigentes, cheios de ressentimentos e juízos implacáveis, corações fechados em jaulas de pré-juízos e de suspeitas, que acabam envenenando as relações e rompendo os laços humanos.
O seguimento de Jesus consiste, sobretudo, em alcançar a experiência interior que Ele viveu, e deixar que nossa interioridade cristificada se manifeste. Fazer caminho com Ele nos ajuda a descobrir as enormes possibilidades em nossos próprios corações. O Coração divino que humaniza nosso coração, tornando-o aberto e sensível a tudo o que é humano; ao mesmo tempo, ativa em nós um coração que se faz solidário e comprometido a afastar de nossas relações tudo o que desumaniza: fechamentos, intolerâncias, julgamentos, preconceitos, ódios...
“Ter o coração nas mãos” nos capacita a olhar a realidade, compreender cada pessoa em sua situação e viver oblativamente, a partir da gratidão e da responsabilidade. Sentir o pulsar de nosso coração em sintonia com o Coração do Pai nos ajuda a recuperar o “humanismo” que estamos perdendo.
Humanizar nosso coração para humanizar as relações.
Por isso Jesus dava tanta importância ao coração: “a boca fala daquilo que está cheio o coração” (Lc. 6,45); “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt. 5,8).
Texto bíblico: Lc 6,39-45
Na oração: No silêncio da oração, desça até o mais profundo de seu coração, até chegar à corrente subterrânea de água viva; aqui você experimenta a unidade de seu ser; aqui é o lugar da transcendência, onde a transformação acontece.
A intimidade não é fechar-se em si mesmo, mas abertura máxima. A partir do centro do coração, abra-se ao coração da realidade.
- Você deixa “transparecer” seu coração na vivência cotidiana? Coração oxidado ou ativado pela Misericórdia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.02.2022
“Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36)
O Evangelho deste 7º domingo do Tempo comum nos situa diante desta convicção: Deus é Misericórdia e nossa vocação cristã é viver misericordiosamente.
Em sua misericórdia, Deus sempre nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, para abrir caminho a partir de nossas fragilidades. Só o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destrava nosso coração e nos move em direção a horizontes maiores de busca, responsabilidade e compromisso.
Duas razões que deveriam estar presentes em quem se diz cristão, algo tão natural no seguimento de Jesus Cristo: alegria pela experiência de que Deus nos ama com um coração misericordioso e misericórdia como conduta libertadora que nasce de tal experiência. Aqui nos encontramos envolvidos por uma mensagem que é essencial e decisiva no nosso “ser cristão”.
Ser misericordiosos e compassivos é a vocação à qual todos nós, seres humanos, fomos chamados, inclusive aqueles que ainda não experimentaram o dom da fé ou mesmo a esvaziaram. É o caminho para conseguir uma convivência leve, acolhedora e aberta. As Bem-aventuranças vão nesta direção, abrindo espaço para que o Amor misericordioso de Deus se transforme em motor da história.
Misericórdia. É a primeira, a última, a única verdade na Igreja, em todas as suas doutrinas, cânones e ritos. É o “atributo primeiro” de Deus proclamado por todas as religiões e que deve inspirar o modo de proceder de todo ser humano. E, - por que não dizer? -, também no campo da política ou da gestão da vida pública com todas as suas instituições, partidos, programas e conferências climáticas. Ai das políticas sem entranhas, sem alma, sem misericórdia!
A misericórdia é a luz e a chave de nossa vida, tão preciosa e frágil, de nosso pequeno planeta tão vulnerável, do universo imenso e interrelacionado e do qual fazemos parte.
Misericórdia, segundo sua etimologia, significa “entranha”, coração, ternura diante da fragilidade e miséria do outro. Por isso é um dos nomes mais belos de Deus; é o mesmo que dizer “coração da Vida” e de tudo quanto existe.
A força criativa da misericórdia de Deus põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada.
Se recuperarmos as atitudes de misericórdia e compaixão, teremos entrado na vivência essencial do Evangelho. O decisivo é que a Igreja toda se deixe reger pelo “Princípio-Misericórdia”, sem ficar reduzida simplesmente a somar “obras de misericórdia”.
A misericórdia é para os audazes e criativos, capazes de revolucionar a existência com atitudes maduras de amor profético, alargando espaços onde imperam somente a doutrina, os esquemas rígidos e as retóricas de poder e de juízo daqueles que não se deixam conduzir pela força humanizadora da mesma Misericórdia.
À imagem do Deus de Misericórdia fomos criados, e somos seres capazes e necessitados de misericórdia. Uma faísca da misericórdia Deus está presente no interior de cada ser humano, pálido reflexo dessa “forma suprema de ternura” que é o Amor de Deus, que rompe as distâncias e se aproxima da realidade humana como Ternura amorosa. Ou seja, se Deus não se revelasse como “misericórdia”, não poderia ser amado pela pessoa humana como se ama o pai ou a mãe.
Deus misericordioso nos educa e nos impulsiona a viver misericordiosamente. Sua misericórdia penetra até o mais profundo de nosso ser, individual e comunitário, para que pensemos, falemos, escutemos e atuemos misericordiosamente. “Oxalá vos sintais sempre misericordiados, para serdes, por sua vez, miseri-cordiosos” (Papa Francisco).
No princípio era a Misericórdia. Por ela fomos criados. Foi um ato de Misericórdia que nos deu vida. A Misericórdia é sempre geradora de vida. A Misericórdia é o Amor que vai além da justiça, e vir à vida foi fruto de Amor em excesso, não um ato de justiça.
Fomos criados por um coração misericordioso, fomos feitos por mãos misericordiosas, pensados por uma mente misericordiosa. Vivemos imersos na Misericórdia.
Se Deus não fosse misericordioso, não teríamos jamais existido; e se essa Misericórdia existe desde o princípio do nosso viver, ela ainda agora é fonte de vida, graça da qual temos continuamente necessidade e que constantemente está agindo em nós para alimentar o impulso da reconciliação com tudo e todos.
A misericórdia constitui a resposta de Deus à indigência do ser humano: ela destrava a vida, potencializa o dinamismo do “mais” e o coloca em movimento em direção a um amplo horizonte de sentido.
O teólogo Jon Sobrino formulou a expressão “princípio-misericórdia”, porque a misericórdia foi a que moveu toda a ação de Deus no AT e de Jesus no NT.
Jesus realizou muitas coisas e em muitos lugares (ensinou, curou, denunciou, alimentou, dialogou, etc.), mas a misericórdia foi a que inspirou e moveu tudo em sua vida e ação. Sentiu profundamente o sofrimento das pessoas, preocupando-se sempre em aliviar sua dor. Mas é preciso destacar, no entanto, que Jesus não se limitou à esfera do privado, mas estendeu a misericórdia a dimensões coletivas e públicas: repartiu o alimento a uma multidão, interpelou os ricos, pregou às massas e as alentou, denunciou os abusos das autoridades religiosas e políticas, entrou em conflito com os manipuladores da religião do Templo...
De acordo com o Evangelho deste domingo, só quem entra no fluxo do “princípio Misericórdia”, será capaz de amar até os inimigos, de quebrar o círculo de toda violência, de bem-dizer quem amaldiçoa e rezar pelos que caluniam. Assim, a misericórdia, recebida e experimentada, é a base da atitude compassiva, não como ato ocasional mas como estilo de vida evangélico. Torna-se o fundamento e a perene inspiração de uma existência de partilha e solidariedade.
“Ser humano” é, para Jesus, agir com misericórdia; do contrário, fica viciada na raiz a essência do humano, como acontece com aqueles que fazem da lei e da doutrina o centro de suas vidas, “passando do outro lado” da dor e da exclusão do outro.
A misericórdia, como estilo-de-vida cristã, é força oblativa que rompe distâncias e faz “morada no outro”.
Ela se constitui como uma “caridade-em-ação” perante o sofrimento alheio, numa atitude fundamental de solidariedade. É a ternura que se traduz em atos em favor da vida e não da morte.
Ela nos descentraliza e nos coloca no caminho do co-irmão, sobretudo daquele mais fragilizado e excluído.
É a misericórdia que desperta em nós uma nova sensibilidade a partir do outro, almejando com todas as forças aquilo que é o melhor para ele.
Trata-se de uma “escuta existencial” feita de profundo respeito pela alteridade do irmão. Não pretende que o outro se amolde à nossa maneira de ver ou sentir, mas deixa o outro ser profundamente ele mesmo.
Assim lançamos a base para um autêntico encontro fraterno, inspirando-nos na própria atitude de Jesus para com as pessoas. Abrimo-nos por dentro para captar o diferente do outro e acolhê-lo com o coração.
Texto bíblico: Lc 6,27-38
Na oração: A experiência da oração implica escancarar as portas de nossa interioridade, abrindo passagem para que a Misericórdia divina transite com liberdade pelos recantos escondidos e sombrios, ativando e despertando dinamismos e recursos que ainda não tiveram oportunidade de se expressar.
- O atual contexto social-político-cultural-religioso revela sua terrível face desumanizadora, através da cultura do ódio, da intolerância, das mentiras... Como você, seguidor(a) de Jesus, tem reagido diante disso? Sua presença tem a marca da misericórdia ou da indiferença? Está a serviço da vida ou da morte?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.02.2022
“Bem-aventurados, sereis, quando os homens vos odiarem, vos expulsarem,
vos insultarem e amaldiçoarem o vosso nome, por causa do Filho do Homem” (Lc 6,22).
Estamos vivendo uma nova e preocupante situação nas relações entre as pessoas, entre as diferentes denominações religiosas, entre as diferentes ideologias políticas. Há uma aliança entre a extrema direita ultra-neoliberal, homófoga, sexista, racista, xenófoba, machista, moralista, anti-ecológica, negacionista da ciência e da mudança climática... e as organizações “cristãs” conservadoras de caráter fundamentalista. Situação que se manifesta como a mais grosseira manipulação do cristianismo e a perversão do sagrado, pois se apoia nos discursos e nas práticas de ódio dos partidos e dos grupos neo-fascistas de todo o mundo.
Tal perversão religiosa se alimenta do ódio, cria divisões, espalha mentiras e difamações, fomenta a violência entre seus seguidores...; tudo isso tem um forte impacto negativo, pois se espalha muito rápido em toda a sociedade, usando, sobretudo as plataformas de mídia e redes de internet. Revela-se aqui a face mais triste do processo de profunda desumanização que vivemos.
Muitos analistas do atual contexto afirmam que está nascendo uma “nova religião”, talvez a mais perversa, a mais destruidora do planeta e da humanidade: “a religião do ódio”. Parafraseando o filósofo Descarte, muitas pessoas afirmam tranquilamente: “Eu odeio, logo eu sou”; ou “eu odeio, logo existo”. O ódio passa a ser a autoafirmação e a auto-constituição por meio da negação e da aniquilação do outro, sobretudo do outro que sente, pensa e ama de maneira diferente.
Em outras palavras, através do ódio aos outros, da eliminação das pessoas e dos coletivos odiados (negros, indígenas, homoafetivos, imigrantes...), aquele que odeia confirma sua própria existência através deste argumento de morte: o outro não existe, logo eu existo como o único que resta. Além disso, a aniquilação do outro através do ódio produz prazer. Por exemplo, o torturador desfruta de prazer na hora de torturar. “Ódio e prazer acabam sendo uma só coisa” (Anders). Quanto mais se espalha e mais vezes se repete o ato da aniquilação, mais tende a se espalhar o prazer do ódio e o prazer de ser a si mesmo.
O ódio não surge do nada: tem um contexto histórico-cultural-religioso-político específico. Existem causas, motivos, razões que se apresentam como oportunidades para ativar a faísca da explosão do ódio e da intolerância. São práticas e convicções friamente calculadas, largamente cultivadas e transmitidas pelas redes sociais, alimentadas por foros de debate, publicações, meios de comunicação, discursos...
Mas, no fundo, tudo tem sua origem no coração do ser humano, pois este é capaz do “pior” e do “melhor”; ele carrega em seu interior tanto as “bem-aventuranças” como as “mal-aventuranças”. Quando o ser humano mata sua sensibilidade e seu espírito de compaixão, quando atrofia sua capacidade de discernimento, quando não reconhece no outro seus valores, suas qualidades, sua cultura..., temos aí o cultivo do “caldo venenoso” do fanatismo que alimenta a cultura da morte.
Tal modo de proceder implica uma nítida contradição com os princípios próprios do cristianismo, centrados no perdão, no amor ao próximo, no espírito das bem-aventuranças. É uma tremenda incoerência afirmar ser seguidor(a) de Jesus e deixar-se dominar pelo instinto da vingança (“olho por olho e dente por dente”), pelo prazer em disseminar mentiras e expressar ódio, por emitir julgamentos preconceituosos e intolerantes, etc.
É em meio a este mundo marcado pela exclusão, violência, fanatismo... que devemos abrir nossos ouvidos para escutar a proclamação das “bem-aventuranças”, feita por Jesus. Elas não são leis que se impõem a partir de fora, mas dinamismos de vida que já estão presentes no mais profundo do ser humano. Elas mani-festam aquilo que é mais divino e humano no interior de cada um. Pulsa em todos nós um desejo latente de felicidade descentrada, de relações sadias, de convivência harmoniosa, de sensibilidade solidária...
É preciso favorecer ambientes humanizadores para que as bem-aventuranças aflorem com toda intensidade.
Qualquer tentativa de aclarar racionalmente o sentido das bem-aventuranças está fadada ao fracasso. Sem uma experiência profunda do humano, as bem-aventuranças são um sarcasmo. Só a partir do mais profundo sentido espiritual elas podem ser compreendidas e assumidas como um modo humano de viver.
É o texto mais comentado de todo o evangelho, mas é também o mais difícil. Inverte radicalmente nossa escala de valores. Pode ser feliz o pobre, o que chora, o que passa fome, o oprimido?
Proclama-se ditoso o pobre, não a pobreza; ditoso, não por ser pobre, mas porque ele não é causa de que outro sofra. Ditoso porque, apesar de tudo, ele pode destravar(expandir) sua humanidade. As bem-aventuranças não são um sim de Deus à pobreza, nem ao sofrimento, mas um rotundo não de Deus às situações de injustiça. Sempre que agimos a partir do egoísmo, há injustiça. Sempre que impedimos que o outro cresça, há injustiça.
O evangelho não incentiva valorizar a pobreza em si mesma, mas instiga-nos a não ser causa do sofrimento do outro. A pobreza evangélica sempre faz referência ao outro.
Assim, ditoso o pobre, não por ser pobre, mas por não causar pobreza; ditoso o que chora, não porque é sensível, mas por não causar dor aos outros, fazendo-os chorar; ditoso o que passa fome, não porque não tenha nada que comer, mas porque vive a espírito de partilha e não suporta vendo os outros com fome; ditoso aquele que é odiado e sofre perseguição, não por ser incompreendido, mas por sua atitude profética em favor dos injustiçados e excluídos. Esta é a profunda mensagem das bem-aventuranças.
Ser ditoso é ser libre de toda atadura que nos impede expandir nossa humanidade.
Ao proclamar as bem-aventuranças, Jesus está revelando que seu Pai e nosso Pai não é o Deus que vem complicar nossa vida com cobranças, ritos, penitências, mortificações, leis que alimentam culpa... O Deus de Jesus é o “Deus da felicidade” e Ele quer que todos os seus filhos e filhas vivam intensamente a felicidade. Felicidade como integração interior, harmonia nas relações com os outros, sintonia com a criação e abertura filial a Deus.
Em grego, felicidade é “eudaimonia”. A ideia de “eudaimonia” é a de alguém que é impulsionado de dentro para fora. No latim, a expressão correspondente é “felicitas,atis”. Fertilidade e felicidade têm raízes comuns. Somos felizes quando somos fecundos. Não devemos nos afastar da noção de felicidade como fertilidade. O fértil é aquele que mantém a vida. É a marca da bio-proteção, da capacidade de gerar e defender a vida. Sem a possibilidade da felicidade, sem a proteção vital, sem o arremessar para adiante, a gente não se move (em hebraico, felicidade é “mahala”: andar para a frente). A felicidade é um sentimento descentrado, pois perfuma e transforma o ambiente, carregado de tristeza e morte.
É preciso recordar que ser feliz não é ter um céu sem tempestades, caminho sem acidentes, trabalhos sem cansaço, relações sem decepções...
Ser feliz é encontrar força no perdão, esperanças nos desafios, segurança no palco do medo, amor nos desencontros. Ser feliz não é apenas comemorar o sucesso, mas aprender lições nos fracassos. Não é apenas ter alegria com os aplausos, mas ter alegria no anonimato.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver a vida, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz não é uma conquista, mas uma atitude de quem sabe viajar para dentro de seu próprio ser e mobilizar seus recursos oblativos. Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e tornar-se ator da própria história.
Texto bíblico: Lc 6,17.20-26
Na oração: Repassar, sentindo e saboreando, o significado de cada uma das bem-aventuranças, deixando-as ressoar no coração e deixando que o próprio coração revele sua fome e sede de ser bem-aventurado.
- Diante da cultura do ódio que impera em nossa sociedade, como você rea-ge? Você é canal de transmissão de mentiras, julgamentos, preconceitos... ou presença humanizadora, expandindo seus recursos bem-aventurados?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.02.2022
Imagem: Tissot
“Não tenhas medo! De agora em diante serás pescador do humano” (Lc 5,10)
O relato do evangelho deste domingo começa situando Jesus como um grande pregador-mestre, um guia capaz de congregar muitas pessoas para escutar a “palavra de Deus”. Sua liderança, no meio do povo, parece já em processo de consolidação. Até esse momento, Jesus não tinha seguidores, mas somente ouvintes curiosos. Com este relato, Jesus mostra seu desejo de reunir em torno a si um grupo de cooperadores que prolonguem o movimento messiânico iniciado por Ele: movimento de vida, de novas relações, de esperança alvissareira...
Jesus, o homem integrado, sempre teve acesso ao seu oceano interior e deixou emergir ricas possibilidades, criatividades, inspirações... Seu modo de ser e viver revelou o “novo” presente nas profundezas do seu próprio coração: novo ensinamento, novo olhar sobre a vida, nova atitude, novo compromisso...
Ao mesmo tempo, com sua presença instigante, Jesus despertou, ativou e fez vir à tona o que havia de mais humano nas pessoas que ia encontrando, potencializando-o.
Assim aconteceu no encontro e chamado dos pescadores, homens rudes, mas que carregavam uma nobreza interior. Jesus os desafiou a serem mais humanos: “Farei de vós pescadores do humano”.
“Pescar o humano” é desvelar (tirar o véu) o que é mais nobre e divino em cada pessoa; é ajudá-la a viver com sentido, com paixão, tornando-a melhor, mais humana.
Jesus, com sua presença inspiradora, revelou o dom de despertar e extrair o “melhor” no interior das pessoas: seus recursos, seus desejos nobres, seus sonhos ousados... Sua sensibilidade “tocava” e mobilizava o que que havia de mais sagrado no interior do coração humano, alimentando uma nova esperança e abrindo um horizonte de sentido para todos.
Quando nos deixamos “tocar” por Deus naquilo que mais amamos, brotam os sentimentos oceânicos, a criatividade, o impulso para a comunhão, a integração e a abertura para com a realidade que nos cerca.
Também carregamos em nossa “memória agradecida” uma multidão de pessoas especiais às quais poderíamos dizer com ternura: “tu me fizeste melhor do que eu era..., porque acreditaste em mim de uma maneira que ninguém fazia, porque foste capaz de olhar em mim mais além daquilo que eu via, porque me ajudaste a avançar muito mais do que eu jamais poderia imaginar”.
Aqui também podemos contemplar cada uma destas presenças que nos curam, que nos impulsionam para o novo, que nos fazem mais criativos, que nos abrem um horizonte de sentido, enfim, que geram vida ao estilo de Jesus que passou pela vida tornando melhores as pessoas que encontrava.
Também hoje, Ele continua fazendo com que sejamos cada vez melhores, através de infinitas presenças de pessoas especiais. Sintamos e manifestemos gratidão por cada uma destas presenças inspiradoras em nossas vidas que nos fazem ir além de nós mesmos, nos acompanham, nos dão vida!
Assim como inúmeras pessoas nos tornaram melhores, também nós somos chamados a ser “presenças humanizadoras”, mobilizando a criatividade, a inspiração, a compaixão..., faíscas do divino no coração de cada um(a). Crescer em nosso verdadeiro ser é o melhor que podemos fazer pelos outros e pela criação inteira. A primeira e nobre missão de todo ser humano está dentro dele mesmo, nunca fora. Deus só quer que sejamos autênticos, ou seja, que sejamos o que devemos ser.
Há uma “profissão” (modo de viver, ofício) que é irrenunciável para todos que queremos ter uma existência plena. Podemos chamá-la “expert em humanidade”. Uma especialidade que todos deveríamos ir alimentando ao longo da vida. O “expert em humanidade” é aquele que revela uma sensibilidade para saber ler e vislumbrar o mais profundo e original nas pessoas com as quais compartilha a vida, seja no nível que for: família, amigos, companheiros de trabalho, ministérios, contatos ocasionais...; é aquele que sabe empatizar, escutar, compreender, alegrar; é aquele que está mais descentrado, atento ao que acontece com o outro; é aquele que sabe ajudar de mil maneiras, falando, calando ou servindo; é aquele que sabe estar com crianças, jovens ou idosos e ter uma palavra para cada um; é aquele que sabe fazer com que o outro se sinta único e importante; é aquele que ajuda a extrair o melhor do outro.
Esta “profissão” só se alcança com muita atenção, contemplação e encontro com o outro. Nossa inspiração é Jesus de Nazaré, um “expert em humanidade”; nele podemos contemplar como se exerce este ofício que, sem dúvida, é o mais importante de todos aqueles que a vida nos encarrega. Tudo isso tem a ver com a expressão “vinde comigo e farei de vós pescadores do humano”.
Uma chave importante para a compreensão do evangelho deste domingo está na expressão “remar mar adentro”. Jesus convida os discípulos a lançarem as redes de novo, mas não no mesmo lugar onde sempre
faziam, mas nas águas mais profundas. É muito importante esta indicação porque nos revela algo tão sensato e básico: se queremos obter resultados diferentes, não podemos fazer sempre o mesmo. É preciso ousar, criar, fazer diferente... A mudança de posição frente à vida já não é buscar no mesmo lugar, mas mudar de plano e conectar com as correntes mais profundas que nos trazem uma mensagem de “abundância”.
O olhar para a fonte daquilo que somos nos faz viver numa consciência de superabundância e não de carência; uma superabundância de sentido, de inspiração, de criatividade e não de vida “normótica” (normalidade doentia); uma superabundância que nos situa no milagre de uma nova visão da nossa vida e das nossas relações. O seguimento de Jesus é uma experiência vital de abundância que mobiliza a partilhar, não o que nos sobra, mas o que somos em essência.
À luz do “remar mar adentro”, é preciso romper com o tradicional, quebrar estruturas, revolver consciências, mudar vidas... Isso exige decisão corajosa e iniciativa criadora para gerar outra história, outra maneira de viver, outra esperança...
O ser humano sempre é chamado a reinventar-se, a aventurar-se por mares desconhecidos, a navegar para a “outra margem”, para uma terra nova...
Quem se sente fascinado pelo mar acaba por descobrir a maneira de construir barcos e de navegar.
Para isso é indispensável uma forte dose de ousadia... Não pode fugir, nem trair. Há que ousar para não perecer. Há que aventurar-se e arriscar o primeiro passo. Há que peregrinar infatigavelmente e originar nova humanidade. Há que ser nômade seduzido por novos horizontes.
Ousar é mover-se e agir com destemor. Ousar é desprender-se do lugar onde se está.
Ousar é desamarrar-se, é lançar-se, é atirar-se a um projeto. É atitude corajosa, é ímpeto arriscado.
Ousar é buscar o novo.
A novidade do texto de Lucas está no fato de que Jesus pede a Pedro que volte a pescar em um mar mais profundo, mais distante da margem. Pedro e seus parceiros sempre trabalharam perto da costa; e Jesus os desafia a irem mais além, a serem mais ousados.
Este Pedro, o “aventado e ousado”, que vai pescar mais distante da margem com seus companheiros, é a imagem de uma Igreja que deve se aventurar e romper os moldes antigos, a missão já fixada, a repetição estéril... É evidente que há o risco de fracassar e de se afundar, mas se permanece na margem onde não há ondas, nem desafios... o fracasso já é garantido. Este é o Pedro da Igreja (cada um de nós) que deve encontrar, neste mar-mundo do nosso tempo, o impulso para uma nova criatividade.
Há muito trabalho a ser feito fora dos mares tranquilos das sacristias, que cheiram a mofo.
Texto bíblico: Lc 5,1-11
Na oração: O ser humano é contraditório: pode avançar ou recuar, arriscar-se ou amoitar-se, aventurar-se ou acovardar-se, fazer a travessia ou acomodar-se...
- Qual a força predominante em você?
- O movimento humanizador”, iniciado por Jesus, causa impacto em seu interior, provocando a “travessia” do mar estreito do seu cotidiano para o vasto oceano a que Ele chama?
- Sua maneira rotineira de “pescar” (de viver, de sentir, de amar...) sente-se desafiada a uma maior amplitude diante da proposta que Jesus apresenta?
- Sua presença faz a diferença, despertando o “melhor” nas pessoas com quem convive?
- Suas atitudes são capazes de despertar o que é “mais humano” nos outros, tornando-os melhores?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
06.02.2022
“Jesus, porém, passando pelo meio deles, continuou seu caminho” (Lc 4,30)
Continuamos com o tema do domingo passado. A expressão “hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” faz conexão com o relato anterior. “Hoje” se cumpre essa Escritura em cada um de nós; é preciso abrir espaço para que Deus cumpra sua vontade amorosa em nossas vidas; Ele não força nem impõe nada: “que se cumpra”, depende exclusivamente de nós. Somos nós que temos continuamente de nos perguntar: “cumprimos essa Escritura que acabamos de ouvir?”
Até o leitor menos atento ficará surpreso com a dissonância que aparece no relato deste domingo: diante da aprovação e admiração que seus conterrâneos expressam, Jesus responde com repreensões, e a cena se conclui com sentimentos de fúria por parte dos ouvintes na sinagoga, a ponto de terminar em tragédia.
Se estivermos bem atentos ao texto, perceberemos que o motivo do conflito e da fúria dos ouvintes parece claro: embora citando dois grandes profetas de Israel – Elias e Eliseu -, Jesus deu destaque a dois personagens estrangeiros como referência (viúva de Sarepta e Naamã, o sírio), em detrimento dos personagens do próprio povo. Para um judeu piedoso era inadmissível que qualquer pagão recebesse um favor divino, antes de alguém pertencente ao “povo eleito”.
Elias e Eliseu são exemplos como Deus atua com relação aos não-judeus. Elias atendeu a uma viúva de Sarepta e Eliseu a um general sírio, e isso deixa em evidência a pretensão de salvação exclusiva que os judeus pretendiam, como povo eleito.
O evangelista Lucas quer “quebrar” este argumento contundente; Jesus desmascara a cegueira coletiva e isso provocou a ira de seus vizinhos que se sentiram agredidos.
“Não é este o filho de José?”. A única razão que os membros de seu povo dão para rejeitar as pretensões de Jesus, é que Ele é mais um do povo, conhecido de todos.
No entanto, aqui está a grandeza de Jesus: sendo um entre tantos, foi capaz de descobrir o que Deus esperava dele. Jesus não é um extraterrestre que traz poderes especiais de outro mundo, mas um ser humano que tira das profundezas de seu ser aquilo que Deus já colocou em todas as pessoas. Jesus fala do que encontrou dentro de si mesmo e nos convida a descobrir e viver em nós o mesmo que Ele descobriu e viveu.
Jesus poderia ter dito muitas coisas aos seus ouvintes, para tranquilizá-los: explicar que Deus não escolhe os seus enviados entre os grandes deste mundo, mas sim entre os pequeninos, a exemplo de Davi, o filho caçula de Jessé. Poderia ter-lhes dito que se tornariam mais imagem de Deus se dedicassem um cuidado especial aos cegos, aos prisioneiros e aos outros deserdados, vítimas do contexto social, político e religioso da época.
No entanto, em lugar de tranquilizá-los, Jesus vai inquietá-los ainda mais. Recorda-lhes, então, que Deus, em tempos de penúria e sofrimento, foi em socorro de estrangeiros, de pagãos, sem qualquer ligação com o povo eleito. Temos aí, em todo caso, o que provocou a indignação dos ouvintes de Jesus. No fundo, o culto a Deus cedeu lugar ao culto ao povo eleito. Este tipo de idolatria não é raro e pode assumir diversas formas: o culto à classe social, à família, à nação, às relações vantajosas, etc.
Tal idolatria chegou ao extremo a ponto de levarem Jesus para fora da cidade, a fim de matá-lo.
É uma antecipação da Páscoa, claro: Hebreus 13,12 destaca que Jesus foi crucificado «fora do acampamento». Mas é este excluído que vai integrar todo o universo com sua presença salvífica.
Como humanos, todos temos a tendência por estabelecer distância entre o próprio grupo – tribo, parentela, família, povo, religião, nação – e todos os demais grupos. Trata-se, sem dúvida de um movimento de autoafirmação, de busca de segurança e defesa frente o diferente. Se, unido a tudo isso, advertimos que nossas próprias crenças são questionadas, é provável que se despertem sentimentos de agressividade, que não são outra coisa que expressão do próprio medo.
Muitas vezes, o zelo religioso, moral ou político degenera em formas de intolerância e fanatismo.
A intolerância e o fanatismo são uma expressão de atrofia espiritual e que tem graves consequências na vida social e no diálogo inter-religioso. É a incapacidade de aceitar os outros em razão de suas ideias, convicções ou crenças. É uma grave debilidade que torna impossível “viver a cultura do encontro” entre pessoas e grupos humanos que pensam, sentem, creem de maneira diferente.
É profundamente desumanizador quando alguém se fecha na cegueira de suas próprias ideias, crenças, ideologias... Frente a essa tendência ancestral e, com frequência, virulenta, uma atitude madura e compreensiva relativiza muros e fronteiras, reconhece a identidade comum e torna possível a vivência da alteridade, no respeito e na confiança compartilhadas.
É o que apreciamos nas pessoas sábias, como se mostra neste caso em Jesus. Sarepta, Síria, Israel: por que a diferença deveria ser entendida como enfrentamento ou exclusão?
Ao compreender o que somos, se distendem as rigidezes instintivas do ego e a intolerância dos esquemas mentais que se expressam nas relações sociais, no campo da política, da religião... São mecanismos de defesa ativados automaticamente, mas carentes de sentido quando nos situamos na compreensão daquilo que somos, ou seja, humanos.
É evidente que aquela mesma resistência contra Jesus se reproduz hoje: argumentos batidos e arcaicos são tomados como pretexto para que seja recusada a verdade presente no outro.
Se em todos os aspectos da vida se faz presente a inércia do costume, mais ainda no campo religioso: há um tradicionalismo de manter intocável o que foi recebido, como se nisso perigasse nossa fé. Sempre fazemos o mesmo e não nos paramos para analisar, para introduzir mudanças e avaliá-las.
É necessário superar a inércia da rotina, do de sempre, do estabelecido. Para não entrar em processos esquizofrênicos é preciso, muitas vezes, desaprender o aprendido. Pensemos, repensemos, provemos, inovemos... Não é esnobismo, nem desejos superficiais de mudar por mudar, mas necessidade de questionar aquilo que não convence e nem serve mais, e buscar o que é mais coerente e essencial. Desconstruir para reconstruir. É um trabalho que é preciso fazer a partir de baixo. Não esperemos que as mudanças venham de cima.
É essa mesma compreensão que nos permite “abrir passagem” e “afastar-nos” dos preconceitos e intolerâncias que nos isolam, nos empobrecem e, em ocasiões extremamente cruéis, desembocam em tragédias. Somente tomando um mínimo de distância de nossos próprios mapas mentais, legalismos, suspeitas... seríamos capazes de rir de nós mesmos diante de tão cegos padrões de pensamento e comportamento; só assim poderemos suavizar nossa rigidez, ampliar horizontes, celebrar e viver a unidade compartilhada em tanta diversidade de maneiras de ser e de viver.
Texto bíblico: Lc 4,21-30
Na oração: Aliado ao conformismo e à segurança está o medo da Mudança; fechamo-nos no conhecido por medo do desconhecido. Marcados pela “normose” (normalidade doentia), ficamos encapsulados num quadrado “mofado”, trancafiados por normas parentais, sociais, culturais e religiosas.
- Também na nossa sinagoga interior carregamos intolerâncias, preconceitos, fanatismos... que depois se expressam no julgamento e na indiferença frente aos diferentes.
- Quê sinais de intolerância e preconceito percebo em minha vida cotidiana? Quando aparecem?
- Minha relação com Deus é intimista ou me abre a uma presença sadia diante de quem pensa-sente-ama de maneira diferente? Sou presença ecumênica ou carregada de suspeita?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.01.22
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