“...o Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor” (Lc 1,49)
A festa da “assunção” de Maria não é a celebração de um ser divino feminino (eterno, fora do tempo e do espaço), mas a recordação da vida e testemunho de Maria, a Mãe de Jesus, memória viva que foi transmitida pela comunidade judeu-cristã, à qual devemos estar imensamente agradecidos. Em sua realidade história, como mãe de Jesus e membro da comunidade cristã, ela oferece nova identidade ao ser humano, vinculado a Jesus numa história de busca, de encarnação e de fé...
Sem entrar no tema da historicidade dos relatos da infância, Lucas nos apresenta Maria com atitudes e valores diferentes daqueles que tinham suas vizinhas. Com Maria, o destino de uma mulher grávida não se limita a “dar à luz” e criar filhos, mas que deve ampliar muito mais seu horizonte de vida. O horizonte de uma mulher que segue a Jesus Cristo se estende até onde a missão, ativada pela sua fé, pode levá-la.
Ao receber a notícia de que seria a mãe do Salvador, Maria rompe seus espaços estreitos, sai de seu ambiente cotidiano e entra no dinamismo do Espírito, deslocando-se para o serviço gratuito.
Ao encontrar-se com Isabel, ela não pode segurar por mais tempo sua alegria e irrompe em um hino de louvor, o Magnificat, pois a experiência envolvente da grandeza de Deus com a qual se encontrou, instiga-a a exaltá-Lo. É um canto que brota de maneira espontânea e que se centra fundamentalmente na face salvadora de Deus. Um Deus que fixou nela um olhar amoroso, que fez grandes coisas na história do povo de Israel e na vida da própria Maria. Por isso, as gerações futuras a considerarão bendita.
No seu Magnificat Maria canta e faz memória de sua própria história e a de seu povo, à luz da santidade e da misericórdia divinas; no “hoje eterno de Deus” tudo adquire sentido, tudo é relido e ressignificado.
Neste sentido, a proclamadora do Magnificat é verdadeiramente ícone do Povo de Deus que caminha; ela deixa transparecer uma “memória agradecida” diante das ações libertadoras de Deus.
A sua oração é absolutamente original, porque expõe fatos concretos da sua história, mas essa singularidade está inserida numa amplidão comunitária. Isto é, na verdade, o que se espera de toda a oração: a capacidade, por um lado, de ser formulada, como o Magnificat, na primeira pessoa do singular. E, por outro, a capacidade de unir a sua história concreta ao horizonte mais vasto dos planos de Deus e da missão da comunidade que crê.
Aprendemos com Maria a “ler” a História de uma maneira diferente e instigante. A partir da “memória bíblica”, somos convidados a “re-ler” nossa história, pessoal e coletiva, com novos olhos, reconstruindo-a, dando a ela um novo significado e deixando-nos impelir a escrever uma nova história.
Nossa vida é parte da História, e esta, por sua vez, é formada pelas histórias de nossas vidas, pontilhadas e marcadas pela presença de outras muitas histórias.
A História, por si mesma, é provocante e nos fascina; ela tem um estranho poder de sedução. Nós nos reconhecemos nas histórias da História; isso nos facilita tomar consciência de onde estamos e quem somos, e nos ajuda a assumir decisões mais maduras frente aos desafios e surpresas que a vida nos reserva.
A vida só tem sentido quando se torna História, isto é, quando não se limita a repetir o passado, mas quando engendra algo novo e diferente a partir de uma História internalizada e saboreada. É somente no nível mais profundo que o ser humano transforma seu “tempo” em história e seu “espaço” em encontro.
Somos “seres históricos”, mas, muitas vezes, carregamos uma história pesada, reprimida, cheia de fracassos e derrotas; isso alimenta culpas, remorsos, sentimentos negativos..., que nos paralisam e travam o fluir da vida. Todos temos experiência que o passado carrega lembranças de fatos e de vivências negativas: crises, fracassos, rejeições, erros, pecados... Os desencontros, quebras e rupturas... costumam deixar feridas. Tudo isso pesa na memória e continua influenciando negativamente no presente.
Com isso, ao nos fixar no passado, alimentamos uma “memória mórbida, doentia, ferida”: depósito de rancores, ressentimentos, hostilidades, sentimentos de culpa, desânimo, angústia..., embotando a vida, queimando energias, paralisando-nos e não abrindo futuro de sentido.
Sabemos que uma pessoa doente na memória é doente no seu coração, na sua afetividade, nos seus sentimentos, nas suas relações...
Se a memória não é “evangelizada”, ela continua remoendo aquilo que aconteceu, num desgaste muito grande de energia. Não há mudança e conversão se não houver mudança e conversão da memória.
Somente através da “memória redentora”, a pessoa é capaz de se colocar diante do passado, de modo livre e aberta, dando-lhe um novo significado.
A memória sadia não muda o passado, mas “re-corda” (visita de novo com o coração) de modo novo e inspirador. A memória resgata referências, cura feridas, reconcilia-se com a vida e consigo mesma, com as próprias riquezas e fraquezas, com o próprio passado; ela tem sua função de lugar santo do louvor e da gratidão, pois ajuda a tomar consciência dos benefícios recebidos e possibilita ter acesso às recordações não neutras, mas aquelas que tem um significado para o presente. Ela é capaz de tirar proveito de todas as vivências pessoais (nada é descartado, tudo é integrado); abre possibilidade para rever a própria história e lê-la como História de Salvação.
A memória revela a verdade de um acontecimento. Uma memória mobilizadora, aberta ao novo e comprometida com o futuro. É através da memória sadia que somos capazes de descobrir a presença Deus na nossa história, tornando-a história da salvação.
A história pessoal e a história do mundo tornam-se, portanto, o “lugar” habitual da experiência de Deus, a montanha da misteriosa sarça ardente que não se consome. Só assim a história se converte em “Epifania” (manifestação) de Deus e permite compreender-nos e aceitar-nos.
Na plenitude final em Deus, toda a história passada será para sempre realizada na eternidade. O céu é apenas esse momento eterno de re-visitar tudo o que fomos, fizemos e sentimos na presença de Deus.
A história se revela, assim, como um húmus vivente, uma atmosfera de graça, uma torrente subterrânea na qual se nutre todo o processo da vida de cada um. Não é fora da História e de sua história que a pessoa pode reconhecer a Vontade de Deus e escutar Seu apelo; porque “Deus se fez e se faz História” é que a história de cada um e da humanidade inteira adquire uma nova luz e um novo sentido.
Cantar o Magnificat nos possibilita viver o “mistério” da presença e a ação do “Deus na História”. Nesse sentido, assim como Maria, cada pessoa se “contempla a si mesma”, imersa nesse acontecimento de graça que á a história da humanidade, assumindo-a e fazendo-a própria.
A partir do fundamento da História contemplamos nossa própria história (pessoal e institucional): história que deve ser observada, lida, discernida. Tal experiência nos ajuda a abrir os olhos para a novidade inesgotável da vida, nos faz “aquecer o coração”, desperta em nós o desejo e mobiliza todas as nossas capacidades para um compromisso de ação transformadora na história pessoal e coletiva.
Texto bíblico: Lc 1,39-56
Na oração: A História está sempre aberta, desafiando-nos, arrancando-nos de nosso imobilismo, despertando nossa criatividade para ser reescrita de uma maneira diferente.
- Diante da história pessoal e social, você se sente desafiado(a)? paralisado(a)? com medo? inquieto(a)...?
- Quanto de esperança você carrega em seu interior frente à nossa história centrada na cultura da morte?
- O que faz abrasar o seu coração diante de uma história que parece um contínuo fracasso?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
12.08.21
“Eu sou o pão da vida” (Jo 6,48)
Continuamos com o tema do domingo passado: Jesus é “pão”, sua vida é alimento, é comunhão que nós partilhamos e oferecemos, uns aos outros, sendo, dessa forma, Eucaristia.
Este evangelho da comunhão, segundo o livro de João, começou em Cafarnaum, onde Jesus se definiu como Eucaristia, pão partido e partilhado, comunicação de Vida, junto ao mar da Galiléia.
Como seres humanos somos marcados por profundas carências, fomes e sedes que nos mobilizam a nos deslocar e a ativar o impulso da busca.
O decisivo é ter fome de Vida que Jesus nos oferece: buscar, a partir do mais profundo, encontrar-nos com Ele, abrir-nos à sua verdade para que nos marque com seu Espírito e potencie o melhor que há em nós. Deixar que Ele ilumine e transforme as dimensões de nossa vida que ainda estão sem evangelizar.
Então, alimentar-nos de Jesus é voltar ao mais genuíno, ao mais simples e mais autêntico de seu Evangelho; interiorizar suas atitudes mais básicas e essenciais; acender em nós o impulso por viver como Ele; despertar nossa consciência de discípulos(as) e seguidores(as) para fazer d’Ele o centro de nossa vida.
Sem cristãos que se alimentem da Vida de Jesus, a Igreja se definha sem remédio.
Com isto, Jesus está dizendo que o procedimento para dar vida em plenitude, o que se costuma dizer “vida eterna”, é o caminho da “descida”, do despojamento de toda grandeza e privilégio, o caminho trilhado e vulgar dos mortais, onde se perde o poder e se ganha credibilidade, não pela condição social a que pertence, mas pela autenticidade de sua vida.
O comer e o beber são símbolos incrivelmente profundos daquilo que devemos fazer com a pessoa de Jesus. É preciso nos identificar com Ele, temos de fazer nossa sua própria Vida, temos de “mastigá-lo”, digeri-lo, assimilá-lo, apropriar-nos de sua substância. Esta é a raiz da mensagem do evangelho. Sua Vida passa a ser nossa própria Vida. Só desta forma faremos nossa a mesma Vida de Deus. Se comungamos e não nos identificamos com o que é Cristo, produzirá indigestão.
Partir, repartir e compartilhar são três verbos relacionados com a palavra “parte”. O termo “parte” indica que o todo não está concentrado em um só lugar, em uma só mão. A palavra “parte” orienta para a pluralidade. Os três verbos supõem uma ação que uma mesma pessoa pode realizar, mas com matizes diferentes. Partir é tomar um todo e fazê-lo em pedaços. Repartir é tomar os pedaços e distribuí-los aos outros, sem maiores implicações no ato de distribuir. Compartilhar, no entanto, supõe que a pessoa que parte e reparte, desfruta conjuntamente com as outras pessoas do bem repartido.
Se a primeira ação, partir, pode tornar-se um gesto egoísta, o momento do repartir pode ser um gesto indiferente ou generoso. O que está claro é que o terceiro momento, o compartilhar, é um gesto de fraternidade, de respeito para com os outros, um gesto de amor e proximidade. Compartilhar é algo mais que estar juntos, pois se pode estar juntos sem estar unidos ou com sentimentos opostos. Compartilhar é ter uma só alma e um só coração e, como consequência, viver na alegria de ter tudo em comum, de forma que a ninguém lhe falte o necessário. Quando o pão se reparte, todos comem E quando o pão é compartilhado, além de todos comerem, vive-se na alegria, ativada pela mesa onde é ativada este gesto oblativo.
Este tríplice gesto foi realizado por Jesus na cena da multiplicação dos pães e peixes; Ele tomou os pães, deu graças, partiu-os, repartiu-os e compartilhou-os com todos. Juntos comeram festivamente os mesmos pães e os mesmos peixes. Neste gesto de partir, repartir e compartilhar o pão, Jesus estava apontando para uma realidade muito mais profunda e vital, pois no pão era o mesmo Jesus que se partia, se repartia e finalmente se entregava aos seus, compartilhando sua própria vida e unindo sua vida com a de seus seguidores (as). Jesus não compartilha só o que tem, não compartilha só pão; Jesus se entrega a si mesmo, compartilhando sua vida para ativar a vida atrofiada em muitas pessoas. Aqui revela-se o pleno sentido desta forte expressão de Jesus: “Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente”.
Só vidas compartilhadas são capazes de despertar um movimento vital, onde aquilo que é mais nobre e humano, que está escondido no mais profundo de cada um, se visibiliza em gestos de proximidade, acolhida, serviço..., reforçando os vínculos e a comum união entre todos, independentes de pertencer ou não a uma determinada expressão religiosa. Vidas compartilhadas que conectam vidas diferentes, possibilitam a realização do sonho do Pai: a unidade na diversidade.
Aqui está o gesto que revela a verdadeira identidade dos(as) seguidores(as) de Jesus; é impossível ir mais além do compartilhar.
Temos esvaziado o sentido profundo da Eucaristia, esquecendo-nos de que é, sobretudo, sacramento (sinal) do amor e da entrega aos outros, compartilhando os próprios dons, recursos internos, sonhos... A finalidade da eucaristia não é tanto consagrar um pedaço de pão e um pouco de vinho, mas de tornar sagrado (consagrar) todo ser humano, identificando-o com o mesmo Jesus, para que se parta, se reparta e se entregue no serviço e no compromisso em favor da vida. Sem compromisso com a vida, a Eucaristia torna-se estéril, um gesto piedoso desencarnado, longe d’Aquele que partiu, repartiu e compartilhou sua Vida em favor de todos. “E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (v. 51).
Esta é a verdade radical do Evangelho: lendo e aplicando aos cristãos aquilo que Jesus diz de si mesmo, porque Ele é Eucaristia e porque compartilhamos sua vida, somos mobilizados a fazer-nos comunhão de vida, pois todos somos “pão de eucaristia”. Eucaristia que desperta outras fomes e outras sedes.
Que um homem como Jesus se faça “eucaristia” (e mobilize a todos para ser eucaristia, pão compartilhado): essa é a revelação central do evangelho de João. Em sua dimensão humana, cada ser humano que se entrega a outro ser humano como “pão”, é princípio de vida eterna.
Dessa forma, a mensagem de Jesus (discurso do Pão da Vida) apresenta-se como o programa mais completo de vida. Frente à economia neo-liberal do livre mercado e do triunfo dos interesses egoístas, à custa dos demais, Jesus revela o programa da vida que se faz “pão” para ser compartilhado.
Aplicando aos cristãos aquilo que Ele diz de si mesmo, Jesus insiste na exigência de “fazer-se pão”, isto é, de converter não só as riquezas, mas a vida mesma, em alimento (capital) para os pobres.
O verdadeiro “capital” não é o “dinheiro externo” (manipulado pelos grandes bancos). O verdadeiro capital é o ser humano que se faz pão-capital para os outros.
O grande pecado é o “deus Mamon” (capital divinizado). Frente a esse pecado está a revelação da verdade de Deus: que homens e mulheres sejam (se façam) pão, uns para os outros, na doação e na partilha.
Sem um novo Capital Humano (sem a conversão do ser humano em pão para os outros), esta humanidade não terá saída. Só podem ser cristãos de verdade aqueles que acolhem e seguem as palavras e gestos de Jesus neste evangelho: que se façam pães uns para os outros.
O único pão que sacia a um ser humano e lhe dá vida (palavra, amor, esperança) é outro ser humano, seja na expressão de pai ou de filho, de filha ou de mãe, de irmão ou irmã, de esposo ou de esposa, de amigo ou de amiga... Em suas diversas formas de expressão de encontro, acolhida, fraternidade, diálogo..., um ser humano é “pão” para outro ser humano.
Texto bíblico: Jo 6,41-51
Na oração:. É no mais íntimo que experienciamos o verdadeiro encontro com Aquele que se fez pão de vida e vinho de salvação. É no mais profundo de nossa interioridade que escutamos ressoar sua voz, nos inspirando a ser pão para os outros.
- Eucaristia e compromisso com os últimos e excluídos: você consegue fazer esta conexão, toda vez que se aproxima do altar?
- A Eucaristia tem sido momento privilegiado para despertar em você outras fomes e sedes? De quê você tem fome e sede?
- O que é que nutre sua verdadeira identidade de filho(a) de Deus e irmão(ã) de Jesus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.08.2021
“Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede” (Jo 6,35)
Depois da multiplicação dos pães, Jesus, ao perceber que o povo não tinha entendido nada do que acontecera, pois tentava fazê-lo rei, retirou-se a uma montanha, sozinho. A multidão ficou satisfeita por ter se alimentado; ela segue Jesus por aquilo que Ele pode dar. No entanto, a identificação com Ele e seu projeto passa longe. Seus interesses vão em sentido contrário à atitude de Jesus de despertá-la para a compaixão e a partilha. Jesus ensina como repartir, isto é, como as pessoas precisam ser umas com as outras.
Jesus empenha-se por uma nova humanização, onde as pessoas possam ser livres, mas elas preferem continuar dependendo de outro (rei). Enquanto as pessoas buscam alguém que se responsabilize por elas, Jesus ensina a responsabilidade mútua, a corresponsabilidade. A abundância de alimento é graça de Deus, mas é igualmente empenho de cada pessoa e de todas juntas.
A solução para uma nova humanidade não é o dinheiro, o poder, o domínio ou um milagre externo, mas saber compartilhar tudo com todos. O problema não se soluciona comprando, o problema se soluciona compartilhando. A verdadeira salvação não está em que alguém solucione nossos problemas, nem sequer em ajudar a solucionar todos os problemas dos outros. A verdadeira liberdade está em superar o egoísmo e estar disposto e dividir com os outros o que cada um tem e o que cada um é.
“Não temos em nossas mãos a solução de todos os problemas do mundo, mas diante dos problemas do mundo temos nossas mãos” (Congresso de jovens latino-americanos).
No entanto, segundo o relato de João, a multidão continua buscando a Jesus. Há algo n’Ele que a atrai, mas ainda não sabe exatamente por que o busca nem para quê. As pessoas começam a intuir que Jesus está lhes abrindo um novo horizonte, mas não sabem o que fazer, nem por onde começar.
“Do outro lado do mar” Jesus começa a conversar com elas. Há coisas que convém aclarar desde o princípio. O pão material é importante. Ele mesmo lhes ensinou a pedir a Deus “o pão de cada dia” para todos.
Comer nunca significa um mero ato biológico de ingerir alimentos; é sempre um ato comunitário e um rito de comunhão. À mesa, onde se parte o pão do Senhor, o cristão aprende a partir e a partilhar o “pão de cada dia” com os outros.
Além disso, o pão que comemos esconde toda uma rede de relações anônimas; antes de chegar à mesa, ele passou pelo trabalho de muitos braços; há muitas lágrimas e suores escondidos em cada pão, como também há muito de solidariedade e partilha. Portanto, o pão que é produzido junto deve ser repartido junto e consumido junto. O Senhor resgata em nós a fome e a sede mais profunda de encontro, partilha e vida. A mesma necessidade básica nos iguala a todos; a satisfação coletiva nos confraterniza. Só então podemos, verdadeiramente, pedir: “Senhor, dá-nos sempre desse pão”.
A conversa de Jesus com o povo, com os judeus e com os discípulos é um diálogo bonito, mas exigente. Jesus procura abrir os olhos do povo para que aprenda a ler os acontecimentos e descubra neles o rumo que deve tomar na vida. Pois não basta ir atrás de sinais milagrosos que multiplicam o pão para o corpo. Não só de pão vive o ser humano. A luta pela vida sem uma mística que inspira, não alcança a raiz do próprio ser.
Enquanto vai conversando com Jesus, o povo fica cada vez mais contrariado com as palavras dele. Mas Jesus não cede, nem muda as exigências. O discurso parece um funil. Na medida em que a conversa avança, é cada vez menos gente que sobra para ficar com Ele. No fim só sobram os doze, e nem assim Jesus pode confiar em todos eles. Esse é o eterno problema da vida cristã: quando o evangelho começa a exigir compromisso, muita gente se afasta; quando se trata de seguir e se identificar com uma Pessoa (Jesus), muitos se refugiam na doutrina, no legalismo, no ritualismo..., vivendo um seguimento estéril.
O dinamismo do seguimento é gerar vida, fazer o(a) discípulo(a) viver a partir da verdade mais profunda de si mesmo(a); ou seja, viver a partir do coração, do “ser profundo”.
“Trabalhai não pelo alimento que perece, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna”.
No gesto da multiplicação dos pães se condensou todo o caminho de Jesus: vida doada na luta contra todo tipo de sofrimento e fome, na mesa partilhada onde as relações humanas alimentam a fraternidade do Reino. Aqui se conecta a essência da Vida de Jesus com a vida dos seus seguidores.
Para a mentalidade bíblica, o pão é um dos sinais primordiais da graça e do amor com que Deus nos sustenta e nos protege. Diante do pão estamos face a uma realidade santa. O pão é tratado com respeito e veneração. O pão é santo porque está associado ao mistério da vida que é sacrossanta. Em cada pedaço de pão há mais presença da mão de Deus do que da mão do ser humano.
Para o cristão o pão é ainda mais santo porque simboliza a reconciliação final de todos no banquete definitivo do Reino; o pão carrega a promessa de uma plenitude de vida.
O “pão do Reino” já se antecipou e é Jesus mesmo em sua vida e mensagem; Jesus continua presente na história e na vida de cada um através do “pão eucarístico”, alimento dos peregrinos rumo à pátria celeste. Somos eternos insatisfeitos; nunca nos saciamos de pão e milagres; queremos mais e mais. Isso nos revela que nosso interesse é ter vida assegurada e o estômago cheio.
Esta realidade nos leva a perguntar: que pão nos sacia?
Porque há pães que, enchendo o estômago, nos tiram a liberdade. São pães repartidos em escravidão, pães seguros com sabor de suor e lágrimas; pães de Egito, pães que dão a falsa sensação de saciedade.
Há pães que nos despertam para confiar em Deus; são pães que chegam providencialmente e de maneira gratuita. Aparecem quando menos esperamos e tem o sabor do caminho e do encontro. Para qual pão trabalhamos? Ou ainda, a partir de onde pedimos pão? A partir da segurança e da escravidão ou a partir da insegurança e da confiança?
Jesus se apresenta a nós como o alimento que não perece. Buscá-Lo é descobrir o que Deus quer de nós e agradecer o que nos dá para o caminho. Quem o rejeita fica atado aos pães deste mundo que exigem fadiga, competição e escravidão. Quem o aceita, liberta-se dos tempos e espaços e se sacia de confiança.
Que pão buscamos? Que pão desperta outras fomes em nós?
“O que é que nutre realmente o nosso ser essencial?”
“Não somente o nosso corpo, não somente nosso psiquismo, não somente nossa afetividade, mas o que é que nutre aquilo que não morrerá em nós?”
“O que é que nutre a eternidade em nós?”
“O que é verdadeiramente nutritivo? O que é que nutre a nossa identidade?
Texto bíblico: Jo. 6,24-35
Na oração: Não é possível reconhecer o Corpo do Senhor presente na Eucaristia se não se reconhece o Corpo do Senhor na comunidade onde alguns passam necessidades. Pois, se fechamos os olhos às divisões e às desigualdades mentimos ao dizer que Cristo está presente na Eucaristia.
Enquanto não nos mobilizamos a mudar nossa sociedade de maneira que mais pessoas aceitem a alegria de compartilhar o pão e a vida, faltará algo em nossa Eucaristia. Essa “ferida” o cristão deve sempre tê-la presente.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.07.2021
Imagem: pexels.com
“Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes” (Jo 6,9)
Do pão de trigo ou cevada para o pão do sentido de vida doada; do alimento de cada um para a circularidade do alimento partilhado, em pequenos grupos, sem templo, na gratuidade e frugalidade...
Este é o sentido do texto joanino, proposto para este domingo.
De todos os gestos realizados por Jesus, durante sua atividade profética, o mais recordado pelas primeiras comunidades cristãs foi, seguramente, uma refeição multitudinária, organizada por Ele no descampado, nas proximidades do lago da Galiléia. É a única cena relatada em todos os evangelhos.
O conteúdo do relato é de grande riqueza e cheio de simbolismo. Seguindo seu costume, o evangelho de João não o chama “ milagre”, mas “sinal”. Com isso nos convida a não ficarmos nos fatos externos que são narrados, mas descobrir, a partir da fé, um sentido mais profundo.
Longe do templo e das autoridades judaicas, seguido por uma multidão, Jesus sinaliza para uma Páscoa centrada na pessoa dele, aberta a um processo de partilha, comunhão e retorno de vida abundante para todos. O congraçamento de Israel, durante a festa da Páscoa, no Templo, é substituído pelo congraçamento em torno a Jesus, no lugar onde Ele estiver, com a multidão que o segue.
Mas, enquanto a Páscoa no Templo favorece os controladores dele, a Páscoa em torno de Jesus favorece e engrandece a todos.
Jesus ocupa o lugar central na cena; ninguém lhe pede que intervenha. É Ele mesmo que olha, intui a fome daquela multidão e ativa a necessidade de alimentá-la. Como alimentar tanta gente no meio do descampado? Os discípulos não encontram nenhuma solução. Felipe diz que não se pode pensar em comprar pão, pois não têm dinheiro. André sugere que se poderia partilhar o que havia, mas só um menino tem cinco pães e dois peixes. Que é isso para uma multidão?
Segundo João, enquanto Filipe justifica a impossibilidade de solução, André procura uma alternativa e se depara com cinco pães de cevada e dois peixinhos nas mãos de um menino. Filipe ocupa seu tempo e sua inteligência em buscar justificativas para o impasse e desculpas para não ser responsabilizado.
André, no entanto, encara a realidade e se ocupa na busca de solução. Encontra um sinal. Há pão, é de cevada, não de trigo, é pouco, mas o menino, pessoa que está começando a vida agora, coloca à disposição.
Naqueles vastos campos da Galiléia, Jesus propõe a grande mesa da comunhão universal, a mesa “fora dos templos” que inclui a todos, sem distinção. O gesto da benção instaura o horizonte da partilha, em que os alimentos são destinados à necessidade de todos, por meio da coresponsabilidade dos participantes no banquete da Criação, sobre cuja mesa Deus preparou pão em abundância para todos.
Todos acompanham com atenção os gestos de Jesus: coração em ação de graças, olhos fixos, ao mesmo tempo, no pão, enquanto o parte, e na multidão ao seu redor. Primeiro dá graças à Fonte da vida. Segundo, contempla o pão, fruto da terra e do trabalho de muitos homens e mulheres, que deve ser partido e compartilhado. Terceiro, convida a repartir e assegura-se de que a distribuição é justa.
Jesus dá graças por cinco pães e dois peixinhos diante de cinco mil pessoas famintas. É a gratidão sobre o pouco que faz o muito. É pouco, mas é dom de Deus, e dom pode-se multiplicar, pois a graça partilhada tem alcance ilimitado. Nós, geralmente, só damos graças quando temos em abundância, porque, a nosso ver, é a abundância que significa graça.
Depois da ação de graças, o pão se multiplica, tem para todos, o quanto necessitam, e ainda sobra abundantemente. Quanto mais se partilha, mais se tem. A fome desse momento foi saciada, mas a vida continua. Jesus ensina como repartir, isto é, como as pessoas devem proceder na relação de umas com as outras.
A abundância de alimento é graça de Deus, mas é igualmente empenho de cada pessoa e de todas juntas.
Jesus é o primeiro responsável, mas quer partilhar com os seus. Isso exige a participação de todos.
A cena é fascinante: uma multidão dispersa, transformada pelo encontro com Jesus, já é capaz de sentar-se em grupos ordenados sobre a relva do campo, iguais, sem divisão em hierarquia e partilhando uma refeição simples e gratuita. Não é um banquete de ricos; não há vinho nem carnes. É a refeição frugal das pessoas que vivem junto ao lago: pão de cevada e peixe defumado.
Os que tinham algo para comer também foram repartindo com os outros. Na realidade, o verdadeiro milagre foi o da partilha, onde as pessoas famintas não se lançam vorazmente sobre os pães numa luta para conseguir os alimentos escassos. Compartilhar gratuitamente com os outros, com desconhecidos, e não acumular o que sobra, isso sim é milagre.
A comunhão bíblica se realiza entre os “distantes”, por meio de um gesto que não é de poder, mas de esvaziamento, não é de apropriação, mas de partilha, não é de fechamento, mas de abertura das mãos que acolhem, que distribuem...
O dinheiro continua hoje sendo a causa de toda desigualdade. Tudo tem um preço, incluídos os “bens espirituais”. A gratuidade e a partilha são gestos que estão desaparecendo de nossa sociedade.
Jesus abre outra lógica: a da partilha, frente à lógica do mercado, focado na apropriação e na acumulação.
Só se fará efetiva a nova comunidade quando pães e peixes entrarem na lógica do Reino. Sem oferecer o próprio pão, os próprios recursos, a própria pessoa, não há possibilidade de construção do Reino de Deus.
Em cada migalha de pão, em cada pedaço de peixe, há uma história de amores e trabalhos que vão passando de mão em mão, sem cobiça devoradora. Os bens deste mundo carregando dentro uma vocação fraterna e universal. São dons para todos.
Nesta refeição de todo o povo sobre o campo verde não se discrimina ninguém, não se pergunta a ninguém pelo seu passado, sua profissão ou sua situação moral e religiosa. Todos são acolhidos como expressão das entranhas compassivas de Deus, que chama todos a compartilhar sua mesa. Todos se sentem pessoas dignas e amadas.
Esta é a utopia do Reino: tudo está reconciliado: o cosmos, com a natureza verde e em paz; os produtos do trabalho humano, da generosidade do mar e da terra; e as pessoas, numa relação harmoniosa entre si e com Deus, sem exclusões, competições nem privilégios. A sensibilidade solidária de Jesus situa tudo na lógica do amor, que é a única força transformadora da história.
Texto bíblico: Jo 6,1-15
Na oração: A oração é também questão de densidade de vida, de humanismo, de ativar a sensibilidade para com aqueles que não têm quem os defenda; é revelar que em nosso peito bate um coração de amor infinito, capaz de vibrar e mobilizar-nos em favor dos outros. A oração implica entrar em sintonia com o coração compassivo de Deus voltado para a miséria humana.
- Como seguidor(a) de Jesus, qual é a sua “lógica” diante do contexto social de exclusão e de miséria? A do Reino ou a do mercado neo-liberal?
- A pobreza, a miséria, a fome... despertam em você uma “santa indignação” ou uma acomodação doentia?
- Os gestos de partilha e solidariedade são um modo de proceder contínuo em sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
24.07.21
“Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão (...)começou a ensinar-lhes muitas coisas”
Os discípulos regressaram da missão à qual Jesus os tinha enviado e Herodes acabara de assassinar João Batista. Jesus se retirou para descansar com os discípulos, do outro lado do lago. Precisavam tomar distância, conversar juntos e de maneira tranquila sobre esse momento dramático, em um espaço sossegado, mais íntimo e profundo, sem a urgência permanente que a pressão do povo introduzia em suas vidas e não tendo tempo nem para comer. Não eram pessoas das cidades importantes que procuravam Jesus. Diz o texto de Marcos que saíram “de todos os povoados” e foram “correndo”, com pressa, com expectativa e esperança, ansiosas para encontrar-se com Ele.
Ao ver a multidão, Jesus se comoveu até as entranhas, porque “andava como ovelhas sem pastor”, com fome, oprimida pelos impostos, desconcertada diante do presente e com medo difuso diante do futuro ameaçador e inseguro. E Ele começou a ensinar-lhes longamente, muitas coisas, de tal maneira que as horas foram passando sem se darem conta.
Jesus não só transmite um ensinamento, senão que cria uma relação nova com o povo e de uns com outros, segundo o espírito do Reino. Todos somos feitos para nos encontrar com um Tu inesgotável, que ilumine nossa existência e nos transforme inteiramente, de tal maneira que sejamos capazes de estabelecer relações novas com nossa própria história pessoal, com os outros e com toda a criação.
O ensinamento de Jesus revela-se, antes de tudo, como um encontro inspirador que o move a se aproximar de todas as pessoas, revelando-lhes a dignidade infinita que cada uma carrega dentro de si. Trata-se de um encontro que não vem envolvido em roupagens exóticas nem em rituais frios; sua grandeza se expressa numa proximidade tão simples e humana, onde a interação de sentimentos e afetos engrandece a todos.
Nesse sentido, o novo ensinamento de Jesus tem a marca da “compaixão”.
Um dos sintomas de desumanização, que está revelando seu triste rosto no contexto atual, é o fato de deixar-nos de vibrar com o que os outros vivem, viver como alheios uns dos outros, blindar-nos uns frente aos outros..., ou seja, incapacitar-nos para a compaixão.
A compaixão está cada vez mais ausente da esfera pública e de nossas relações com o outro diferente e com o outro distante que sofre. Aqui está a chave da incapacidade de nossa sociedade para responder aos desafios atuais.
Vivemos num contexto social onde somos ameaçados por uma forma sutil de “a-patia”. Aqui a compaixão se quebra com excessiva facilidade, se atrofia e se transforma em “sem-paixão”. Com isso, nos nossas relações se desumanizam.
Tal “sem-compaixão” é uma enfermidade social, um problema coletivo, algo que vai se fechando mais e mais, de tal modo que as pessoas vibram com menos gente, em círculos íntimos, e unicamente com quem faz parte do seu “gueto”.
Acostumamo-nos com a lógica deste mundo, que esvazia nossa capacidade de nos surpreender ou de nos inquietar; impermeabilizamos o coração frente à magnitude das feridas sociais, conformando-nos em responder “não há nada que fazer”. Vão desaparecendo os horizontes de sentido que incluem a alteridade. Qualquer implicação com o outro implica suspeita, frieza, distancia, preconceito...
Não basta a sensibilidade ou o sentimento. Não ficamos indiferentes quando a dor dos outros entra em nossas salas de estar. Mas, tão rápido como chega, o sentimento se vai, e não nos mobiliza porque não tem pontos de conexão com a realidade da exclusão.
A “privatização da vida”, a sensação de impotência diante das tragédias, a distância midiática (informação fria da realidade que não nos afeta e não desperta nossa paixão), a distância física, a não-comunicação (não há tempo para falar e escutar, os eletrônicos povoam nossos silêncios, o ativismo impede dedicar-nos uns aos outros), a falta de motivação (por quê deixar o outro invadir minha vida ou encher-me de inquietação?), a dificuldade para compreender a diferença (transitamos nos círculos de iguais ou semelhantes, compartilhamos gostos, modas, inquietudes, status, temos problemas comuns e metas similares, usamos produtos parecidos, lemos os mesmos livros e vemos os mesmos filmes), etc...
Quem olha para as manchetes de notícias, as escolhas e comportamentos atuais, talvez se deixe convencer de que a compaixão está perdendo a referência no elenco dos sentimentos humanos mais nobre. Afinal, produtividade, eficiência, competitividade, revelam-se “pobres” de atitudes compassivas.
No entanto, somos seguidores(as) do Compassivo; Jesus não passa “friamente” por nada. Ele não passa indiferente ao lado da fome, da doença, da exclusão, da morte..., não passa friamente ao lado das multidões que vivem como ovelhas sem pastor. Seu sentimento está sempre engajado: Ele é o homem da prontidão de sentimentos, que deixa transparecer uma profunda sensibilidade. Sente-se “tocado” pela dor e miséria.
E jamais fica em sentimentalismos supérfluos; sua empatia e simpatia extravasam-se em ações comandadas pela compaixão: ela flui e jorra de seu coração.
Os Evangelhos destacam os profundos sentimentos de humanidade, compaixão, empatia, ternura e solidariedade misericordiosa de Jesus.
Muitas vezes é mencionado que o Senhor foi “comovido até as entranhas” e teve “frêmitos de compaixão”; trata-se de sentimento eminentemente humano.
Até podemos fazer referência origem etimológica da palavra “compaixão”. E aqui é muito pouco o apelo ao vocábulo latino “cum-passio” (“padecer com”). É preciso um novo passo. Para “compaixão” é preciso ir até o grego antigo. Lá a compaixão está ligada às disposições maternas de conservar a vida. Naquela língua os termos “compaixão” e “útero” são equivalentes. Assim como o ventre materno acolhe a vida, envolve-a, protege-a e a faz nascer, algo semelhante fez o Senhor ao aproximar-se daquelas “ovelhas sem pastor”: suscitou-lhes a esperança com expressões de amor fraterno. Foi uma aproximação generativa, isto é, gerou impulsos para uma nova vida.
Num mundo em que o anonimato impera e uma falta de compromisso com o outro parece predominar, é preciso ativar a compaixão, que começa pela capacidade de fixar o olhar nos rostos, desmontando os pré-juizos, ou pela possibilidade de perguntar ao outro por sua vida, seus sonhos, suas preocupações, seus desejos e sua dor. Procurar entender seus motivos sem passar logo a interpretá-los, a etiquetá-los ou a julgá-los. Aprender a escutar suas histórias e a acompanhar suas inquietações.
A moção de compaixão permite que do coração humano brote a “ex-centricidade”.
A experiência cristã não nos imuniza contra a contaminação do “amor próprio, querer e interesse”; mas a pulsão solidária e compassiva para com o pobre e excluído, permanente e profunda, se converte na fornalha que purifica a insaciável auto-afirmação e interesses que todos temos, e vai gestando, pouco a pouco, personalidades excêntricas, livres do domínio despótico do “ego”.
Texto bíblico: Mc 6,30-34
Na oração: Ser compassivo implica buscar e ativar uma disposição em sair das fronteiras do conhecido e do habitual, dos circuitos familiares e das dinâmicas mais rotineiras, para entrar em sintonia com as pessoas que são vítimas de estruturas sociais e políticas que geram miséria, dor e exclusão.
- Compaixão ou indiferença? Eis o desafio! Qual delas se manifesta com mais constância em seu dia-a-dia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
15.07.2021
Imagem: Tissot
Falar em discernimento de espíritos é afirmar a possibilidade do Criador e criatura de se comunicarem e se compreenderem verdadeiramente. Existe uma linguagem que eles empregam quando se comunicam. Como compreender tal linguagem? Como podemos reconhecer a voz de Deus que nos é dirigida e responder a ela livremente? Existe um espaço de autonomia para o ser humano ao interno do grande desígnio divino?
Para os mestres da vida espiritual, tais perguntas soariam estranhas. Para estes, não há sentido em querer separar essas duas realidades. A relação entre Deus e o homem/mulher se realiza no Espírito Santo, a Pessoa Divina que os torna partícipes do amor do Pai pelo Filho. Esta participação, isto é, a presença do amor divino em nós, torna possível nosso acesso a Deus (1). Entre a pessoa humana e o seu Senhor existe uma verdadeira comunicação que, para ter a garantia da liberdade, se vale, com frequência, dos nossos pensamentos e dos sentimentos.
O discernimento faz parte da relação vivida entre Deus e o homem/mulher; mais ainda, é o espaço próprio onde podemos experimentar tal relação com Deus como uma experiência de liberdade, como uma possibilidade de uma criação continuada. Nesse ato, a criatura experimenta ser chamada a participar como cocriadora responsável pela própria existência. Experimenta a si como chamado/a a desvelar a si mesmo/a na criatividade da História que ele cria criando a si mesmo/a.
O discernimento é uma realidade relacional, tal como a fé. A fé cristã se funda em um encontro pessoal, pois o Deus que se revela se comunica como amor, e o amor pressupõe sempre o reconhecimento de um “tu”. Deus é amor porque é comunicação absoluta, capacidade de ser em relação eterna, seja no ato primordial do amor recíproco das três Pessoas divinas, seja na Criação. Por isso, a experiência da relação livre que experimentamos no discernimento não é nunca somente uma relação vertical entre nós e Deus, mas inclui também a relação com os outros e ainda a relação com a criação, a partir do momento em que entrar em uma relação autêntica com Deus significa entrar naquela ótica de amor que é uma relação vivificante com tudo o que existe.
O discernimento é a arte de compreender a si mesmo tendo em conta esta estrutura de conjunto, olhando-se a si na unidade porque se vê com o olho de Deus que enxerga a unidade de vida. É expressão de uma inteligência contemplativa, é uma arte que pressupõe o saber contemplar, ver a Deus.
Existimos porque Deus nos dirigiu a palavra, chamando-nos à existência para sermos seus interlocutores. A vocação nada mais é do que a Palavra pessoal que Deus dirige ao homem, imprimindo nele um caráter dialogal. A vocação é a plena realização do homem no amor, ao interno do princípio dialógico em que foi criado, tendo Deus como principal interlocutor.
O discernimento nada mais é do que a arte por meio da qual o homem aprende a compreender a palavra que lhe foi dirigida, palavra que abre diante dele um caminho a ser percorrido, para poder responder à Palavra (2). A vocação não é um fato automático, mas implica um processo de amadurecimento das relações, a partir daquela relação fundamental com Deus. É um progressivo ver a si mesmo e ver a História e perguntar-se como eu posso me dispor a me tornar parte da humanidade que Cristo assume, e através da qual assume também a criação toda, para entregar tudo ao Pai. Nesta descoberta progressiva do caminho a ser seguido, é relativamente fácil distinguir entre o que é injusto daquilo que não o é. Mas quando nos encontramos diante de possibilidades ambas boas, com que critério eu posso escolher aquela que se revela como a melhor? Isto é sem dúvida muito mais difícil! “Devo rezar mais ou devo trabalhar mais?” “O que eu devo me tornar na vida?”.
De onde vem a dificuldade? Poderíamos responder lembrando o provérbio popular que afirma que “nem tudo o que é bom para um é necessariamente bom para os outros”. Não existe uma santidade genérica. Cada um deverá buscar a sua própria estrada. A razão disso é porque Deus chama cada um pessoalmente. Claro que existem preceitos gerais que todos nós devemos viver, mas tais regras gerais serão colocadas em prática por cada um de um modo diverso. O plano de Deus contém para cada pessoa um projeto de vida pessoal (3).
Discernir pouco a pouco o plano de vida pessoal que Deus tem por mim, eis a finalidade dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio! Trata-se de buscar a mesma atitude que Cristo adotou com relação ao seu Pai: “Que seja feita a tua vontade!”. Atitude que Ele nos ensinou quando nos ensinou a rezar o Pai-Nosso (Lc 22,42; Mt 6,10).
Tarefa difícil, se quisermos impor limites ao nosso querer desde o início. Assim que pertence ao discernimento dos espíritos o romper, antes de mais nada, com todo apego à vontade própria, libertar-nos de tudo o que nós queremos por nós mesmos a fim de que nos tornemos livres para poder dizer com o Cristo: “Não seja feito o que eu quero, mas o que tu desejas!” (Mc 14,36). A este ponto é preciso ser livres interiormente para poder abraçar a vontade do Pai.
Mas mesmo depois de encontrada, esta vontade do Pai deve continuar a determinar a nossa vida para sempre. Em circunstâncias que serão mutáveis e de acordo com uma evolução pessoal, deveremos vigiar para que a decisão tomada permaneça sempre fiel e seja ainda expressão da vontade de Deus. A escolha que foi abraçada de acordo com Deus não deve somente trabalhar a nossa vida como um simples resultado ao qual se chega, mas como se fosse um programa de vida, ela deve agir, em primeiro lugar, como uma disposição de espírito, uma atitude de liberdade interior orientada para Deus, numa disponibilidade sempre renovada de dobrar-se à vontade do Pai. Poderíamos nos perguntar: como descobrir positivamente o que o Pai quer? É aqui que mergulhamos em cheio naquilo que Inácio insiste tanto ao longo dos seus Exercícios Espirituais: através de um conhecimento interno de Cristo! É Nele que o Pai se tornou visível: “Quem me vê, vê o Pai!” (Jo 14,9).
Por essa razão, quem quer fazer uma escolha de vida, guiado por Inácio, precisará empenhar-se em uma sequência de contemplações onde só uma coisa importa: conformar-se com Cristo. Trata-se de saborear internamente as coisas em Cristo (cf. EE 2). Considerando o Cristo em cada contemplação, somos chamados a tomar do mesmo alimento do Filho, isto é, “fazer a vontade do Pai, que me enviou, e cumprir a sua obra” (Jo 4,34).
Para nossa consideração: Como temos vivido nossa relação dialogal com o Senhor? Como podemos avançar na conformação de nossas existências à vida de Cristo? Peçamos ao Senhor a graça de uma maior liberdade interior nas nossas escolhas!
Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
1- Marko Ivan RUPNIK, O discernimento. São Paulo: Paulinas 2004, 13.
2 – Cf. SÃO BASILIO, Hex. 9,2.
3 – Piet PENNING DE VRIES, Discernement des Esprits. Beauchesne, Paris 1979, 17-18.
Imagem: pexels.com
In: site da FAJE
“Recomendou-lhes que não levassem nada para o caminho, a não ser um cajado” (Mc 6,8)
O Evangelho deste domingo marca o começo de uma nova etapa na vida e missão de Jesus. Os discípulos vão estar incorporados à missão que, até agora, era realizada só pelo Mestre.
Depois da experiência de fracasso na sinagoga de seu povo, Jesus não só intensifica o anúncio da “boa notícia” do Reino, mas compromete os seus discípulos nesse ministério. A rejeição dos dirigentes e dos seus conterrâneos o obrigam a buscar outros interlocutores que não estavam “viciados” pelo ensinamento oficial.
Jesus, na Galiléia, encontrou os seus caminhos: junto ao mar, nas estradas poeirentas, nas margens... Ele se fez “estrada” para encontrar aqueles que não tinham “lugar”, os deslocados, os socialmente rejeitados e que eram a razão de seu amor e do seu cuidado; fez-se solidário com aqueles que estavam à beira dos caminhos e os convidou a caminhar para um novo lugar. Na Galiléia, Jesus teve suas preferências e escolheu o caminho da exclusão e da dor. Por isso, ao enviar seus seguidores, lançou-os na “estrada da vida”, para serem presenças de vida onde a vida era violentada: curar, expulsar demônios...
Para Ele, o caminho é o lugar do novo, das surpresas, dos encontros...
Inúmeros cristãos entendem sua fé só como uma “obrigação”. Há um conjunto de crenças que devem ser “aceitas”, embora muitos não conheçam seu conteúdo nem saibam o impacto que podem ter em suas vidas; há também um código de leis que “deve” ser observado, embora muitos não entendam bem tanta exigência atribuída a Deus; existem práticas religiosas que “devem” ser cumpridas, mesmo que seja de maneira mecânica. Esta maneira de compreender e viver a fé gera um tipo de cristão medíocre, sem desejo de Deus e sem criatividade nem paixão alguma por contagiar sua fé. Contenta-se com “cumprir”. Esta religião não tem atrativo algum; converte-se em um peso difícil de suportar e provoca alergia em muitos.
Na vivência cristã, muitos passam do seguimento do “Homem das estradas poeirentas” ao mero cumprimento de normas, ritos, doutrinas…
No entanto, o caminho de Jesus não vai pelo terreno pantanoso do legalismo e do moralismo, mas pelo terreno firme da misericórdia, do cuidado, do compromisso com a vida...
Jesus tinha alergia a lugares fechados, mofados...; ele preferia transitar pelos lugares abertos, arejados, porque se deixava conduzir pelo Espírito.
Já nas primeiras comunidades cristãs o seguimento de Jesus era vivido de outra maneira. A fé cristã não era entendida como um “sistema religioso”; a vivência do seguimento de Jesus era conhecida como “caminho”, que era a maneira mais acertada para viver com sentido e esperança. Dizia-se que o seguimento era um “caminho novo e vivo” e que foi “inaugurado por Jesus para nós”; um caminho que deve ser percorrido “com os olhos fixos n’Ele” (Heb 10,20; 12,2). Os cristãos eram conhecidos como os “adeptos do caminho”.
Por isso, seguir Jesus Cristo era aderir a Ele incondicionalmente, era “entrar” no seu caminho, recriá-lo a cada momento e percorrê-lo até o fim. Seguir era deixar-se “configurar”, isto é, movimento pelo qual a pessoa ia sendo modelada à imagem de Jesus Cristo.
A nossa vida é um êxodo, um sair constante do modo fechado de viver para entrar em uma outra realidade nova. O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida. Existem ainda céus por explorar, aventuras por empreender, pensamentos por experimentar e experiências por aceitar; falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar...
Precisamos ser discípulos(as) da escola da vida.
É de suma importância tomar consciência que a fé é um “percurso” e não um sistema religioso. E no percurso há de tudo: caminhada prazerosa e momentos de busca, desafio que é preciso superar, retrocessos, decisões, dúvidas e interrogações... Tudo faz parte do caminho, também as dúvidas que podem ser mais estimulantes que as poucas certezas e seguranças vividas de forma rotineira e simplista.
O caminho é coletivo, mas está feito de identidades particulares, onde cada um é responsável e cuidador de seu próprio processo itinerante. Cada pessoa é, onde habita, um fio tecedor de relações e interconexões, uma presença que ajuda a construir uma cultura de diálogo acolhedor, em permanente abertura ao encontro. Esta é a sabedoria divina que se expressa e se faz próxima em todos os detalhes da vida.
Cada um(a) é chamado(a) a fazer seu próprio percurso; cada um(a) é responsável da “aventura” de sua vida; cada um(a) tem seu próprio ritmo. Não é preciso forçar nada. No caminho cristão há etapas: as pessoas podem viver momentos e situações diferentes. O importante é “caminhar”, não se deter, escutar o chamado que a todos nos faz viver de maneira mais digna e ditosa.
“Fazer estada com Jesus” pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, re-descobrir com urgência o encontro como valor ético e como hábito permanente de vida.
Precisamos nos levantar cotidianamente de nossos ambientes atrofiados, arejar nossa vida, criar vínculos com aqueles que estão à margem; há sempre uma “estrada ferida” que nos espera.
Faz parte do processo de amadurecimento espiritual, abandonar as poeiras que, desnecessariamente, carregamos. Não se trata de esquecer o passado ou de ignorá-lo, abandonando nossa história. Mas há coisas e situações que carregamos que nos fazem ficar presos, impossibilitados de alcançar novos rumos, novas realizações. É preciso sacudir a poeira dos pés, em sinal de verdadeiro desapego. Desapegar-nos de coisas e situações é um processo importante no desenvolvimento de uma espiritualidade que nos faça crescer humanamente.
A orientação de Jesus nos faz recordar a impactante frase-conselho de Frida Kahlo: “Onde não puderes amar, não te demores”. Não há motivo razoável para que permaneçamos onde o amor não pode acontecer e se realizar. Ajuda-nos, ainda, a sabedoria poética de Mário Quintana, de que “amar é mudar a alma de casa”. O amor é sempre saída de nós mesmos. Mas há portas fechadas. Nesse caso, não é espiritualmente saudável permanecer com a poeira nos pés. É preciso sacudí-la, e seguir viagem.
A paixão pelo Reino nos mobiliza a levar adiante a missão, a ir aos lugares do mundo onde há mais necessidade e ali realizar obras duradouras de maior proveito e fruto. Para realizar esta nobre missão, não podemos permanecer sentados. Seguir Jesus exige de nós uma dinâmica continuada, um colocar-nos a caminho em direção às margens. Não podemos viver o chamado do “Rei Eterno” a partir de uma cômoda instalação pessoal. A disponibilidade, o despojamento e a mobilidade são exigências básicas.
Corremos o risco de viver em mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o convencional. Tudo parece conspirar para que nos mantenha-mos dentro dos limites politicamente corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um mundo amplo, complexo e cheio de surpresas.
Deixar a vida estreita para entrar no vasto horizonte de vida proposto por Jesus: eis o desafio!
Texto bíblico: Mc 6,7-13
Na oração: Deus nos chama a cada dia para o desconhecido, para o novo; Deus nos tira de casa, nos faz sair do que é nosso, da segurança, da comodidade... e nos faz entrar numa “terra nova”...
- No “mapa espiritual” de seu interior (sentimentos, desejos, sonhos...) ainda existe uma “terra desconhecida”, que proporciona interesse à vida, suscita curiosidade, lhe impulsiona a caminhar?...
Ou está tudo amarrado, formatado, atrofiado..., esvaziando seu espírito de busca?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.07.2021
“E vós, quem dizeis que eu sou?” – “Quem és tu, Senhor?”
O chamado de Jesus se apresenta de modos muito diferentes nos evangelhos, segundo o temperamento e as circunstâncias de cada pessoa.
Algumas vezes, o convite a seguir Jesus chega ao discípulo por mediação de outro: “encontramos o Messias”, diz André a seu irmão Pedro. O chamado chega a Pedro por meio de André, e a Natanael por meio de Felipe. E assim, o chamado de Jesus se prolonga, se estende e chega até nós.
Sempre é Deus quem tem a iniciativa no chamado, mas Ele chama sempre por mediações: através do próprio desejo e das próprias capacidades, através da profecia e da presença de uma pessoa concreta, através do grito e da necessidade dos sofredores...
Os(as) seguidores(as) de Jesus, movidos pela presença e pela promessa do Pai, se convertem em “pescadores do humano”, ou seja, em libertadores de homens e mulheres, na esperança e no compromisso em favor do Reino de Deus.
A liturgia da festa deste domingo nos apresenta duas leituras bíblicas, com duas perguntas impactantes, pois desvelam a identidade e a missão, presentes tanto naquele que faz a pergunta quanto naquele que responde.
No caso de Pedro, é Jesus quem toma a iniciativa e pergunta – “e vós, quem dizeis que eu sou?”
Ao professar a identidade de Jesus (“o Filho de Deus”), Pedro redescobre também sua verdadeira identidade escondida debaixo de uma personalidade impulsiva, primária nas reações, voluntarista...
Mateus, no evangelho deste domingo, nos situa diante de um jogo de palavras entre “petros” e “Petra”, entre uma pedra movediça e a Rocha firme sobre a qual Jesus edificará sua nova comunidade.
O mesmo Simão é ao mesmo tempo “petros” e “Petra”, pedra do caminho e rocha, de tal modo que o sentido da promessa de Jesus seria: “Tu és Pedro/Pedra e sobre essa Pedra/Rocha (que és tu mesmo, Pedro, como pessoa) edificarei minha Igreja”.
Parece claro que petros/Pedro foi o apelido que Jesus quis dar a Simão. “Tu és só um petros”, simplesmente uma pedra movediça, cascalho sem estabilidade e que não serve para ser fundamento de uma casa. Isso parece ter sido Simão no princípio, para Jesus e para a comunidade mais antiga.
Mas, Mateus acrescenta agora que ele recebeu uma revelação especial de Deus, de tal forma que por ela (pelo dom do Pai), por sua confissão de fé, sem deixar de ser petro/cascalho, ele se converteu em Petra/Rocha firme da fé, alicerce da Igreja de Jesus.
A partir desta perspectiva, “esta Rocha” não se refere a Pedro como pessoa-pedra (com suas fragilidades e limitações), mas à confissão de fé que o Pai de Jesus lhe revelou. Apesar de ser pedra do caminho, Pedro recebeu uma revelação de Deus e sobre ela edificará Jesus sua Igreja (não sobre Pedro como pessoa, mas sobre sua confissão de fé). Esta relação entre Pedro (petros-pedra) e sua confissão de fé como Rocha (Petra), sobre a qual Jesus edificará sua igreja, constitui o centro teológico de Mateus, sua contribuição à história da comunidade cristã.
Mateus sabe que não tem sentido edificar a Casa/Igreja sobre uma pedra do caminho, ou seja, sobre cascalhos impróprios para a construção e que podem ser arrastados pela água da torrente. Mas ele sabe também que Simão, chamado Pedro/Pedra, está relacionado com a Petra/Rocha da Igreja de tal forma que nem as portas/poderes do inferno poderão prevalecer sobre ela ou derrubá-la.
Na situação de Paulo, é este mesmo que faz a Jesus a pergunta: “quem és tu Senhor” (Atos 9,5). Ao responder – “Eu sou Aquele a quem tu persegues”, Jesus pôs às claras a identidade violenta, dogmática, farisaica, legalista... de Saulo.
Daí a forte imagem da luz, no caminho de Damasco, que desvela quem é Saulo e quem é Jesus.
O encontro com esta luz, ilumina os recantos violentos e obscuros da personalidade de Saulo. A partir dessa experiência, Saulo começa a travessia em direção à Paulo. Ele reordena seus instintos violentos, agressivos... em favor do Evangelho. Este é o verdadeiro sentido da conversão: não se mata os impulsos humanos, antes desordenados, mas os reordena a serviço de uma causa maior.
A tradição afirma que Saulo caiu do cavalo; uma imagem de forte simbolismo, sobretudo para a cultura daquela época: ter um cavalo é símbolo de status, de poder, de vaidade...; “cair do cavalo” expressa que Paulo, para entrar no caminho do seguimento de Jesus, precisou cair de sua prepotência, de seu autocentramento, de seu dogmatismo e preconceito.
Para que haja transformação interior, é preciso “cair ao chão”, voltar ao “húmus”, reconhecer-se como humano, cheio de limitações e fragilidades, mas também possuidor de ricas potencialidades.
Ao cair, Saulo esvazia-se de seu ego para deixar-se conduzir por outros e pelo Grande Outro.
O itinerário Pedro e Paulo, por diferentes caminhos, é um itinerário de humanização, encontro com a própria identidade, uma aventura na descoberta do “mundo interior”, que é o coração, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância de dons e riquezas, onde cada pessoa experimenta a unidade de seu ser e o sentido de sua existência. “Quem sou eu? Para quê vivo? Para quem? Qual é o meu lugar e missão no mundo?”
Toda pessoa possui dentro de sí uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.
“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até os fundamentos do próprio ser, até às raízes mais profundas.
A própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que cada pessoa tem para encontrar segurança e caminhar na vida, superando as dificuldades no compromisso em favor da vida.
Com confiança em si e na rocha do próprio ser, todas as forças vitais se acham disponíveis para crescer dia-a-dia, para a pessoa se tornar aquilo que originalmente é chamada a ser.
Texto bíblico: Mt 16,13-20
Na oração: É urgente gerar espaços que facilitem reabrir as vias de retorno ao “lar interior” onde é gestada a identidade de cada um e suas opções mais firmes.
Entendemos a “interioridade” como a arte de descer na própria intimidade, nas cavernas interiores, para estar a sós e em diálogo com Aquele que lhe dá o sentido mais profundo à existência e a seu projeto de vida.
Só no nível mais profundo que cada um(a) pode responder, com a própria vida, à pergunta instigante de Jesus: “Quem dizeis que eu sou?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.06.2021
“...aproximou-se de Jesus por detrás, no meio da multidão, e tocou na sua roupa” (Mc 5,27)
O evangelho deste domingo diz respeito, de uma maneira especial, às mulheres de qualquer idade e condição; mas sua mensagem é universal e não é dirigida somente a elas.
Impressiona-nos ver Jesus buscando a libertação radical das pessoas, de tudo aquilo que possa ser um obstáculo em suas relações, crescimento pessoal, realização total.
Se considerarmos unicamente sua capacidade de curar enfermidades, nossa visão de Jesus seria muito superficial, sem captar o desejo dele de despertar em cada pessoa sua identidade mais profunda.
Ele, no seu “ministério terapêutico”, livre das ataduras da cultura, das leis, dos costumes e até da imagem de Deus alimentada pelas autoridades religiosas, é capaz de olhar cada pessoa e ver nela uma filha de Deus. Por isso, o evangelho nos revela, através de seus ensinamentos e de suas obras, a mensagem profunda de Deus de querer que seus filhos e filhas se desenvolvam em plenitude e alcancem a felicidade.
O evangelista Marcos, neste domingo, nos situa diante de duas mulheres, ambas no limite da vida: a hemorroissa leva doze anos enferma (o tempo de maturação de uma mulher), e a adolescente que está no desabrochar da vida (doze anos é a entrada na vida adulta, conforme a visão desse tempo). São suas feridas que as conduzem para o interior do amor de Deus. Por essa abertura, elas se sentem aceitas e amadas.
Por isso, nessa dupla atuação curativa de Jesus, cada um dos detalhes revela uma infinidade de mensagens diante das quais podemos nos deter para “saborear” alguma delas, e assim nos ajudar no nosso caminho de identificação com Ele.
Vamos dedicar atenção especial ao encontro de duas sensibilidades: a de Jesus e a da mulher com hemorragias. A cena é surpreendente. Marcos nos apresenta uma mulher desconhecida como modelo de fé para as comunidades cristãs. Dela, todos poderão aprender como buscar a Jesus com fé, como chegar a um contato sanador com Ele e como encontrar nele a força para iniciar uma vida nova, cheia de paz e saúde.
A mulher é anônima, está sozinha, arruinada e junto dela não se vislumbram parentes ou amigos. Não é coxa, não é cega, não está paralítica, não é pobre, não é pagã.
Só sabemos que padece de uma enfermidade secreta, tipicamente feminina, que lhe impede viver de maneira sadia sua vida de mulher, esposa e mãe. A religião e o contexto social lhe impõem um distanciamento desumanizador; a lei religiosa está destruindo esta mulher, sem oferecer-lhe nenhuma saída de esperança; existencialmente é considerada como morta: não há lugar para ela em nenhum ambiente.
A mulher está quebrada por dentro; arrasta um drama secreto. Leva uma vida oculta que ninguém conhece. Sua perda de sangue, além de torná-la estéril, encaminha-a para a morte e a situa no mundo da impureza, da vergonha e da desonra. Quer amar e não pode. Espalha “impureza”; segundo sua lei, converte em impuro tudo o que toca. Ela é toda angústia, é toda amargura. Sua ferida interior a corrói em silêncio. “...tinha sofrido nas mãos de muitos médios, gastou tudo o que possuía e, em vez de melhorar, piorava cada vez mais” (v.26).
Sofre muito, física e moralmente; sua vida está se esvaindo, secando, não têm forças para viver, sente-se separada dos outros. Seu dom, o sangue que possibilita gerar e nutrir outra vida nova, se converte em seu peso e em motivo para ser rejeitada por muitos. Excluída das relações, é submetida ao juízo social e ao isolamento.
No entanto, ela resiste a viver para sempre como uma mulher enferma. Está sozinha. Ninguém lhe ajuda a aproximar-se de Jesus, mas ela saberá como encontrar-se com Ele.
Não espera passivamente que Jesus se aproxime dela para lhe impor as mãos. Ela mesma toma a iniciativa e o busca. Vai superando todos os obstáculos, faz tudo o que pode e sabe.
A angústia armazenada leva-a a romper com sua Lei; ela tem de prescindir da instituição religiosa para aproximar-se de Jesus, por sua conta, saltando sobre todas as normas. Cansada de sofrer física e moralmente e alimentando um profundo desejo de ser curada, rompe com todos os protocolos sanitários que a separavam dos outros, inclusive de Deus, e busca a quem possa lhe devolver a saúde. Para isso, ousa transgredir as normas de distanciamento social, abre caminho por entre a multidão para se aproximar de Jesus, de quem muitos lhe haviam falado.
A mulher não se contenta só em ver Jesus de longe. Busca um contato mais direto e pessoal. Atua com determinação, mas com pudor e delicadeza. Não quer atrapalhar ninguém e nem interromper o caminho de Jesus. Aproxima-se dele por detrás, entre as pessoas e lhe toca o manto. Nesse gesto delicado se concretiza e se expressa sua confiança total na força sanadora de Jesus. Toca e se deixa tocar por Ele para poder experimentar a cura e a paz em seu interior.
“Quem tocou na minha roupa?”, perguntará Jesus. A mulher é chamada a sair de seu esconderijo, a romper o tabu que a marginalizava, a colocar um fim na cumplicidade existente entre sua vergonha e a rejeição social. Jesus não aceita essa situação “às escondidas”, à qual a mulher estava condenada por um tabu, de modo que, fora de seu costume habitual, Ele concede ao milagre o caráter de publicidade. Ela é convocada por este Homem a depositar fé em si mesma como mulher. Doravante já não será mais uma “mulher impura”, mas uma filha muito amada. “Filha, a tua fé te curou”.
Para Jesus, não basta curá-la, e não fica satisfeito enquanto não estabelecer com ela um diálogo interpessoal, no qual ela lhe diz “toda a verdade”. A cura recebida abarca, pois, não somente seu corpo, mas também seu espírito, seus temores e sua vergonha, que desaparecem na confiança do diálogo e na experiência de ser reconhecida, escutada e compreendida.
Ela esperava ser salva na passiva, mas Jesus emprega o verbo na ativa, e situa nela a força que a salvou: a mulher vai embora, não apenas curada, mas tendo escutado uma bem-aventurança por causa de sua fé e tendo recebido o nome de “filha”, um título familiar raro nos Evangelhos. “Minha filha, a tua fé te curou; vai em paz e fica curada dessa doença” (v. 34)
A hemorroissa é a única pessoa nos evangelhos à qual Jesus chama “filha”. Porque estava separada de qualquer relação, Jesus estabelece com ela o vínculo mais forte que experimentou: chama-a “filha”, como Ele mesmo se sentiu chamado de “filho” pelo Pai, no batismo. Ele está batizando esta mulher; ela está nascendo para uma nova vida.
Texto bíblico: Mc 5,21-43
Na oração: O relato deste domingo também nos faz penetrar nos meandros da fé, convidando-nos a crer que nossa força reside precisamente em nossos limites e fragilidades, reconhecidos e assumidos.
A Revelação nos diz que Deus tem mais facilidade de entrar em nossas vidas pelas feridas, fracassos, derrotas... e não pela porta das virtudes, da perfeição, do legalismo...
- Fazer “memória redentora” de suas “feridas existenciais” como oportunidades para quebrar todos os protocolos, inclusive religiosos, e se aproximar de Jesus para tocá-lo. Talvez, basta um “toque” para o despertar de outras energias e inspirações e, assim, viver com mais intensidade e sentido.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
24.06.2021
“Vamos para a outra margem!” (Mc 4,35)
O evangelho deste domingo fala de movimento, de deslocamento em direção a outras perspectivas, de saída dos próprios espaços de proteção e segurança, para acolher outras vidas, outras histórias, abrir-se ao novo, ao diferente. Que significa, para cada um, a outra margem? Desde logo, não há resposta padrão; ela é muito pessoal, como é pessoal a adesão à pessoa de Jesus. Convite pessoal e comunitário, de relação amistosa profunda, para encontrar n’Ele nossa segurança e, assim, continuar a vida com mais inspiração.
É uma grande riqueza ir às margens de nossos irmãos, não como turista, mas como peregrinos.
Jesus convida a todos nós a cruzar o mar em direção à outra margem. Estamos tão acostumados em nossa margem rotineira que não é fácil arriscar e fazer a travessia; nem sequer estamos convencidos de que exista outra Margem, mais além das comodidades e das seguranças que buscamos. No entanto, nossa meta está do outro lado do risco e do perigo. A falta de confiança continua sendo a causa de não nos atrevermos a dar o passo; resistimos acreditar que Ele vai em nossa própria barca.
“A nossa fé não é uma fé laboratório, mas uma fé caminho, uma fé histórica. Deus se revelou como história, não como um compendio de verdades abstratas... Não é preciso levar a fronteira à casa, mas viver em fronteira e ser audazes” (Papa Francisco).
Entrar na barca com o Mestre significa “embarcar” na vida d’Ele, correndo riscos de sofrer rejeições, abalos e tempestades.
O contexto social pós-moderno desencadeou uma complexa turbulência em todos os domínios da vida, gerando novos desafios para a adaptação do ser humano a seu ambiente. As pessoas sentem-se cada vez mais ameaçadas, por realidades externas e internas, a sensação de insegurança aumenta e torna-se mais indefinida; por conseguinte, os níveis de ansiedade e angústia são cada vez mais elevados, conduzindo a verdadeiras situações de ruptura e desespero.
Reforçam-se e elevam-se os gradeamentos, mudam-se e sofisticam-se as fechaduras, as pessoas armam-se, as sociedades ficam cada dia menos seguras e estáveis. É um círculo dramático e infernal cujo resultado é o desenvolvimento crescente de uma espiral de medo, de violência, de stress..., tornando as pessoas insensíveis, passivas e conformadas.
É com esta situação que temos de aprender a lidar e a conviver. De fato, a pressão rotineira vivida cotidianamente nos diferentes ambientes demanda uma enorme competência e uma capacidade de adaptação diante de situações altamente adversas, agressivas e até violentas.
Como seguidores(as) de Jesus que bebemos das fontes do Evangelho, duas são as “margens” que nos seduzem, nos mobilizam e nos fazem chegar onde outros não chegam ou encontram dificuldades para chegar; estas duas “margens” constituem a originalidade de nossa vivência cristã e de nossa missão no mundo de hoje: a “margem” da interioridade e a “margem” da universalidade. São “margens” que nos humanizam, pois nos mobilizam a “descer” em direção àquilo que é mais humano, em nós e na realidade que nos interpela.
Em primeiro lugar, “passar para a outra margem” nos evoca o chamado a assumir um deslocamento social e religioso que tem um componente de risco e mudança. Implica sair do conhecido, abandonar as próprias seguranças; mudar de lugar, geográfico e/ou existencial, ir aonde ainda não temos ido e enfrentar uma travessia incerta; e, por último, atrever-nos a entrar em contato com o diferente e desconhecido e aceitar ser transformados. Esse desafio hoje nos sacode e pode gerar em nós inquietude e desassossego, como a tormenta que ameaça os discípulos depois de entrarem na barca.
Precisamos também fazer a travessia em direção à outra margem de nós mesmos, aquela que não costumamos visitar. Descobrir nosso tesouro escondido: a quantidade de qualidades e recursos que ativamos com mediocridade, ou simplesmente não usamos. Porque, se nos níveis mental e emocional tendemos a nos instalar, no mais profundo, no entanto, nos habita o desejo do “mais”, que nos impulsiona, a partir de dentro, numa expansão aberta a horizontes cada vez maiores.
A “outra margem” é a novidade do presente, a descoberta incessante, a amplitude sem limites. Mas só poderemos começar a cruzá-la se estivermos dispostos a deixar nossos caminhos trilhados e nos entregarmos com docilidade à Vida – outro nome de nosso “mestre interior”.
O primeiro desejo de chegar à outra margem nasce de dentro, do coração, que entende sua missão como busca e peregrinação interior, como um colocar-se em movimento... Sair da margem conhecida, “velha”, rotineira... para encontrar a nova margem: lugar de relação, de questionamento, de criatividade, de encontro com o novo e diferente…
A outra margem, lugar provocador, incitador, que desperta curiosidade... Aqui brotam as grandes experiências religiosas, as intuições, projetos, ideais vitais.
Caminhar para a outra margem é sair do centro, da segurança, da acomodação... e ir em busca das surpresas, das novas descobertas; implica arriscar, ter ousadia, não ter medo de caminhar para os “confins da terra”, para regiões desconhecidas em seu próprio interior...
Precisamos, para isso, ativar nossa “inteligência espiritual”, como a capacidade que nos permite acessar e conectar com essa dimensão profunda, à qual nos referimos com o termo “espiritualidade”.
Aderir à pessoa de Jesus, portanto, é arriscar-nos à travessia do mar da vida; não estamos sozinhos; talvez nos encontramos perdidos em alto mar esperando resgate e não somos capazes de perceber que no interior de nossa barca há uma presença que nos pacifica. Ao chegarmos à outra margem descobriremos uma experiência pessoal e comunitária de fé na pessoa de Jesus, que nos ressuscita por dentro, que nos injeta vida nova e alegria profunda.
No entanto, é na vivência da adversidade que se dá o encontro das oportunidades para o crescimento.
Muitas vezes, são justamente as circunstâncias adversas, extremamente difíceis, que despertam na pessoa as condições mais criativas, que enriquecem suas possibilidades práticas de atuar sobre a realidade em que vive e transformá-la ou transformar-se.
Isto quer dizer que, diante da adversidade, a pessoa mobiliza um conjunto de recursos dos quais não tinha consciência anterior, mas cujo efeito é potencializador de crescimento e enriquecimento pessoal.
Texto bíblico: Mc. 4,35-41
Na oração: Nas nossas vidas acontece algo de verdadeiro e belo quando nos dispomos a buscar dentro de nós mesmos a razão da nossa existência.
- A nossa vida é um êxodo, um sair constante de uma realidade para entrar em uma outra realidade nova.
O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida.
- Existem ainda céus por explorar, aventuras por empreender, pensamentos por experimentar e experiências por aceitar; falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar...
- No “mapa espiritual” de nosso interior ainda existe uma “terra desconhecida”, que desperta interesse à vida, suscita curiosidade, nos põe a caminho... Grandes surpresas interiores estão à nossa espera, e a capacidade de continuar buscando é que dá sentido ao esforço e vigor à vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.06.2021
imagem: pexels.com
“...e a semente vai germinando e crescendo, mas ele não sabe como isso acontece” (Mc 4,27)
O mundo no qual vivemos, feito de códigos e números, de tecnologia e de anonimato, de frios cálculos e de robots telecomandados..., conduz a uma vida em contínua aceleração; isso faz com que todos adoeçam de ativismo, de competição, de eficientismo; o excesso informações tira o sabor das coisas, instaura uma cultura que não flexibiliza a vida interior e o recolhimento, não cultiva afetos, emoções e sentimentos.
Tal como Marta, “andamos inquietos e perturbados com muitas coisas; mas uma só é necessária” (Lc. 10.41). Precisamos nos conceder espaços de calma para provar a verdade, contemplar a beleza, saborear os inestimáveis valores presentes na gratuidade e no dom desinteressado, alimentar-nos de valores humanos e cristãos que, impregnados de futuro, tornam bela a vida de hoje.
Os tempos e os ritmos de vida mudaram muito. Nós estamos muito distantes da quietude e da calma do mundo rural; hoje predomina a eficácia, a pressa, a ansiedade. A eficácia sempre tem pressa. Mas as coisas da vida requerem tempo, calma e sabedoria.
Os evangelhos estão cheios de referência à vida. As sementes também nos falam de vida. Um grão de trigo, um grão de mostarda são sementes humildes, pequenas, mas cheias de vida. A vida da semente é calada, silenciosa, paciente: vai crescendo pouco a pouco, desenvolvendo toda sua vitalidade.
A vitalidade da semente não depende do trabalho e dos esforços humanos; ela está cheia de vida em si mesma. As sementes, as plantas, as árvores não crescem de uma vez só, nem com saltos espetaculares, mas pouco a pouco, humildemente.
O agricultor não escava desesperado a terra, forçando o crescimento da semente que ali deixou, mas distancia-se dela sabendo que há um tempo necessário de separação para que a planta, no seu ritmo, possa nascer e crescer. Toda semeadura supõe que é preciso saber esperar (esperança) com calma e paciência.
Não podemos ter urgências morais, nem precipitações nas mudanças pessoais, sociais, pastorais..., porque pode nos invadir a ansiedade e esta pode gerar medo, angústia..., pois pretendemos solucionar as coisas com uma insaciável pressa e avidez.
O ser humano pós-moderno está perdendo o contato com o cosmos, com o chão, com os animais, com a natureza... e isto provoca-lhe todo tipo de mal-estar, de doenças, de insegurança e de ansiedade.
Prestemos atenção aos diferentes ritmos na sinfonia da vida. A natureza tem seus ritmos: o do dia e o da noite, as quatro estações, o crescer das espigas, o canto dos pássaros, o transcurso de um rio... Nossa vida tem os seus ritmos e somos chamados a distingui-los: se uma mulher está grávida, viverá um ritmo; se alguém está enfermo, descobrirá outro ritmo diferente; quem vive um luto por uma separação ou por uma morte, terá outro ritmo...; a amizade, o estudo, o trabalho... marcam ritmos diferenciados. Não se pode comparar o ritmo de uma criança com o do ancião, ou do adolescente com o ritmo do adulto. É diferente o ritmo do Sul e do Norte, o ritmo de cada povo....
Quando forçamos o tempo biológico para apressar demais o passo e antecipar recursos para uso imediato, o gasto de energia envolvido na operação pode arruinar a nossa própria vida.
Há um defeito na atividade que costuma tirar de nós a riqueza espiritual e convertê-la num “ativismo insensato”, sem vida interior e sem criatividade. Trata-se da ansiedade.
O nosso “eu profundo” é ferido por um permanente estado de alerta, exigências de obrigações pendentes e expectativas à espreita. Estamos perdendo aquela paz essencial nas profundezas do nosso ser, aquele repouso sem preço na qual os elementos mais delicados da vida se renovam e se confortam.
As demandas, a tensão, a pressa da existência moderna, perturbam a destroem esse precioso repouso.
Este “nervosismo” chamado ansiedade é uma espécie de pressa interior permanente. Sentimos uma necessidade imperiosa de resolver rapidamente todos os problemas, como se todas as coisas fossem urgentes ou indispensáveis. É um problema relacionado com o tempo.
Tratamos a vida com a mesma ansiedade que se abate sobre nós nos cinzentos corredores de espera, nas filas administrativas, nos engarrafamentos do trânsito. Tornamo-nos viciados em assuntos rapidamente fechados, incapazes de acolher o surpreendente “novo” que o sabor da vida insistentemente propõe.
Sabemos que, quando há ansiedade, há desordem. Como a mente está cheia de projetos e vive antecipando-se às coisas, nessa multidão de pensamentos reina uma grande confusão, e nada é bem-feito.
Além disso, a ansiedade nos torna superficiais, porque nos leva a passar rapidamente de uma atividade a outra, sem nos aprofundarmos em nada. O coração ansioso não é capaz de deter-se em coisa alguma. Não suporta a quietude. E assim não pode apreciar o sabor mais agradável das coisas.
Há no evangelho deste domingo um chamado dirigido a todos e que consiste em plantar pequenas sementes de uma nova humanidade e de uma nova inspiração no cotidiano de nossas vidas. Jesus não fala de coisas grandes. O Reino de Deus é um dinamismo muito humilde e modesto em suas origens. Presença que pode passar tão desapercebido como a menor semente, mas que é chamada a crescer e frutificar de maneira inesperada.
É bom envolver-nos nas atividades cotidianas e tirar maior proveito delas. Mas, às vezes, a ansiedade nos leva a sermos demasiadamente dependentes dos resultados do trabalho. Queremos ver rapidamente os frutos de nosso esforço. E assim escapa-nos o prazer de podermos agir com serenidade e paz.
É necessário saber planejar e prevenir, mas sem pretender prever e controlar tudo. É uma grande sabedoria saber desfrutar das pequenas coisas que temos ou que podemos fazer agora, sem pensar nas que não temos. Na ansiedade por querer conseguir certas coisas e abarcar tudo, acabamos criando dependências egocentradas e a vida vai se acabando sem ser vivida.
Então, nossa ação deixa de ser fonte de satisfação e plenitude. Por isso terminamos nos enfraquecendo, enchendo-nos de angústias inúteis e esquecendo-nos que “com a divina consolação todos os trabalhos são prazer e todas as fadigas são descanso” (Carta de S. Inácio a Teresa Rejadel).
A familiaridade com Deus na relação com todas as coisas do cotidiano, não implica fadiga ou ansiedade, senão que é uma maneira de viver aquela paz e plenitude considerada como verdadeiro descanso.
Toda atividade humana, perpassada por uma “espiritualidade” inspiradora, deve ser motivada, antes de tudo, pela força interior do amor, que lhe dá uma qualidade, um sentido e um valor particulares.
O desafio é buscar maneiras de encontrar a serenidade em meio às nossas frenéticas vidas, de abrir em profundidade nossa cotidianidade para poder nos submergir no ritmo tranquilo de Deus; encontrar-nos com Ele para que seja o centro de nossa vida e caminhar a seu lado. Oxalá sejamos capazes de captar os detalhes da paisagem de nossa vida para descobrir em tudo as pegadas do Senhor! E, embora vivamos neste mundo onde tudo se move tão rápido, podemos fechar os olhos e sentir que Ele nos conduz pela sua mão.
Textos bíblicos: Mc 4,26-34
Na oração: Tente escutar o universo infinito; acima, abaixo, ao seu redor. Entre em profundo silêncio para perceber a vibração de todos os elementos: terra, ar, água, fogo. Tudo vibra, tudo está cheio de ondas luminosas, sonoras. Tudo é silêncio e tudo é escuta. Sinta-se presente no meio deste diálogo entre céu e terra... para escutar, falar e orar.
- Seu ritmo cotidiano é marcado pela ansiedade, pressa, estresse...? Há espaço para o silêncio, a contemplação?
- A partir do silêncio do seu coração, plante no seu cotidiano, sementes de humanidade: proximidade, acolhida, compaixão, paciência, paz...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.06.2021
Imagem: Albin Egger Lienz
“...porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vós” (Mt 11,29)
O mês de junho, dentro da Igreja católica, é também conhecido como o “mês do Sagrado Coração”, cuja solenidade é festejada na sexta-feira posterior ao segundo domingo depois de Pentecostes. Desde as origens desta devoção o que se busca comemorar e celebrar é o Amor de Deus, manifestado de um modo original na história concreta de Jesus de Nazaré.
Jesus viveu sempre a partir de seu coração e contagiou a todos com a força poderosa de seu amor e de sua entrega. Ele nasceu com um coração de carne, ou seja, humano, absolutamente divino. Nele se realizou definitivamente a promessa de ser o coração de todos, o centro nevrálgico da humanidade.
Jesus foi o homem para os outros, que teve coração, um coração não de pedra, mas de carne. Sua vida, um sinal do bem amar, do saber amar. Mas, sobretudo, Jesus, em seu Coração, revelou a profundidade mesma do ser humano e de Deus. Nele estava a fonte do Espírito que brotava como água fecunda até a vida eterna.
Graças à Encarnação, o Filho de Deus trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, sentiu com vontade humana, amou com coração humano.
O Coração de Jesus nos fala de iniciativa, de liberdade, de entrega absoluta e amor profundo; recorda-nos como Deus, por sua pura iniciativa, pelo compromisso com os homens e mulheres de ontem, hoje e amanhã, sai de si para encarnar-se em meio ao nosso mundo, acampando em meio à nossa realidade histórica e cotidiana. Seu Coração nos revela que sua Vida implica um movimento de saída, que provoca encontros pessoais, que transforma a vida daqueles(as) que o seguem, abrindo-lhes novos horizontes, ampliando a visão e descentrando-os de sua própria lógica.
Seu coração aberto é o lugar por onde voltamos a Deus com todos, onde aprendemos quem é Ele e quem somos nós. É um caminho que nos faz passar do temor à confiança, da ansiedade ao abandono, do reter a própria existência a entregá-la, do medo à liberdade, da morte a uma vida sem fim.
O evangelho deste dia mostra um dos mais vivos exemplos de coração agradecido que podemos encontrar. Jesus, que acaba de passar por uma profunda experiência de rejeição por parte das cidades da Galiléia, explode no canto que começa: “Eu te louvo, Pai, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos”.
O coração de Jesus é sustentado, alimentado, irrigado pelo amor cuidadoso e providente do Pai.
É no coração que também nós, seus(suas) seguidores(as), poderemos estar em segurança, profundamente repousados. É no coração, “última solidão do ser”, que decidimos por Deus e a Ele aderimos. Aqui Deus marca “encontro” com cada um de nós. “Deus é mais íntimo a cada um de nós do que nós mesmos” (S.Agostinho).
O Coração de Jesus continua sendo expressão central da fé cristã, expressão do amor de Deus para com o ser humano. O Papa Francisco usa, com frequência, uma expressão carregada de intensidade: “revolução da ternura”. Sem dúvida, a “mansidão” e a “ternura” definem radicalmente o sentir e o atuar de Jesus.
A revolução da ternura nos convida a acompanhar, curar e acolher, a partir de nossa realidade, aqueles que nos rodeiam, a viver investindo nossos melhores recursos em favor dos outros.
Hoje, essa proposta simples, mas de profunda marca evangélica, responde à desumanização que estamos vivendo. Essa revolução da ternura nos convida a sair de nós mesmos, a colocar nossa vida a serviço do irmão, a entrar no fluxo do Amor de Deus, fazendo chegar a tantos que dele necessitam, através de nossa mão, de nossa presença cheia de ternura; assim vivendo, nos convertemos em transparência profunda do próprio Coração de Jesus.
Segundo a tradição bíblica, o que mais nos desumaniza é viver com um “coração fechado” e endurecido, um “coração de pedra”, incapaz de amar e de crer. Quem vive “fechado em si mesmo”, não pode acolher o Espírito de Deus, não pode deixar-se guiar pelo Espírito de Jesus.
Quando nosso coração está “fechado”, nossos olhos não vêem, nossos ouvidos não ouvem, nossos braços e pés se atrofiam e não se movimentam em direção ao outro; vivemos voltados sobre nós mesmos, insensíveis à admiração e à ação de graças. Quando nosso coração está “fechado”, em nossa vida não há mais compaixão e passamos a viver indiferentes à violência e injustiça que destroem a felicidade de tantas pessoas. Vivemos separados da vida, desconectados. Uma fronteira invisível nos separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia.
Quando vivemos a partir do coração, escutamos com mais paciência, olhamos com cumplicidade, tocamos com ternura, sofremos com fortaleza, assumimos o risco com naturalidade, misturamos nossa vida com a dos outros e avançamos em comunidade realizando projetos solidários.
Assim, confessamos que o Coração de Jesus foi tão humano que o veneramos como “Sagrado”. Contemplando-o na totalidade de seus sentimentos, poderemos modelar o nosso coração, cristificando-o (“aprendei de mim...”). Do mesmo modo, conhecendo as dinâmicas, as paixões, as dimensões sombrias e as luminosas de nosso coração, poderemos nos aproximar, um pouco mais, do mistério da pessoa de Jesus, onde Ele deixou transparecer a alegria e a tristeza de ser homem, através desse coração tão humano e tão sagrado.
Jesus convida a entrar no seu amplo e solidário coração, para que possam “descansar”, todos aqueles(as) a quem a vida insiste em negar-lhes um sentido, aqueles(as) que são vítimas de uma sociedade tão desumana, aqueles(as) que já não sentem mais forças e se sentem sozinhos(as) e rejeitados(as), aqueles(as) que não tem outro motivo para se alegrar a não ser em Deus...
Uma devoção ao Coração de Jesus que não nos conduz a estabelecer novas relações humanas, prolongando o modo humano de ser e de viver de Jesus, torna-se uma devoção vazia, estéril, marcada por uma piedade alienante e alienada.
Texto bíblico: Mt 11,25-30
Na oração: Todos estamos no coração de Cristo. Todos estamos no Amor de Deus. Todos fomos introduzidos na Sagrada Humanidade d’Aquele que, sendo Deus, se fez semelhante a nós para que possamos todos nos sentir n’Ele.
O coração se revela como imagem de amor, de humanidade, de entranhas compassivas. Identificamos as pessoas por seu bom coração, por suas entranhas de misericórdia.
- Você deixa transparecer seu coração na relação com as pessoas? As atividades que você realiza tem coração?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.06.2021
Imagem: pexels.com
“E olhando para aqueles que estavam sentados ao seu redor...” (Mc 3,34)
Depois do percurso quaresmal e pascal, retomamos o tempo litúrgico conhecido como Tempo Comum, seguindo o evangelista Marcos. Será uma longa caminhada contemplativa, através da qual buscaremos dar uma “nova feição” ao nosso seguimento de Jesus. O Evangelho deste domingo nos mostra como Jesus exerce um grande poder de atração sobre as pessoas; são muitos aqueles que o buscam: a multidão, os membros de sua família, os mestres da lei... São muitos e diferentes, como são diferentes as razões pelas quais se aproximam e se situam em torno a Jesus.
Os primeiros, as multidões, admiradas de seu ensinamento e de sua capacidade de “destravar vidas”, buscam-no com intenso desejo; aglomeram-se nas portas das casas onde Jesus se encontra, acudindo a Ele vindo de todos os lugares. Todos estão maravilhados e são capazes de reconhecer que Deus atua nele. Estes são os simples e frágeis, enfermos e incapazes, limitados e sem forças, que não duvidam que Jesus os atenderá, os escutará e oferecer-lhes-á seu consolo e seu tempo, até o ponto de ser capaz de deixar de comer para estar com eles.
Por outro lado, seus familiares querem “agarrá-lo” e levá-lo para casa; querem preservar a honra da família, pois estão preocupados pelos comentários que se fazem sobre Ele. A atitude desses familiares se restringe a preservar a boa reputação de sua tradição. E, por último, aparecem os mestres da lei, que tinham descido de Jerusalém para acusá-lo de realizar seus exorcismos com a força do chefe dos demônios, e assim esvaziar sua fama.
Esta crítica, sendo muito grave, revela a petrificação daqueles que fazem da lei o centro da vida e não se abrem à novidade que Jesus apresenta. O ministério terapêutico de Jesus em favor da vida colocava em questão a estabilidade da estrutura social e religiosa na qual os mestres da lei empenhavam-se por mantê-la. Jesus confronta-os com inteligência e serenidade, para que compreendam que as acusações não têm fundamento e que reconheçam que quem o move a libertar as pessoas de suas “amarras” é o mesmo Espírito Santo, o Alento de Deus.
Resistir a reconhecer isso é “pecar contra o Espirito Santo”. O pecado contra o Espírito Santo tem raízes profundas no coração e não é simplesmente um ato, mas uma disposição interior permanente, é uma cegueira culpável por si mesma, um resistir-se à ação salvadora de Deus.
Quando o coração está fechado aos sinais de Deus, a pessoa se coloca numa atitude contrária à conversão, petrificando-se de tal modo que Deus não tem como lhe perdoar.
Trata-se da opção fundamental pelo mal: impedir o Espírito Santo de atuar, tanto em Jesus como nas pessoas. O perdão requer mudança de atitude: deixar o Espírito agir livremente. Não adianta pedir perdão sem uma correspondência. O blasfemo se exclui a si mesmo do perdão, se separa de Deus.
Diante das diferentes reações das pessoas, o que nos impressiona é a atitude de Jesus, um homem essencialmente livre e comprometido com a causa da vida. Ele desafia a todos, também os seus familiares e mestres da lei, a não permanecerem “fora”, a tomarem parte de seu círculo íntimo, situando-se ao seu redor e deixando-se impactar pelo seu modo de ser e agir. Aqui está o sentido do verdadeiro discipulado, a constituição de sua nova família.
Jesus aproveita a visita de sua mãe e seus irmãos para falar do nascimento da nova família: aquela que vive em sintonia com a vontade do Pai, reforçando os laços entre as pessoas, constituindo a nova comunidade. Por isso, é preciso sair do que é “meu”: minha família, minha religião, minha Igreja...
Jesus transgride os espaços: família, religião, povo, cultura... Ele alarga os espaços estreitos da família; não permanece dentro das quatro paredes. Há uma tendência em todo ser humano a se fixar numa zona de conforto, nos espaços estreitos, bons, nutrientes... mas que precisam ser ampliados.
Nesta perspectiva, fica em segundo plano a consangüinidade. Doravante, ser mãe ou irmão de sangue não tem importância. O critério de pertença à família do Reino consiste em abrir-se à vontade do Pai.
Aí o agir do(a) seguidor(a) identifica-se com o agir do Mestre, a ponto de Jesus poder considerá-lo como irmão e irmã: a vontade do Pai é o imperativo na vida de ambos. Basta alguém viver um projeto de vida fundado na vontade do Pai, para que Jesus o reconheça como pertencente à sua família.
A identidade dessa nova família se configura por um idêntico modo de proceder, fundado no amor e na prática da justiça. Por esse caminho, os discípulos se reconhecem como irmãos e irmãs, unidos para além de qualquer divergência, cultura ou raça. Essa fraternidade não é mera formalidade. Existe entre eles e elas uma efetiva comunhão de vida.
“E olhando para os que estavam sentados ao seu redor…” Esta imagem circular expressa um tom diferente do seguimento. A imagem habitual que temos é aquela em que alguém vai adiante – Jesus – e nós
vamos atrás. Aqui, no entanto, aparece outra forma de proximidade com Jesus: é a circularidade, reunir-nos ao redor do próprio Jesus que nos convoca. Estar em círculo, portanto, também quer dizer que estamos vinculados uns aos outros numa postural corporal que tem Jesus no centro.
Estamos diante de uma imagem de relação com Jesus que tem muito de circularidade, de proximidade espacial, de intimidade na identificação com Ele.
Nossa vida cristã, como expressão do seguimento de Jesus, tem muito disto: estamos e vivemos em círculo. Não somos “anacoretas”, somos pessoas que vivem em circularidade e a coesão do grupo depende, em grande parte, de que o Centro vincule aos que estão ao redor.
A imagem do círculo quebra toda estrutura piramidal, hierárquica, de poder, de prestígio... Todos estão ao redor de Jesus, vivendo ministérios e serviços diferentes.
Jesus inicia um novo movimento humanizador a partir das casas: nova família. Ele amplia o conceito de família: inclui a todos. Já não são os laços de sangue que contam. Família que se abre ao diferente, que valoriza a diferença e todos aprendem com as diferenças.
Situar-nos no círculo do seguimento Jesus implica acolher a diversidade das pessoas que compõem este mesmo círculo; isso permite nos enriquecer, adquirir mais humanismo. Diferença é expressão inerente ao ser humano, é modo de pensar, de dizer, de trabalhar, de existir e de conviver.
Somos diferentes, mas todos pertencemos com igual direito à “cidadania planetária”; todos temos direito a ser singulares, direito a ser diferentes, direito a partilhar e receber as diferentes riquezas.
A ideia de unidade da espécie humana não deve eliminar a ideia de sua diversidade.
Saber conviver com as diferenças é sinal de maturidade.
A diversidade racial, sexual, cultural, religiosa... supera a monotonia e oferece a criatividade de muitas formas. A harmonia fecunda entre as pessoas está na diversidade das diferenças, não na repetição mecânica. O conformismo repete cópias, mas não facilita a união autêntica. Sem as diferenças entre pessoas, a sociedade seria apenas um marasmo. Por isso, as diferenças pluralistas são valores, não anomalias. Além disso, são sedutoras, não amedrontadoras. A diferença pessoal mantém certo fascínio.
Muitas vezes, o zelo religioso, moral ou político degenera em formas de intransigência e intolerância.
Com isso, nos colocamos “fora” do círculo familiar de vida.
Texto bíblico: Mc 3,20-35
Na oração: Os tecelões e as comunidades cristãs têm muito em comum. Quanta necessidade temos, nestes tempos pandêmicos, de forjadores-tecedores de comunidade!
Hoje, mais do que nunca, precisamos de artesãos que sejam construtores de relações, de novos tecidos comunitários. Homens e mulheres que, inspirados em Jesus, teçam com arte e paciência, uma relacionalidade que fortaleça a comunidade. E assim, deixar transparecer a nova família dos(as) seguidores(as) do artesão de Nazaré.
- Onde você se situa: dentro do círculo jesuânico, como participante ativo(a), ou fora, como mero(a) espectador(a).
- Sua presença no interior da “nova família do Reino” faz diferença? Você contribui tecendo novas relações ou é propagador do “fio” do ódio, do preconceito e da intolerância...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.06.2021
“Ide à cidade; um homem carregando um jarro de água virá ao vosso encontro” (Mc 14,13)
A Eucaristia, comemorada especialmente na chamada solenidade de “Corpus Christi”, ocupa, sem dúvida, um lugar privilegiado na espiritualidade dos cristãos. Mas, que celebramos quando celebramos “Corpus Christi”?
Muito incenso e muito pálio pode nos impedir ver o que há por detrás da fumaça e entre os adornados tecidos que cobrem o Corpo de Cristo; muitas vezes, oferecemos uma visão um tanto distorcida, difusa, imprecisa, desse “mistério”: “Deus se faz Corpo e assume todos os corpos”.
Somos, então, convidados a voltar com a memória cordial àquela casa onde o ritual pascal judaico dá lugar aos gestos simples que se fazem entre amigos: partilhar o pão, beber da mesma taça, desfrutar da mútua intimidade, entrar no clima das confidências... E assim buscar recuperar o essencial. Fazer memória para comemorar. E podemos fazer este “retorno memorial” em companhia do “homem do cântaro de água”, relatado no evangelho de hoje.
Há personagens do Evangelho cuja notoriedade ultrapassa as margens do texto onde são recolhidas suas atuações. São imagens históricas de alcance universal, tais como Lázaro, a Samaritana, Jairo, Maria Madalena, Zaqueu, Pedro... Junto a estes personagens de primeira fila, encontramos outros, anônimos e sem protagonismo, presentes nas estantes menos visíveis do relato evangélico. Um dos mais desconhecidos é o “homem do cântaro de água”.
Na maioria das vezes ele passa desapercebido. Sua passagem pela cena é vista, mas não lhe é dada atenção. Uma aparição tão efêmera no texto que a maioria dos leitores não se fixa nele, apesar de ser citado nos três primeiros evangelhos. Por isso, ele se revela como inspirador a todos nós nesta festa de “Corpus Christi”.
Chama-nos a atenção, no Evangelho proposto para hoje, a maneira como Jesus indicou aos discípulos o local onde queria que a Ceia fosse celebrada. Jesus mandou-os seguir um homem que encontrariam à entrada da cidade. Junto a personagens conhecidos nos Evangelhos, outros, sem rosto, nem identidade, nem protagonismo, surgem inesperadamente, deixando sua “marca”, como este desconhecido que emprestou sua casa para que Jesus e seus discípulos pudessem celebrar a Páscoa.
Anônimo perante a posteridade, porque era seguido pelos que vinham atrás dele, este homem, de certo modo e do modo certo, serviu a Cristo como a Igreja deve serví-Lo, sem perguntar qual seria seu lugar à mesa.
O que teve lugar dentro de sua casa, transformada no mais importante templo material da história humana, seria mais do que suficiente para arrancar dele alguma expressão de vaidade, capturada pelo evangelista. Mas não; não é isso que acontece com ele.
O saber estar “à sombra” para não fazer sombra a outros, a atitude de acolhida, a preocupação pelo bem-estar dos demais, a prontidão e a disponibilidade em abrir sua casa, o agir com a liberdade de quem sabe o que faz, colocando-se à inteira disposição dos outros, com total generosidade: estas são as qualidades com as quais o “homem do cântaro” entrou em sintonia com o desejo de Jesus em celebrar a Páscoa com seus discípulos. No seu anonimato ele deixa transparecer sua “existência eucarística”: ele nos revela uma presença surpreendente e servidora, presença que aponta para uma outra presença, a de Jesus. Na realidade, ele foi o verdadeiro discípulo servidor, dando sua contribuição decisiva ao mistério da salvação.
Presença anônima, mas comprometida; presença que é “música calada” no seu cotidiano, uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.
Se existe uma atitude de vida que pede o resgate de sua profundidade e seu poder evocativo original é a da acolhida. Um dos sintomas do processo de desumanização que estamos vivendo é justamente a resistência em acolher quem é diferente, quem pensa diferente, quem age diferente...
A acolhida é um dos termos bíblicos mais ricos, que nos ajuda a aprofundar e aumentar a compreensão sobre a relação com nossos semelhantes. Por isso, buscamos inspiração no modo original e criativo de ser presença acolhedora na pessoa do “homem do cântaro”.
Tudo isto vem dizer a todos nós que não é suficiente encontrar com os outros para um serviço útil e parcial, mas é preciso investir a nossa própria vida na proximidade viva, no compromisso solidário, no colocar-nos à disposição para ajudar os outros a serem o que verdadeiramente são, o único caminho para a humanização.
Trata-se, pois, de nos perguntar o que significa hoje ser “presença eucarística”, partindo do fato de que no coração do seguimento de Jesus não há – e não pode haver – só um serviço, mas um encontro, rico em assombro e fascinação. O contexto social pós-moderno nos coloca numa situação que acaba atrofiando este impulso tão humano
da acolhida; aqui podemos indicar algumas características próprias de nosso tempo que complicam de modo peculiar a vivência desta virtude: as dificuldades que o ser humano atual tem para abrir-se e escutar uma voz diferente da própria, bem como uma disfarçada resistência para acolher a grandeza do mistério do outro que vem ao seu encontro; há um medo generalizado dos outros que não fazem parte do próprio “gueto”... e as casas se tornaram verdadeiras fortalezas, cercadas de parafernália eletrônica de segurança.
No entanto, a virtude da acolhida é um modo de proceder característico do(a) seguidor(a) de Jesus; implica a capacidade de abertura e acolhida daquele que vem de “fora”, o estranho, o diferente...
A acolhida é uma das múltiplas manifestações da capacidade de amar. O amor verdadeiro se exprime, sobretudo, através de uma relação em que o outro é acolhido como próximo.
A acolhida se apresenta como um valor humano e espiritualmente vital, conectado, ao mesmo tempo, com a vulnerabilidade de cada um que sempre requer ser acolhido e aceito, que sempre precisa encontrar espaços humanizadores de convivência e comunhão.
Essa relação de acolhida supõe abrir-nos de verdade à realidade do outro, sem reduzi-lo às nossas projeções, nem submetê-lo às nossas categorias mentais, sem anular seu mistério e contando com o imprevisível, com o inesperado, com o radicalmente novo; em definitiva, com o que supera o plano das nossas expectativas. Receber as pessoas com atenção, romper distâncias, escutá-las, pode ser uma ocasião para receber a única coisa verdadeiramente necessária. A acolhida implica uma integração entre escuta e serviço. Por isso os pobres são especialistas em hospitalidade e acolhida.
A presença silenciosa, original e comprometida do “homem do cântaro” des-vela e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, uma “existência eucarística”: descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher outras vidas na nossa própria casa; histórias que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.
Só tem sentido celebrar “Corpus Christi” quando abrirmos nossas casas para os “corpos” explorados, manipulados, violentados, escravizados, destruídos...
Pode ser que, às vezes, tenhamos um profundo amor e respeito pelo “Corpo de Cristo vivo e presente na Eucaristia”, e não O vejamos nos “corpos” que estão aqui, ali, lá, no nosso lado...
Texto bíblico: Mc 14,12-16.22-26
Na oração: Reze sua humanidade, seu corpo de homem ou mulher. Seja humano diante de Deus, deixe seu corpo expressar-se em louvor e gratidão.
- Entre em sua “casa”; reze no seu corpo. E agradecido(a) bendiga sempre o Senhor.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.06.2021
“...batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19)
“Não há dois sem três”, diz a sabedoria popular; toda a realidade humana tem um componente trinitário. Do amor de um homem e uma mulher brota um terceiro ser humano, o filho. Da união de dois ângulos surge o triângulo. Do negócio de dois empreendedores nasce uma expressa. Da relação entre o artista e a matéria (palavra, cor, som, barro ou mármore) aparece a obra de arte. A “trindade visível” e cotidiana é parte da estrutura da vida. Mas, e a “Trindade invisível”? Falamos do “mistério da Santíssima Trindade”. Ninguém viu e ninguém sabe como é Deus. Ele não cabe em nossa cabeça, em nossos conceitos; por isso dizemos que é um “mistério”.
A Trindade é Mistério para nós na medida em que nunca conseguiremos compreendê-lo e apreendê-lo pela razão. É o desconhecido que nos fascina e nos atrai para conhecê-lo mais e mais, e, ao mesmo tempo, desperta o assombro e a reverência. A Trindade é o mistério que liga e religa tudo, que deixa transbordar seu Amor criativo no coração de toda a humanidade e no universo inteiro.
O Mistério da Trindade sempre está aí (vivemos submergidos n’Ele), permanentemente nos esbarramos n’Ele (dentro de nós e na realidade) e buscamos conhecê-lo; mas ao tentar conhecê-lo percebemos que nossa sede e fome de conhecer nunca se sacia. Por isso, diante da presença do Mistério Trinitário, afogam-se as palavras, desfalecem as imagens e morrem as referências. Só nos restam o silêncio, a adoração e a contemplação. “O ser humano que não tem os olhos abertos ao Mistério passará pela vida sem nunca ver nada” (Einsten)
Quê diz o Evangelho a respeito da Trindade? De maneira muito simples nos revela que o Pai amou tanto o mundo que enviou seu Filho para que, através do amor, pelo envio do Espírito, nós alcançássemos a vida em plenitude; esta consiste em deixar transparecer em nossas relações o mesmo Amor trinitário, expansivo, aberto, acolhedor e integrador de tudo e de todos; só esse Amor é força capaz de nos transformar e, desta maneira, transformar o nosso mundo.
Paulo expressa essa realidade na saudação presente no início de toda celebração eucarística: “a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam sempre convosco (2Cor. 13,13).
A Trindade é, antes de tudo, amor recíproco entre as três Pessoas. Os antigos padres da Igreja entendiam o mistério da Trindade não de uma forma estática como nós, cristãos ocidentais, mas de uma forma ativa, como uma dança. E eles fizeram uso de um termo inspirador para descrever esta Dança Trinitária: “perichoresis”. A principal característica é a reciprocidade no dançar: um dança ao redor do outro, o outro dança ao redor do primeiro, em um constante e recíproco circundar-se. A imagem da dança expressa bem a contínua interação recíproca que caracteriza o dinamismo intra-trinitário.
O termo “perichoresis” foi fixado pela primeira vez na igreja antiga pelos Padres Capadócios (Basílio, Gregória de Nissa e Gregório Nazianzeno). Trata-se de um termo grego construído com duas palavras: uma é “peri” (ao redor) e outra “chôreô” (dançar) e significa “intercambiar lugares”, “dançar em torno”. Isso significa que Deus não é só “diá-logo” (comunicação verbal, palavra compartilhada), mas comunhão e comunicação total: cada pessoa existe somente na medida em que “dança” (avança) para a outra, ocupando seu lugar e habitando nela.
“Pericorese” descreve as inter-relações das pessoas da Trindade. Em tudo o que a Trindade é e faz, cada uma das Pessoas se relaciona e se envolve com cada uma das outras Pessoas divinas. Como uma dança eterna, a “coreografia” do nosso Deus é singular em sua diversidade e em sua unidade. É a dança do Deus-Amor. Em outras palavras, a Trindade é uma dança divina de três pessoas que se amam umas às outras e se acolhem de maneira tão plena que cada uma delas se torna “uma” com as outras. Portanto, o mais profundo da reflexão teológica sobre o mistério da Trindade é a experiência de uma dança, imagem confirmada pelos grandes teólogos e místicos cristãos, os dançantes de Deus. Para eles, uma bela maneira de entender a salvação é sermos convidados a entrar nessa dança, no belo movimento coreográfico da grande Dança da Vida. A participação na dança divina da Trindade é o coração da vida cristã.
Dançamos juntos enquanto deixamos Deus nos tomar pela mão, nos conduzir pelo seu Espírito para ir ao encontro do seu Filho. A grande dignidade do ser humano está aqui: estamos no centro do “círculo dançante de Deus”. Fazemos parte da “dança” do Deus Trindade.
Deus dança e existe dançando, em movimento de amor que é princípio de todas as coisas.
Imagem provocativa: “pericorese” não revela só uma dança entre as três pessoas divinas. A Trindade “dança” na Criação, gerando um grande movimento de vida; em outras palavras, a Criação é o grande palco da dança das Pessoas divinas. Mais ainda, nosso interior também é cenário onde a Trindade dança, ativando e mobilizando nossas energias e forças mais criativas e que se manifestam como amor e cuidado na relação com os outros e com todas as criaturas. Amar é entrar no ritmo da dança trinitária.
Segundo isso, a “pericorese” é uma forma de entender o convite que Deus oferece à humanidade, para que os homens e mulheres entrem na dança do Amor íntimo da Trindade, dirigindo-se uns aos outros em amor, de maneira que todos se despertem para esta interconexão fundamental de uns com os outros.
Certamente, Deus nos convida continuamente a participar nesta dança divina; mas, muitas vezes, não sabemos se queremos ou não queremos “aceitar a mão” de Deus para dançar com Ele.
A dança é um símbolo instigante para falar de Deus, um símbolo também usado de maneiras diferentes em outras tradições religiosas; nelas existe uma maneira de expressar a fé como convite para “dançar com Deus”.
As comunidades judaicas festejam o Dia do Perdão, o Ano Novo, a Festa das Tendas e a Festa da Alegria da Lei. Nesse dia, em Israel, os rabinos saem pelas ruas, tendo nas mãos os pergaminhos sagrados e dançando com fervor. Toda a comunidade canta, bate palmas e dança em roda, até experimentar a união íntima com Deus.
Também os muçulmanos têm movimentos que buscam a comunhão com Alá através da dança.
As comunidades do candomblé, em cada festa, dançam sem parar.
Uma das imagens que também podem nos ajudar é a visão que teve S. Inácio de Loyola (estamos celebrando o Ano Inaciano) que era muito devoto da Trindade. Ele viu como três teclas de um piano. Três teclas distintas que, tocadas ao mesmo tempo, produzem um só acorde.
Este “som” é o que nos interessa para viver: o Amor. Se Deus é Deus, Ele “abraça e abrasa” tudo, também a dimensão comunitária. Quando somos solidários, compassivos, amorosos... revela-se o rosto da Trindade. “Só corações solidários adoram um Deus Trinitário”.
Texto bíblico: Mt 28,16-20
Na oração: No interior de cada um, a Trindade está atuando, está convidando a que ponha em movimento toda a capacidade de admiração e quer ensinar a ler e interpretar Sua presença em todas as coisas.
- Como você deixa transparecer no seu cotidiano o amor fontal da Trindade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.05.2021
Ícone da Trindade: Andrei Rublev
“Soprou sobre eles e disse: ‘recebei o Espírito Santo’” (Jo 20,22)
Corre pela rede este relato: uma pessoa idosa e com recursos econômicos contraiu o Covid; os médicos, temendo por sua vida, aconselharam a colocar-lhe um respirador; e ele começou a chorar. A enfermeira que o cuidava lhe perguntou: “O senhor está chorando porque não tem dinheiro para pagar o respirador?”. “Não – respondeu o ancião – choro porque estive respirando gratuitamente toda a minha vida e só agora me dou conta do valor desse grande presente”.
As circunstâncias desse enfermo e a dos apóstolos fechados são semelhantes, pois eles se encontram confinados, um com a Covid e os outros estão fechados no Cenáculo. Em ambos os casos está presente o medo da morte: um, por um vírus maligno e outro, pelas autoridades romanas, que querem acabar com o movimento de vida iniciado por Jesus. Também coincide o método curativo: para o ancião infectado, um respirador que lhe injeta oxigênio nos pulmões; para os discípulos de Jesus, a chegada do sopro divino que fortalece seu espírito. A grande diferença é que o hospital cobra enquanto que o Espírito é gratuito.
O relato nos ajuda a tomar consciência da presença do Espírito em nossas vidas pois Ele, como o oxigênio, sempre esteve ao nosso lado, mas nos acomodamos no habitual e esquecemos desse “ar vital” que nos mantém sempre criativos, inspirados e sonhadores. O Espírito é nosso “respirador” existencial. Por isso, é preciso, de tempos em tempos, uma sacudida – interna e externa – para que nos recordemos dessa presença, muitas vezes silenciosa como uma brisa, outra vezes como um vento impetuoso.
A liturgia cristã é muito sábia dividindo o ano com festas que indicam os marcos mais importantes de nossa fé: a encarnação, ressurreição e agora Pentecostes, que são como “toques” para despertar nossa atenção.
O Espírito Santo é o “oxigênio” que nos faz respirar.
Descobrir, no dia-a-dia, que o Espírito é essa Presença forte e terna ao mesmo tempo, e que, como o oxigênio para respirar, nos envolve, nos habita e nos constitui; despertar-nos para essa realidade é muito libertador. Mesmo estando em confinamento, essa Presença percebida como silêncio, como proximidade, como força, como alegria..., se converte em caminho, em Vida amassada com nossa vida, e nos “levanta-ressuscita” do sonho quase apagado para conectar-nos com o Sonho de Deus, seu Reinado.
A festa de Pentecostes vem acompanhada de muitos símbolos. Um vento que levanta e dispersa o pó que estava sedimentado em nossas vidas, um fogo que aviva as brasas que estavam apagadas em nosso interior; uma luz benfazeja que nos possibilita ver com claridade o caminho que se abre diante de nós: a senda que Jesus indicou para seus seguidores(as); uma força que afasta nossos medos e derruba as paredes que dão a falsa sensação de segurança; o Espírito é a Vida mesma de Deus: na bíblia, é sinônimo de vitalidade, de dinamismo e novidade. Vento, fogo, luz, força, vida... tudo grátis, ao alcance de nossa mão; basta abrir-nos à presença inspiradora e mobilizadora do Espírito.
É o Espírito dos mil nomes..., nas religiões, na arte, nas grandes descobertas, nos momentos de inspiração, nas experiências fundantes de nossa vida. “A minha direção é a pessoa do Vento” (M. Barros).
Foi o Espírito que impulsionou a missão de Jesus e que agora se encontra também na raiz da missão da grande comunidade de seus seguidores e seguidoras.
A imagem do Ressuscitado “soprando” sobre os discípulos contém uma riqueza instigante: significa parti-lhar o que é mais “vital” de uma pessoa, sua própria “respiração”, seu mesmo espírito, todo seu dinamismo...
Na sua conversa noturna com Nicodemos Jesus tinha dito que “o vento sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim é também todo aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3,8). O vento é livre; e tem tanta liberdade que ninguém pode segurá-lo. O que Jesus destaca é a “liberdade” do vento, que não se deixa escravizar, submeter ou dominar. É o símbolo perfeito da liberdade indomável; uma liberdade que está ali onde está o Espírito.
O evento de Pentecostes nos remonta ao coração mesmo da experiência cristã e eclesial: uma experiência de vida nova com dimensões universais.
O dia da festa de Pentecoste é, de verdade, a festa dos homens e mulheres livres como vento, festa do novo nascimento. E, neste mundo, começará a ser possível a harmonia da liberdade com a igualdade, a comunhão com o respeito à diversidade, a verdade com a acolhida do novo...
Viver uma “vida segundo o Espírito” é deixar-nos recriar, deixar-nos mover, transformar, alargar.
Soltar as asas nos momentos mais petrificados e pesados de nossa vida é sinal de sua silenciosa Presença.
De imediato, nos sentiremos livres do peso que fomos arrastando durante tanto tempo e, por uns instantes, nos atreveremos a “viver como filhos e filhas do Vento”.
O Santo Espírito é o sopro que vivifica, anima, restaura e congrega. Pela linguagem do amor, Ele acende a luz da paixão e permite desenvolver os dons da alegria, do entusiasmo, da compaixão, do cuidado, da esperança e da fé inabalável. Tais atitudes construtivas não são obra nossa, mas dom e fruto do Espírito, que se revela como algo agradável, fascinante, belo, alegre, espontâneo, saboroso como um fruto.
Nós as vivemos, sim, mas é a “Ruah” que as desperta em nós, pois elas estão presentes como “reservas de humanidade” em nosso interior.
Somos “filhos e filhas do Vento”, a Ruah de Deus.
Homens e mulheres do vento somos todos nós, quando nos deixamos mover de acordo com os movimentos do coração de Deus e da paixão pela humanidade. Movidos pelo Espírito de Deus, acreditamos e construímos mediações libertadoras que promovem, incentivam e enobrecem o espírito humano. Passamos a preferir a proximidade à distância, o dinamismo à inércia, a criatividade à normose...
Nosso tempo pede que sejamos homens e mulheres do Vento, que ajudam o mundo a respirar e sentir a vida palpitar; que buscam, na terra, viver o sonho do Reino; que alimentam as chamas da esperança nos corações sonhadores; que se reconhecem humildes ante a misericórdia e o infinito de Deus; que acreditam na força dos pequenos e dos gestos simples; que vibram com as conquistas justas e que se compadecem da miséria do humano; que cuidam de tudo e de todos com ternura e carinho.
Como “filhos e filhas do Vento” basta deixar-nos envolver, escutar o Sopro daquela voz que habita a dimensão mais profunda da vida e que se aninha nas cavidades mais secretas de nossa existência.
É o Sopro que nos faz viver, e viver em plenitude.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração: Precisamos do Sopro que verdadeiramente nos agite, nos empurre, nos arranque de nossa vida estreita e estéril.
O Espírito é um dom para os fundamentos, não para a maquiagem.
- Abra seus pulmões e deixe o “oxigênio” da Vida chegar até às dimensões mais profundas de sua vida, talvez ainda não bem integradas; deixe que Vento levante a poeira da acomodação, do medo, da insegurança... para o despertar de um novo impulso vital., criativo e aberto.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.05.2021
“...o Senhor foi levado ao céu, e sentou-se à direita de Deus” (Mc 16,19)
O Mistério que estamos festejando neste domingo é o mesmo que celebramos cada dia deste tempo de Páscoa ou que celebraremos em Pentecostes: a certeza de que nosso Deus é um Deus Vivo e um Deus de Vida, que não permite que a morte tenha a última palavra e que se empenha para que nós sejamos, junto a Ele, doadores de vida.
Já se passaram 40 dias desde que celebramos a Páscoa, o acontecimento inspirador e alegre da Ressurreição de Jesus. Talvez seja um bom momento para tomarmos o pulso de como temos vivenciado este tempo pascal. Também a nós, como seguidores(as), a liturgia nos apresentou Jesus Vivo e Ressuscitado durante quarenta dias: Ele nos falou de paz, de esperança, de fortaleza, do imenso amor com que nos ama, do sentido de sua morte e de sua paixão... Conhecendo em profundidade nossos medos e debilidades, nos prometeu com insistência que sempre permanecerá entre nós através do alento e da força do seu Espírito, da “Ruah” criativa e transformadora.
Na Ascensão, Jesus não nos abandona, pois realizou uma comunhão definitiva com a humanidade, garantindo a ela um destino de plenitude. Ele subiu ao céu para abrir-nos o caminho, mas agora é o Espírito aquele que nos move e nos conduz ao Pai. Cabe a nós esforçar-nos em fazer o nosso êxodo, sob a ação do mesmo Espírito e confiantes na fidelidade de Deus.
Depois destes 40 dias de preparação é tempo de nos mover, de sair, de pôr-nos a caminho. É preciso colocar em prática tudo o que foi escutado e experimentado. É tempo de “expulsar demônios, de curar enfermos, de falar linguagens novas...”. Cada um de nós pode dar nome a esses “demônios” que somos chamados a expulsar, às enfermidades que devemos curar ou à linguagem de devemos praticar com insistência.
Agora, através do seu Espírito, o Senhor nos coloca em movimento com um envio apaixonante: que a Boa Notícia, aquela que nós já temos recebido, chegue ao mundo inteiro.
Ao mistério da Ascensão corresponde ao mistério da Kénosis (esvaziamento) do Verbo; Ele que se despojou de sua glória e majestade e se fez homem, agora é elevado aos céus e com Ele toda a humanidade redimida e divinizada. Em Cristo, a humanidade inteira já se encontra envolvida por Deus; em Cristo, céus e terra se encontram.
A Ascensão nos revela que a terra termina no céu, o tempo na eternidade, o ser humano termina em Deus. Mas o céu, a esperança, o horizonte, estão já presentes em nosso hoje, dando sentido. O futuro sonhado e esperado é a alegria do presente. O céu não pode esperar!
Frequentemente, a festa da Ascensão é explicada utilizando a mentalidade grega que distingue e separa “céu” e “terra”, que vê estas duas realidades como espaços contrapostos e, de certa forma, separados por um imenso abismo. Como consequência, neste domingo faríamos memória da grande “desconexão”: Jesus Ressuscitado ascende ao céu, abandona a terra e a nós, seus discípulos, sua comunidade; deixa-nos tristes e órfãos.
No entanto, a chave está aqui: “tudo está entrelaçado, inter-conectado, inter-dependente...”
A cosmologia bíblica não é dualista. Céu e terra não são duas realidades separadas, opostas, desconectadas, senão que existe entre elas uma permanente inter-relação; são realidades inter-conectadas. “Céu” (Deus e seus anjos) e terra estão em permanente relação. E tanto os humanos como os animais, as plantas, os planetas, experimentam sempre o “toque” e a “influência do céu”. Assim se expressam os Salmos, os Profetas, os Sábios... Para o pensamento bíblico há salvação ali onde céus e terra se tocam.
Os primeiros cristãos contemplavam a ressurreição de Jesus como o início da reconciliação entre o céu e a terra. Jesus “sobe ao céu” para que se realize sua “conexão” definitiva com a terra; Jesus sobe ao céu para que o céu venha à terra. Essa foi a oração que Ele ensinou àqueles que o seguiam: “Venha a nós o vosso Reino; seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu”.
O que dizemos da terra, o que a ciência da ecologia nos mostra cada vez com mais evidência é que tudo está inter-conectado, todas as manifestações de vida estão inter-relacionadas. Assim, com muito mais razão, é preciso dizer de uma maneira muito especial nesta celebração da Ascenção: Jesus sobe para “conectar” tudo. Esta é a “ecologia do Espírito do Ressuscitado”: o céu na terra e a terra no céu.
Esta é a ecologia integral: a ressurreição transformou absolutamente tudo, uniu tudo. Uma estupenda beleza nasceu e nós estamos integrados neste cenário.
Na Bíblia, céu e terra querem exprimir, espacialmente, a totalidade da Criação de Deus; por isso Deus é Senhor do céu e da terra.
Tudo, então, chegará à plena reconciliação: o céu terá baixado à terra e a terra terá sido elevada até o céu. E então será a plenitude: “Deus será tudo em todas as coisas” (1Cor. 15,28)
A tradição nos lembra que o Espírito Santo é o mesmo na terra e no céu, que o Amor é o mesmo, na ter-ra e no céu. Todas os atributos divinos que podemos viver no espaço-tempo são nossa realidade celeste.
Ao celebrar a Ascenção, sentimos aqui na terra como o céu se conecta com uma experiência universal, comum a todo ser humano: nosso profundo desejo de comunhão.
E, assim, muitas outras expressões humanas, sobretudo através da arte, nos convidam a olhar o céu não como algo etéreo, separado de nossa realidade, mas como algo que habita em cada um de nós. O “céu” se encontra naquelas situações e relações que fazem o ser humano apaixonar-se pela vida. Onde predominam o ódio e o desprezo pela vida, ali se encontra o “inferno”. Quantas “expressões infernais” destroem o impulso para o encontro neste nosso contexto social, político, econômico...!
Como vemos, o “céu” nos mobiliza e nos interpela, nos conduz àqueles lugares, pessoas e situações nas quais experimentamos o profundo desejo de nos unir com a humanidade; também a humanidade mais frágil e necessitada de comunhão. E aí, nesse desejo de construir o céu na terra e de encontrar-nos uns com outros, encontramos o Ressuscitado, falando-nos com paixão, ternura e amor.
O movimento desencadeado por Aquele que Vive é um movimento que reúne para ativar a vida, para restaurar vínculos rompidos, para libertar das ataduras que escravizam...
Jesus “subiu” ao céu porque “desceu” às profundezas da terra. E assim também nos mostrou o caminho. Não podemos subir ao céu se não estivermos dispostos a descer com Cristo ao nosso “húmus”, às nossas sombras, à condição terrena, ao inconsciente, à nossa fraqueza humana.
Nós “subimos” a Deus quando “descemos” à nossa humanidade. Este é o caminho da liberdade, este é o caminho do amor e da humildade, da mansidão e da misericórdia; é o caminho de Jesus também para nós.
A vida cristã não é “subida” para fora da realidade, mas “descida” para o mais profundo da mesma.
Entramos no movimento da Ascensão quando amamos, servimos, cuidamos...; nós nos elevamos quando lutamos por uma causa, investimos a vida num projeto em favor da vida.
Texto bíblico: Mc 16,15-20
Na oração: A festa da Ascensão nos ensina o caminho através do qual descemos a uma dimensão mais profunda, chegando à corrente subterrânea por onde flui a vida; aqui experimentamos a unidade de nosso ser; o impulso para a comunhão, o lugar da transcendência, onde nossa transformação realmente acontece.
Para nos realizar e desenvolver toda a nossa potencialidade, busquemos, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de nosso ser, o núcleo original de nossa personalidade. É no mais íntimo de nós que rezamos ao Senhor. É no mais profundo de nossa interioridade que escutamos o Senhor.
Deixemo-nos invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.05.2021
Imagem: Fernando Alves
“Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos” (Jo 15,13)
O evangelista João recolhe um longo discurso de despedida de Jesus, onde são apresentados, com uma intensidade especial, alguns traços fundamentais que seus seguidores hão de recordar e viver ao longo dos tempos, para serem fiéis à Sua pessoa e a Seu projeto.
Jesus não apresenta aos seus discípulos uma “constituição” com seus capítulos e artigos, nem algumas “regras”, e menos ainda alguns “estatutos”. Só diz assim: “este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei”. O mandamento que Ele vive, também deseja que seja vivido por seus seguidores e seguidoras. Nada mais. Aprender do Mestre e praticar, como Ele, a arte de amar!
Em qualquer época e situação, o decisivo para o cristianismo é não se afastar do amor fraterno.
Nesse sentido, o mandamento do amor não é lei que se impõe de fora para dentro; ele “emana” do interior de cada um, pois todo ser humano traz em si a marca do Criador, que é puro Amor. Por isso, manifestar plenamente esse amor que é Deus, nas relações com os outros, é a expressão da verdadeira identidade cristã.
Há uma diferença que é preciso aclarar. Deus não é um ser que ama: Ele é o amor, ou, em melhor tradução, “Deus consiste em estar amando”.
N’Ele, o Amor é sua essência, não uma qualidade como em nós: podemos amar ou deixar de amar. Se Deus deixasse de amar um só instante, deixaria de ser Deus. Ele manifesta seu amor a Jesus como manifesta a cada um de nós. Mas não faz isso como nós. Não podemos esperar de Deus “mostras pontuais de amor”, porque não pode deixar de demonstrar isso um só instante.
O Amor de Deus é o primeiro; Ele não nos ama como resposta ao que somos ou fazemos, mas por aquilo que Ele é. Deus ama a todos da mesma maneira, porque não pode amar mais a um que a outro.
Este é o manifesto supremo do amor cristão. Não somos servos de Deus, pois Ele não se impõe de cima para que lhe obedeçamos, mas nos chama e nos faz seus “amigos”.
Também não somos empregados de Deus, para triunfo e glória de sua empresa, pois não temos na vida outra tarefa nem outra finalidade que ser amigos.
Somos simplesmente amigos de Deus em Jesus, como diz o evangelho de João, o testamento do amado.
Amar é simplesmente “deixar-se amar”, como as mulheres da páscoa, como o discípulo amado, como todos os que amaram a Jesus e se deixaram amar por Ele e com Ele, sem outro exercício que o continuar amando. Por isso, a mensagem mais profunda do evangelho de João vem expressar-se no amor fraterno, vivido na forma de amizade. Não é simplesmente amor ao inimigo, nem é tampouco amor esponsal. É amor de irmãos que se tornam amigos. Neste manifesto de amizade culmina o evangelho, entendido, por fim, como “escola de amor”..., porque só quem ama e é amado pode assumir em presteza a tarefa da vida, cumprindo assim o “mandamento do amor”; “amor ágape”, gratuito, oblativo, impulso que faz “sair de si mesmo”.
Esta revelação do amor fraterno/amistoso é o dom supremo de Jesus à sua nova comunidade; a identidade dela não está na organização burocrática, na doutrina, nos ritos... mas em deixar-se conduzir pelo “movimento de amor”. Toda comunidade que descobre esse amor sabe que não necessita autoridades externas, hierarquias sacrais, obediências cegas...
Aqui não há mais imposição de uns sobre outros, mas comunhão de amigos. Essa mesma comunhão é a autoridade, a presença do Espírito Santo. As mediações ministeriais são, portanto, secundárias. Podem mudar as formas de organização eclesial, as ações concretas da comunidade; mas permanece a verdade como liberdade, e a autoridade como amor mútuo que vincula os(as) seguidores(as) de Jesus.
Sem amor não é possível dar passos para um cristianismo mais aberto, cordial, alegre, simples e amável, onde possamos viver como “amigos” de Jesus. Não saberemos como ativar a alegria de viver; sem a dinâmica do seguimento amoroso, continuaremos cultivando uma religião triste, centrada no legalismo, no ritualismo estéril que alimenta culpas, ressentimentos, medos e um mal-estar constante.
Jesus não veio complicar a vida com uma sobrecarga de normas, leis, ritos, doutrinas...; veio recuperar o essencial: basta amar. Diz S. João da Cruz: “na tarde da vida seremos examinados no amor”.
A vivência radical do amor, que está disposto a perder tudo por aqueles que ama, é o que em definitiva ajuda a ativar a alegria, a fazê-la crescer e compartilhá-la sem recompensa alguma. Jesus fala aos discípulos dessa alegria precisamente quando sua vida se precipita em direção à entrega na paixão, não por um desencanto da vida, mas por amor apaixonado à existência que o Deus da vida nos presenteia. Só a paixão do amor faz coexistir, em um mesmo fogo que os funde em uma união indissolúvel, a dor e a alegria, o amor à vida e o risco de perdê-la, o amor aos amigos e a coragem de deixá-los, as perseguições dos inimigos e a audácia para morrer por eles.
Ser testemunhas e profetas da alegria constitui a essência dos seguidores e seguidoras de Jesus.
E “para viver a alegria, exercitar-se na alegria”. É preciso nos converter à alegria de Deus que é autêntica paixão pelo ser humano; é preciso contagiar a alegria do Evangelho; é preciso afastar obstáculos que travam a alegria de viver; é preciso remover a pedra de nossos sepulcros e viver como ressuscitados.
Como profetas da alegria, longe de fugir dos conflitos da vida, nós os enfrentamos e os integramos com sentido. Não temos mais fronteiras, não excluímos gênero, classe social, cor, língua, religião, não descartamos o aparentemente inútil. Por isso, nossa vida e nossa palavra querem ser anúncio e compromisso de concórdia e comunhão nos conflitos, unindo pontos, integrando diferenças, curando feridas. Devemos reforçar o testemunho de comunhão na diversidade para mostrar que é possível superar o medo às diferenças. Nossa vida alegre desmonta a hipocrisia, as ambições, a vaidade, o escândalo...
A presença do Ressuscitado deu à alegria um caráter existencial e não a faz depender nem do esforço pessoal nem de posse alguma de um bem temporal, mas do sentido global da pessoa.
Quem vive a partir da alegria, vive a partir do essencial e sabe discernir o autêntico das aparências e o útil do supérfluo. A alegria mantém alta a utopia e não se cansa em sua irradiação. Seguimos o conselho agostiniano: “A felicidade consiste em tomar com alegria o que a vida nos dá, e deixar com a mesma alegria o que ela nos tira”.
Quem é transparente e coerente transmite alegria em seu falar e em seu agir. Ser alegre não significa ser impassível, insensível diante da injustiça e da violência, diante da pobreza e da exclusão. As virtudes que acompanham a alegria fazem com que a pessoa alegre seja também compassiva e misericordiosa e trabalhe pela paz e pela justiça.
O profeta da alegria anuncia sempre mensagem de salvação, exercita a compaixão, suscita a esperança, se envolve na promoção da paz, da justiça, da solidariedade, da fraternidade....
Texto bíblico: Jo 15,9-17
Na oração: Entre em sintonia, “ajuste-se” ao modo de amar de Deus: amor descendente, amor sem fronteiras, oblativo, expansivo... e que se “revela mais em obras do que em palavras” (S. Inácio).
- Sinta-se envolvido(a) pelo Amor transbordante de Deus e, ao mesmo tempo, entre no fluxo desse Amor criativo, “descendo” à realidade cotidiana e ali deixando transparecer esse mesmo Amor, através dos encontros e do diálogo com os outros, sobretudo com aqueles que pensam, sentem e amam de maneira diferente.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
08.05.2021
Imagem: pexels.com
“Eu sou a videira e vós os ramos” (Jo 15,5)
O Evangelho deste domingo é o começo do cap. 15 de S. João e que faz parte do longo discurso de despedida, depois da última ceia. Nesta parte do discurso fala-se da comunidade cristã e sua missão no mundo. Insiste que a Vida de Deus, como a seiva, deve atravessar cada membro da comunidade para que seja possível o amor que se deve manifestar em obras.
Como é habitual, o Jesus dos evangelhos não expõe esta realidade com longas explicações ou filosofias, mas utiliza imagens, parábolas ou símbolos certamente conhecidos por todos. Neste texto, nos fala a partir da videira, uma planta rica em significados na tradição judaica. A vinha, nos textos do AT, representava o povo de Israel, que Deus plantou, podou e cuidou de todas as maneiras possíveis. O Deus Pai foi representado, em muitas ocasiões, como um lavrador que cuida de sua vinha Israel.
Na Última Ceia, Jesus convocou todos os seus(suas) seguidores(as) a formar com Ele um organismo vivo. E fez isso através da imagem da vinha: a cepa, os ramos e os cachos de uvas. As uvas não brotam diretamente da cepa, mas dos ramos. Porém, os ramos não dão uvas se não estão ligados à cepa.
Jesus nos fala do bio-sistema da videira: a relação misteriosa da cepa com os ramos e dos ramos com os cachos de uvas, e um misterioso Lavrador que a cuida para que ela dê muito fruto.
Na vivência do seguimento de Jesus, o importante é sentir-nos dentro de uma grande e misteriosa “bio-cenosis”, comunidade de vida. Espaço onde cada um se insere na Videira, onde cada membro se harmoniza e se dinamiza no corpo. O Abbá e a Santa Ruah cuidam deste organismo vivo, conectado em Jesus, como um corpo de dimensões cósmicas.
A “bio-cenosis” é o espaço onde respiramos ar purificado, vivemos da seiva que circula, experimentamos a liberdade do Espírito, produzimos frutos. Sim, trata-se de nos deixar levar pela misteriosa lógica da Vida.
A Vida continua sendo o centro do discurso de Jesus, neste domingo; afinal, estamos no tempo Pascal. Só assim o seguimento de Jesus torna-se fonte de vida e vida em crescente amplitude. Quando nos dispomos a caminhar com Ele, sob a ação do seu Espírito, realiza-se em nós um processo de abertura e de superação, de crescimento e de reconstrução de nós mesmos...; tomamos consciência de uma dimensão profunda de nosso interior, que nos permite experimentar uma outra vida, que supera tudo o que vivíamos até então.
Para isso, é preciso passar por contínuas “podas” de tudo aquilo que está sobrando ou que se tornou “peso morto”. O Abbá de Jesus cuida e poda os ramos para que deem mais frutos.
Conhecemos bem a poda necessária para que a videira não disperse a seiva, produzindo vistosa folhagem e ramos frondosos, mas sem frutos; uma videira deve dar cachos formados e grandes, nutridos até a maturação. Quando o agricultor poda, a videira “chora” onde é cortada, até que a ferida fique curada e cicatrizada. A poda tão necessária é sempre uma operação dolorosa para a videira: muitos ramos são cortados, jogados fora, secam e são destinados ao fogo...
Muitas vezes as podas são vistas como perdas, mas são perdas que abrem espaço à vida nova, ampla...
Nosso processo de crescimento pessoal revela uma constante necessidade de despojar-nos de costumes, lugares familiares, modos de nos relacionar com as pessoas queridas..., que nos acompanharam durante uma etapa, mas que agora se tornaram estreitos e nos impedem expandir a vida.
Quão difícil é deixar-nos podar sobretudo os ramos secos que se agarram a nós: atitudes fechadas, busca de prestígio, ego inflado, instintos de posse, falsas seguranças, visões atrofiadas... Esses ramos que nos sobre-carregam são “pesos mortos” que exigem uma demanda de energia que deixa de ser investida em outras frentes de vida. São ramos que não conduzem mais seiva, mas temos resistências em deixá-los podar. Vemos esses ramos em nós, os identificamos, os localizamos... mas custa cortar. Vemos e sentimos a necessidade de cortar, de separá-los de nós, de podar... mas custa eliminá-los.
O processo da “poda” da vida implica “perdas e ganhos”; as podas implicam uma travessia da “vida menor” à “Vida maior”. Se investimos todas as nossas energias na vida minúscula (apegos, medos, resistências...) nunca descobriremos a Vida maior. Aquele que se empenha a todo custo em salvar sua vida menor, vai acabar perdendo-a. Mas dará pleno sentido a esta vida se descobre e ativa outro nível mais profundo e encontrar a verdadeira Vida. Estamos aqui para pôr Vida onde só há “vida”.
Em tempos de busca de sentido ou de desorientação, reencontrar a vinculação existencial com “todas as coisas” e encontrar a “consistência” em Cristo se torna fundamental. Quando as experiências de isolamento,
abandono ou de individualismo tornam-se generalizadas, a leitura deste texto nos anima a potenciar as relações profundas e a reforçar a corrente de vida que vem desde Jesus e que nos comunica entre nós de maneira criativa.
Como seres humanos vivemos profundamente relacionados. O vínculo é algo que nos caracteriza essenci-almente. Em nosso mundo estamos “muito conectados, mas pouco vinculados”. Vivemos numa sociedade “des-vinculada”, que precisa re-vincular-se, constituindo a verdadeira comunidade humana: vínculos com a Videira vivente e vínculos fraternos.
O evangelho deste domingo nos convida a passar da mera conexão à verdadeira vinculação, aquela que nasce da fraternidade, da mesma seiva de Cristo, aquela que gera a caridade verdadeira, no compromisso pela justiça e pela dignidade de todos os seres humanos. Onde só há “conexão”, ali há atrofia e rigidez nas relações interpessoais, alimentando atitudes preconceituosas, intolerantes e indiferentes.
Só a vinculação quebra distâncias, dá calor aos encontros, abre corações e mentes para acolher o diferente.
A vinculação integra as diferenças; a conexão alimenta suspeita e julgamento diante de quem pensa, sente e ama de maneira diferente. A riqueza das diferenças alimenta e dá novo vigor aos vínculos.
Jesus, como Videira, estabelece um vínculo eterno com a humanidade, alimentando-nos com sua seiva e reforçando os vínculos humanos para além de toda expressão religiosa, social, cultural, política...
É nesse conjunto de recursos e dinamismos vitais que a Graça (seiva) de Deus trabalha; Ela pode ser considerada como uma presença dinâmica, um estimulante das energias latentes do nosso “eu”.
A presença da seiva é um reforço, um suporte, uma ativadora das capacidades do eu; ela não constrange, não violenta, mas ajuda, esclarece, mobiliza as energias presentes, facilita largamente a missão de cada um.
Mais ainda, o Espírito habita nosso ser profundo, sustenta nossas energias sadias, aumenta nossas forças, compromete-nos a crescer de forma autônoma. Ele age como um “princípio dinâmico” e como um “energético ativo”, que reforça as atividades criativas do eu. Temos de viver a partir do Espírito, transformando e vitalizando nossos gestos, pensamentos, compromissos, encontros.
Intuímos uma conexão tão preciosa dentro de nós, uma seiva tão profunda... Muitas vezes, passamos a vida buscando seiva em outros lugares que nos tornam estéreis e vazios, e não descobrimos nosso ser essencial.
Texto bíblico: Jo 15,1-8
Na oração: Carregamos a Videira em nossas entranhas como um canto de libertação. Nosso interior conhece a Videira; conhece a Vida; nosso interior conhece a seiva da Videira. É algo como o espírito que nos anima.
Somos ramos e deixamos a seiva transbordar em nós; ramos sem fronteiras; ramos sem cálculos; ramos transbordantes.
- Onde sua vida está conectada? A seiva que você recebe alimenta sua vida ou a envenena, expande suas potencialidades criativas ou atrofia seus desejos e sonhos?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.04.2021
Imagem: pexels.com
“Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem...” (Jo 10,14)
Todo quarto domingo do Tempo Pascal a liturgia busca inspiração na alegoria do Bom Pastor; ela não apresenta outros relatos de “aparições” do Ressuscitado, mas realça o que é central na experiência pascal: “viver como ressuscitados” é deixar-nos inspirar por Aquele que é Vida em plenitude.
Para começar, é compreensível que imagens próprias de uma cultura agrária não sejam significativas para quem vive nos espaços urbanos e numa sociedade tecnologicamente avançada; para muitos, a imagem do Bom Pastor perdeu a referência e deixou de ser significativa; ela acaba provocando indiferença ou rejeição porque, em nosso ambiente sociocultural, a imagem do “pastor e das ovelhas” evoca atitudes de domínio, de controle, de paternalismo e do correspondente súdito “cordeirinho”. O “rebanho” é visto como constituído de ovelhas que não podem dirigir seus atos, não sabem onde encontrar as pastagens e, se não é a presença controladora do pastor, elas acabam se perdendo e morrendo nas garras dos lobos.
No entanto, a resistência à imagem do “pastor e das ovelhas” acaba “trazendo à luz” esta realidade que não mudou: muitos afirmam que não tem “vocação de ovelhas”, mas se comportam como “gado” no curral da alienação; sem uma visão crítica, deixam-se levar e vão aonde todos vão, “pastam” nos campos envenena-dos das “fake-news”, aceitam que “falsos messias” (seja no campo político ou religioso) controlem suas vidas, permitem que os “pastores” da “mídia interessada” propaguem a “sua verdade”... As redes sociais estão aí para demonstrar as atitudes alienadas do “rebanho” que se transforma em “massa de manobra”, onde é proibido “pensar, sentir e amar” de maneira diferente.
Apesar das considerações anteriores, a imagem do “Bom Pastor” pode ser inspiradora se ela nos conduz ao centro da vida que é dom e se faz continuamente dom.
Como toda imagem é ambígua, devemos salvar o sentido nobre que ela desvela quando nos aproximamos da inspiração primeira anunciada por Jesus. Esta alegoria abriu caminho a uma espiritualidade e a uma devoção extensa e profunda ao longo de toda a história cristã. Guia, cuidado e proteção conectam profundamente com as necessidades básicas do ser humano. É inegável, também, que essa devoção produziu frutos abundantes de confiança e compromisso.
Jesus se apresenta como o verdadeiro Pastor porque não nos considera propriedade sua, respeita-nos, ativa nossa autonomia ...; Ele é o verdadeiro pastor porque é pura transparência do Pai, providente e cuidador, que não controla, não manipula, nem tolhe nossa liberdade. Ele se apresenta como verdadeiro pastor porque ativa as nossas potencialidades humanas e nos instiga a viver de modo criativo. Seu “rebanho” é constituído de diversidades que se enriquecem e se comprometem com a causa da vida.
Jesus é Pastor fazendo com que todos sejam pastores. O rebanho de ovelhas se converte em comunidade de pastores, dialogando-se mutuamente, onde cada um é porta de vida para os demais.
O encontro com o Bom Pastor ativa em nós o “pastor escondido” para que possamos ser a presença de vida que faz a diferença e indique a todos a porta de liberdade; todos somos chamados a ser pastores, ajudando-nos mutuamente a encontrar o caminho e o sentido para nossas existências.
Queremos ser “bons pastores” que se ajudem a sair do aprisco onde estamos fechados (moralismo, legalismo, ritualismo, religião sem vida...), para assim buscar a liberdade e celebrar a vida, com o Bom Pastor e com todos os homens e mulheres de boa vontade.
Inspirados no Bom Pastor somos chamados a viver uma Vida maior, que é uma vida de qualidade, de harmonia interior e comunhão com todos; é aquela vida na qual vivemos de acordo com nosso projeto pessoal, na qual reservamos todos os dias um tempo para refletir como queremos viver, quanto tempo investimos com os outros, quanto trabalhamos para levar à sociedade o nosso melhor, quanto praticamos a justiça nos pequenos detalhes cotidianos, familiares, sociais, quanto partilhamos daquilo que somos e temos, quanto amamos gratuitamente, sem esperar que o outro nos corresponda, mas aceitando-o empaticamente, permitindo-o ser diferente e expressar seus afetos, como pode e como sabe.
E, por último, quanto vivemos a vida como uma festa e se a tornamos festiva, agradável e humorada aos demais; se, além disso, tudo isto é vivido e acompanhado na presença e fortaleza de Deus, que nos cumula de energia, nos impulsiona à vivência da misericórdia, da justiça, do cuidado... e nos indica o caminho para viver uma existência apaixonante.
Também na imagem do “Bom Pastor”, Jesus deixa transparecer, na sua relação com os mais frágeis e excluídos, a imagem do Deus ternura e cuidado.
Recuperar o sentido da ternura exige de nós contemplar a vivência da ternura de Jesus de Nazaré, e não só como um mero modelo ético de atuação, senão em sua profunda intimidade e filiação referida a um Pai materno cujas entranhas se estremecem e sente ternura por seus filhos e filhas.
Recuperar a imagem esquecida do “Deus de ternura”, supõe enraizar-se no coração do Bom Pastor, imagem que revela a capacidade do ser humano de abraçar amorosamente a situação de fragilidade e dor do outro, com uma compaixão que se faz vida, nos gestos revitalizadores e humanizadores, cheios de ternura.
Só quem experimentou a ternura de Deus, revelado em Jesus, sabe-se possuidor de uma “segunda pele” que certamente o faz mais vulnerável, mas ao mesmo tempo mais humano ou mais apto para penetrar no secreto de uma humanidade capaz de sentimento e estremecimento até os limites não imaginados. Nele pulsa o coração de Deus que se sintoniza com a pulsação do coração do mundo.
Com razão afirmava Abrahán Heschel, que “o grau de sensibilidade diante do sofrimento humano indica o grau de humanidade que temos atingido”. E é a ternura aquela que desperta em nós essa sensibilidade e mede, por isso, o grau de humanidade alcançado.
A ternura vital é sinônimo de cuidado essencial.
O cuidado nos torna pessoas abertas, sensíveis, solidárias, cordiais e conectadas com tudo e com todos no universo. Sem o cuidado, nos fazemos desumanos; sem o cuidado nos definhamos e morremos.
O cuidado vive do amor primeiro, da ternura, da carícia, da compaixão, da benevolência acolhedora...
A arte do cuidado confere a cada um de nós a capacidade de exercer o “pastoreio espiritual”; cuidar é sentir o outro, é verdadeiramente escutar, é ter um olhar desarmado, eliminando todo preconceito. Cuidar é dar atenção com ternura, isto é, descentrar-nos de nós mesmos e sair em direção do outro, participando de sua existência; é esvaziamento de nós mesmos para deixar o mistério da fragilidade do outro, que também trazemos em nós, encontrar abrigo no coração.
Texto bíblico: Jo 10,11-18
Na oração: quem já foi afetado por um olhar de uma pessoa pobre ou sofredora, e deixou que este olhar penetrasse no fundo do seu coração, sabe que não sai “ileso” desta experiência; algo mudou dentro de si: a ternura é despertada e o cuidado é mobilizado.
O modo-de-ser-ternura e cuidado do Bom Pastor se prolonga em nós, seus seguidores.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.04.2021
Imagem: Sieger Koder
“Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo!” (Lc 24,35-48)
Há uma arte milenar que consiste em recompor cerâmicas quebradas; quando uma peça se rompe, os mestres desta arte concertam-na com ouro, deixando a cicatriz da reconstrução completamente à vista e sem nenhuma dissimulação, pois para eles uma peça reconstruída é um símbolo perfeito que alia fortaleza, fragilidade e beleza.
Os primeiros cristãos decidiram também conservar e transmitir os relatos das aparições do Ressuscitado sem ocultar as muitas rupturas, feridas e marcas que o acompanharam durante sua vida, sobretudo aquelas que lhe foram infligidas durante sua paixão e morte. Poderiam ter adocicado, suavizado ou omitido diretamente os aspectos mais polêmicos de seus ensinamentos ou os elementos mais humilhantes de seu dramático final. Pelo contrário, deixaram as cicatrizes de suas feridas completamente à vista e sem nenhuma dissimulação. Mas, fizeram isso não só para serem fiéis à história, mas, sobretudo, para mostrar a fortaleza, a fragilidade e a beleza da reconstrução realizada por Deus na ressurreição. Convinha mostrar o ouro que preenche as fendas entre os membros feridos de Jesus, as marcas de sua entrega nas cicatrizes do seu corpo.
O Pai, como experiente artesão, depois de enviar Jesus e de sustentá-lo ao longo de sua missão, o eleva, o reconstrói e o ressuscita.
Essa é a razão pela qual, para os cristãos, o compromisso com a restauração do mundo quebrado é um modo de atualizar a experiência da ressurreição e de viver sua vocação. O(a) seguidor(a) de Jesus escuta o chamado para unir-se ao labor do Deus-criador que, na ressurreição, recria de novo a humanidade ferida.
Somente a ação criativa e contínua de Deus é capaz de costurar novamente os pedaços de nossa história; ao mesmo tempo ela nos faz descobrir a beleza e a harmonia desses mesmos pedaços. Tal qual o oleiro, o Senhor nos cria e nos recria continuamente. Nada é desperdiçado. Suas mãos de artista não jogam fora nenhum pedaço de nossa existência vivida, e sim, compõe e recompõe continuamente, num desenho novo, o que nos foi dado viver. A experiência de nossa própria fragilidade pode converter-se em experiência de Deus, do Deus rico em misericórdia, e até o passado mais fragmentado está aí para dizer que Ele desenhou nosso ser na palma de suas mãos (cf. Is. 49, 14-26).
Assim, o passado em pedaços adquire um significado totalmente diferente, e cada acontecimento se torna fragmento de um plano amoroso, escrito no coração do Criador. O ato divino de costurar os pedaços de nossa história não significa somente juntar os cacos, como se no passado existissem somente derrotas e fracassos a serem anotados e aceitos. Deus acolhe e dá um sentido novo a todas as vivências e experiências; só Ele consegue juntar até as contradições e inconsistências da vida, dando coerência e unidade ao todo existencial e, com isso, fortalecendo a identidade e originalidade de cada um.
É um contínuo renascer; é um prolongamento da Criação: “faça-se a luz”, “façamos o ser humano”.
Repetir o gesto criativo de Deus significa tomar nas mãos os “fragmentos” daquilo que foi vivido, trazê-los das profundezas onde sempre estiveram confinados, colocá-los à nossa frente, tocá-los, revirá-los, contemplá-los, aceitá-los, revivê-los, recriá-los... Com o ouro de nossa existência, aquecida pelo calor do Espírito de Deus, podemos transformar nossas feridas, fracassos, crises, rupturas... em material de uma nova experiência de vida. Não se trata de sufocar a vida, mas de torná-la leve e luminosa, mantendo límpida a sua fonte, livrando-a da camada de sentimentos negativos.
A experiência de encontro com o Ressuscitado nos dá força e tranquilidade para empreender um mergulho dentro de nós mesmos. Ela vai reordenando fatos, completando os vazios, corrigindo distorções, revivendo situações paralisadas, conferindo sentimentos...
Ao nos situar na luz da ressurreição ampliamos o horizonte de leitura de nossa vida; isso possibilita uma recomposição da nossa própria vida e dá um novo significado aos acontecimentos vividos. As experiências do passado não podem ser mudadas, mas a nova “releitura” pode mudar a interpretação dada a elas. Tal experiência reconstrutora é para corajosos, persistentes, vitais, amantes da verdade...
A experiência de encontro com o Ressuscitado é muito positiva para o crescimento interior e nos mobiliza para retomar a “escrita” de nossa história, agora com um olhar compassivo e acolhedor.
Deus colocou sua “assinatura” divina ali, nas dobras do coração, mas só quem lê o interior descobre isso. Nas páginas fragmentadas da nossa existência poderemos ler uma história de amor profundo, uma história imortal O que não foi bem escrito no passado poderá ser escrito de outra maneira no futuro...
Mas tudo é reconstruído e, com toda certeza, será publicado pela “editora da vida”.
No evangelho deste 3o domingo da Páscoa, Jesus aparece repentinamente aos discípulos; a primeira reação é de “medo pela surpresa” e até “acreditavam ver um fantasma”.
Como se credencia Jesus para justificar sua identidade? De uma maneira que deveria ser também a nossa. O que melhor define Jesus diante dos discípulos medrosos é: em primeiro lugar, a “saudação de paz” (“a paz esteja convosco”).
Em segundo lugar: mostra-lhes suas mãos e seus pés; mãos e pés com o sinal dos cravos na Cruz. Recorda a eles que é o mesmo Crucificado, agora Ressuscitado; mostra-lhes as mãos feridas como marcas do amor que se doa, cura, abençoa, eleva... ; mostra-lhes os pés feridos pelos caminhos que andou, pelos deslocamentos em direção aos últimos, e que terminaram cravados na cruz.
A “carteira de identidade” de Jesus não é um cartão nem papéis, mas suas mãos e pés chagados. É curioso que os grandes sinais que tornam possível acreditar que Jesus está vivo sejam suas mãos e seus pés. É curioso que os grandes sinais que nos fazem acreditar na Páscoa sejam as mãos e os pés feridos e chagados.
Se nossas entranhas se compadecem, se nossas mãos se abrem, se em nosso desalento levantamos os pés, se voltamos a confiar no outro, se o nosso olhar se amplia..., então ressuscitamos como Jesus, como a Vida que se expande, como a semente que se rompe...
Queres conhecer alguém? Olhe suas mãos e seus pés. Queres conhecer o(a) verdadeiro seguidor(a? Olhe as chagas das mãos e dos pés; mãos e pés que revelam o amor crucificado; mãos e pés que revelam o amor fiel até o fim; mãos e pés que revelam uma vida doada para que outros possam viver.
“Mais vale uma chaga em nossas mãos e em nossos pés que mil explicações sobre o amor”.
Texto bíblico: Lc 24,35-48
Na oração: O Cristo Ressuscitado nos mostra suas mãos e pés glorificados, com as “marcas” de sua própria história de paixão e de uma vida entregue em favor do Reino do Pai. Ele pede nossas mãos para que sejam prolongamento das suas: mãos que abençoam, partilham, elevam, curam...Ele pede nossos pés para que sejam o prolongamento dos seus: pés peregrinos que quebram distâncias sociais, pés que rompem as fronteiras da indiferença e da intolerância, pés que ativam presença solidária...; Ele pede nosso coração “atravessado” pela lança do amor oblativo para contagiar a grande esperança e combater o vírus da morte.
- Como ser presença “ressuscitada” no contexto atual onde imperam o “genocídio” e a “cultura da morte”?
- Seu modo de ser e proceder é portador da paz pascal neste ambiente social e religioso carregado de tanto ódio?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.04.2021
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