“Desde o princípio da criação Deus os fez homem e mulher” (Mc 10,6)
O evangelho deste domingo (27º Domingo do Tempo Comum) continua nos situando no contexto da subida de Jesus a Jerusalém e da instrução dada aos discípulos. A pergunta inesperada e capciosa dos fariseus sobre a licitude do homem despedir sua mulher tinha intenção de colocar Jesus numa situação constrangedora. Mas, como bom mestre, Jesus aproveita também desta circunstância para resituar a todos no “princípio da criação” e recuperar a essência do matrimônio.
Na realidade, a atitude de Jesus é coerente com toda sua trajetória. Se algo fica claro, no relato evangélico, é seu posicionamento decidido a favor dos “últimos”, dos “pequenos”, das “crianças”, das mulheres... Por tudo isso, não parece casual que, depois do relato no qual defende a igualdade da mulher com relação ao homem, apareça a cena de Jesus abraçando as crianças.
Seja qual for o motivo da pergunta feita pelos fariseus, a resposta de Jesus vai se centrar neste ponto: a “intuição primeira” (e, portanto, também o “horizonte”) para a qual tende a relação amorosa entre homem e mulher é esta - “o que Deus uniu o homem não separe!”. Mas Deus não une pelas leis canônicas e sim pelo amor cuja intenção é a plena comunhão entre duas pessoas. Uma coisa é a indissolubilidade canônica e outra é a fidelidade que o casal deve atualizar cada dia e em cada instante de sua convivência.
A palavra “matrimônio” significa, etimologicamente, “múnus” ou tarefa de mãe a serviço da gestação e educação dos filhos. Mas, segundo o evangelho de Jesus, o matrimônio é uma realidade anterior: é a “matriz” ou fonte comum de vida onde duas pessoas “vivem com-vivendo e existem co-existindo”.
Significativamente, ao referir-se ao matrimônio, Jesus destacou a fidelidade ou comunhão de duas pessoas centrada na convivência mútua e não na lei de poder de um sobre outro (neste caso, do marido).
O evangelho realça a graça original do matrimônio rejeitando a pergunta de poder, segundo a lei, do fariseu: “Pode o homem despedir a mulher?” Esta é uma pergunta patriarcal que se coloca a partir do poder do homem sobre a mulher, poder que Jesus rejeita com palavras da mesma tradição israelita (Gen 1,27; 2,24-45). Jesus busca redescobrir e potenciar o princípio superior de vida em comunhão, na linha da fidelidade pessoal e de igualdade na nobre missão de ambos, marido e mulher, se tornarem mais humanos, a partir do amor que os une e os abre à vida.
O mais interessante do Evangelho de hoje é que Jesus vai mais além de toda lei. Busca desvelar a raiz antropológica do matrimônio (o projeto de Deus) para não anular nunca o que é verdadeiramente humano. Ao fazer referência “ao princípio” Jesus vai diretamente à essência do problema, tratando de descobrir as exigências mais profundas do ser humano (vontade de Deus).
O homem e a mulher são um lugar privilegiado de revelação e de experiência do Amor de Deus. Eles são a encarnação e a visibilização desse Amor Ágape que tem sua fonte no próprio Deus. Cada pessoa jamais deixa de ter suas raízes plantadas no coração do Criador.
A palavra de Deus não se encarnou só em Jesus, mas em todo matrimônio, que é “palavra de Deus”, sendo palavra de dois, um homem e uma mulher, duas pessoas que descobrem, um no outro e com o outro, o sentido mais profundo de suas vidas, e decidem compartilhá-lo, em comunhão de amor, acima de toda lei particular, como aliança permanente. “Matrimônio”: lugar da manifestação do amor oblativo do Criador.
O caminho que mulher e homem iniciam como cônjuges (conjuntamente), não é algo estático, mas é mudança, é abertura ao novo, é movimento em direção a um amor maior. Nesse sentido, o matrimônio é o sacramento que faz mulher e homem entrarem no dinamismo expansivo do Amor de Deus. Na sua essência, o amor é oblativo, aberto, gratuito...; o amor não se fecha a dois: abre-se, amplia-se, envolve outros...; amor expansivo e que se expressa na compreensão, no perdão, no apoio, na paciência, no companheirismo...
No matrimônio, cada um é chamado a ajudar o outro a ser mais humano, mais gente, mais pessoa, mais santo(a)...; cada um tem a nobre missão de facilitar que o outro cresça e desenvolva suas capacidades, riquezas...; cada um deve ser para o outro uma presença instigante, inspiradora... À luz do Amor primeiro, ativar e despertar mutuamente os dons originais, os recursos e capacidades mobilizadores...
É querer bem, respeitar, valorizar, sentir a falta do outro, conceder espaço, querer que o outro cresça, alegrar-se com as vitórias do outro, compadecer-se com os seus fracassos...
É ajudar a manter sempre acesa a “faísca de Javé” (Cant. 8,6), a chama do amor eterno. Amor que encontra expressões diferentes de acordo com as circunstâncias e as fases da vida.
É preciso ser criativo na maneira de expressar o Amor Ágape e não deixar que a “faísca do amor divino” se atrofie pela rotina, cansaço, desencanto...
Em sentido profundo, na união conjugal, ninguém perde e nem se anula, mas os dois ganham, apresentando-se, de maneira complementária como iguais, e iniciando um processo de amor ou fidelidade pessoal sem domínio de um sobre o outro, amparados pelo mesmo Deus que se revela como Aliança de amor.
Deus garante assim o processo de fidelidade, que faz do matrimônio um contínuo recomeço e um processo de comunhão que respeita a diversidade de cada pessoa.
Por isso, na tradição judeu-cristã, a relação de um casal se expressa com as palavras: “serão os dois uma só carne”. Trata-se de uma expressão vigorosa e de uma imagem esplêndida, que destaca a unidade-na-diferença.
Sabemos que o maior inimigo do matrimônio é o egoísmo. A ânsia de buscar em tudo o benefício próprio e pessoal arruína toda possibilidade de viver relações verdadeiramente humanas. Esta busca do outro para satisfazer as necessidades do próprio ego, anula toda possibilidade de uma relação profunda de um casal. A partir da perspectiva hedonista, o casal estará fundamentado no que o outro traz de benefício, nunca no que cada um pode partilhar mutuamente. A consequência é nefasta para ambos.
Ao envelhecer juntos, meta desafiante, consuma-se o matrimônio. Assim é que se realiza a vida com-junta-mente, fazendo-se companhia digna, ajudando-se mutuamente a se tornarem mais humanos; uma companhia experimentada como dom, com alegrias e sombras, querendo-se muito e também sendo mútuo suporte, mesmo no outono da vida.
Por isso, ao falar de “indissolubilidade matrimonial”, é preciso assumir com lucidez e serenidade o caráter processual da relação de “duas pessoas unindo-se” em “comunhão de vida e amor”.
Os trâmites legais que certificam o consentimento conjugal se firmam em um momento. Mas a união de duas pessoas em “comunhão de vida e amor” não é momento, mas processo; não tem efeito instantâneo a partir de uma declaração legal, nem de uma fusão biológica, nem de um artifício mágico, nem sequer de uma benção religiosa; não é uma foto estática e morta, mas um processo dinâmico e vivo.
A expressão “sim, eu quero”, não é uma fórmula mágica que produz automaticamente um vínculo indissolúvel. Para o casamento, basta meia hora. Para a consumação do matrimônio “de maneira humana”, é preciso uma vida inteira.
Texto bíblico: Mc 10,2-16
Na oração: Que a “faísca do Amor de Deus”, presente nos corações de todos, se transforme numa labareda, iluminando e aquecendo o cotidiano de suas vidas, inspirando e apontando caminhos para todos aqueles que, em meio às sombras, vivem tateando um sentido para suas existências.
- O Amor de Deus encontra espaço no seu interior, iluminando e dando sentido ao seu ritmo de vida?
- Quê gestos e atitudes de sua vida são transparência do Amor de Deus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.09.2021
“Se tua mão, teu pé, teu olho... te levam a pecar, arranca-os”
Com sua presença e ternura, Jesus, no Evangelho deste 26º Domingo do Tempo Comum, quebra as atitudes preconceituosas que delimitam friamente os espaços e alimentam proibições que impedem a manifestação da vida. Para Ele, toda pessoa que favorece a vida, em qualquer situação, é uma “aliada”, está “a nosso favor”. Ou seja, do Reino não se exclui ninguém; todos estão convidados. Todo aquele que sinceramente busca o bem e se compromete com a vida está a favor do Reino.
Jesus reprime a postura sectária, preconceituosa e excludente de seus discípulos, e adota uma atitude aberta e inclusiva, onde o mais importante é libertar o ser humano de tudo o que lhe oprime.
O estreitamento de mentalidade do discípulo João colide com a abertura do coração de Jesus.
Para o Mestre, o que conta é o bem que se faz. Jamais uma simples pertença grupal, uma simples afinidade ou mesmo proximidades culturais e cultuais, podem substituir o bem que se deve praticar. Conta o bem que só pode ser feito em nome de Deus; só Ele é a fonte única do bem. Deus só está presente onde se pratica o bem. O bem que se faz não é, em hipótese alguma, contradição a Deus. A força do bem é a condição única para alargar o horizonte e superar toda atitude preconceituosa estreita.
E o bem se torna valor absoluto, definindo a condição do verdadeiro discipulado.
Ser discípulo de Jesus, portanto, é compreender a vida como altar de ofertas para o bem.
O Mestre da Galileia revela o simples e, aparentemente, tão insignificante ato de oferta de um copo d’água como remédio que cura a rigidez do preconceito e vence a incapacidade de perceber a ternura acolhedora em cada gesto oblativo e sua importância na construção da vida e na recriação da dignidade humana.
Vale um copo d’água que se dá. Vale pela importância sempre primeira do outro, não importa quem quer que seja, fazendo valer o princípio norteador do coração amoroso de Deus.
Jesus rompe toda tentação sectária em seus seguidores. Ele não constituiu seu grupo para controlar sua salvação messiânica. Ele não é rabino de uma escola fechada, mas Profeta de uma salvação aberta a todos. Jesus não é monopólio de ninguém. Todo aquele que está a favor do ser humano está com Jesus. Todo aquele que trabalha pela justiça, pela paz, pela liberdade... está em profunda sintonia com Ele. Há uma infinidade de pessoas de boa vontade que trabalham por uma humanidade mais digna, mais justa e livre. Nelas está atuando o Espírito de Jesus. Devemos senti-los como amigos e aliados, nunca como adversários.
O(a) seguidor(a) de Jesus deve ser sempre fermento de unidade e nunca causa de discórdia e exclusão.
Jesus, como bom Mestre, aproveita da ocasião para denunciar o veneno que mata toda possibilidade para a vivência do bem, do amor, da verdade: é a presença do “escândalo”, tanto no nível pessoal quanto comunitário. De fato, como no tempo de Jesus, também vivemos em uma sociedade de escândalos, que utiliza e destrói os pequenos. Há escândalos de gastos militares, de mentiras políticas generalizadas, de riqueza ostentosa fruto da exploração dos mais frágeis, de corrupção e violência, de poder despótico...
Assim, o evangelho deste domingo situa o grande pecado que consiste em “escandalizar” os pequenos (utilizar, fazer cair, perverter, abusar) no plano social, religioso, econômico, sexual... Trata-se do domínio de vidas e consciências. Nesse contexto Jesus introduz a referência simbólica da mão, do pé e do olho que escandaliza ou destrói os outros, acrescentando que o seu seguidor é capaz de “cortar” a mão ou o pé ou de arrancar o olho, a fim de conservar-se “inteiro” para o Reino (não destruir os outros).
É preciso, portanto, redescobrir a espiritualidade do corpo e de todos os seus membros e órgãos, para sermos presenças compassivas, construtivas e amorosas.
A resposta de Jesus é clara: “Corta tua mão, corta teu pé, arranca teu olho..., renuncia-te a ser o centro para que o outro possa viver e crescer!”.
O corpo é mediação de comunhão, de encontro..., e todos os seus membros devem ser “cristificados”, ou seja, devem inspirar-se na corporalidade de Jesus.
O ser humano é aqui pés, mãos e olhos, em visão ternária que se revela muito significativa. É evidente que o texto poderia ter acrescentado outros exemplos de membros vitais: língua, ouvidos... Mas, os três aqui citados condensam a totalidade humana no plano do fazer, decidir, desejar e são exemplo de um modo de proceder “cristificado” para toda a comunidade cristã.
Em primeiro lugar, “conhecemos Jesus pelos pés”; como peregrino, Ele sempre rompeu distâncias e fronteiras, fazendo-se próximo de todos para curar, animar, elevar, colocar o outro de pé.
Jesus revela que cada passo deve ser uma oração e cada caminhar é um rosário de contas que marcam os caminhos da vida com a fé do caminhante.
Na última Ceia, quando Jesus se coloca aos pés dos seus discípulos, não se trata apenas de um gesto de humildade, mas sobretudo, de um gesto de cura e de amor. Porque não se pode amar alguém e olhá-lo de cima. E também não se trata de olhá-lo de baixo para cima, sendo-lhe submisso.
É preciso colocar-se a seus pés para ajudá-lo a reerguer-se.
Igualmente decisivas sãos as mãos; elas adquirem uma infinidade de formas (mãos estendidas, enérgicas, punho fechado, mãos abertas...). Quando estendemos os braços e tocamos o outro espontaneamente descobrimos a compaixão e a riqueza que existe em todos nós.
Jesus não ama à distância; Jesus demonstra seu amor abraçando, abençoando, tocando...
Tocar ou nos sentir tocados é, em determinadas circunstâncias, a linguagem mais inteligível do amor.
A religiosidade popular está repleta de atitudes que testemunham o fato de que, para quem tem o coração à flor da pele, “orar e tocar” são uma só e mesma coisa.
Orar tocando é como reeditar as palavras de S. João:
“Aquele que nossas mãos tocaram, disso damos testemunho” (1Jo. 1,1).
Por fim, o olhar é o recurso não verbal mais expressivo e sincero que possuímos: com um simples olhar podemos transmitir desde o ódio até uma declaração de amor ou de amizade.
Os olhos são o “reflexo da alma”; muitas coisas que estão acontecendo no nosso interior vão se expressar na maneira como olhamos.
“Cristificar” o olhar é entrar no fluxo do olhar compassivo de Jesus; com seu olhar intenso e penetrante Ele conseguia despertar a dimensão mais nobre e original em cada pessoa. Seus olhares falavam por sí sós, pois transmitiam sentimentos, desejos e afetos, sem necessidade de usar nenhuma palavra.
A revelação bíblica nos diz que Deus vem ao nosso encontro pelo mais cotidiano, mais banal e próximo dos portais: os cinco sentidos, os membros e os órgãos de nosso corpo. Eles são grandes entradas e saídas da nossa humanidade vivida. É preciso aprender a reconhecê-los como “lugares teológicos”, isto é, como território privilegiado não apenas da manifestação de Deus, mas como possibilidade de relação com Ele.
A vida é o imenso laboratório para a atenção, a sensibilidade e o espanto que nos permite reconhecer em cada instante os passos do próprio Deus em nossa direção, suas mãos providentes e cuidadosas que nos sustentam, seu olhar compassivo que nos acolhe. O corpo que somos é uma gramática de Deus: nele aprendemos a andar como Deus, a tocar como Deus, a olhar como Deus...
Texto bíblico: Mc 9,38-48
Na oração: este é um momento para examinar minhas mãos, meus pés e meus olhos: eles são mediação para o encontro ou para o escândalo na relação com os outros?
- Que tenho de arrancar-me, que devo “perder” para não escandalizar, ou seja, para que os outros possam viver?
- Que deve a Igreja arrancar de si mesma para não servir de escândalo aos pequenos?
- E nossa sociedade em geral, nossa política e economia neo-liberal... quê terá de arrancar e cortar para que os pobres possam viver com mais dignidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
23.09.2021
“Chamou uma criança, colocou-a no meio deles, e abraçando-a...” (Mc 9,36)
O relato evangélico deste domingo nos situa no começo do caminho que levará Jesus a Jerusalém. Neste momento de sua vida, ele tem consciência que as forças que se opõem à sua proposta de vida são muito fortes e não vão desistir em seu objetivo de esvaziar tal iniciativa. Jesus sente que sua vida começa a estar em perigo, mas não vai ceder em seu empenho por revelar e oferecer o amor e a justiça bondosa de Deus aos pequenos desta terra.
Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.
Ele se deu conta de que avançar em seu projeto lhe custaria a vida. Em sua instrução ao grupo de seguidores, antecipa que o poder condená-lo-á à morte. Revela, portanto, o fato de “perder a vida” como conseqüência inevitável por viver a coerência evangélica até o extremo. As circunstâncias mostravam, com evidência, que a hostilidade do poder para com Jesus se intensificava. Por isso, começa a prevenir seus seguidores de que sua prática em favor da justiça implicava um enorme risco.
Os evangelistas sinóticos expressam esta consciência de Jesus através dos anúncios da paixão. Eles revelam que Jesus é realista ao explicitar as consequências de suas opões. Esta consciência o leva a dedicar-se com mais intensidade na formação de sua comunidade de seguidores para fortalecer suas certezas e opções e, no caso de que Ele morra, possa seguir adiante, comprometidos com a causa do Reino.
Marcos expressa com claridade que os discípulos não captam a força das palavras de Jesus e tem medo de que todas as suas expectativas venham abaixo e se obscureça o horizonte que os tinha seduzido pelos caminhos da Galiléia. Eles estão longe de compreender os critérios do Reino e continuam apegados a seus ideais de êxito e poder.
Ao chegar em casa, em Cafarnaum, Jesus reúne os doze para questionar suas pretensões de poder e honra. Mais uma vez, o profeta da Galiléia quebra as expectativas de seus discípulos e lhes propõe como critério de grandeza o serviço, e como critério de honra o cuidado dos pequenos e frágeis. Sua nova comunidade não pode se pautar pela busca do prestígio, do poder, da imposição, do mando...
Deste modo, Jesus coloca o serviço e a gratuidade em um lugar central nas relações dentro da nova comunidade. Com sua típica linguagem provocadora, Ele nos ensina a imaginar um mundo diferente. A partir de sua original experiência de Deus, situa tudo em outro horizonte, descobre novas possibilidades e introduz uma lógica alternativa, a da gratuidade, do esvaziamento do próprio interesse e de um deslocamento em direção aos últimos e mais frágeis.
Há algo na identidade de Jesus que chama a atenção de todos nós: sua liberdade diante de toda expressão de poder, seja no campo religioso, social e nas relações entre as pessoas. Ele tem consciência que a busca de “poder” é o pecado de morte, pois onde impera o poder ali se visibilizam toda manifestação de violência, competição, ruptura das relações, desmandos... Para o Mestre de Nazaré, nenhum poder, muito menos o religioso, pode ser mediação de salvação e de libertação do ser humano.
Jesus compreendeu perfeitamente que a opressão mais forte, sofrida por seu povo, não era só a opressão política e econômica de Roma, mas a opressão religiosa dos dirigentes e líderes de Israel. Estes estavam dispostos a tudo para continuar exercendo um poder ao qual não desejavam renunciar.
De fato, havia uma estrutura social, política, econômica, ideológica, religiosa... resistente e fechada a qualquer plano que colocasse em perigo sua continuidade. Tal sistema respondia com hostilidade porque detectava o perigo que Jesus e sua proposta de vida representavam para ele.
Constata-se, então, o "escândalo" que a palavra e o modo de agir de Jesus provocavam em torno dele; tal escândalo procedia da sua extraordinária "autoridade". Esta expressão, presente nos evangelhos, não é fácil de ser traduzida em português. A palavra grega é "exousia" que, literalmente, refere-se ao que "provém do ser" que se é. Não se trata de algo exterior ou forçado, mas de uma atitude que emana de dentro e que se impõe por si só. “Ousia” designa o que se é ou se tem. “Ex” indica procedência, “de”. A exousia é a autoridade que sai de dentro. Por isso a autoridade de Jesus não tem nada a ver com o poder que se impõe ou a liderança que arrasta. Jesus esvazia-se de todo poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas”.
A autoridade de Jesus é uma autoridade sem poder coercitivo. Trata-se de uma autoridade moral. É a autoridade da verdade, da autenticidade, da exemplaridade. Em suas palavras e ações, Jesus deixa transparecer uma profunda experiência de Deus e isto lhe confere uma grande liberdade e explica sua autoridade. Por isso, não se pode explicar Jesus, sua vida e sua forma de agir, sem recorrer à sua experiência de intimidade com o Pai.
Sabemos que o poder foi a grande tentação dos discípulos de Jesus e dos seus seguidores ao longo da história da Igreja. Jesus, com seu “ensinamento” e seus gestos, quebra a estrutura da centralidade do poder narcisista; sua atitude é humanizadora e propõe o caminho da “descida compassiva” como a marca distintiva dos seus seguidores; Ele parte da realidade humana mais frágil e excluída, e ensina o segredo para se construir uma comunidade diferenciada: a acolhida e o serviço mútuo em lugar de e em vez de “hierarquias” rígidas e distantes que envenenam as relações interpessoais. Para Jesus, não é o poder que deve ocupar o centro, mas a criança, despojada de todo poder.
Por isso, para quebrar a pretensão de poder e prestígio do seu grupo de seguidores, Jesus realiza um gesto de forte impacto: coloca uma criança no centro do grupo e a abraça. Os discípulos discutiam sobre esse “centro”, mas agora descobrem que ele está ocupado por uma criança a quem Jesus coloca de pé: esta é a nova “cátedra” a partir da qual ela ensina os(as) seguidores(as) d’Ele.
Na nova comunidade, fundada por Jesus, há uma “inversão pedagógica”: são as crianças que nos ensinam e nos conduzem, e, com um olhar assombrado, nos fazem arregalar os olhos e “ver” coisas que nunca vimos. São elas que nos fazem ver a “eterna novidade do mundo” (Fernando Pessoa).
O profeta Isaías, numa curta e maravilhosa frase, resumiu essa situação: “... e uma criança pequena os guiará” (Is. 11,6). Os grandes aprendendo dos pequenos; os adultos sendo ensinados pelas crianças.
Agora Jesus nos revela que é a criança que vai mostrando o caminho. Aquilo que os adultos esqueceram e que a sabedoria busca, as crianças sabem.
Os sábios sabem que existe uma progressiva cegueira das coisas à medida que o seu conhecimento cresce.
Recuperar a “sapientia” é preparar o caminho para a volta da criança, abafada em nosso interior.
Os adultos, para se salvar, deveriam rezar diariamente a reza mais sábia de todas:
“Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande...” (Adélia Prado).
Texto bíblico: Mc 9,30-37
Na oração: O exercício do poder se expressa nas atitudes de dominar, manipular, subjugar e definir tudo segundo os próprios critérios. A perversidade do coração humano encontra no exercício do poder o campo mais propício para a revelação de suas mazelas, violências e vaidades. E isso no campo político, religioso, nas relações entre as pessoas...
- Faça uma leitura orante de seu cotidiano e verifique se, sorrateiramente, o “veneno do poder” encontra modos de expressar “disfarçados”, petrificando seu coração, impedindo a vida de desabrochar e a criatividade de se expandir.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.09.21
“...quem perder sua vida por causa de mim e do Evangelho, salva-la-á” (Mc 8,35)
O relato deste domingo (24o domingo do Tempo comum) ocupa um lugar central e decisivo no evangelho de Marcos. Jesus sempre teve uma presença original e instigante no contexto social e religioso de seu tempo; sua atuação provocava diferentes reações e ninguém podia ficar “indiferente” diante do seu modo de ser e viver.
D’Ele se diziam muitas coisas contraditórias: que estava “fora de si” (Mc 3,21), que era um endemoninhado (Mc 3,22), que era um “comilão e beberrão” (Lc 7,34), “amigo dos pecadores” (Mt 11,19) e “blasfemo” (Mc 2,7), um impostor (Mt 27,62), o profeta esperado, o mestre que ensinava doutrinas que poderiam provocar uma rebelião (Lc 23,1), que era o “filho do Deus vivo”...
Até que um dia, longe do seu ambiente, longe do lago e de Jerusalém, em Cesaréia de Filipe, Jesus fez aos discípulos perguntas decisivas, que são aquelas do “meio do caminho”, perguntas adultas.
Os discípulos já levavam um bom tempo convivendo com Jesus; não estavam mais no entusiasmo inicial: viram e viveram o suficiente para dar uma resposta que não dependia daquilo que os outros diziam a respeito da identidade de Jesus. “E vós quem dizeis que eu sou?”
Chegou o momento em que eles deverão se situar diante da pergunta decisiva e que exige de todos uma tomada de posição, um ato de fé. Perceberam que a pergunta do “meio do caminho” impele-os a ir mais longe, a sondar o mistério profundo, não só da identidade de Jesus, mas da identidade de cada um. Sentiram que a resposta a ser dada a esta altura do seguimento devia iluminar o que lhes faltava percorrer, devia marcar a vida com o selo da entrega: a quem estão seguindo? Que é o que descobrem em Jesus? Que impactos causam em suas vidas a mensagem e o projeto do Mestre da Galiléia?
Desde o momento em que se deixaram impactar pelo primeiro chamado, os discípulos vivem interrogando-se sobre a identidade de Jesus. O que mais lhes surpreende é a autoridade com que fala, a força com que cura os enfermos, o amor com que oferece o perdão de Deus aos pecadores, a liberdade diante da religião e da tradição do seu povo... Quem é este homem tão diferente e tão original?
Os Evangelhos anunciam que o modo de Jesus viver – suas atitudes, seus gestos, suas palavras – revelava uma nova visão das coisas, um novo ponto de partida, uma nova ordem, um novo projeto. Jesus era livre e essa liberdade nos fascina até hoje.
Jesus encarnou-se num mundo fechado, dividido, conflituoso... Fez-se presente no mundo da dor: enfermos, pobres, pecadores... e a partir daí propôs um novo movimento de humanização.
Jesus vivia a partir de um sonho primordial: o Reino. A riqueza original desse sonho primordial não se “encaixava” nos esquemas dos fariseus ou saduceus, essênios ou zelotes, nem se deixava instrumentalizar pela instituição do Templo ou sinagoga.
Diante do seu modo original de viver, Jesus quer verificar a real motivação dos seus discípulos. “E vós, quem dizeis que eu sou?” Não basta que entre eles haja opiniões diferentes mais ou menos acertadas. É fundamental que aqueles que se comprometeram com sua causa, reconheçam o “mistério” que se revela na vida d’Ele. Se não for assim, quem manterá viva sua mensagem? Que será de seu projeto do Reino de Deus? Em que terminará aquele grupo que se associou a um movimento de vida, desencadeado pelo mesmo Jesus?
O horizonte de todo ser humano é precisamente a vida e a plenitude. Isso é o que todos, sabendo ou não, buscamos. E o buscamos em tudo o que fazemos e em tudo o que deixamos de fazer. Como acertar?
Jesus oferece uma resposta carregada de sabedoria, na linha daquela que foi dada por todos os mestres e mestras espirituais: para caminhar na direção da vida, é necessário “desapegar-se” do ego.
“Renunciar a si mesmo”: não se trata de negar o que somos, mas o que pretendemos ser e não somos.
Este esvaziamento não significa nossa anulação enquanto “pessoas”, mas nossa potenciação. Na medida em que os aspectos que nos limitam diminuem, aumenta o que há em nós de plenitude. Só há seguimento de Jesus quando se dá um processo permanente de esvaziamento do ego para viver a entrega aos outros.
Só uma pessoa esvaziada de seu ego pode transformar-se e transformar a realidade.
“Renunciar a si mesmo” supõe renunciar toda ambição pessoal. O individualismo, o egoísmo, não tem lugar na vida de Jesus e daquele(a) que busca segui-lo.
“Carregar a cruz” também não significa buscar a dor e nem negar a vida. As palavras de Jesus não são uma exaltação do sofrimento, mas expressam uma grande sabedoria: buscam “despertar” seus seguidores diante das consequências frente ao compromisso com a vida. “Cruz”, no seu sentido original significa “prontidão, estar de pé, preparado, mobilizado, ser fiel até o fim...”. Essa é a Cruz assumida por Jesus e essa também deve ser a cruz de quem entra no Caminho de Vida. Só essa Cruz é salvífica.
Como evitar que o nosso ego nos domine e determine nossa vida? O primeiro passo será desvela-lo e desmascará-lo com todas as suas maquinações e dubiedades.
Nós, seres humanos, somos uma realidade contraditória: experimentamos em nosso interior como que uma “dupla identidade”: por um lado, a identidade individual (o ego) e por outro a identidade profunda (transpessoal), que constitui nosso verdadeiro ser.
Na realidade, o ego não é o meu verdadeiro eu, não sou eu. É uma falsa imagem de mim. É a ilusão de que eu sou um indivíduo separado, independente, isolado e autônomo. Essa ilusão me distancia da comunhão com os outros e com a Criação, nega que faço efetivamente parte de um universo imenso, em que tudo é interdependente e está intimamente ligado entre si. O ego exacerbado quer controlar o seu mundo: pessoas, acontecimentos e natureza. Daí a obsessão pelo poder e pelo domínio.
Sabemos que todas as divisões, conflitos e rivalidades entres os seres humanos provém da ilusão do ego que quer se impor sobre os outros.
Só na identificação com Jesus vamos afastando as cinzas e reacendendo nosso verdadeiro eu, oblativo, aberto, expansivo... No encontro com a identidade de Jesus descobrimos nossa verdadeira identidade. Quando descobrimos a “boa notícia” (=evangelho) de quem somos, seremos capazes de esvaziar a identificação com o ego e deixar-nos de viver para ele. O anúncio do evangelho (boa-notícia) começa pelo nosso interior, levando luz para estabelecer o “cosmos” em meio ao caos dos conflitos ali presentes.
O nosso verdadeiro eu está enterrado por baixo do nosso ego ou falso eu. Segundo a afirmação de Jesus, a pessoa cresce e se enriquece na entrega e na desapropriação. Podemos parafrasear as palavras de Jesus deste modo: “aquele que quer salvar seu ego, perde a vida; mas aquele que deixa de se identificar com seu ego, vive em plenitude”.
O Evangelho nos convida, mais uma vez, a alargar o círculo de nossa interioridade, a olhar para fora, a descentrar-nos para encontrar o outro, a Deus, e, provavelmente, por esse caminho, também o olhar mais autêntico e completo sobre a nossa própria vida.
O modo mais simples de traduzir isso parece ser este: “deixa de viver para teu eu estreito”, “não gira em torno ao teu ego, porque esse modo de vida te aprisionará cada vez mais, e tua vida será vazia e estéril”.
Trata-se de um apelo a ir mais além do ego e descobrir nossa verdadeira identidade, aquela “identidade compartilhada”, na qual o próprio Jesus se encontrava.
Texto bíblico: Mc 8,27-35
Na oração: Como a Lua, todos nós também temos nosso “lado oculto”: há sempre dimensões da vida que procuramos mantê-las escondidas dos outros: feridas, fragilidades, sentimentos dissimulados, desejos camuflados, limitações disfarçadas, pobrezas mascaradas...
Deus também conhece este lado oculto e o olha com compaixão. A oração é a ocasião privilegiada para revisitar, a partir de Deus, esse lado oculto, desvelá-lo e integrá-lo, para que nossa verdadeira identidade se manifeste.
- Dê nomes ao seu “lado oculto”: como você reage diante dele? Como torná-lo companheiro de estrada?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.09.2021
Imagem: pexels.com
“Ephathá! Imediatamente seus ouvidos se abriram e sua língua se soltou...” (Mc 7,35)
Diz um proverbio chinês que “quando os olhos são liberados, começa-se a ver; quando os ouvidos são liberados, começa-se a ouvir; quando a boca é liberada, começa-se a saborear, e quando a mente é liberada, alcança-se a sabedoria e a felicidade”.
Para nos livrar da auto-referência é preciso “cristificar” nossos sentidos, tornando-os oblativos e expansivos. Talvez, a pior enfermidade que padecemos é a atrofia e petrificação dos sentidos; com isso, perdemos a capacidade de assombro e de agradecimento, a capacidade de abertura ao outro, aos outros e ao Outro.
Segundo o livro do Gênesis, o estado original dos sentidos e da mente é a contemplação e a admiração, e não o instinto possessivo ou a suspeita; através deles transitamos pelo mundo numa atitude receptiva.
Assim, “pensar” a realidade é acolhê-la com gratidão e veneração. Com os sentidos oblativos, a inteligência é chamada a “sentir” o mundo como Tabernáculo de uma Presença, que tudo dignifica e torna sagrado.
A filosofia antiga dizia: “Não há nada no entendimento que antes não tenha estado nos sentidos”.
Todo o corpo humano é expressão: gesto, atitude, palavra...; tudo isto revela interioridade, sentimento, espiritualidade; e os sentidos do outro, se estão atentos, podem captar o que foi expresso.
Cessado o pensamento nós nos transformamos num ser só de sentidos, do jeito mesmo como nascemos.
Nós somos olho, ouvido, nariz, boca, pele. Olhamos, escutamos, saboreamos, cheiramos, tocamos... Só assim entramos em interação com a realidade e com os outros. Os sentidos nos humanizam.
O evangelho deste domingo condensa vários aspectos que se oferecem a nós como luz para desvelar o lugar e a importância dos nossos sentidos. Neste relato encontramos Jesus peregrino, fora de seu país, atravessando terra estrangeira, um espaço habitado por “pagãos”, por aqueles que não professam a fé no Deus de Israel. Jesus, com todos os seus sentidos ativos, quebra distâncias e se faz próximo do diferente, daquele que é rejeitado por não ter as mesmas ideias, a mesma religião, a mesma cultura...
O relato ajuda a nos fixar na corporeidade de Jesus, pois nos fala de suas mãos, de seus dedos, saliva, olhos, respiração..., todo o seu ser a serviço do bem. Jesus mobiliza todos os seus sentidos para “destravar” os sentidos bloqueados do enfermo que é levado até Ele.
Jesus se revela como presença inspiradora e nos apresenta uma maneira original de viver o encontro, a acolhida, o diálogo e a cura. Ele rompe as fronteiras e os pré-juízos, se aproxima e permite que os outros se aproximem dele, oferecendo, na relação, o melhor de si mesmo e despertando o melhor que há na outra pessoa. Assim, para uma relação sadia e compassiva é preciso mobilizar todos os sentidos corporais.
Jesus, com seus sentidos abertos e acolhedores, destrava os sentidos do pobre homem excluído e o capacita a integrar-se na convivência social; com os sentidos abertos, agora ele pode expressar a riqueza de sua interioridade. Uma vez libertado da atrofia dos sentidos, o homem se emancipa, recupera sua autonomia e pode manifestar-se sem bloqueios; nada mais o limita.
No encontro com o enfermo que lhe é apresentado, Jesus começa por usar uma linguagem não-verbal; é a linguagem mais primitiva, anterior à palavra: através dos gestos, o surdo-mudo vai sendo reconstruído em sua humanidade.
Jesus, no início da cura, “o conduz à parte, longe da multidão”; uma ação personalizadora, um afastamento da multidão, para longe da massificação.
E lá, na intimidade do contato, o doente é cuidado na individualidade das suas dores.
- “Colocou os dedos nos seus ouvidos”: literalmente, “pôs o dedo na ferida”.
A mão é fonte de contato, é canal de passagem da energia curativa.
- “Com a saliva tocou a língua dele”: força terapêutica da saliva.
- “Olhando para o céu..”: Jesus olha para o alto, em direção ao Pai. Com o olhar para o alto, encaminha-o para além de si. É preciso remetê-lo ao Pai, origem de toda vida.
- “Jesus suspirou”: com o sopro, prolonga o gesto do Criador no 6º. dia da Criação; recorda como Deus “fez tudo bem” no início. Traz à memória o sopro do Espírito, que transforma o “caos” existencial do surdo-mudo em “cosmos”, ou seja, a presença do sopro que passará pelas cordas vocais e pela língua, para ser transformado em palavras.
- “E disse-lhe: ‘Effatha’ (que quer dizer: ‘abre-te’)”: palavra dirigida ao coração do surdo-mudo. É como se dissesse: “abre-te à tua identidade! destrava teu interior!”
Depois de tantos gestos não-verbais e primitivos, vem a palavra. E o surdo-mudo desata sua língua e começa a falar. Insere-se nos devotos que ouvem a Deus e proclamam que Ele é o único, com todos os órgãos e sentidos do seu corpo.
A sociedade na qual estamos inseridos requer de todos nós uma nova sensibilidade para facilitar a convivência, a transformação social e acolher a nova visão da existência humana. No entanto, a convivência social se revela cada vez mais conflituosa; uma das grandes dificuldades é a ausência de saber escutar, olhar, sentir...
Vivemos tempos de reclusão, petrificação, ódios e intolerâncias... que são o contrário do “ephatá-abre-te”.
É preciso “ressuscitar os sentidos” para que encontrem seu lugar insubstituível na experiência da relação com os outros e na expressão de nossa fé. E só podemos descobrir o “lugar e o sentido” dos sentidos através do confronto com a “sensibilidade de Jesus”.
Nesse sentido, a conversão evangélica precisa chegar a alcançar a sensibilidade para ser efetiva. Os senti-dos se fazem “espirituais”, isto é, tornam-se sentidos transfigurados, habitados, animados pelo Espírito de Deus porque o ser humano é o “templo do Espírito” (S. Paulo).
Assim, uma sensibilidade cristificada revela-se como uma graça que nos permite viver o seguimento de Jesus de um modo sempre original e aberto.
O agir cristão depende da sensibilidade e enquanto esta não for evangelizada não podemos ter certeza de reagir evangelicamente na vida.
Escutar, sentir, perceber as próprias sensações físicas, as emoções primárias, as reações psíquicas...: o corpo é criativo nas suas expressões e na arte da comunicação. A corporalidade, tanto pode ser escutada como sentida. Tendo aprendido a auto-escutar, pode-se olhar, escutar ou sentir as reações vocais, corporais e sentimentais do outro que padece, que sorri, que precisa falar.
Enfim, somos convidados a nos identificar com Jesus Cristo ativando, assídua e amorosamente, os olhos e ouvidos, o tato, paladar e olfato, com a esperança de que fiquem tão banhados e afetados pela sensibilidade d’Ele que, quando mais tarde entrarem em contato com a vida real, possam reagir diante dela com uma sensibilidade nova, diferente, transformada, convertida. Só assim nossa presença será mais evangélica.
Texto bíblico: Mc 7,31-37
Na oração: O surdo-mudo precisava abrir os ouvidos e soltar a língua, mas todos nós precisamos abrir alguma dimensão de nossa pessoa que está travada, ou talvez alguma capacidade adormecida ou bloqueada. É preciso transitar com Jesus pelos “territórios pagãos” da nossa própria interioridade, onde dimensões da vida estão travadas, palavras estão silenciadas, dinamismos estão atrofiados...
- Deixe ressoar em seu coração: “Ephathá! Abre-te!” - “Abre-te” a outros modos de pensar, a outras visões e culturas, viver aberto(a) à história e à desafiante realidade.
- O que é preciso “desbloquear” em seu interior? Capacidades adormecidas? (amor, ternura, alegria, generosidade, solidariedade, liberdade...); defesas protetoras que se converteram em armadura oxidada? (medos, retraimento, imagem idealizada...); “manias” nas quais se instala, costumes e rotinas que o(a) mantém fechado(a) em uma jaula de um falso conforto...?
- O que parece claro é que a abertura a espaços interiores vem sempre acompanhada da abertura aos outros e a toda a realidade. Esse parece ser o caminho que conduz à descoberta de que todos somos uno com a Fonte.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
01.09.2021
“Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mc 7,6)
O evangelho deste domingo (22o Domingo do Tempo Comum) seleciona só alguns versículos do cap. 7 de Marcos, carta magna da liberdade cristã, no plano da refeição e do amor (relações humanas). Que todos tenham direito à alimentação e se amem, com todo o coração. Trata-se, pois, de educar e sanar o coração, não através de mais leis, mas através de mais liberdade e verdade de amor.
Neste sentido, o relato de hoje nos situa no centro da dinâmica cristã, no lugar onde o(a) seguidor(a) de Jesus, muitas vezes centrado(a) na lei, a partir de seu interior se abre (por impulso da memória de Jesus) à grande liberdade cristã na refeição e no amor.
De fato, para muitos, sua relação com Deus se reduz ao cumprimento de algumas práticas religiosas, à participação em alguns ritos e festas, segundo as normas e tradições estabelecidas por sua própria religião. O ensinamento de Jesus liberta de muitas obrigações e orienta ao culto verdadeiro.
É uma mensagem que nos livra de tantas ataduras e ritualismos, da repetição mecânica de tradições e normas do passado, e orienta à novidade de um culto verdadeiro, a partir do coração.
Marcos ressalta que os fariseus e alguns mestres da lei “se reuniram em torno de Jesus”. Não são pessoas interessadas em conhecê-lo. Como fiéis cumpridores da lei, já haviam percebido o perigo que Jesus representava por suas transgressões em relação ao sistema religioso. Vieram de Jerusalém, o centro do poder religioso, para investigar a conduta do Mestre de Nazaré. Tinham reconhecido as coisas extraordinárias que Ele fazia, e tinham tentado desacreditá-lo frente ao povo, atribuindo seus poderes ao “chefe dos demônios”. Querem criar ao redor de Jesus um cerco de suspeitas e rejeição.
Agora, escribas e fariseus unidos encontram outra transgressão da lei nos discípulos de Jesus: eles comem sem lavar as mãos. Convivendo com Jesus, eles tinham assimilado sua liberdade. Na multiplicação dos pães (relato anterior), Jesus ofereceu pão para a vida de todos, sem exigir purificações prévias, porque a pureza e a cura vem d’Ele. Mas, para a comissão investigadora vinda de Jerusalém, comer sem lavar as mãos não era uma falta menor. Estava em jogo todo um sistema de separação entre o que é puro e o que é impuro.
Há alimentos puros que todos podem comer, e outros impuros, que são proibidos. E as pessoas precisam se purificar antes de comer. Assim ensinaram os antepassados e assim manda a lei. Segundo os encarregados da religião, não se pode relativizar a autoridade sagrada da tradição.
A reação de Jesus é muito dura, e põe em evidência que a relação com Deus não passa através do uso de alimentos puros ou ritos de purificação, de culto formal e vazio. Os escribas e fariseus são a encarnação dos destinatários da denúncia profética de Isaías: “este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim”. Os responsáveis da instituição criaram, em nome de Deus, um sistema de poder, com ritos que os privilegiavam, obrigações que discriminavam e separavam, e um controle social intolerável. Os pobres não podiam cumprir com todas as normas, e por isso eram considerados “povo maldito”.
Uma consequência muito clara que aparece aqui consiste em que, com muita frequência, na conduta de muitas pessoas há uma enorme distância entre a observância dos ritos sagrados, por uma parte, e a fidelidade à honestidade, à bondade, à justiça... por outra parte.
E aqui nos deparamos com tantas pessoas que são fielmente observantes das leis e ritos religiosos, mas, ao mesmo tempo, são pessoas que são profundamente desumanas na relação com os outros; deixam muito a desejar em sua conduta ética.
Segundo os relatos evangélicos, é visível que Jesus não teve enfrentamentos nem com os romanos, nem com os pecadores, os samaritanos, os estrangeiros, etc... Os conflitos de Jesus surgiram precisamente com os mais fiéis cumpridores da religião: sacerdotes, mestres da lei e fariseus.
Jesus não rejeitou o culto religioso. O que Jesus fez foi deslocar o centro da religião e esse centro não está nem no templo e nem nas suas cerimônias, nem no sagrado e nem em seus rituais.
O centro da experiência religiosa, para Jesus, está em fazer o que fez o mesmo Deus, que sempre “desce” e se aproxima de todos os seus filhos e filhas. Deus está presente em cada ser humano, seja quem for, pense como pense, viva como viva. Só reconhecendo esta realidade surpreendente e vivendo-a, como viveu o próprio Jesus, estaremos no caminho que nos leva ao centro do verdadeiro culto a Deus.
Os líderes religiosos apresentam “mãos limpas” porque não as usam para o serviço aos outros; são “mãos assépticas” porque não se “contaminam” no contato com as pessoas. Eles se mostram incapazes de ver as mãos como mediação para uma nova humanização, reduzindo-as e atrofiando-as devido a seus esquemas religiosos e morais. Suas mãos carregam censuras, traficam destruição, encarnam a falsidade... Suas mãos são temidas porque fecham o futuro, excluem e espalham o medo, pesam porque julgam...
Aqui, no embate com Jesus, eles não fazem nenhuma referência ao anterior evento da “multiplicação dos pães” e nada dizem sobre a refeição de Jesus com a multidão; eles não se preocupam com aqueles que não comem, mas observam a compostura daqueles que comem. Sua visão míope foge do essencial para permanecer no periférico. Desviam a atenção para o terreno de seus domínios, uma moral superficial, descompromissada. Assim, pois, centram sua atenção em alguns dos discípulos para captar uma irregularidade em sua forma de comer, pois eles comem com “mãos impuras”.
Jesus nos coloca a todos diante deste dilema: o que vem em primeiro lugar, os ritos religiosos ou o compromisso com a vida dos mais vulneráveis e excluídos? O mais importante é o ritual religioso ou a experiência humana de encontro, convivência, serviço...?
Para Jesus, o culto verdadeiro a Deus não passa pelas cerimônias pomposas, centradas na exterioridade e aparência, mas pelo coração e pela vida. É uma mensagem que Marcos envia também à sua comunidade.
Jesus insiste, com uma indicação que quer ser universal: “Escutai todos e compreendei”. Todas as coisas são puras. A impureza, o que separa de Deus e dos outros, não vem dos alimentos que são comidos, daquilo que vem de fora e vai ao estômago.
A impureza pode sair só de dentro, do centro da pessoa, do coração do ser humano. Isso impede a relação sadia com Deus, ferindo as relações humanas. O coração do ser humano é capaz do melhor (compaixão, solidariedade, bondade, serviço, amor...) mas, quando petrificado e fechado, é capaz do pior (más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, devassidão, inveja, calúnia, orgulho...). São os chamados “pecados de raiz”, ou seja, endurecimentos, fechamentos e fixações... que impedem a energia vital, a misericórdia de Deus, fluir livremente. São bloqueios e empecilhos colocados por nós mesmos e que interceptam a relação com Deus, com os outros e com as criaturas, portanto, com a plenitude da vida, e cortam nossas próprias potencialidades de vida.
Quando falamos de “pecados de raiz” queremos destacar a necessidade de uma conversão radical.
Texto bíblico: Mc 7,1-8.14-15.21-23
Na oração: - Deixe-se conduzir pelo Espírito; graças à sua presença, o caos interior se transformará em cosmos (beleza e harmonia) que se expressará em compaixão, perdão, tolerância, acolhida...
- Seus pensamentos são poluídos? Suas palavras são ácidas? Seus gestos são agressivos? Os entulhos – ódios, julgamentos, inveja, intolerância... se amontoam em seu interior?
- Permita que o Espírito transite livremente pelos espaços mais sombrios do seu eu profundo, realizando uma verdadeira “ecologia interior”.
- Recolha-se no mais íntimo de si mesmo, mergulhe em seu oceano de mistério e descubra, lá no mais profundo, o Ser Vivo que fundamenta a sua identidade e seu ser verdadeiro.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.08.2021
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“As palavras que vos falei são espírito e vida” (Jo 6,63)
Segundo o evangelista João, Jesus resume assim a crise que vai se estabelecendo em seu grupo: “As palavras que vos falei são espírito e vida”. Jesus desperta um “espírito novo” naqueles que o seguem; suas palavras tem um peso e ativam vida; são palavras inspiradoras porque brotam do mais profundo do seu coração; são palavras provocativas, que colocam em questão o verdadeiro motivo daqueles que o seguem.
Por isso, elas despertam uma ressonância no interior dos ouvintes e desencadeiam um movimento de ruptura com o antigo, movendo-os a um distanciamento das “palavras domesticadas” pela tradição e pela religião. As palavras de vida pronunciadas por Jesus podem gerar um movimento capaz de orientar o mundo para uma vida mais digna e plena.
Um dos maiores dramas de nossa atual cultura é que temos esvaziado as palavras de sentido, e, com frequência, as utilizamos para expressar coisas totalmente diferentes e até opostas ao seu significado original. Chamamos liberdade o que na realidade é arbitrariedade e imposição; felicidade passou a significar consumo e vaidade; a qualidade de vida está ligada à quantidade de coisas; negócio passou a ser grosseira especulação e roubo; ordem estabelecida à dominação e à injustiça; diplomacia ao engano e à mentira; sinceridade à falta de respeito; amor à atração física, ou ao desejo de posse... Uma gravíssima desvalorização da palavra acaba se expressando na desvalorização da ética, da política, da vida.
Há palavras que, de repente, se põem de moda entre nós, expressões felizes que por força da repetição acabam se esvaziando.
Os “comerciantes da morte” mataram as palavras, arrancaram dela o coração e as transformaram em meras máscaras ocas, em sons sem alma, com os quais pretendem nos seduzir, nos enganar e nos manipular. Não há pior escravidão que a mentira; ela oprime, tortura, impede sair de si mesmo para viver uma comunicação sadia com quem pensa, sente e ama diferente. Não há nada mais desprezível que a eloquência de uma pessoa que não diz a verdade. É preciso libertar a consciência dizendo sempre a verdade. É preferível perturbar com a verdade que agradar com adulações.
Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial.
Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram nossa vida. Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a uma civilização que teme o silêncio (há demasiado ruído em nós e em torno a nós). Fala-se muito para dizer bem pouco.
Jornais, revistas, tevê, outdoors, celular, watsapp, internet, correio eletrônico... há demasiado palavrório. Carecemos de profundidade. Se, segundo o Gênesis, Deus fala e com sua Palavra cria, as palavras nos fazem sentir como “deuses”: com elas podemos fortalecer a vida ou asfixiá-la, expressar amor ou ódio, elevar o outro ou afundá-lo...
Há palavras que são golpes, bofetadas; e palavras que são carícias, estímulos, abraços. Com as palavras podemos criar ou destruir, dar vida ou matar. A palavra pode se converter em insulto e condenação, mas também em canção ou poema que cultiva a sensibilidade e nos abre à beleza.
“Tomem cuidado contra a murmuração inútil, e da maledicência preservai a língua. Não há palavra oculta que caia no vazio e a boca mentirosa mata a alma” (Sab 1,11).
No momento final do discurso no cap. 6, de João, Jesus busca aclarar as condições de pertença à sua nova comunidade : adesão a Ele e revestir-se de sua proposta de vida; deixar que Sua Palavra desperte palavras mobilizadoras em nosso íntimo, palavras abertas, oblativas e que apontem para o sentido de nossa própria existência.
Mas, não basta estar em seu grupo para garantir a adesão ao modo livre de ser e viver de Jesus; há aqueles que resistem aceitar seu espírito e sua vida. Sua presença em torno a Jesus é fictícia, seu seguimento se restringe a um ritualismo vazio. A verdadeira crise no interior do cristianismo sempre é esta: cremos ou não cremos em Jesus? Somos seguidores(as) de uma Pessoa ou meros cumpridores de alguns ritos, normas, doutrinas… que nos fazem estéreis e esvaziam todo compromisso com os outros?
São muitos os que resistem aceitar o “espírito e vida” de Jesus. O narrador do Evangelho deste domingo nos diz que “muitos discípulos o abandonaram e não mais andavam com Ele”. É na crise que se revela quem de fato são os verdadeiros seguidores de Jesus. A opção decisiva é sempre esta: quem volta para trás e quem permanece com Ele, identificados com seu espírito e sua vida? Quem está a favor e quem está contra Seu projeto em favor da vida?
Para os despreparados (imediatistas) a crise representa estresse e colapso. Para os atentos (contemplativos), significa um trampolim para o aprendizado e para o novo.
A crise provoca uma decisão que abre um novo caminho de crescimento e rasga um horizonte de possibilidades que vão moldando um novo estilo de vida. Não havendo decisão, protela-se a crise, e as forças positivas nela contidas nunca chegam a se manifestar.
Crise é o momento crítico da decisão, onde algo é deixado para trás e se abre um patamar superior que possibilita uma nova forma de vida.
Nos momentos de crise vive-se com especial intensidade o “kairós” (momento de graça), onde o essencial surge com mais clarividência. Tudo o que é acidental, periférico, perde sua consistência e validade. É chance de vida nova num outro nível e dentro de um horizonte mais aberto.
Se compreendermos que a crise é o lugar generoso onde se prepara o amanhã, então teremos a oportunidade de amadurecer e de dar um salto para dentro de um horizonte mais rico de vida, humana e divina. Nesse sentido, a crise é oportunidade para despertar nossa humanidade; ela nos humaniza.
O grupo que seguia Jesus começa a diminuir, mas Ele não teme o fracasso, não se irrita e não pronuncia nenhum julgamento contra ninguém. Só faz uma pergunta aos que permanecem junto a Ele: “Vós também quereis ir embora?”
Seguimento é questão de decisão pessoal, é exercício da liberdade.
Esta é a pergunta que ressoa no interior de cada um de nós: Quê queremos? Por quê permanecemos? É para seguir a Jesus, acolhendo seu espírito e vivendo seu estilo? É para trabalhar em seu projeto? A resposta de Pedro é exemplar: “Senhor, a quem iremos nós? Tu tens palavras de vida eterna”. Os que permanecem o farão por Jesus. Só por Ele; comprometem-se com Ele. O único motivo para permanecer em seu grupo é Ele. Ninguém mais.
O messianismo triunfal fica definitivamente excluído. Jesus não busca glória humana ou divina, nem a promete aos que o seguem. Segui-lo significa renunciar toda ambição, e aceitar a entrega total de si mesmo em benefício dos outros.
Texto bíblico: Jo. 6,60-69
Na oração: fazer memória das crises na vida pessoal: elas foram ocasião para uma mudança ou acomodação, movimento em direção do novo ou retraimento? Medo ou ousadia? Criatividade ou “normose”?
- Que implicações tem para sua vida o fato de ser seguidor(a) de Jesus? Faz diferença?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.08.2021
Imagem: pexels.com
“...o Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor” (Lc 1,49)
A festa da “assunção” de Maria não é a celebração de um ser divino feminino (eterno, fora do tempo e do espaço), mas a recordação da vida e testemunho de Maria, a Mãe de Jesus, memória viva que foi transmitida pela comunidade judeu-cristã, à qual devemos estar imensamente agradecidos. Em sua realidade história, como mãe de Jesus e membro da comunidade cristã, ela oferece nova identidade ao ser humano, vinculado a Jesus numa história de busca, de encarnação e de fé...
Sem entrar no tema da historicidade dos relatos da infância, Lucas nos apresenta Maria com atitudes e valores diferentes daqueles que tinham suas vizinhas. Com Maria, o destino de uma mulher grávida não se limita a “dar à luz” e criar filhos, mas que deve ampliar muito mais seu horizonte de vida. O horizonte de uma mulher que segue a Jesus Cristo se estende até onde a missão, ativada pela sua fé, pode levá-la.
Ao receber a notícia de que seria a mãe do Salvador, Maria rompe seus espaços estreitos, sai de seu ambiente cotidiano e entra no dinamismo do Espírito, deslocando-se para o serviço gratuito.
Ao encontrar-se com Isabel, ela não pode segurar por mais tempo sua alegria e irrompe em um hino de louvor, o Magnificat, pois a experiência envolvente da grandeza de Deus com a qual se encontrou, instiga-a a exaltá-Lo. É um canto que brota de maneira espontânea e que se centra fundamentalmente na face salvadora de Deus. Um Deus que fixou nela um olhar amoroso, que fez grandes coisas na história do povo de Israel e na vida da própria Maria. Por isso, as gerações futuras a considerarão bendita.
No seu Magnificat Maria canta e faz memória de sua própria história e a de seu povo, à luz da santidade e da misericórdia divinas; no “hoje eterno de Deus” tudo adquire sentido, tudo é relido e ressignificado.
Neste sentido, a proclamadora do Magnificat é verdadeiramente ícone do Povo de Deus que caminha; ela deixa transparecer uma “memória agradecida” diante das ações libertadoras de Deus.
A sua oração é absolutamente original, porque expõe fatos concretos da sua história, mas essa singularidade está inserida numa amplidão comunitária. Isto é, na verdade, o que se espera de toda a oração: a capacidade, por um lado, de ser formulada, como o Magnificat, na primeira pessoa do singular. E, por outro, a capacidade de unir a sua história concreta ao horizonte mais vasto dos planos de Deus e da missão da comunidade que crê.
Aprendemos com Maria a “ler” a História de uma maneira diferente e instigante. A partir da “memória bíblica”, somos convidados a “re-ler” nossa história, pessoal e coletiva, com novos olhos, reconstruindo-a, dando a ela um novo significado e deixando-nos impelir a escrever uma nova história.
Nossa vida é parte da História, e esta, por sua vez, é formada pelas histórias de nossas vidas, pontilhadas e marcadas pela presença de outras muitas histórias.
A História, por si mesma, é provocante e nos fascina; ela tem um estranho poder de sedução. Nós nos reconhecemos nas histórias da História; isso nos facilita tomar consciência de onde estamos e quem somos, e nos ajuda a assumir decisões mais maduras frente aos desafios e surpresas que a vida nos reserva.
A vida só tem sentido quando se torna História, isto é, quando não se limita a repetir o passado, mas quando engendra algo novo e diferente a partir de uma História internalizada e saboreada. É somente no nível mais profundo que o ser humano transforma seu “tempo” em história e seu “espaço” em encontro.
Somos “seres históricos”, mas, muitas vezes, carregamos uma história pesada, reprimida, cheia de fracassos e derrotas; isso alimenta culpas, remorsos, sentimentos negativos..., que nos paralisam e travam o fluir da vida. Todos temos experiência que o passado carrega lembranças de fatos e de vivências negativas: crises, fracassos, rejeições, erros, pecados... Os desencontros, quebras e rupturas... costumam deixar feridas. Tudo isso pesa na memória e continua influenciando negativamente no presente.
Com isso, ao nos fixar no passado, alimentamos uma “memória mórbida, doentia, ferida”: depósito de rancores, ressentimentos, hostilidades, sentimentos de culpa, desânimo, angústia..., embotando a vida, queimando energias, paralisando-nos e não abrindo futuro de sentido.
Sabemos que uma pessoa doente na memória é doente no seu coração, na sua afetividade, nos seus sentimentos, nas suas relações...
Se a memória não é “evangelizada”, ela continua remoendo aquilo que aconteceu, num desgaste muito grande de energia. Não há mudança e conversão se não houver mudança e conversão da memória.
Somente através da “memória redentora”, a pessoa é capaz de se colocar diante do passado, de modo livre e aberta, dando-lhe um novo significado.
A memória sadia não muda o passado, mas “re-corda” (visita de novo com o coração) de modo novo e inspirador. A memória resgata referências, cura feridas, reconcilia-se com a vida e consigo mesma, com as próprias riquezas e fraquezas, com o próprio passado; ela tem sua função de lugar santo do louvor e da gratidão, pois ajuda a tomar consciência dos benefícios recebidos e possibilita ter acesso às recordações não neutras, mas aquelas que tem um significado para o presente. Ela é capaz de tirar proveito de todas as vivências pessoais (nada é descartado, tudo é integrado); abre possibilidade para rever a própria história e lê-la como História de Salvação.
A memória revela a verdade de um acontecimento. Uma memória mobilizadora, aberta ao novo e comprometida com o futuro. É através da memória sadia que somos capazes de descobrir a presença Deus na nossa história, tornando-a história da salvação.
A história pessoal e a história do mundo tornam-se, portanto, o “lugar” habitual da experiência de Deus, a montanha da misteriosa sarça ardente que não se consome. Só assim a história se converte em “Epifania” (manifestação) de Deus e permite compreender-nos e aceitar-nos.
Na plenitude final em Deus, toda a história passada será para sempre realizada na eternidade. O céu é apenas esse momento eterno de re-visitar tudo o que fomos, fizemos e sentimos na presença de Deus.
A história se revela, assim, como um húmus vivente, uma atmosfera de graça, uma torrente subterrânea na qual se nutre todo o processo da vida de cada um. Não é fora da História e de sua história que a pessoa pode reconhecer a Vontade de Deus e escutar Seu apelo; porque “Deus se fez e se faz História” é que a história de cada um e da humanidade inteira adquire uma nova luz e um novo sentido.
Cantar o Magnificat nos possibilita viver o “mistério” da presença e a ação do “Deus na História”. Nesse sentido, assim como Maria, cada pessoa se “contempla a si mesma”, imersa nesse acontecimento de graça que á a história da humanidade, assumindo-a e fazendo-a própria.
A partir do fundamento da História contemplamos nossa própria história (pessoal e institucional): história que deve ser observada, lida, discernida. Tal experiência nos ajuda a abrir os olhos para a novidade inesgotável da vida, nos faz “aquecer o coração”, desperta em nós o desejo e mobiliza todas as nossas capacidades para um compromisso de ação transformadora na história pessoal e coletiva.
Texto bíblico: Lc 1,39-56
Na oração: A História está sempre aberta, desafiando-nos, arrancando-nos de nosso imobilismo, despertando nossa criatividade para ser reescrita de uma maneira diferente.
- Diante da história pessoal e social, você se sente desafiado(a)? paralisado(a)? com medo? inquieto(a)...?
- Quanto de esperança você carrega em seu interior frente à nossa história centrada na cultura da morte?
- O que faz abrasar o seu coração diante de uma história que parece um contínuo fracasso?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
12.08.21
“Eu sou o pão da vida” (Jo 6,48)
Continuamos com o tema do domingo passado: Jesus é “pão”, sua vida é alimento, é comunhão que nós partilhamos e oferecemos, uns aos outros, sendo, dessa forma, Eucaristia.
Este evangelho da comunhão, segundo o livro de João, começou em Cafarnaum, onde Jesus se definiu como Eucaristia, pão partido e partilhado, comunicação de Vida, junto ao mar da Galiléia.
Como seres humanos somos marcados por profundas carências, fomes e sedes que nos mobilizam a nos deslocar e a ativar o impulso da busca.
O decisivo é ter fome de Vida que Jesus nos oferece: buscar, a partir do mais profundo, encontrar-nos com Ele, abrir-nos à sua verdade para que nos marque com seu Espírito e potencie o melhor que há em nós. Deixar que Ele ilumine e transforme as dimensões de nossa vida que ainda estão sem evangelizar.
Então, alimentar-nos de Jesus é voltar ao mais genuíno, ao mais simples e mais autêntico de seu Evangelho; interiorizar suas atitudes mais básicas e essenciais; acender em nós o impulso por viver como Ele; despertar nossa consciência de discípulos(as) e seguidores(as) para fazer d’Ele o centro de nossa vida.
Sem cristãos que se alimentem da Vida de Jesus, a Igreja se definha sem remédio.
Com isto, Jesus está dizendo que o procedimento para dar vida em plenitude, o que se costuma dizer “vida eterna”, é o caminho da “descida”, do despojamento de toda grandeza e privilégio, o caminho trilhado e vulgar dos mortais, onde se perde o poder e se ganha credibilidade, não pela condição social a que pertence, mas pela autenticidade de sua vida.
O comer e o beber são símbolos incrivelmente profundos daquilo que devemos fazer com a pessoa de Jesus. É preciso nos identificar com Ele, temos de fazer nossa sua própria Vida, temos de “mastigá-lo”, digeri-lo, assimilá-lo, apropriar-nos de sua substância. Esta é a raiz da mensagem do evangelho. Sua Vida passa a ser nossa própria Vida. Só desta forma faremos nossa a mesma Vida de Deus. Se comungamos e não nos identificamos com o que é Cristo, produzirá indigestão.
Partir, repartir e compartilhar são três verbos relacionados com a palavra “parte”. O termo “parte” indica que o todo não está concentrado em um só lugar, em uma só mão. A palavra “parte” orienta para a pluralidade. Os três verbos supõem uma ação que uma mesma pessoa pode realizar, mas com matizes diferentes. Partir é tomar um todo e fazê-lo em pedaços. Repartir é tomar os pedaços e distribuí-los aos outros, sem maiores implicações no ato de distribuir. Compartilhar, no entanto, supõe que a pessoa que parte e reparte, desfruta conjuntamente com as outras pessoas do bem repartido.
Se a primeira ação, partir, pode tornar-se um gesto egoísta, o momento do repartir pode ser um gesto indiferente ou generoso. O que está claro é que o terceiro momento, o compartilhar, é um gesto de fraternidade, de respeito para com os outros, um gesto de amor e proximidade. Compartilhar é algo mais que estar juntos, pois se pode estar juntos sem estar unidos ou com sentimentos opostos. Compartilhar é ter uma só alma e um só coração e, como consequência, viver na alegria de ter tudo em comum, de forma que a ninguém lhe falte o necessário. Quando o pão se reparte, todos comem E quando o pão é compartilhado, além de todos comerem, vive-se na alegria, ativada pela mesa onde é ativada este gesto oblativo.
Este tríplice gesto foi realizado por Jesus na cena da multiplicação dos pães e peixes; Ele tomou os pães, deu graças, partiu-os, repartiu-os e compartilhou-os com todos. Juntos comeram festivamente os mesmos pães e os mesmos peixes. Neste gesto de partir, repartir e compartilhar o pão, Jesus estava apontando para uma realidade muito mais profunda e vital, pois no pão era o mesmo Jesus que se partia, se repartia e finalmente se entregava aos seus, compartilhando sua própria vida e unindo sua vida com a de seus seguidores (as). Jesus não compartilha só o que tem, não compartilha só pão; Jesus se entrega a si mesmo, compartilhando sua vida para ativar a vida atrofiada em muitas pessoas. Aqui revela-se o pleno sentido desta forte expressão de Jesus: “Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente”.
Só vidas compartilhadas são capazes de despertar um movimento vital, onde aquilo que é mais nobre e humano, que está escondido no mais profundo de cada um, se visibiliza em gestos de proximidade, acolhida, serviço..., reforçando os vínculos e a comum união entre todos, independentes de pertencer ou não a uma determinada expressão religiosa. Vidas compartilhadas que conectam vidas diferentes, possibilitam a realização do sonho do Pai: a unidade na diversidade.
Aqui está o gesto que revela a verdadeira identidade dos(as) seguidores(as) de Jesus; é impossível ir mais além do compartilhar.
Temos esvaziado o sentido profundo da Eucaristia, esquecendo-nos de que é, sobretudo, sacramento (sinal) do amor e da entrega aos outros, compartilhando os próprios dons, recursos internos, sonhos... A finalidade da eucaristia não é tanto consagrar um pedaço de pão e um pouco de vinho, mas de tornar sagrado (consagrar) todo ser humano, identificando-o com o mesmo Jesus, para que se parta, se reparta e se entregue no serviço e no compromisso em favor da vida. Sem compromisso com a vida, a Eucaristia torna-se estéril, um gesto piedoso desencarnado, longe d’Aquele que partiu, repartiu e compartilhou sua Vida em favor de todos. “E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (v. 51).
Esta é a verdade radical do Evangelho: lendo e aplicando aos cristãos aquilo que Jesus diz de si mesmo, porque Ele é Eucaristia e porque compartilhamos sua vida, somos mobilizados a fazer-nos comunhão de vida, pois todos somos “pão de eucaristia”. Eucaristia que desperta outras fomes e outras sedes.
Que um homem como Jesus se faça “eucaristia” (e mobilize a todos para ser eucaristia, pão compartilhado): essa é a revelação central do evangelho de João. Em sua dimensão humana, cada ser humano que se entrega a outro ser humano como “pão”, é princípio de vida eterna.
Dessa forma, a mensagem de Jesus (discurso do Pão da Vida) apresenta-se como o programa mais completo de vida. Frente à economia neo-liberal do livre mercado e do triunfo dos interesses egoístas, à custa dos demais, Jesus revela o programa da vida que se faz “pão” para ser compartilhado.
Aplicando aos cristãos aquilo que Ele diz de si mesmo, Jesus insiste na exigência de “fazer-se pão”, isto é, de converter não só as riquezas, mas a vida mesma, em alimento (capital) para os pobres.
O verdadeiro “capital” não é o “dinheiro externo” (manipulado pelos grandes bancos). O verdadeiro capital é o ser humano que se faz pão-capital para os outros.
O grande pecado é o “deus Mamon” (capital divinizado). Frente a esse pecado está a revelação da verdade de Deus: que homens e mulheres sejam (se façam) pão, uns para os outros, na doação e na partilha.
Sem um novo Capital Humano (sem a conversão do ser humano em pão para os outros), esta humanidade não terá saída. Só podem ser cristãos de verdade aqueles que acolhem e seguem as palavras e gestos de Jesus neste evangelho: que se façam pães uns para os outros.
O único pão que sacia a um ser humano e lhe dá vida (palavra, amor, esperança) é outro ser humano, seja na expressão de pai ou de filho, de filha ou de mãe, de irmão ou irmã, de esposo ou de esposa, de amigo ou de amiga... Em suas diversas formas de expressão de encontro, acolhida, fraternidade, diálogo..., um ser humano é “pão” para outro ser humano.
Texto bíblico: Jo 6,41-51
Na oração:. É no mais íntimo que experienciamos o verdadeiro encontro com Aquele que se fez pão de vida e vinho de salvação. É no mais profundo de nossa interioridade que escutamos ressoar sua voz, nos inspirando a ser pão para os outros.
- Eucaristia e compromisso com os últimos e excluídos: você consegue fazer esta conexão, toda vez que se aproxima do altar?
- A Eucaristia tem sido momento privilegiado para despertar em você outras fomes e sedes? De quê você tem fome e sede?
- O que é que nutre sua verdadeira identidade de filho(a) de Deus e irmão(ã) de Jesus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.08.2021
“Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede” (Jo 6,35)
Depois da multiplicação dos pães, Jesus, ao perceber que o povo não tinha entendido nada do que acontecera, pois tentava fazê-lo rei, retirou-se a uma montanha, sozinho. A multidão ficou satisfeita por ter se alimentado; ela segue Jesus por aquilo que Ele pode dar. No entanto, a identificação com Ele e seu projeto passa longe. Seus interesses vão em sentido contrário à atitude de Jesus de despertá-la para a compaixão e a partilha. Jesus ensina como repartir, isto é, como as pessoas precisam ser umas com as outras.
Jesus empenha-se por uma nova humanização, onde as pessoas possam ser livres, mas elas preferem continuar dependendo de outro (rei). Enquanto as pessoas buscam alguém que se responsabilize por elas, Jesus ensina a responsabilidade mútua, a corresponsabilidade. A abundância de alimento é graça de Deus, mas é igualmente empenho de cada pessoa e de todas juntas.
A solução para uma nova humanidade não é o dinheiro, o poder, o domínio ou um milagre externo, mas saber compartilhar tudo com todos. O problema não se soluciona comprando, o problema se soluciona compartilhando. A verdadeira salvação não está em que alguém solucione nossos problemas, nem sequer em ajudar a solucionar todos os problemas dos outros. A verdadeira liberdade está em superar o egoísmo e estar disposto e dividir com os outros o que cada um tem e o que cada um é.
“Não temos em nossas mãos a solução de todos os problemas do mundo, mas diante dos problemas do mundo temos nossas mãos” (Congresso de jovens latino-americanos).
No entanto, segundo o relato de João, a multidão continua buscando a Jesus. Há algo n’Ele que a atrai, mas ainda não sabe exatamente por que o busca nem para quê. As pessoas começam a intuir que Jesus está lhes abrindo um novo horizonte, mas não sabem o que fazer, nem por onde começar.
“Do outro lado do mar” Jesus começa a conversar com elas. Há coisas que convém aclarar desde o princípio. O pão material é importante. Ele mesmo lhes ensinou a pedir a Deus “o pão de cada dia” para todos.
Comer nunca significa um mero ato biológico de ingerir alimentos; é sempre um ato comunitário e um rito de comunhão. À mesa, onde se parte o pão do Senhor, o cristão aprende a partir e a partilhar o “pão de cada dia” com os outros.
Além disso, o pão que comemos esconde toda uma rede de relações anônimas; antes de chegar à mesa, ele passou pelo trabalho de muitos braços; há muitas lágrimas e suores escondidos em cada pão, como também há muito de solidariedade e partilha. Portanto, o pão que é produzido junto deve ser repartido junto e consumido junto. O Senhor resgata em nós a fome e a sede mais profunda de encontro, partilha e vida. A mesma necessidade básica nos iguala a todos; a satisfação coletiva nos confraterniza. Só então podemos, verdadeiramente, pedir: “Senhor, dá-nos sempre desse pão”.
A conversa de Jesus com o povo, com os judeus e com os discípulos é um diálogo bonito, mas exigente. Jesus procura abrir os olhos do povo para que aprenda a ler os acontecimentos e descubra neles o rumo que deve tomar na vida. Pois não basta ir atrás de sinais milagrosos que multiplicam o pão para o corpo. Não só de pão vive o ser humano. A luta pela vida sem uma mística que inspira, não alcança a raiz do próprio ser.
Enquanto vai conversando com Jesus, o povo fica cada vez mais contrariado com as palavras dele. Mas Jesus não cede, nem muda as exigências. O discurso parece um funil. Na medida em que a conversa avança, é cada vez menos gente que sobra para ficar com Ele. No fim só sobram os doze, e nem assim Jesus pode confiar em todos eles. Esse é o eterno problema da vida cristã: quando o evangelho começa a exigir compromisso, muita gente se afasta; quando se trata de seguir e se identificar com uma Pessoa (Jesus), muitos se refugiam na doutrina, no legalismo, no ritualismo..., vivendo um seguimento estéril.
O dinamismo do seguimento é gerar vida, fazer o(a) discípulo(a) viver a partir da verdade mais profunda de si mesmo(a); ou seja, viver a partir do coração, do “ser profundo”.
“Trabalhai não pelo alimento que perece, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna”.
No gesto da multiplicação dos pães se condensou todo o caminho de Jesus: vida doada na luta contra todo tipo de sofrimento e fome, na mesa partilhada onde as relações humanas alimentam a fraternidade do Reino. Aqui se conecta a essência da Vida de Jesus com a vida dos seus seguidores.
Para a mentalidade bíblica, o pão é um dos sinais primordiais da graça e do amor com que Deus nos sustenta e nos protege. Diante do pão estamos face a uma realidade santa. O pão é tratado com respeito e veneração. O pão é santo porque está associado ao mistério da vida que é sacrossanta. Em cada pedaço de pão há mais presença da mão de Deus do que da mão do ser humano.
Para o cristão o pão é ainda mais santo porque simboliza a reconciliação final de todos no banquete definitivo do Reino; o pão carrega a promessa de uma plenitude de vida.
O “pão do Reino” já se antecipou e é Jesus mesmo em sua vida e mensagem; Jesus continua presente na história e na vida de cada um através do “pão eucarístico”, alimento dos peregrinos rumo à pátria celeste. Somos eternos insatisfeitos; nunca nos saciamos de pão e milagres; queremos mais e mais. Isso nos revela que nosso interesse é ter vida assegurada e o estômago cheio.
Esta realidade nos leva a perguntar: que pão nos sacia?
Porque há pães que, enchendo o estômago, nos tiram a liberdade. São pães repartidos em escravidão, pães seguros com sabor de suor e lágrimas; pães de Egito, pães que dão a falsa sensação de saciedade.
Há pães que nos despertam para confiar em Deus; são pães que chegam providencialmente e de maneira gratuita. Aparecem quando menos esperamos e tem o sabor do caminho e do encontro. Para qual pão trabalhamos? Ou ainda, a partir de onde pedimos pão? A partir da segurança e da escravidão ou a partir da insegurança e da confiança?
Jesus se apresenta a nós como o alimento que não perece. Buscá-Lo é descobrir o que Deus quer de nós e agradecer o que nos dá para o caminho. Quem o rejeita fica atado aos pães deste mundo que exigem fadiga, competição e escravidão. Quem o aceita, liberta-se dos tempos e espaços e se sacia de confiança.
Que pão buscamos? Que pão desperta outras fomes em nós?
“O que é que nutre realmente o nosso ser essencial?”
“Não somente o nosso corpo, não somente nosso psiquismo, não somente nossa afetividade, mas o que é que nutre aquilo que não morrerá em nós?”
“O que é que nutre a eternidade em nós?”
“O que é verdadeiramente nutritivo? O que é que nutre a nossa identidade?
Texto bíblico: Jo. 6,24-35
Na oração: Não é possível reconhecer o Corpo do Senhor presente na Eucaristia se não se reconhece o Corpo do Senhor na comunidade onde alguns passam necessidades. Pois, se fechamos os olhos às divisões e às desigualdades mentimos ao dizer que Cristo está presente na Eucaristia.
Enquanto não nos mobilizamos a mudar nossa sociedade de maneira que mais pessoas aceitem a alegria de compartilhar o pão e a vida, faltará algo em nossa Eucaristia. Essa “ferida” o cristão deve sempre tê-la presente.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.07.2021
Imagem: pexels.com
“Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes” (Jo 6,9)
Do pão de trigo ou cevada para o pão do sentido de vida doada; do alimento de cada um para a circularidade do alimento partilhado, em pequenos grupos, sem templo, na gratuidade e frugalidade...
Este é o sentido do texto joanino, proposto para este domingo.
De todos os gestos realizados por Jesus, durante sua atividade profética, o mais recordado pelas primeiras comunidades cristãs foi, seguramente, uma refeição multitudinária, organizada por Ele no descampado, nas proximidades do lago da Galiléia. É a única cena relatada em todos os evangelhos.
O conteúdo do relato é de grande riqueza e cheio de simbolismo. Seguindo seu costume, o evangelho de João não o chama “ milagre”, mas “sinal”. Com isso nos convida a não ficarmos nos fatos externos que são narrados, mas descobrir, a partir da fé, um sentido mais profundo.
Longe do templo e das autoridades judaicas, seguido por uma multidão, Jesus sinaliza para uma Páscoa centrada na pessoa dele, aberta a um processo de partilha, comunhão e retorno de vida abundante para todos. O congraçamento de Israel, durante a festa da Páscoa, no Templo, é substituído pelo congraçamento em torno a Jesus, no lugar onde Ele estiver, com a multidão que o segue.
Mas, enquanto a Páscoa no Templo favorece os controladores dele, a Páscoa em torno de Jesus favorece e engrandece a todos.
Jesus ocupa o lugar central na cena; ninguém lhe pede que intervenha. É Ele mesmo que olha, intui a fome daquela multidão e ativa a necessidade de alimentá-la. Como alimentar tanta gente no meio do descampado? Os discípulos não encontram nenhuma solução. Felipe diz que não se pode pensar em comprar pão, pois não têm dinheiro. André sugere que se poderia partilhar o que havia, mas só um menino tem cinco pães e dois peixes. Que é isso para uma multidão?
Segundo João, enquanto Filipe justifica a impossibilidade de solução, André procura uma alternativa e se depara com cinco pães de cevada e dois peixinhos nas mãos de um menino. Filipe ocupa seu tempo e sua inteligência em buscar justificativas para o impasse e desculpas para não ser responsabilizado.
André, no entanto, encara a realidade e se ocupa na busca de solução. Encontra um sinal. Há pão, é de cevada, não de trigo, é pouco, mas o menino, pessoa que está começando a vida agora, coloca à disposição.
Naqueles vastos campos da Galiléia, Jesus propõe a grande mesa da comunhão universal, a mesa “fora dos templos” que inclui a todos, sem distinção. O gesto da benção instaura o horizonte da partilha, em que os alimentos são destinados à necessidade de todos, por meio da coresponsabilidade dos participantes no banquete da Criação, sobre cuja mesa Deus preparou pão em abundância para todos.
Todos acompanham com atenção os gestos de Jesus: coração em ação de graças, olhos fixos, ao mesmo tempo, no pão, enquanto o parte, e na multidão ao seu redor. Primeiro dá graças à Fonte da vida. Segundo, contempla o pão, fruto da terra e do trabalho de muitos homens e mulheres, que deve ser partido e compartilhado. Terceiro, convida a repartir e assegura-se de que a distribuição é justa.
Jesus dá graças por cinco pães e dois peixinhos diante de cinco mil pessoas famintas. É a gratidão sobre o pouco que faz o muito. É pouco, mas é dom de Deus, e dom pode-se multiplicar, pois a graça partilhada tem alcance ilimitado. Nós, geralmente, só damos graças quando temos em abundância, porque, a nosso ver, é a abundância que significa graça.
Depois da ação de graças, o pão se multiplica, tem para todos, o quanto necessitam, e ainda sobra abundantemente. Quanto mais se partilha, mais se tem. A fome desse momento foi saciada, mas a vida continua. Jesus ensina como repartir, isto é, como as pessoas devem proceder na relação de umas com as outras.
A abundância de alimento é graça de Deus, mas é igualmente empenho de cada pessoa e de todas juntas.
Jesus é o primeiro responsável, mas quer partilhar com os seus. Isso exige a participação de todos.
A cena é fascinante: uma multidão dispersa, transformada pelo encontro com Jesus, já é capaz de sentar-se em grupos ordenados sobre a relva do campo, iguais, sem divisão em hierarquia e partilhando uma refeição simples e gratuita. Não é um banquete de ricos; não há vinho nem carnes. É a refeição frugal das pessoas que vivem junto ao lago: pão de cevada e peixe defumado.
Os que tinham algo para comer também foram repartindo com os outros. Na realidade, o verdadeiro milagre foi o da partilha, onde as pessoas famintas não se lançam vorazmente sobre os pães numa luta para conseguir os alimentos escassos. Compartilhar gratuitamente com os outros, com desconhecidos, e não acumular o que sobra, isso sim é milagre.
A comunhão bíblica se realiza entre os “distantes”, por meio de um gesto que não é de poder, mas de esvaziamento, não é de apropriação, mas de partilha, não é de fechamento, mas de abertura das mãos que acolhem, que distribuem...
O dinheiro continua hoje sendo a causa de toda desigualdade. Tudo tem um preço, incluídos os “bens espirituais”. A gratuidade e a partilha são gestos que estão desaparecendo de nossa sociedade.
Jesus abre outra lógica: a da partilha, frente à lógica do mercado, focado na apropriação e na acumulação.
Só se fará efetiva a nova comunidade quando pães e peixes entrarem na lógica do Reino. Sem oferecer o próprio pão, os próprios recursos, a própria pessoa, não há possibilidade de construção do Reino de Deus.
Em cada migalha de pão, em cada pedaço de peixe, há uma história de amores e trabalhos que vão passando de mão em mão, sem cobiça devoradora. Os bens deste mundo carregando dentro uma vocação fraterna e universal. São dons para todos.
Nesta refeição de todo o povo sobre o campo verde não se discrimina ninguém, não se pergunta a ninguém pelo seu passado, sua profissão ou sua situação moral e religiosa. Todos são acolhidos como expressão das entranhas compassivas de Deus, que chama todos a compartilhar sua mesa. Todos se sentem pessoas dignas e amadas.
Esta é a utopia do Reino: tudo está reconciliado: o cosmos, com a natureza verde e em paz; os produtos do trabalho humano, da generosidade do mar e da terra; e as pessoas, numa relação harmoniosa entre si e com Deus, sem exclusões, competições nem privilégios. A sensibilidade solidária de Jesus situa tudo na lógica do amor, que é a única força transformadora da história.
Texto bíblico: Jo 6,1-15
Na oração: A oração é também questão de densidade de vida, de humanismo, de ativar a sensibilidade para com aqueles que não têm quem os defenda; é revelar que em nosso peito bate um coração de amor infinito, capaz de vibrar e mobilizar-nos em favor dos outros. A oração implica entrar em sintonia com o coração compassivo de Deus voltado para a miséria humana.
- Como seguidor(a) de Jesus, qual é a sua “lógica” diante do contexto social de exclusão e de miséria? A do Reino ou a do mercado neo-liberal?
- A pobreza, a miséria, a fome... despertam em você uma “santa indignação” ou uma acomodação doentia?
- Os gestos de partilha e solidariedade são um modo de proceder contínuo em sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
24.07.21
“Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão (...)começou a ensinar-lhes muitas coisas”
Os discípulos regressaram da missão à qual Jesus os tinha enviado e Herodes acabara de assassinar João Batista. Jesus se retirou para descansar com os discípulos, do outro lado do lago. Precisavam tomar distância, conversar juntos e de maneira tranquila sobre esse momento dramático, em um espaço sossegado, mais íntimo e profundo, sem a urgência permanente que a pressão do povo introduzia em suas vidas e não tendo tempo nem para comer. Não eram pessoas das cidades importantes que procuravam Jesus. Diz o texto de Marcos que saíram “de todos os povoados” e foram “correndo”, com pressa, com expectativa e esperança, ansiosas para encontrar-se com Ele.
Ao ver a multidão, Jesus se comoveu até as entranhas, porque “andava como ovelhas sem pastor”, com fome, oprimida pelos impostos, desconcertada diante do presente e com medo difuso diante do futuro ameaçador e inseguro. E Ele começou a ensinar-lhes longamente, muitas coisas, de tal maneira que as horas foram passando sem se darem conta.
Jesus não só transmite um ensinamento, senão que cria uma relação nova com o povo e de uns com outros, segundo o espírito do Reino. Todos somos feitos para nos encontrar com um Tu inesgotável, que ilumine nossa existência e nos transforme inteiramente, de tal maneira que sejamos capazes de estabelecer relações novas com nossa própria história pessoal, com os outros e com toda a criação.
O ensinamento de Jesus revela-se, antes de tudo, como um encontro inspirador que o move a se aproximar de todas as pessoas, revelando-lhes a dignidade infinita que cada uma carrega dentro de si. Trata-se de um encontro que não vem envolvido em roupagens exóticas nem em rituais frios; sua grandeza se expressa numa proximidade tão simples e humana, onde a interação de sentimentos e afetos engrandece a todos.
Nesse sentido, o novo ensinamento de Jesus tem a marca da “compaixão”.
Um dos sintomas de desumanização, que está revelando seu triste rosto no contexto atual, é o fato de deixar-nos de vibrar com o que os outros vivem, viver como alheios uns dos outros, blindar-nos uns frente aos outros..., ou seja, incapacitar-nos para a compaixão.
A compaixão está cada vez mais ausente da esfera pública e de nossas relações com o outro diferente e com o outro distante que sofre. Aqui está a chave da incapacidade de nossa sociedade para responder aos desafios atuais.
Vivemos num contexto social onde somos ameaçados por uma forma sutil de “a-patia”. Aqui a compaixão se quebra com excessiva facilidade, se atrofia e se transforma em “sem-paixão”. Com isso, nos nossas relações se desumanizam.
Tal “sem-compaixão” é uma enfermidade social, um problema coletivo, algo que vai se fechando mais e mais, de tal modo que as pessoas vibram com menos gente, em círculos íntimos, e unicamente com quem faz parte do seu “gueto”.
Acostumamo-nos com a lógica deste mundo, que esvazia nossa capacidade de nos surpreender ou de nos inquietar; impermeabilizamos o coração frente à magnitude das feridas sociais, conformando-nos em responder “não há nada que fazer”. Vão desaparecendo os horizontes de sentido que incluem a alteridade. Qualquer implicação com o outro implica suspeita, frieza, distancia, preconceito...
Não basta a sensibilidade ou o sentimento. Não ficamos indiferentes quando a dor dos outros entra em nossas salas de estar. Mas, tão rápido como chega, o sentimento se vai, e não nos mobiliza porque não tem pontos de conexão com a realidade da exclusão.
A “privatização da vida”, a sensação de impotência diante das tragédias, a distância midiática (informação fria da realidade que não nos afeta e não desperta nossa paixão), a distância física, a não-comunicação (não há tempo para falar e escutar, os eletrônicos povoam nossos silêncios, o ativismo impede dedicar-nos uns aos outros), a falta de motivação (por quê deixar o outro invadir minha vida ou encher-me de inquietação?), a dificuldade para compreender a diferença (transitamos nos círculos de iguais ou semelhantes, compartilhamos gostos, modas, inquietudes, status, temos problemas comuns e metas similares, usamos produtos parecidos, lemos os mesmos livros e vemos os mesmos filmes), etc...
Quem olha para as manchetes de notícias, as escolhas e comportamentos atuais, talvez se deixe convencer de que a compaixão está perdendo a referência no elenco dos sentimentos humanos mais nobre. Afinal, produtividade, eficiência, competitividade, revelam-se “pobres” de atitudes compassivas.
No entanto, somos seguidores(as) do Compassivo; Jesus não passa “friamente” por nada. Ele não passa indiferente ao lado da fome, da doença, da exclusão, da morte..., não passa friamente ao lado das multidões que vivem como ovelhas sem pastor. Seu sentimento está sempre engajado: Ele é o homem da prontidão de sentimentos, que deixa transparecer uma profunda sensibilidade. Sente-se “tocado” pela dor e miséria.
E jamais fica em sentimentalismos supérfluos; sua empatia e simpatia extravasam-se em ações comandadas pela compaixão: ela flui e jorra de seu coração.
Os Evangelhos destacam os profundos sentimentos de humanidade, compaixão, empatia, ternura e solidariedade misericordiosa de Jesus.
Muitas vezes é mencionado que o Senhor foi “comovido até as entranhas” e teve “frêmitos de compaixão”; trata-se de sentimento eminentemente humano.
Até podemos fazer referência origem etimológica da palavra “compaixão”. E aqui é muito pouco o apelo ao vocábulo latino “cum-passio” (“padecer com”). É preciso um novo passo. Para “compaixão” é preciso ir até o grego antigo. Lá a compaixão está ligada às disposições maternas de conservar a vida. Naquela língua os termos “compaixão” e “útero” são equivalentes. Assim como o ventre materno acolhe a vida, envolve-a, protege-a e a faz nascer, algo semelhante fez o Senhor ao aproximar-se daquelas “ovelhas sem pastor”: suscitou-lhes a esperança com expressões de amor fraterno. Foi uma aproximação generativa, isto é, gerou impulsos para uma nova vida.
Num mundo em que o anonimato impera e uma falta de compromisso com o outro parece predominar, é preciso ativar a compaixão, que começa pela capacidade de fixar o olhar nos rostos, desmontando os pré-juizos, ou pela possibilidade de perguntar ao outro por sua vida, seus sonhos, suas preocupações, seus desejos e sua dor. Procurar entender seus motivos sem passar logo a interpretá-los, a etiquetá-los ou a julgá-los. Aprender a escutar suas histórias e a acompanhar suas inquietações.
A moção de compaixão permite que do coração humano brote a “ex-centricidade”.
A experiência cristã não nos imuniza contra a contaminação do “amor próprio, querer e interesse”; mas a pulsão solidária e compassiva para com o pobre e excluído, permanente e profunda, se converte na fornalha que purifica a insaciável auto-afirmação e interesses que todos temos, e vai gestando, pouco a pouco, personalidades excêntricas, livres do domínio despótico do “ego”.
Texto bíblico: Mc 6,30-34
Na oração: Ser compassivo implica buscar e ativar uma disposição em sair das fronteiras do conhecido e do habitual, dos circuitos familiares e das dinâmicas mais rotineiras, para entrar em sintonia com as pessoas que são vítimas de estruturas sociais e políticas que geram miséria, dor e exclusão.
- Compaixão ou indiferença? Eis o desafio! Qual delas se manifesta com mais constância em seu dia-a-dia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
15.07.2021
Imagem: Tissot
Falar em discernimento de espíritos é afirmar a possibilidade do Criador e criatura de se comunicarem e se compreenderem verdadeiramente. Existe uma linguagem que eles empregam quando se comunicam. Como compreender tal linguagem? Como podemos reconhecer a voz de Deus que nos é dirigida e responder a ela livremente? Existe um espaço de autonomia para o ser humano ao interno do grande desígnio divino?
Para os mestres da vida espiritual, tais perguntas soariam estranhas. Para estes, não há sentido em querer separar essas duas realidades. A relação entre Deus e o homem/mulher se realiza no Espírito Santo, a Pessoa Divina que os torna partícipes do amor do Pai pelo Filho. Esta participação, isto é, a presença do amor divino em nós, torna possível nosso acesso a Deus (1). Entre a pessoa humana e o seu Senhor existe uma verdadeira comunicação que, para ter a garantia da liberdade, se vale, com frequência, dos nossos pensamentos e dos sentimentos.
O discernimento faz parte da relação vivida entre Deus e o homem/mulher; mais ainda, é o espaço próprio onde podemos experimentar tal relação com Deus como uma experiência de liberdade, como uma possibilidade de uma criação continuada. Nesse ato, a criatura experimenta ser chamada a participar como cocriadora responsável pela própria existência. Experimenta a si como chamado/a a desvelar a si mesmo/a na criatividade da História que ele cria criando a si mesmo/a.
O discernimento é uma realidade relacional, tal como a fé. A fé cristã se funda em um encontro pessoal, pois o Deus que se revela se comunica como amor, e o amor pressupõe sempre o reconhecimento de um “tu”. Deus é amor porque é comunicação absoluta, capacidade de ser em relação eterna, seja no ato primordial do amor recíproco das três Pessoas divinas, seja na Criação. Por isso, a experiência da relação livre que experimentamos no discernimento não é nunca somente uma relação vertical entre nós e Deus, mas inclui também a relação com os outros e ainda a relação com a criação, a partir do momento em que entrar em uma relação autêntica com Deus significa entrar naquela ótica de amor que é uma relação vivificante com tudo o que existe.
O discernimento é a arte de compreender a si mesmo tendo em conta esta estrutura de conjunto, olhando-se a si na unidade porque se vê com o olho de Deus que enxerga a unidade de vida. É expressão de uma inteligência contemplativa, é uma arte que pressupõe o saber contemplar, ver a Deus.
Existimos porque Deus nos dirigiu a palavra, chamando-nos à existência para sermos seus interlocutores. A vocação nada mais é do que a Palavra pessoal que Deus dirige ao homem, imprimindo nele um caráter dialogal. A vocação é a plena realização do homem no amor, ao interno do princípio dialógico em que foi criado, tendo Deus como principal interlocutor.
O discernimento nada mais é do que a arte por meio da qual o homem aprende a compreender a palavra que lhe foi dirigida, palavra que abre diante dele um caminho a ser percorrido, para poder responder à Palavra (2). A vocação não é um fato automático, mas implica um processo de amadurecimento das relações, a partir daquela relação fundamental com Deus. É um progressivo ver a si mesmo e ver a História e perguntar-se como eu posso me dispor a me tornar parte da humanidade que Cristo assume, e através da qual assume também a criação toda, para entregar tudo ao Pai. Nesta descoberta progressiva do caminho a ser seguido, é relativamente fácil distinguir entre o que é injusto daquilo que não o é. Mas quando nos encontramos diante de possibilidades ambas boas, com que critério eu posso escolher aquela que se revela como a melhor? Isto é sem dúvida muito mais difícil! “Devo rezar mais ou devo trabalhar mais?” “O que eu devo me tornar na vida?”.
De onde vem a dificuldade? Poderíamos responder lembrando o provérbio popular que afirma que “nem tudo o que é bom para um é necessariamente bom para os outros”. Não existe uma santidade genérica. Cada um deverá buscar a sua própria estrada. A razão disso é porque Deus chama cada um pessoalmente. Claro que existem preceitos gerais que todos nós devemos viver, mas tais regras gerais serão colocadas em prática por cada um de um modo diverso. O plano de Deus contém para cada pessoa um projeto de vida pessoal (3).
Discernir pouco a pouco o plano de vida pessoal que Deus tem por mim, eis a finalidade dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio! Trata-se de buscar a mesma atitude que Cristo adotou com relação ao seu Pai: “Que seja feita a tua vontade!”. Atitude que Ele nos ensinou quando nos ensinou a rezar o Pai-Nosso (Lc 22,42; Mt 6,10).
Tarefa difícil, se quisermos impor limites ao nosso querer desde o início. Assim que pertence ao discernimento dos espíritos o romper, antes de mais nada, com todo apego à vontade própria, libertar-nos de tudo o que nós queremos por nós mesmos a fim de que nos tornemos livres para poder dizer com o Cristo: “Não seja feito o que eu quero, mas o que tu desejas!” (Mc 14,36). A este ponto é preciso ser livres interiormente para poder abraçar a vontade do Pai.
Mas mesmo depois de encontrada, esta vontade do Pai deve continuar a determinar a nossa vida para sempre. Em circunstâncias que serão mutáveis e de acordo com uma evolução pessoal, deveremos vigiar para que a decisão tomada permaneça sempre fiel e seja ainda expressão da vontade de Deus. A escolha que foi abraçada de acordo com Deus não deve somente trabalhar a nossa vida como um simples resultado ao qual se chega, mas como se fosse um programa de vida, ela deve agir, em primeiro lugar, como uma disposição de espírito, uma atitude de liberdade interior orientada para Deus, numa disponibilidade sempre renovada de dobrar-se à vontade do Pai. Poderíamos nos perguntar: como descobrir positivamente o que o Pai quer? É aqui que mergulhamos em cheio naquilo que Inácio insiste tanto ao longo dos seus Exercícios Espirituais: através de um conhecimento interno de Cristo! É Nele que o Pai se tornou visível: “Quem me vê, vê o Pai!” (Jo 14,9).
Por essa razão, quem quer fazer uma escolha de vida, guiado por Inácio, precisará empenhar-se em uma sequência de contemplações onde só uma coisa importa: conformar-se com Cristo. Trata-se de saborear internamente as coisas em Cristo (cf. EE 2). Considerando o Cristo em cada contemplação, somos chamados a tomar do mesmo alimento do Filho, isto é, “fazer a vontade do Pai, que me enviou, e cumprir a sua obra” (Jo 4,34).
Para nossa consideração: Como temos vivido nossa relação dialogal com o Senhor? Como podemos avançar na conformação de nossas existências à vida de Cristo? Peçamos ao Senhor a graça de uma maior liberdade interior nas nossas escolhas!
Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
1- Marko Ivan RUPNIK, O discernimento. São Paulo: Paulinas 2004, 13.
2 – Cf. SÃO BASILIO, Hex. 9,2.
3 – Piet PENNING DE VRIES, Discernement des Esprits. Beauchesne, Paris 1979, 17-18.
Imagem: pexels.com
In: site da FAJE
“Recomendou-lhes que não levassem nada para o caminho, a não ser um cajado” (Mc 6,8)
O Evangelho deste domingo marca o começo de uma nova etapa na vida e missão de Jesus. Os discípulos vão estar incorporados à missão que, até agora, era realizada só pelo Mestre.
Depois da experiência de fracasso na sinagoga de seu povo, Jesus não só intensifica o anúncio da “boa notícia” do Reino, mas compromete os seus discípulos nesse ministério. A rejeição dos dirigentes e dos seus conterrâneos o obrigam a buscar outros interlocutores que não estavam “viciados” pelo ensinamento oficial.
Jesus, na Galiléia, encontrou os seus caminhos: junto ao mar, nas estradas poeirentas, nas margens... Ele se fez “estrada” para encontrar aqueles que não tinham “lugar”, os deslocados, os socialmente rejeitados e que eram a razão de seu amor e do seu cuidado; fez-se solidário com aqueles que estavam à beira dos caminhos e os convidou a caminhar para um novo lugar. Na Galiléia, Jesus teve suas preferências e escolheu o caminho da exclusão e da dor. Por isso, ao enviar seus seguidores, lançou-os na “estrada da vida”, para serem presenças de vida onde a vida era violentada: curar, expulsar demônios...
Para Ele, o caminho é o lugar do novo, das surpresas, dos encontros...
Inúmeros cristãos entendem sua fé só como uma “obrigação”. Há um conjunto de crenças que devem ser “aceitas”, embora muitos não conheçam seu conteúdo nem saibam o impacto que podem ter em suas vidas; há também um código de leis que “deve” ser observado, embora muitos não entendam bem tanta exigência atribuída a Deus; existem práticas religiosas que “devem” ser cumpridas, mesmo que seja de maneira mecânica. Esta maneira de compreender e viver a fé gera um tipo de cristão medíocre, sem desejo de Deus e sem criatividade nem paixão alguma por contagiar sua fé. Contenta-se com “cumprir”. Esta religião não tem atrativo algum; converte-se em um peso difícil de suportar e provoca alergia em muitos.
Na vivência cristã, muitos passam do seguimento do “Homem das estradas poeirentas” ao mero cumprimento de normas, ritos, doutrinas…
No entanto, o caminho de Jesus não vai pelo terreno pantanoso do legalismo e do moralismo, mas pelo terreno firme da misericórdia, do cuidado, do compromisso com a vida...
Jesus tinha alergia a lugares fechados, mofados...; ele preferia transitar pelos lugares abertos, arejados, porque se deixava conduzir pelo Espírito.
Já nas primeiras comunidades cristãs o seguimento de Jesus era vivido de outra maneira. A fé cristã não era entendida como um “sistema religioso”; a vivência do seguimento de Jesus era conhecida como “caminho”, que era a maneira mais acertada para viver com sentido e esperança. Dizia-se que o seguimento era um “caminho novo e vivo” e que foi “inaugurado por Jesus para nós”; um caminho que deve ser percorrido “com os olhos fixos n’Ele” (Heb 10,20; 12,2). Os cristãos eram conhecidos como os “adeptos do caminho”.
Por isso, seguir Jesus Cristo era aderir a Ele incondicionalmente, era “entrar” no seu caminho, recriá-lo a cada momento e percorrê-lo até o fim. Seguir era deixar-se “configurar”, isto é, movimento pelo qual a pessoa ia sendo modelada à imagem de Jesus Cristo.
A nossa vida é um êxodo, um sair constante do modo fechado de viver para entrar em uma outra realidade nova. O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida. Existem ainda céus por explorar, aventuras por empreender, pensamentos por experimentar e experiências por aceitar; falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar...
Precisamos ser discípulos(as) da escola da vida.
É de suma importância tomar consciência que a fé é um “percurso” e não um sistema religioso. E no percurso há de tudo: caminhada prazerosa e momentos de busca, desafio que é preciso superar, retrocessos, decisões, dúvidas e interrogações... Tudo faz parte do caminho, também as dúvidas que podem ser mais estimulantes que as poucas certezas e seguranças vividas de forma rotineira e simplista.
O caminho é coletivo, mas está feito de identidades particulares, onde cada um é responsável e cuidador de seu próprio processo itinerante. Cada pessoa é, onde habita, um fio tecedor de relações e interconexões, uma presença que ajuda a construir uma cultura de diálogo acolhedor, em permanente abertura ao encontro. Esta é a sabedoria divina que se expressa e se faz próxima em todos os detalhes da vida.
Cada um(a) é chamado(a) a fazer seu próprio percurso; cada um(a) é responsável da “aventura” de sua vida; cada um(a) tem seu próprio ritmo. Não é preciso forçar nada. No caminho cristão há etapas: as pessoas podem viver momentos e situações diferentes. O importante é “caminhar”, não se deter, escutar o chamado que a todos nos faz viver de maneira mais digna e ditosa.
“Fazer estada com Jesus” pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, re-descobrir com urgência o encontro como valor ético e como hábito permanente de vida.
Precisamos nos levantar cotidianamente de nossos ambientes atrofiados, arejar nossa vida, criar vínculos com aqueles que estão à margem; há sempre uma “estrada ferida” que nos espera.
Faz parte do processo de amadurecimento espiritual, abandonar as poeiras que, desnecessariamente, carregamos. Não se trata de esquecer o passado ou de ignorá-lo, abandonando nossa história. Mas há coisas e situações que carregamos que nos fazem ficar presos, impossibilitados de alcançar novos rumos, novas realizações. É preciso sacudir a poeira dos pés, em sinal de verdadeiro desapego. Desapegar-nos de coisas e situações é um processo importante no desenvolvimento de uma espiritualidade que nos faça crescer humanamente.
A orientação de Jesus nos faz recordar a impactante frase-conselho de Frida Kahlo: “Onde não puderes amar, não te demores”. Não há motivo razoável para que permaneçamos onde o amor não pode acontecer e se realizar. Ajuda-nos, ainda, a sabedoria poética de Mário Quintana, de que “amar é mudar a alma de casa”. O amor é sempre saída de nós mesmos. Mas há portas fechadas. Nesse caso, não é espiritualmente saudável permanecer com a poeira nos pés. É preciso sacudí-la, e seguir viagem.
A paixão pelo Reino nos mobiliza a levar adiante a missão, a ir aos lugares do mundo onde há mais necessidade e ali realizar obras duradouras de maior proveito e fruto. Para realizar esta nobre missão, não podemos permanecer sentados. Seguir Jesus exige de nós uma dinâmica continuada, um colocar-nos a caminho em direção às margens. Não podemos viver o chamado do “Rei Eterno” a partir de uma cômoda instalação pessoal. A disponibilidade, o despojamento e a mobilidade são exigências básicas.
Corremos o risco de viver em mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o convencional. Tudo parece conspirar para que nos mantenha-mos dentro dos limites politicamente corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um mundo amplo, complexo e cheio de surpresas.
Deixar a vida estreita para entrar no vasto horizonte de vida proposto por Jesus: eis o desafio!
Texto bíblico: Mc 6,7-13
Na oração: Deus nos chama a cada dia para o desconhecido, para o novo; Deus nos tira de casa, nos faz sair do que é nosso, da segurança, da comodidade... e nos faz entrar numa “terra nova”...
- No “mapa espiritual” de seu interior (sentimentos, desejos, sonhos...) ainda existe uma “terra desconhecida”, que proporciona interesse à vida, suscita curiosidade, lhe impulsiona a caminhar?...
Ou está tudo amarrado, formatado, atrofiado..., esvaziando seu espírito de busca?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.07.2021
“E vós, quem dizeis que eu sou?” – “Quem és tu, Senhor?”
O chamado de Jesus se apresenta de modos muito diferentes nos evangelhos, segundo o temperamento e as circunstâncias de cada pessoa.
Algumas vezes, o convite a seguir Jesus chega ao discípulo por mediação de outro: “encontramos o Messias”, diz André a seu irmão Pedro. O chamado chega a Pedro por meio de André, e a Natanael por meio de Felipe. E assim, o chamado de Jesus se prolonga, se estende e chega até nós.
Sempre é Deus quem tem a iniciativa no chamado, mas Ele chama sempre por mediações: através do próprio desejo e das próprias capacidades, através da profecia e da presença de uma pessoa concreta, através do grito e da necessidade dos sofredores...
Os(as) seguidores(as) de Jesus, movidos pela presença e pela promessa do Pai, se convertem em “pescadores do humano”, ou seja, em libertadores de homens e mulheres, na esperança e no compromisso em favor do Reino de Deus.
A liturgia da festa deste domingo nos apresenta duas leituras bíblicas, com duas perguntas impactantes, pois desvelam a identidade e a missão, presentes tanto naquele que faz a pergunta quanto naquele que responde.
No caso de Pedro, é Jesus quem toma a iniciativa e pergunta – “e vós, quem dizeis que eu sou?”
Ao professar a identidade de Jesus (“o Filho de Deus”), Pedro redescobre também sua verdadeira identidade escondida debaixo de uma personalidade impulsiva, primária nas reações, voluntarista...
Mateus, no evangelho deste domingo, nos situa diante de um jogo de palavras entre “petros” e “Petra”, entre uma pedra movediça e a Rocha firme sobre a qual Jesus edificará sua nova comunidade.
O mesmo Simão é ao mesmo tempo “petros” e “Petra”, pedra do caminho e rocha, de tal modo que o sentido da promessa de Jesus seria: “Tu és Pedro/Pedra e sobre essa Pedra/Rocha (que és tu mesmo, Pedro, como pessoa) edificarei minha Igreja”.
Parece claro que petros/Pedro foi o apelido que Jesus quis dar a Simão. “Tu és só um petros”, simplesmente uma pedra movediça, cascalho sem estabilidade e que não serve para ser fundamento de uma casa. Isso parece ter sido Simão no princípio, para Jesus e para a comunidade mais antiga.
Mas, Mateus acrescenta agora que ele recebeu uma revelação especial de Deus, de tal forma que por ela (pelo dom do Pai), por sua confissão de fé, sem deixar de ser petro/cascalho, ele se converteu em Petra/Rocha firme da fé, alicerce da Igreja de Jesus.
A partir desta perspectiva, “esta Rocha” não se refere a Pedro como pessoa-pedra (com suas fragilidades e limitações), mas à confissão de fé que o Pai de Jesus lhe revelou. Apesar de ser pedra do caminho, Pedro recebeu uma revelação de Deus e sobre ela edificará Jesus sua Igreja (não sobre Pedro como pessoa, mas sobre sua confissão de fé). Esta relação entre Pedro (petros-pedra) e sua confissão de fé como Rocha (Petra), sobre a qual Jesus edificará sua igreja, constitui o centro teológico de Mateus, sua contribuição à história da comunidade cristã.
Mateus sabe que não tem sentido edificar a Casa/Igreja sobre uma pedra do caminho, ou seja, sobre cascalhos impróprios para a construção e que podem ser arrastados pela água da torrente. Mas ele sabe também que Simão, chamado Pedro/Pedra, está relacionado com a Petra/Rocha da Igreja de tal forma que nem as portas/poderes do inferno poderão prevalecer sobre ela ou derrubá-la.
Na situação de Paulo, é este mesmo que faz a Jesus a pergunta: “quem és tu Senhor” (Atos 9,5). Ao responder – “Eu sou Aquele a quem tu persegues”, Jesus pôs às claras a identidade violenta, dogmática, farisaica, legalista... de Saulo.
Daí a forte imagem da luz, no caminho de Damasco, que desvela quem é Saulo e quem é Jesus.
O encontro com esta luz, ilumina os recantos violentos e obscuros da personalidade de Saulo. A partir dessa experiência, Saulo começa a travessia em direção à Paulo. Ele reordena seus instintos violentos, agressivos... em favor do Evangelho. Este é o verdadeiro sentido da conversão: não se mata os impulsos humanos, antes desordenados, mas os reordena a serviço de uma causa maior.
A tradição afirma que Saulo caiu do cavalo; uma imagem de forte simbolismo, sobretudo para a cultura daquela época: ter um cavalo é símbolo de status, de poder, de vaidade...; “cair do cavalo” expressa que Paulo, para entrar no caminho do seguimento de Jesus, precisou cair de sua prepotência, de seu autocentramento, de seu dogmatismo e preconceito.
Para que haja transformação interior, é preciso “cair ao chão”, voltar ao “húmus”, reconhecer-se como humano, cheio de limitações e fragilidades, mas também possuidor de ricas potencialidades.
Ao cair, Saulo esvazia-se de seu ego para deixar-se conduzir por outros e pelo Grande Outro.
O itinerário Pedro e Paulo, por diferentes caminhos, é um itinerário de humanização, encontro com a própria identidade, uma aventura na descoberta do “mundo interior”, que é o coração, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância de dons e riquezas, onde cada pessoa experimenta a unidade de seu ser e o sentido de sua existência. “Quem sou eu? Para quê vivo? Para quem? Qual é o meu lugar e missão no mundo?”
Toda pessoa possui dentro de sí uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.
“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até os fundamentos do próprio ser, até às raízes mais profundas.
A própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que cada pessoa tem para encontrar segurança e caminhar na vida, superando as dificuldades no compromisso em favor da vida.
Com confiança em si e na rocha do próprio ser, todas as forças vitais se acham disponíveis para crescer dia-a-dia, para a pessoa se tornar aquilo que originalmente é chamada a ser.
Texto bíblico: Mt 16,13-20
Na oração: É urgente gerar espaços que facilitem reabrir as vias de retorno ao “lar interior” onde é gestada a identidade de cada um e suas opções mais firmes.
Entendemos a “interioridade” como a arte de descer na própria intimidade, nas cavernas interiores, para estar a sós e em diálogo com Aquele que lhe dá o sentido mais profundo à existência e a seu projeto de vida.
Só no nível mais profundo que cada um(a) pode responder, com a própria vida, à pergunta instigante de Jesus: “Quem dizeis que eu sou?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.06.2021
“...aproximou-se de Jesus por detrás, no meio da multidão, e tocou na sua roupa” (Mc 5,27)
O evangelho deste domingo diz respeito, de uma maneira especial, às mulheres de qualquer idade e condição; mas sua mensagem é universal e não é dirigida somente a elas.
Impressiona-nos ver Jesus buscando a libertação radical das pessoas, de tudo aquilo que possa ser um obstáculo em suas relações, crescimento pessoal, realização total.
Se considerarmos unicamente sua capacidade de curar enfermidades, nossa visão de Jesus seria muito superficial, sem captar o desejo dele de despertar em cada pessoa sua identidade mais profunda.
Ele, no seu “ministério terapêutico”, livre das ataduras da cultura, das leis, dos costumes e até da imagem de Deus alimentada pelas autoridades religiosas, é capaz de olhar cada pessoa e ver nela uma filha de Deus. Por isso, o evangelho nos revela, através de seus ensinamentos e de suas obras, a mensagem profunda de Deus de querer que seus filhos e filhas se desenvolvam em plenitude e alcancem a felicidade.
O evangelista Marcos, neste domingo, nos situa diante de duas mulheres, ambas no limite da vida: a hemorroissa leva doze anos enferma (o tempo de maturação de uma mulher), e a adolescente que está no desabrochar da vida (doze anos é a entrada na vida adulta, conforme a visão desse tempo). São suas feridas que as conduzem para o interior do amor de Deus. Por essa abertura, elas se sentem aceitas e amadas.
Por isso, nessa dupla atuação curativa de Jesus, cada um dos detalhes revela uma infinidade de mensagens diante das quais podemos nos deter para “saborear” alguma delas, e assim nos ajudar no nosso caminho de identificação com Ele.
Vamos dedicar atenção especial ao encontro de duas sensibilidades: a de Jesus e a da mulher com hemorragias. A cena é surpreendente. Marcos nos apresenta uma mulher desconhecida como modelo de fé para as comunidades cristãs. Dela, todos poderão aprender como buscar a Jesus com fé, como chegar a um contato sanador com Ele e como encontrar nele a força para iniciar uma vida nova, cheia de paz e saúde.
A mulher é anônima, está sozinha, arruinada e junto dela não se vislumbram parentes ou amigos. Não é coxa, não é cega, não está paralítica, não é pobre, não é pagã.
Só sabemos que padece de uma enfermidade secreta, tipicamente feminina, que lhe impede viver de maneira sadia sua vida de mulher, esposa e mãe. A religião e o contexto social lhe impõem um distanciamento desumanizador; a lei religiosa está destruindo esta mulher, sem oferecer-lhe nenhuma saída de esperança; existencialmente é considerada como morta: não há lugar para ela em nenhum ambiente.
A mulher está quebrada por dentro; arrasta um drama secreto. Leva uma vida oculta que ninguém conhece. Sua perda de sangue, além de torná-la estéril, encaminha-a para a morte e a situa no mundo da impureza, da vergonha e da desonra. Quer amar e não pode. Espalha “impureza”; segundo sua lei, converte em impuro tudo o que toca. Ela é toda angústia, é toda amargura. Sua ferida interior a corrói em silêncio. “...tinha sofrido nas mãos de muitos médios, gastou tudo o que possuía e, em vez de melhorar, piorava cada vez mais” (v.26).
Sofre muito, física e moralmente; sua vida está se esvaindo, secando, não têm forças para viver, sente-se separada dos outros. Seu dom, o sangue que possibilita gerar e nutrir outra vida nova, se converte em seu peso e em motivo para ser rejeitada por muitos. Excluída das relações, é submetida ao juízo social e ao isolamento.
No entanto, ela resiste a viver para sempre como uma mulher enferma. Está sozinha. Ninguém lhe ajuda a aproximar-se de Jesus, mas ela saberá como encontrar-se com Ele.
Não espera passivamente que Jesus se aproxime dela para lhe impor as mãos. Ela mesma toma a iniciativa e o busca. Vai superando todos os obstáculos, faz tudo o que pode e sabe.
A angústia armazenada leva-a a romper com sua Lei; ela tem de prescindir da instituição religiosa para aproximar-se de Jesus, por sua conta, saltando sobre todas as normas. Cansada de sofrer física e moralmente e alimentando um profundo desejo de ser curada, rompe com todos os protocolos sanitários que a separavam dos outros, inclusive de Deus, e busca a quem possa lhe devolver a saúde. Para isso, ousa transgredir as normas de distanciamento social, abre caminho por entre a multidão para se aproximar de Jesus, de quem muitos lhe haviam falado.
A mulher não se contenta só em ver Jesus de longe. Busca um contato mais direto e pessoal. Atua com determinação, mas com pudor e delicadeza. Não quer atrapalhar ninguém e nem interromper o caminho de Jesus. Aproxima-se dele por detrás, entre as pessoas e lhe toca o manto. Nesse gesto delicado se concretiza e se expressa sua confiança total na força sanadora de Jesus. Toca e se deixa tocar por Ele para poder experimentar a cura e a paz em seu interior.
“Quem tocou na minha roupa?”, perguntará Jesus. A mulher é chamada a sair de seu esconderijo, a romper o tabu que a marginalizava, a colocar um fim na cumplicidade existente entre sua vergonha e a rejeição social. Jesus não aceita essa situação “às escondidas”, à qual a mulher estava condenada por um tabu, de modo que, fora de seu costume habitual, Ele concede ao milagre o caráter de publicidade. Ela é convocada por este Homem a depositar fé em si mesma como mulher. Doravante já não será mais uma “mulher impura”, mas uma filha muito amada. “Filha, a tua fé te curou”.
Para Jesus, não basta curá-la, e não fica satisfeito enquanto não estabelecer com ela um diálogo interpessoal, no qual ela lhe diz “toda a verdade”. A cura recebida abarca, pois, não somente seu corpo, mas também seu espírito, seus temores e sua vergonha, que desaparecem na confiança do diálogo e na experiência de ser reconhecida, escutada e compreendida.
Ela esperava ser salva na passiva, mas Jesus emprega o verbo na ativa, e situa nela a força que a salvou: a mulher vai embora, não apenas curada, mas tendo escutado uma bem-aventurança por causa de sua fé e tendo recebido o nome de “filha”, um título familiar raro nos Evangelhos. “Minha filha, a tua fé te curou; vai em paz e fica curada dessa doença” (v. 34)
A hemorroissa é a única pessoa nos evangelhos à qual Jesus chama “filha”. Porque estava separada de qualquer relação, Jesus estabelece com ela o vínculo mais forte que experimentou: chama-a “filha”, como Ele mesmo se sentiu chamado de “filho” pelo Pai, no batismo. Ele está batizando esta mulher; ela está nascendo para uma nova vida.
Texto bíblico: Mc 5,21-43
Na oração: O relato deste domingo também nos faz penetrar nos meandros da fé, convidando-nos a crer que nossa força reside precisamente em nossos limites e fragilidades, reconhecidos e assumidos.
A Revelação nos diz que Deus tem mais facilidade de entrar em nossas vidas pelas feridas, fracassos, derrotas... e não pela porta das virtudes, da perfeição, do legalismo...
- Fazer “memória redentora” de suas “feridas existenciais” como oportunidades para quebrar todos os protocolos, inclusive religiosos, e se aproximar de Jesus para tocá-lo. Talvez, basta um “toque” para o despertar de outras energias e inspirações e, assim, viver com mais intensidade e sentido.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
24.06.2021
“Vamos para a outra margem!” (Mc 4,35)
O evangelho deste domingo fala de movimento, de deslocamento em direção a outras perspectivas, de saída dos próprios espaços de proteção e segurança, para acolher outras vidas, outras histórias, abrir-se ao novo, ao diferente. Que significa, para cada um, a outra margem? Desde logo, não há resposta padrão; ela é muito pessoal, como é pessoal a adesão à pessoa de Jesus. Convite pessoal e comunitário, de relação amistosa profunda, para encontrar n’Ele nossa segurança e, assim, continuar a vida com mais inspiração.
É uma grande riqueza ir às margens de nossos irmãos, não como turista, mas como peregrinos.
Jesus convida a todos nós a cruzar o mar em direção à outra margem. Estamos tão acostumados em nossa margem rotineira que não é fácil arriscar e fazer a travessia; nem sequer estamos convencidos de que exista outra Margem, mais além das comodidades e das seguranças que buscamos. No entanto, nossa meta está do outro lado do risco e do perigo. A falta de confiança continua sendo a causa de não nos atrevermos a dar o passo; resistimos acreditar que Ele vai em nossa própria barca.
“A nossa fé não é uma fé laboratório, mas uma fé caminho, uma fé histórica. Deus se revelou como história, não como um compendio de verdades abstratas... Não é preciso levar a fronteira à casa, mas viver em fronteira e ser audazes” (Papa Francisco).
Entrar na barca com o Mestre significa “embarcar” na vida d’Ele, correndo riscos de sofrer rejeições, abalos e tempestades.
O contexto social pós-moderno desencadeou uma complexa turbulência em todos os domínios da vida, gerando novos desafios para a adaptação do ser humano a seu ambiente. As pessoas sentem-se cada vez mais ameaçadas, por realidades externas e internas, a sensação de insegurança aumenta e torna-se mais indefinida; por conseguinte, os níveis de ansiedade e angústia são cada vez mais elevados, conduzindo a verdadeiras situações de ruptura e desespero.
Reforçam-se e elevam-se os gradeamentos, mudam-se e sofisticam-se as fechaduras, as pessoas armam-se, as sociedades ficam cada dia menos seguras e estáveis. É um círculo dramático e infernal cujo resultado é o desenvolvimento crescente de uma espiral de medo, de violência, de stress..., tornando as pessoas insensíveis, passivas e conformadas.
É com esta situação que temos de aprender a lidar e a conviver. De fato, a pressão rotineira vivida cotidianamente nos diferentes ambientes demanda uma enorme competência e uma capacidade de adaptação diante de situações altamente adversas, agressivas e até violentas.
Como seguidores(as) de Jesus que bebemos das fontes do Evangelho, duas são as “margens” que nos seduzem, nos mobilizam e nos fazem chegar onde outros não chegam ou encontram dificuldades para chegar; estas duas “margens” constituem a originalidade de nossa vivência cristã e de nossa missão no mundo de hoje: a “margem” da interioridade e a “margem” da universalidade. São “margens” que nos humanizam, pois nos mobilizam a “descer” em direção àquilo que é mais humano, em nós e na realidade que nos interpela.
Em primeiro lugar, “passar para a outra margem” nos evoca o chamado a assumir um deslocamento social e religioso que tem um componente de risco e mudança. Implica sair do conhecido, abandonar as próprias seguranças; mudar de lugar, geográfico e/ou existencial, ir aonde ainda não temos ido e enfrentar uma travessia incerta; e, por último, atrever-nos a entrar em contato com o diferente e desconhecido e aceitar ser transformados. Esse desafio hoje nos sacode e pode gerar em nós inquietude e desassossego, como a tormenta que ameaça os discípulos depois de entrarem na barca.
Precisamos também fazer a travessia em direção à outra margem de nós mesmos, aquela que não costumamos visitar. Descobrir nosso tesouro escondido: a quantidade de qualidades e recursos que ativamos com mediocridade, ou simplesmente não usamos. Porque, se nos níveis mental e emocional tendemos a nos instalar, no mais profundo, no entanto, nos habita o desejo do “mais”, que nos impulsiona, a partir de dentro, numa expansão aberta a horizontes cada vez maiores.
A “outra margem” é a novidade do presente, a descoberta incessante, a amplitude sem limites. Mas só poderemos começar a cruzá-la se estivermos dispostos a deixar nossos caminhos trilhados e nos entregarmos com docilidade à Vida – outro nome de nosso “mestre interior”.
O primeiro desejo de chegar à outra margem nasce de dentro, do coração, que entende sua missão como busca e peregrinação interior, como um colocar-se em movimento... Sair da margem conhecida, “velha”, rotineira... para encontrar a nova margem: lugar de relação, de questionamento, de criatividade, de encontro com o novo e diferente…
A outra margem, lugar provocador, incitador, que desperta curiosidade... Aqui brotam as grandes experiências religiosas, as intuições, projetos, ideais vitais.
Caminhar para a outra margem é sair do centro, da segurança, da acomodação... e ir em busca das surpresas, das novas descobertas; implica arriscar, ter ousadia, não ter medo de caminhar para os “confins da terra”, para regiões desconhecidas em seu próprio interior...
Precisamos, para isso, ativar nossa “inteligência espiritual”, como a capacidade que nos permite acessar e conectar com essa dimensão profunda, à qual nos referimos com o termo “espiritualidade”.
Aderir à pessoa de Jesus, portanto, é arriscar-nos à travessia do mar da vida; não estamos sozinhos; talvez nos encontramos perdidos em alto mar esperando resgate e não somos capazes de perceber que no interior de nossa barca há uma presença que nos pacifica. Ao chegarmos à outra margem descobriremos uma experiência pessoal e comunitária de fé na pessoa de Jesus, que nos ressuscita por dentro, que nos injeta vida nova e alegria profunda.
No entanto, é na vivência da adversidade que se dá o encontro das oportunidades para o crescimento.
Muitas vezes, são justamente as circunstâncias adversas, extremamente difíceis, que despertam na pessoa as condições mais criativas, que enriquecem suas possibilidades práticas de atuar sobre a realidade em que vive e transformá-la ou transformar-se.
Isto quer dizer que, diante da adversidade, a pessoa mobiliza um conjunto de recursos dos quais não tinha consciência anterior, mas cujo efeito é potencializador de crescimento e enriquecimento pessoal.
Texto bíblico: Mc. 4,35-41
Na oração: Nas nossas vidas acontece algo de verdadeiro e belo quando nos dispomos a buscar dentro de nós mesmos a razão da nossa existência.
- A nossa vida é um êxodo, um sair constante de uma realidade para entrar em uma outra realidade nova.
O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida.
- Existem ainda céus por explorar, aventuras por empreender, pensamentos por experimentar e experiências por aceitar; falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar...
- No “mapa espiritual” de nosso interior ainda existe uma “terra desconhecida”, que desperta interesse à vida, suscita curiosidade, nos põe a caminho... Grandes surpresas interiores estão à nossa espera, e a capacidade de continuar buscando é que dá sentido ao esforço e vigor à vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.06.2021
imagem: pexels.com
“...e a semente vai germinando e crescendo, mas ele não sabe como isso acontece” (Mc 4,27)
O mundo no qual vivemos, feito de códigos e números, de tecnologia e de anonimato, de frios cálculos e de robots telecomandados..., conduz a uma vida em contínua aceleração; isso faz com que todos adoeçam de ativismo, de competição, de eficientismo; o excesso informações tira o sabor das coisas, instaura uma cultura que não flexibiliza a vida interior e o recolhimento, não cultiva afetos, emoções e sentimentos.
Tal como Marta, “andamos inquietos e perturbados com muitas coisas; mas uma só é necessária” (Lc. 10.41). Precisamos nos conceder espaços de calma para provar a verdade, contemplar a beleza, saborear os inestimáveis valores presentes na gratuidade e no dom desinteressado, alimentar-nos de valores humanos e cristãos que, impregnados de futuro, tornam bela a vida de hoje.
Os tempos e os ritmos de vida mudaram muito. Nós estamos muito distantes da quietude e da calma do mundo rural; hoje predomina a eficácia, a pressa, a ansiedade. A eficácia sempre tem pressa. Mas as coisas da vida requerem tempo, calma e sabedoria.
Os evangelhos estão cheios de referência à vida. As sementes também nos falam de vida. Um grão de trigo, um grão de mostarda são sementes humildes, pequenas, mas cheias de vida. A vida da semente é calada, silenciosa, paciente: vai crescendo pouco a pouco, desenvolvendo toda sua vitalidade.
A vitalidade da semente não depende do trabalho e dos esforços humanos; ela está cheia de vida em si mesma. As sementes, as plantas, as árvores não crescem de uma vez só, nem com saltos espetaculares, mas pouco a pouco, humildemente.
O agricultor não escava desesperado a terra, forçando o crescimento da semente que ali deixou, mas distancia-se dela sabendo que há um tempo necessário de separação para que a planta, no seu ritmo, possa nascer e crescer. Toda semeadura supõe que é preciso saber esperar (esperança) com calma e paciência.
Não podemos ter urgências morais, nem precipitações nas mudanças pessoais, sociais, pastorais..., porque pode nos invadir a ansiedade e esta pode gerar medo, angústia..., pois pretendemos solucionar as coisas com uma insaciável pressa e avidez.
O ser humano pós-moderno está perdendo o contato com o cosmos, com o chão, com os animais, com a natureza... e isto provoca-lhe todo tipo de mal-estar, de doenças, de insegurança e de ansiedade.
Prestemos atenção aos diferentes ritmos na sinfonia da vida. A natureza tem seus ritmos: o do dia e o da noite, as quatro estações, o crescer das espigas, o canto dos pássaros, o transcurso de um rio... Nossa vida tem os seus ritmos e somos chamados a distingui-los: se uma mulher está grávida, viverá um ritmo; se alguém está enfermo, descobrirá outro ritmo diferente; quem vive um luto por uma separação ou por uma morte, terá outro ritmo...; a amizade, o estudo, o trabalho... marcam ritmos diferenciados. Não se pode comparar o ritmo de uma criança com o do ancião, ou do adolescente com o ritmo do adulto. É diferente o ritmo do Sul e do Norte, o ritmo de cada povo....
Quando forçamos o tempo biológico para apressar demais o passo e antecipar recursos para uso imediato, o gasto de energia envolvido na operação pode arruinar a nossa própria vida.
Há um defeito na atividade que costuma tirar de nós a riqueza espiritual e convertê-la num “ativismo insensato”, sem vida interior e sem criatividade. Trata-se da ansiedade.
O nosso “eu profundo” é ferido por um permanente estado de alerta, exigências de obrigações pendentes e expectativas à espreita. Estamos perdendo aquela paz essencial nas profundezas do nosso ser, aquele repouso sem preço na qual os elementos mais delicados da vida se renovam e se confortam.
As demandas, a tensão, a pressa da existência moderna, perturbam a destroem esse precioso repouso.
Este “nervosismo” chamado ansiedade é uma espécie de pressa interior permanente. Sentimos uma necessidade imperiosa de resolver rapidamente todos os problemas, como se todas as coisas fossem urgentes ou indispensáveis. É um problema relacionado com o tempo.
Tratamos a vida com a mesma ansiedade que se abate sobre nós nos cinzentos corredores de espera, nas filas administrativas, nos engarrafamentos do trânsito. Tornamo-nos viciados em assuntos rapidamente fechados, incapazes de acolher o surpreendente “novo” que o sabor da vida insistentemente propõe.
Sabemos que, quando há ansiedade, há desordem. Como a mente está cheia de projetos e vive antecipando-se às coisas, nessa multidão de pensamentos reina uma grande confusão, e nada é bem-feito.
Além disso, a ansiedade nos torna superficiais, porque nos leva a passar rapidamente de uma atividade a outra, sem nos aprofundarmos em nada. O coração ansioso não é capaz de deter-se em coisa alguma. Não suporta a quietude. E assim não pode apreciar o sabor mais agradável das coisas.
Há no evangelho deste domingo um chamado dirigido a todos e que consiste em plantar pequenas sementes de uma nova humanidade e de uma nova inspiração no cotidiano de nossas vidas. Jesus não fala de coisas grandes. O Reino de Deus é um dinamismo muito humilde e modesto em suas origens. Presença que pode passar tão desapercebido como a menor semente, mas que é chamada a crescer e frutificar de maneira inesperada.
É bom envolver-nos nas atividades cotidianas e tirar maior proveito delas. Mas, às vezes, a ansiedade nos leva a sermos demasiadamente dependentes dos resultados do trabalho. Queremos ver rapidamente os frutos de nosso esforço. E assim escapa-nos o prazer de podermos agir com serenidade e paz.
É necessário saber planejar e prevenir, mas sem pretender prever e controlar tudo. É uma grande sabedoria saber desfrutar das pequenas coisas que temos ou que podemos fazer agora, sem pensar nas que não temos. Na ansiedade por querer conseguir certas coisas e abarcar tudo, acabamos criando dependências egocentradas e a vida vai se acabando sem ser vivida.
Então, nossa ação deixa de ser fonte de satisfação e plenitude. Por isso terminamos nos enfraquecendo, enchendo-nos de angústias inúteis e esquecendo-nos que “com a divina consolação todos os trabalhos são prazer e todas as fadigas são descanso” (Carta de S. Inácio a Teresa Rejadel).
A familiaridade com Deus na relação com todas as coisas do cotidiano, não implica fadiga ou ansiedade, senão que é uma maneira de viver aquela paz e plenitude considerada como verdadeiro descanso.
Toda atividade humana, perpassada por uma “espiritualidade” inspiradora, deve ser motivada, antes de tudo, pela força interior do amor, que lhe dá uma qualidade, um sentido e um valor particulares.
O desafio é buscar maneiras de encontrar a serenidade em meio às nossas frenéticas vidas, de abrir em profundidade nossa cotidianidade para poder nos submergir no ritmo tranquilo de Deus; encontrar-nos com Ele para que seja o centro de nossa vida e caminhar a seu lado. Oxalá sejamos capazes de captar os detalhes da paisagem de nossa vida para descobrir em tudo as pegadas do Senhor! E, embora vivamos neste mundo onde tudo se move tão rápido, podemos fechar os olhos e sentir que Ele nos conduz pela sua mão.
Textos bíblicos: Mc 4,26-34
Na oração: Tente escutar o universo infinito; acima, abaixo, ao seu redor. Entre em profundo silêncio para perceber a vibração de todos os elementos: terra, ar, água, fogo. Tudo vibra, tudo está cheio de ondas luminosas, sonoras. Tudo é silêncio e tudo é escuta. Sinta-se presente no meio deste diálogo entre céu e terra... para escutar, falar e orar.
- Seu ritmo cotidiano é marcado pela ansiedade, pressa, estresse...? Há espaço para o silêncio, a contemplação?
- A partir do silêncio do seu coração, plante no seu cotidiano, sementes de humanidade: proximidade, acolhida, compaixão, paciência, paz...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.06.2021
Imagem: Albin Egger Lienz
“...porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vós” (Mt 11,29)
O mês de junho, dentro da Igreja católica, é também conhecido como o “mês do Sagrado Coração”, cuja solenidade é festejada na sexta-feira posterior ao segundo domingo depois de Pentecostes. Desde as origens desta devoção o que se busca comemorar e celebrar é o Amor de Deus, manifestado de um modo original na história concreta de Jesus de Nazaré.
Jesus viveu sempre a partir de seu coração e contagiou a todos com a força poderosa de seu amor e de sua entrega. Ele nasceu com um coração de carne, ou seja, humano, absolutamente divino. Nele se realizou definitivamente a promessa de ser o coração de todos, o centro nevrálgico da humanidade.
Jesus foi o homem para os outros, que teve coração, um coração não de pedra, mas de carne. Sua vida, um sinal do bem amar, do saber amar. Mas, sobretudo, Jesus, em seu Coração, revelou a profundidade mesma do ser humano e de Deus. Nele estava a fonte do Espírito que brotava como água fecunda até a vida eterna.
Graças à Encarnação, o Filho de Deus trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, sentiu com vontade humana, amou com coração humano.
O Coração de Jesus nos fala de iniciativa, de liberdade, de entrega absoluta e amor profundo; recorda-nos como Deus, por sua pura iniciativa, pelo compromisso com os homens e mulheres de ontem, hoje e amanhã, sai de si para encarnar-se em meio ao nosso mundo, acampando em meio à nossa realidade histórica e cotidiana. Seu Coração nos revela que sua Vida implica um movimento de saída, que provoca encontros pessoais, que transforma a vida daqueles(as) que o seguem, abrindo-lhes novos horizontes, ampliando a visão e descentrando-os de sua própria lógica.
Seu coração aberto é o lugar por onde voltamos a Deus com todos, onde aprendemos quem é Ele e quem somos nós. É um caminho que nos faz passar do temor à confiança, da ansiedade ao abandono, do reter a própria existência a entregá-la, do medo à liberdade, da morte a uma vida sem fim.
O evangelho deste dia mostra um dos mais vivos exemplos de coração agradecido que podemos encontrar. Jesus, que acaba de passar por uma profunda experiência de rejeição por parte das cidades da Galiléia, explode no canto que começa: “Eu te louvo, Pai, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos”.
O coração de Jesus é sustentado, alimentado, irrigado pelo amor cuidadoso e providente do Pai.
É no coração que também nós, seus(suas) seguidores(as), poderemos estar em segurança, profundamente repousados. É no coração, “última solidão do ser”, que decidimos por Deus e a Ele aderimos. Aqui Deus marca “encontro” com cada um de nós. “Deus é mais íntimo a cada um de nós do que nós mesmos” (S.Agostinho).
O Coração de Jesus continua sendo expressão central da fé cristã, expressão do amor de Deus para com o ser humano. O Papa Francisco usa, com frequência, uma expressão carregada de intensidade: “revolução da ternura”. Sem dúvida, a “mansidão” e a “ternura” definem radicalmente o sentir e o atuar de Jesus.
A revolução da ternura nos convida a acompanhar, curar e acolher, a partir de nossa realidade, aqueles que nos rodeiam, a viver investindo nossos melhores recursos em favor dos outros.
Hoje, essa proposta simples, mas de profunda marca evangélica, responde à desumanização que estamos vivendo. Essa revolução da ternura nos convida a sair de nós mesmos, a colocar nossa vida a serviço do irmão, a entrar no fluxo do Amor de Deus, fazendo chegar a tantos que dele necessitam, através de nossa mão, de nossa presença cheia de ternura; assim vivendo, nos convertemos em transparência profunda do próprio Coração de Jesus.
Segundo a tradição bíblica, o que mais nos desumaniza é viver com um “coração fechado” e endurecido, um “coração de pedra”, incapaz de amar e de crer. Quem vive “fechado em si mesmo”, não pode acolher o Espírito de Deus, não pode deixar-se guiar pelo Espírito de Jesus.
Quando nosso coração está “fechado”, nossos olhos não vêem, nossos ouvidos não ouvem, nossos braços e pés se atrofiam e não se movimentam em direção ao outro; vivemos voltados sobre nós mesmos, insensíveis à admiração e à ação de graças. Quando nosso coração está “fechado”, em nossa vida não há mais compaixão e passamos a viver indiferentes à violência e injustiça que destroem a felicidade de tantas pessoas. Vivemos separados da vida, desconectados. Uma fronteira invisível nos separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia.
Quando vivemos a partir do coração, escutamos com mais paciência, olhamos com cumplicidade, tocamos com ternura, sofremos com fortaleza, assumimos o risco com naturalidade, misturamos nossa vida com a dos outros e avançamos em comunidade realizando projetos solidários.
Assim, confessamos que o Coração de Jesus foi tão humano que o veneramos como “Sagrado”. Contemplando-o na totalidade de seus sentimentos, poderemos modelar o nosso coração, cristificando-o (“aprendei de mim...”). Do mesmo modo, conhecendo as dinâmicas, as paixões, as dimensões sombrias e as luminosas de nosso coração, poderemos nos aproximar, um pouco mais, do mistério da pessoa de Jesus, onde Ele deixou transparecer a alegria e a tristeza de ser homem, através desse coração tão humano e tão sagrado.
Jesus convida a entrar no seu amplo e solidário coração, para que possam “descansar”, todos aqueles(as) a quem a vida insiste em negar-lhes um sentido, aqueles(as) que são vítimas de uma sociedade tão desumana, aqueles(as) que já não sentem mais forças e se sentem sozinhos(as) e rejeitados(as), aqueles(as) que não tem outro motivo para se alegrar a não ser em Deus...
Uma devoção ao Coração de Jesus que não nos conduz a estabelecer novas relações humanas, prolongando o modo humano de ser e de viver de Jesus, torna-se uma devoção vazia, estéril, marcada por uma piedade alienante e alienada.
Texto bíblico: Mt 11,25-30
Na oração: Todos estamos no coração de Cristo. Todos estamos no Amor de Deus. Todos fomos introduzidos na Sagrada Humanidade d’Aquele que, sendo Deus, se fez semelhante a nós para que possamos todos nos sentir n’Ele.
O coração se revela como imagem de amor, de humanidade, de entranhas compassivas. Identificamos as pessoas por seu bom coração, por suas entranhas de misericórdia.
- Você deixa transparecer seu coração na relação com as pessoas? As atividades que você realiza tem coração?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.06.2021
Imagem: pexels.com
“E olhando para aqueles que estavam sentados ao seu redor...” (Mc 3,34)
Depois do percurso quaresmal e pascal, retomamos o tempo litúrgico conhecido como Tempo Comum, seguindo o evangelista Marcos. Será uma longa caminhada contemplativa, através da qual buscaremos dar uma “nova feição” ao nosso seguimento de Jesus. O Evangelho deste domingo nos mostra como Jesus exerce um grande poder de atração sobre as pessoas; são muitos aqueles que o buscam: a multidão, os membros de sua família, os mestres da lei... São muitos e diferentes, como são diferentes as razões pelas quais se aproximam e se situam em torno a Jesus.
Os primeiros, as multidões, admiradas de seu ensinamento e de sua capacidade de “destravar vidas”, buscam-no com intenso desejo; aglomeram-se nas portas das casas onde Jesus se encontra, acudindo a Ele vindo de todos os lugares. Todos estão maravilhados e são capazes de reconhecer que Deus atua nele. Estes são os simples e frágeis, enfermos e incapazes, limitados e sem forças, que não duvidam que Jesus os atenderá, os escutará e oferecer-lhes-á seu consolo e seu tempo, até o ponto de ser capaz de deixar de comer para estar com eles.
Por outro lado, seus familiares querem “agarrá-lo” e levá-lo para casa; querem preservar a honra da família, pois estão preocupados pelos comentários que se fazem sobre Ele. A atitude desses familiares se restringe a preservar a boa reputação de sua tradição. E, por último, aparecem os mestres da lei, que tinham descido de Jerusalém para acusá-lo de realizar seus exorcismos com a força do chefe dos demônios, e assim esvaziar sua fama.
Esta crítica, sendo muito grave, revela a petrificação daqueles que fazem da lei o centro da vida e não se abrem à novidade que Jesus apresenta. O ministério terapêutico de Jesus em favor da vida colocava em questão a estabilidade da estrutura social e religiosa na qual os mestres da lei empenhavam-se por mantê-la. Jesus confronta-os com inteligência e serenidade, para que compreendam que as acusações não têm fundamento e que reconheçam que quem o move a libertar as pessoas de suas “amarras” é o mesmo Espírito Santo, o Alento de Deus.
Resistir a reconhecer isso é “pecar contra o Espirito Santo”. O pecado contra o Espírito Santo tem raízes profundas no coração e não é simplesmente um ato, mas uma disposição interior permanente, é uma cegueira culpável por si mesma, um resistir-se à ação salvadora de Deus.
Quando o coração está fechado aos sinais de Deus, a pessoa se coloca numa atitude contrária à conversão, petrificando-se de tal modo que Deus não tem como lhe perdoar.
Trata-se da opção fundamental pelo mal: impedir o Espírito Santo de atuar, tanto em Jesus como nas pessoas. O perdão requer mudança de atitude: deixar o Espírito agir livremente. Não adianta pedir perdão sem uma correspondência. O blasfemo se exclui a si mesmo do perdão, se separa de Deus.
Diante das diferentes reações das pessoas, o que nos impressiona é a atitude de Jesus, um homem essencialmente livre e comprometido com a causa da vida. Ele desafia a todos, também os seus familiares e mestres da lei, a não permanecerem “fora”, a tomarem parte de seu círculo íntimo, situando-se ao seu redor e deixando-se impactar pelo seu modo de ser e agir. Aqui está o sentido do verdadeiro discipulado, a constituição de sua nova família.
Jesus aproveita a visita de sua mãe e seus irmãos para falar do nascimento da nova família: aquela que vive em sintonia com a vontade do Pai, reforçando os laços entre as pessoas, constituindo a nova comunidade. Por isso, é preciso sair do que é “meu”: minha família, minha religião, minha Igreja...
Jesus transgride os espaços: família, religião, povo, cultura... Ele alarga os espaços estreitos da família; não permanece dentro das quatro paredes. Há uma tendência em todo ser humano a se fixar numa zona de conforto, nos espaços estreitos, bons, nutrientes... mas que precisam ser ampliados.
Nesta perspectiva, fica em segundo plano a consangüinidade. Doravante, ser mãe ou irmão de sangue não tem importância. O critério de pertença à família do Reino consiste em abrir-se à vontade do Pai.
Aí o agir do(a) seguidor(a) identifica-se com o agir do Mestre, a ponto de Jesus poder considerá-lo como irmão e irmã: a vontade do Pai é o imperativo na vida de ambos. Basta alguém viver um projeto de vida fundado na vontade do Pai, para que Jesus o reconheça como pertencente à sua família.
A identidade dessa nova família se configura por um idêntico modo de proceder, fundado no amor e na prática da justiça. Por esse caminho, os discípulos se reconhecem como irmãos e irmãs, unidos para além de qualquer divergência, cultura ou raça. Essa fraternidade não é mera formalidade. Existe entre eles e elas uma efetiva comunhão de vida.
“E olhando para os que estavam sentados ao seu redor…” Esta imagem circular expressa um tom diferente do seguimento. A imagem habitual que temos é aquela em que alguém vai adiante – Jesus – e nós
vamos atrás. Aqui, no entanto, aparece outra forma de proximidade com Jesus: é a circularidade, reunir-nos ao redor do próprio Jesus que nos convoca. Estar em círculo, portanto, também quer dizer que estamos vinculados uns aos outros numa postural corporal que tem Jesus no centro.
Estamos diante de uma imagem de relação com Jesus que tem muito de circularidade, de proximidade espacial, de intimidade na identificação com Ele.
Nossa vida cristã, como expressão do seguimento de Jesus, tem muito disto: estamos e vivemos em círculo. Não somos “anacoretas”, somos pessoas que vivem em circularidade e a coesão do grupo depende, em grande parte, de que o Centro vincule aos que estão ao redor.
A imagem do círculo quebra toda estrutura piramidal, hierárquica, de poder, de prestígio... Todos estão ao redor de Jesus, vivendo ministérios e serviços diferentes.
Jesus inicia um novo movimento humanizador a partir das casas: nova família. Ele amplia o conceito de família: inclui a todos. Já não são os laços de sangue que contam. Família que se abre ao diferente, que valoriza a diferença e todos aprendem com as diferenças.
Situar-nos no círculo do seguimento Jesus implica acolher a diversidade das pessoas que compõem este mesmo círculo; isso permite nos enriquecer, adquirir mais humanismo. Diferença é expressão inerente ao ser humano, é modo de pensar, de dizer, de trabalhar, de existir e de conviver.
Somos diferentes, mas todos pertencemos com igual direito à “cidadania planetária”; todos temos direito a ser singulares, direito a ser diferentes, direito a partilhar e receber as diferentes riquezas.
A ideia de unidade da espécie humana não deve eliminar a ideia de sua diversidade.
Saber conviver com as diferenças é sinal de maturidade.
A diversidade racial, sexual, cultural, religiosa... supera a monotonia e oferece a criatividade de muitas formas. A harmonia fecunda entre as pessoas está na diversidade das diferenças, não na repetição mecânica. O conformismo repete cópias, mas não facilita a união autêntica. Sem as diferenças entre pessoas, a sociedade seria apenas um marasmo. Por isso, as diferenças pluralistas são valores, não anomalias. Além disso, são sedutoras, não amedrontadoras. A diferença pessoal mantém certo fascínio.
Muitas vezes, o zelo religioso, moral ou político degenera em formas de intransigência e intolerância.
Com isso, nos colocamos “fora” do círculo familiar de vida.
Texto bíblico: Mc 3,20-35
Na oração: Os tecelões e as comunidades cristãs têm muito em comum. Quanta necessidade temos, nestes tempos pandêmicos, de forjadores-tecedores de comunidade!
Hoje, mais do que nunca, precisamos de artesãos que sejam construtores de relações, de novos tecidos comunitários. Homens e mulheres que, inspirados em Jesus, teçam com arte e paciência, uma relacionalidade que fortaleça a comunidade. E assim, deixar transparecer a nova família dos(as) seguidores(as) do artesão de Nazaré.
- Onde você se situa: dentro do círculo jesuânico, como participante ativo(a), ou fora, como mero(a) espectador(a).
- Sua presença no interior da “nova família do Reino” faz diferença? Você contribui tecendo novas relações ou é propagador do “fio” do ódio, do preconceito e da intolerância...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.06.2021
“Ide à cidade; um homem carregando um jarro de água virá ao vosso encontro” (Mc 14,13)
A Eucaristia, comemorada especialmente na chamada solenidade de “Corpus Christi”, ocupa, sem dúvida, um lugar privilegiado na espiritualidade dos cristãos. Mas, que celebramos quando celebramos “Corpus Christi”?
Muito incenso e muito pálio pode nos impedir ver o que há por detrás da fumaça e entre os adornados tecidos que cobrem o Corpo de Cristo; muitas vezes, oferecemos uma visão um tanto distorcida, difusa, imprecisa, desse “mistério”: “Deus se faz Corpo e assume todos os corpos”.
Somos, então, convidados a voltar com a memória cordial àquela casa onde o ritual pascal judaico dá lugar aos gestos simples que se fazem entre amigos: partilhar o pão, beber da mesma taça, desfrutar da mútua intimidade, entrar no clima das confidências... E assim buscar recuperar o essencial. Fazer memória para comemorar. E podemos fazer este “retorno memorial” em companhia do “homem do cântaro de água”, relatado no evangelho de hoje.
Há personagens do Evangelho cuja notoriedade ultrapassa as margens do texto onde são recolhidas suas atuações. São imagens históricas de alcance universal, tais como Lázaro, a Samaritana, Jairo, Maria Madalena, Zaqueu, Pedro... Junto a estes personagens de primeira fila, encontramos outros, anônimos e sem protagonismo, presentes nas estantes menos visíveis do relato evangélico. Um dos mais desconhecidos é o “homem do cântaro de água”.
Na maioria das vezes ele passa desapercebido. Sua passagem pela cena é vista, mas não lhe é dada atenção. Uma aparição tão efêmera no texto que a maioria dos leitores não se fixa nele, apesar de ser citado nos três primeiros evangelhos. Por isso, ele se revela como inspirador a todos nós nesta festa de “Corpus Christi”.
Chama-nos a atenção, no Evangelho proposto para hoje, a maneira como Jesus indicou aos discípulos o local onde queria que a Ceia fosse celebrada. Jesus mandou-os seguir um homem que encontrariam à entrada da cidade. Junto a personagens conhecidos nos Evangelhos, outros, sem rosto, nem identidade, nem protagonismo, surgem inesperadamente, deixando sua “marca”, como este desconhecido que emprestou sua casa para que Jesus e seus discípulos pudessem celebrar a Páscoa.
Anônimo perante a posteridade, porque era seguido pelos que vinham atrás dele, este homem, de certo modo e do modo certo, serviu a Cristo como a Igreja deve serví-Lo, sem perguntar qual seria seu lugar à mesa.
O que teve lugar dentro de sua casa, transformada no mais importante templo material da história humana, seria mais do que suficiente para arrancar dele alguma expressão de vaidade, capturada pelo evangelista. Mas não; não é isso que acontece com ele.
O saber estar “à sombra” para não fazer sombra a outros, a atitude de acolhida, a preocupação pelo bem-estar dos demais, a prontidão e a disponibilidade em abrir sua casa, o agir com a liberdade de quem sabe o que faz, colocando-se à inteira disposição dos outros, com total generosidade: estas são as qualidades com as quais o “homem do cântaro” entrou em sintonia com o desejo de Jesus em celebrar a Páscoa com seus discípulos. No seu anonimato ele deixa transparecer sua “existência eucarística”: ele nos revela uma presença surpreendente e servidora, presença que aponta para uma outra presença, a de Jesus. Na realidade, ele foi o verdadeiro discípulo servidor, dando sua contribuição decisiva ao mistério da salvação.
Presença anônima, mas comprometida; presença que é “música calada” no seu cotidiano, uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.
Se existe uma atitude de vida que pede o resgate de sua profundidade e seu poder evocativo original é a da acolhida. Um dos sintomas do processo de desumanização que estamos vivendo é justamente a resistência em acolher quem é diferente, quem pensa diferente, quem age diferente...
A acolhida é um dos termos bíblicos mais ricos, que nos ajuda a aprofundar e aumentar a compreensão sobre a relação com nossos semelhantes. Por isso, buscamos inspiração no modo original e criativo de ser presença acolhedora na pessoa do “homem do cântaro”.
Tudo isto vem dizer a todos nós que não é suficiente encontrar com os outros para um serviço útil e parcial, mas é preciso investir a nossa própria vida na proximidade viva, no compromisso solidário, no colocar-nos à disposição para ajudar os outros a serem o que verdadeiramente são, o único caminho para a humanização.
Trata-se, pois, de nos perguntar o que significa hoje ser “presença eucarística”, partindo do fato de que no coração do seguimento de Jesus não há – e não pode haver – só um serviço, mas um encontro, rico em assombro e fascinação. O contexto social pós-moderno nos coloca numa situação que acaba atrofiando este impulso tão humano
da acolhida; aqui podemos indicar algumas características próprias de nosso tempo que complicam de modo peculiar a vivência desta virtude: as dificuldades que o ser humano atual tem para abrir-se e escutar uma voz diferente da própria, bem como uma disfarçada resistência para acolher a grandeza do mistério do outro que vem ao seu encontro; há um medo generalizado dos outros que não fazem parte do próprio “gueto”... e as casas se tornaram verdadeiras fortalezas, cercadas de parafernália eletrônica de segurança.
No entanto, a virtude da acolhida é um modo de proceder característico do(a) seguidor(a) de Jesus; implica a capacidade de abertura e acolhida daquele que vem de “fora”, o estranho, o diferente...
A acolhida é uma das múltiplas manifestações da capacidade de amar. O amor verdadeiro se exprime, sobretudo, através de uma relação em que o outro é acolhido como próximo.
A acolhida se apresenta como um valor humano e espiritualmente vital, conectado, ao mesmo tempo, com a vulnerabilidade de cada um que sempre requer ser acolhido e aceito, que sempre precisa encontrar espaços humanizadores de convivência e comunhão.
Essa relação de acolhida supõe abrir-nos de verdade à realidade do outro, sem reduzi-lo às nossas projeções, nem submetê-lo às nossas categorias mentais, sem anular seu mistério e contando com o imprevisível, com o inesperado, com o radicalmente novo; em definitiva, com o que supera o plano das nossas expectativas. Receber as pessoas com atenção, romper distâncias, escutá-las, pode ser uma ocasião para receber a única coisa verdadeiramente necessária. A acolhida implica uma integração entre escuta e serviço. Por isso os pobres são especialistas em hospitalidade e acolhida.
A presença silenciosa, original e comprometida do “homem do cântaro” des-vela e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, uma “existência eucarística”: descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher outras vidas na nossa própria casa; histórias que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.
Só tem sentido celebrar “Corpus Christi” quando abrirmos nossas casas para os “corpos” explorados, manipulados, violentados, escravizados, destruídos...
Pode ser que, às vezes, tenhamos um profundo amor e respeito pelo “Corpo de Cristo vivo e presente na Eucaristia”, e não O vejamos nos “corpos” que estão aqui, ali, lá, no nosso lado...
Texto bíblico: Mc 14,12-16.22-26
Na oração: Reze sua humanidade, seu corpo de homem ou mulher. Seja humano diante de Deus, deixe seu corpo expressar-se em louvor e gratidão.
- Entre em sua “casa”; reze no seu corpo. E agradecido(a) bendiga sempre o Senhor.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.06.2021
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