O nosso presente, logo que alcança
o futuro, já o transforma em passado.
A vida é constante perder. A vida é,
pois, uma constante saudade.
Há uma saudade queixosa: a que
desejaria reter, fixar, possuir.
Há uma saudade sábia, que deixa as
coisas passarem , como se não
passassem. Livrando-as do tempo,
salvando a sua essência da eternidade.
É a única maneira, aliás, de lhes dar
permanência: imortalizá-las em amor.
O verdadeiro amor é, paradoxalmente,
uma saudade constante, sem egoísmo nenhum.
Cecília Meireles
Brota esta lágrima e cai.
Vem de mim, mas não é minha.
Percebe-se que caminha,
sem que se saiba aonde vai.
Parece angústia espremida
de meu negro coração
- pelos meus olhos fugida
e quebrada em minha mão.
Mas é rio, mais profundo,
sem nascimento e sem fim,
que, atravessando este mundo,
passou por dentro de mim.
Cecília Meireles
In Vaga Música
Conheço a residência da dor.
É um lugar afastado,
Sem vizinhos, sem conversa, quase sem lágrimas,
Com umas imensas vigílias diante do céu.
A dor não tem nome,
Não se chama, não atende.
Ela mesma é solidão:
Nada mostra, nada pede, não precisa.
Vem quando quer.
O rosto da dor está voltado sobre um espelho,
Mas não é rosto de corpo,
Nem o seu espelho é do mundo.
Conheço pessoalmente a dor.
A sua residência, longe,
Em caminhos inesperados.
Às vezes sento-me à sua porta, na sombra das suas árvores.
E ouço dizer:
“Quem visse, como vês, a dor, já não sofria”.
E olho para ela, imensamente.
Conheço há muito tempo a dor.
Conheço-a de perto.
Pessoalmente.
Cecília Meireles
“Hoje entendo a vida como um lugar para termos a maior fome que pudermos,
a maior sede de que formos capazes.
A vida é uma máquina de construir desejo.
Bem-aventurados os que têm um desejo tão grande, tão grande, tão grande que nada pode responder.
Isso faz-nos procurar outras respostas.
F. Pessoa também diz: «Triste de quem está contente», não é?
A insatisfação é uma dor. Mas essa ferida torna-se fecunda, criativa”
José Tolentino de Mendonça
Saio do sonho, da noite, do absurdo:
sou navegante que aborda o limite humano,
espuma breve.
Meus vestidos são de uma tristeza total:
da frágil superfície ao denso forro,
profundo mar.
Pergunto-me por que venho
e por que venho assim vestida:
- é dos lugares do sonho, da noite, do absurdo?
- é do limite humano a que abordo,
séria e inerme?
Entre os dias humanos
e a noite ex-humana
que mensageiro acaso somos?
A que destinatários?
em que linguagem?
que mensagem?
Ó noite, ó sonhos, ó absurdo
onde, no entanto, fluíamos, claríssimos!
Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti.
Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar, quando caí.
Cecília Meireles
Caos
Há um momento na vida
de terror definitivo,
de fracasso tremendo,
de sangrar a ferida.
Nada rende,
não há remendo,
nem consolo,
nem saída;
luta perdida.
A lágrima não significa,
o amor cruza os braços,
a saudade diz que vai,
e fica.
(Ivone Boechat)
"Tudo o que fazemos é marcado pela fragilidade da nossa condição.
Somos esta coisa humana,
provisória,
incerta,
inacabada,
imperfeita.
Mas somos também poeira enamorada.
Há em nós alguma coisa de maior.
Mesmo no erro.
No erro podemos encontrar um caminho."
José Tolentino de Mendonça
Como a árvore a que cortam um galho
e permanece(aparentemente) intacta
-suportar em silêncio certos afrontamentos.
Foi profundo o talho
embora o tronco se ostente sólido
impassível.
Uma flor brotava errante
na parte decepada.
Eu a mereci.
E isto basta
na sucessão das possíveis primaveras.
Affonso Romano de Sant'Anna,
in Vestígios
Ao morrer meu amigo
algo de mim
que já era ele
se foi.
Algo de mim
ressuscitou nele.
Algo dele
que ainda sou eu
ficou.
Algo dele
espera em mim por ressurreição.
O tempo ao passar
parece devorar
todo o amor.
Mas quanto mais afasta
no passado minha recordação,
mais se aproxima
ao encontro sem distância
do futuro.
Ainda que em mim
cada dia tenha
sua poda, sua espera e sua colheita,
para ele
já toda a história se cumpriu
eu cheguei com ele,
e ali estou.
Obrigado, Senhor.
(Benjamin Gonzalez Buelta sj)
(Homenagem do Centro Loyola ao querido Pe. Libânio, falecido dia 30.01.2014)
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
''Sophia de Mello Breyner''
(homenagem ao querido amigo e colaborador do Centro Loyola, o jesuíta e teólogo Pe. João Batista Libânio sj, falecido dia 30.01.2014)
Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.
Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.
Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.
Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.
Affonso Romano de Sant'Anna
Poesia extraída do livro "Lado Esquerdo do Meu Peito", Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1992.
Viver
é conjugação diária
do presente.
Viver
é presentear.
Mais do que um jeito de doer
é um modo de doar.
E um presente
mais que um objeto
é o elo entre dois olhos
a floração do gesto
o prateado evento
e o cristalino afeto.
Não se dá
apenas pelo prazer
de ver
o outro receber.
Dá-se
para que o outro
entre-abrindo-se ao presente
também dê.
Affonso Romano de Sant’Anna
"... E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente.
Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros.
Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.
Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre."
Miguel Sousa Tavares
“Vivi, olhei, li, senti...
Terás então de ler de outra maneira,
Como, Não serve a mesma para todos,
cada um inventa a sua, a que lhe for própria,
há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir
mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem
que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a
corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar
à outra margem, a outra margem é que importa,
A não ser, A não ser, quê, A não ser que esses rios não tenham
duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela,
a sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua,
a margem a que terá de chegar.”
José Saramago,
in A Caverna
Alegria é um vento
que nos levanta do piso
E nos deixa em outra parte,
Um lugar em desaviso.
Não traz de volta, voltamos,
Sóbrios, depois de um tempo.
Novatos para uma tarde
Na terra do encantamento.
Emily Dickinson in: Livro de Horas
na tradução de Ângela Lago
Mistério
Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.
Há vozes que correm nos ventos clamando por mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome
E eu olho para as árvores tranqüilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.
Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.
Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência
Na ânsia de saber quem grita.
Adalgisa Nery
Campo-santo
Na minha terra a morte é minha comadre.
Subo a rua Goiás, atrás de coisas miúdas, um chinelo, uma travessa, uma bilha nova,
e à medida que subo, mais chego perto do campo
onde dormem sem sobressaltos o pai, a mãe, a irmã,
a menina que no segundo ano se chamava Teresinha.
A grande tarefa é morrer.
Até lá rondo os muros e em qualquer parte da cidade oriento-me
pela mão estendida do Cristo de mármore preto do túmulo do coronel.
No cemitério é bom de passear.
A vida perde a estridência, o mau gosto ampara-nos das dilacerações.
A gradinha de ferro defende o exíguo espaço, onde mais exíguos os ossos se confinam,
ossos que andaram, apontaram e voltaram a cabeça
e sustentaram a língua e os olhos e fizeram o arcabouço para a voz sob o sol:
‘santo remédio, erva-de-bicho, dá na beira do rio’.
O mistério não me fulmina porque a inscrição tem erros
e no túmulo de Maria Antônia – que morreu por mão do marido –
os pedidos maiores são de emprego.
Enegrecidas de chuva e velas, adornadas de flores
sobre as quais sem preconceito as abelhas porfiam,
a vida e a morte são uma coisa só.
Se um galo cantar e for domingo, será tanta a doçura que direi:
vem cá, meu bem, me dá sua mão, vamos dar um passeio,
vamos passar na casa de tia Zica pra ver se Tiantônio melhorou.
Ressurgiremos. Por isso o campo-santo é estrelado de cruzes.
Adélia Prado
O coração disparado (1978). In: Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991, p. 173
Memória
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Carlos Drummond de Andrade
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