“Vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco” (Mc. 6,31)
É comum medir as pessoas pela sua capacidade de trabalhar, produzir. Por que não definir as pessoas pela sua capacidade de descansar? Só quem aprendeu a arte de descansar sabe trabalhar e relacionar-se com verdadeiro humanismo. “Diz-me como descansas e eu te direi como trabalhas e tratas os outros”.
O descanso humaniza o trabalho e o clima das relações que cultivamos com os outros. Descansar é, portanto, uma questão de justiça social, um imperativo de caridade fraterna. Muitas vezes os outros são obrigados a pagar a fatura do nosso cansaço, do ativismo em que nos envolvemos. Tornamo-nos “cansativos”.
Só quem vive reconciliado, em 1º lugar consigo mesmo, é que pode descansar como Deus manda.
O descanso não é uma fórmula mágica de relaxação dos músculos e nervos, uma receita automática de ritmo biológico. É sobretudo um modo construtivo de encarar a vida, um clima de paz interior que se cultiva, um coração disposto a amar em todas as estações, sem condições nem fronteiras. Não se trata de ociosidade egoísta, mas do cultivo da paz e da alegria, ao serviço dos outros.
Na sociedade contemporânea, o trabalho invadiu também o domínio do lazer e do tempo livre; estes devem ser, acima de tudo, “produtivos”. Para muitos, para tirar o máximo proveito do “tempo livre”, é preciso planejá-lo e organizá-lo. Férias e fins-de-semana são admitidos não como um fim, mas simplesmente porque aumentam a produtividade. O excesso de “stress” é inimigo do bom desempenho.
A própria palavra “entretenimento” indica o desejo de não parar. É a busca de algo que nos distraia para que não possamos estar totalmente presentes. A diversão nos mantém na superfície de nós mesmos, evitando o confronto com as grandes questões da vida (medo de confrontar-nos com as questões vitais de nossa existência; medo de deixar aflorar situações não resolvidas ; medo do contato com o que é essencial na vida...).
A pergunta que as pessoas fazem no descanso “o que vamos fazer hoje?”, já vem marcada pela ansiedade. E sonhamos com longevidade quando não sabemos o que fazer numa tarde de domingo. É altamente significativo que a Sagrada Escritura, logo no início do Gênesis, nos apresente Deus a descansar dos trabalhos da Criação (Gn. 2,2-3).
Repousar é uma invenção que tem a marca do próprio Deus Criador, uma ocupação digna de Deus, sumamente útil. O preceito do repouso sabático do povo de Israel é um ponto fundamental da aliança entre Deus e o povo eleito (Ex. 31,13). A Carta aos Hebreus sublinha que Deus vive no “descanso eterno”. A infinita solicitude de Deus por toda a humanidade é exercida com suma paz e serenidade, em clima de dinâmico descanso.
O descanso é fundamental para a afirmação de Deus como o Senhor de todos e de toda a criação. O sábado faz cessar os trabalhos cotidianos e conceder uma folga. É um dia de protesto contra as servidões do trabalho e o culto ao dinheiro. É necessário dar ao descanso a força de transformação e de profecia da meta última que nos espera, ou seja, o “repousar de nossos trabalhos” em companhia das obras realizadas com o Senhor.
Por que não encarar os tempos de descanso neste mundo como uma antecipação e um ensaio do descanso eterno, do repouso amoroso em Deus, que continuamente age para o nosso maior bem? Viver na presença de Deus é caminho certo para viver descansado.
“Fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em Ti” (S. Agostinho)
Todo esforço precisa seu descanso, toda atividade pede uma parada. Não há tensão que não exija um relaxamento, nem atividade continuada que não peça uma recreação. Os cansaços acabam nos revelando que em nossa vida ativa estamos amputando certas dimensões do humano. Assim, o descanso, em seu sentido nobre, impede que nos convertamos em meros trabalhadores estressados; ela nos arranca de nossa existência maquinal.
É sintomático o fato de recorrermos frequentemente ao uso da linguagem da máquina para expressar o que buscamos com o descanso: “desconectar”, “tirar da tomada”, “recarregar a bateria”, “recuperar a energia”, “abastecer o motor”... Sutilmente, expressamos deste modo como nos percebemos em nossa realidade cotidiana e até que ponto estamos suportando níveis intoleráveis de saturação, de ativismo...
Devemos buscar, em cada circunstância, fazer do descanso uma ocasião de subversão de valores, de questionamento de nossa prática cotidiana, de enraizamento de nossa missão... enfim, de vivê-lo à maneira de Jesus Cristo.
Segundo o evangelho de hoje, as jornadas de Jesus nos evangelhos parecem ser muito esgotadoras: muitos enfermos lhe são apresentados para que os toque e os cure, são muitas as pessoas que se aproximam para escutá-lo, é cobrado em todos os lugares por onde passa, os conflitos com os fariseus... Jesus sentia os cansaços e as pressões, mas ao mesmo tempo sabia fazer “paradas” para recuperar as forças, para retomar o contato com o sentido de sua vida e de sua missão, para ser Ele mesmo.
Ele possuía uma lucidez que proporcionava uma visão profunda das coisas, no clima de uma paz sempre buscada. Para Jesus, o descanso, entre outras coisas, era um momento de restauração e reabilitação pessoal que lhe permitia mergulhar de novo no cotidiano com maior criatividade.
“Vinde sozinhos para um lugar deserto...” O descanso não é uma “des-conexão” , senão uma “conexão” com aquilo que é o impulso fundamental de nossa vida cotidiana. O descanso possibilita afastar-nos do rotineiro e nos faz caminhar ao deserto interior, onde podemos dirigir um olhar contemplativo sobre a vida cotidiana. Nele nos desprendemos do presente e de sua urgência tirana.
Por mais descansos que tenhamos, há cansaços que só se aliviam através do encontro consigo mesmo, e há descansos que só se conseguem quando nos reconciliamos com o que somos e vivemos. No deserto nos personalizamos, resgatamos nossa identidade; nele temos a chance de ver a realidade sem instrumentalizá-la, gratuitamente. E só no gratuito é que descansamos.
O descanso nos conserva humanos; ele ajuda a recuperar um ritmo de vida mais humanizante (recupera a pessoa e sua capacidade de estabelecer relações gratuitas com outras pessoas, com a natureza e seus ritmos...). Não basta simplesmente poder folgar; ter acesso ao verdadeiro descanso é recuperar o sentido da gratuidade das nossas atividades e que melhoram a vida e a convivência.
O descanso inspira, nos faz criativos, porque toca as profundezas de nós mesmos e das atividades rotineiras. “Viver descansadamente” é encontrar um descanso, uma paz interior, uma quietude, uma consolação, uma satisfação na vida e nas atividades, e que tem sua raiz na comunhão com Deus que trabalha e descansa. A vida do “contemplativo na ação” é uma vida ativa vivida “descansadamente”, ou seja, na presença de Deus, com o coração centrado n’Ele, fazendo somente Sua Vontade...
Texto bíblico: Mc. 6,30-34
Na oração:
“Descansar é uma arte. Viver descansadamente, uma arte ainda mais delicada” (J.A. Guerreiro)
- seu descanso: tempo de humanização ou mais um stress na sua agenda?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
15.07.2012
“Se você não mover os pés, não reconhecerá o ritmo da vida”
A palavra “caminho” concentra em si uma das mais profundas experiências do ser humano, revela uma das experiências mais primitivas na sua arte de viver. Viver é caminhar. Em nossas entranhas, fomos feitos com “fome de estrada”. Nascemos com essa inquietude: nossa vida é uma longa jornada. “Temos fome e sede de estrada, e ela está ardendo por dentro”.
Qual é o caminho da vida? É a própria vida, ou seja, o modo como se vive constitui o caminho da vida ou a vida como caminho; isso revela que cada ser humano é essencialmente “viator”, é um caminhante; ele não recebe a existência pronta; não possui ainda a vida em plenitude.
Mais importante que percorrer um caminho é “fazer caminho”. Percorrer um caminho é andar por sendas abertas por outros e já palmilhadas pela tradição. O risco é menor e a certeza mais consistente.
Abrir caminho é explorar o desconhecido, enfrentar perigos e correr riscos. Isto constitui o “meu caminho” e a “minha direção” na vida. Não se trata mais de um caminho como algo já feito e construído do qual fazemos uso; trata-se de um caminhar, ou seja, auscultar e seguir os apelos que emergem do coração da própria vida. Nosso caminho pessoal tem de ser desbravado com criatividade, ousadia e destemor. Fazemos o nosso caminho a partir de um centro que é nossa individualidade irrepetível, nossa personalidade. Em outros termos: nunca haverá um simples uso de um caminho feito por outros. Cada um tem de caminhar. Cada um tem de ser caminho.
“Não tenho caminho novo. O que tenho de novo é o jeito de caminhar” (Thiago de Mello).
A Sagrada Escritura é atravessada pela revelação de um Deus que também empreendeu um caminho em direção à humanidade. O ser peregrino, por parte do ser humano, corresponde ao ser peregrino por parte de Deus. O caminho se converte, então, em caminho para um encontro mútuo, um encontro de dois peregrinos.
Também o cristianismo sempre foi entendido como Caminho e Seguimento de Jesus Cristo. As diferentes espiritualidades são compreendidas como caminhos dentro do único Caminho que é J. Cristo. Os Evangelhos, portanto, não ensinam chegadas, só partidas. Esse é o desafio: “entrar” no caminho de Jesus é viver em terra de andanças. É a pura alegria de caminhar e nesse caminhar a vida desabrocha como verdadeiramente humana. Nesse caminhar descobre-se Deus e com Ele todo o sentido do universo.
Guimarães Rosa dizia que a coisa não estava nem na partida e nem na chegada, mas na travessia. A experiência do seguimento de Jesus é “experiência de travessia”, onde cada um constrói seu caminho diferente, original, não-normal... como Cristo.
No seguimento de Jesus não há caminho, mas caminhos; não há traçado comum, mas trajetórias diferentes, ainda que confluentes. São caminhos de cristificação.
Jesus, o Homem dos Caminhos, chama para uma Vida nova. Chama na vida e para a vida e põe as pessoas em movimento, a caminho. A “pegada” que Ele deixa ao passar é sua própria Vida partilhada.
Jesus é o homem que se definiu. Ele tem um sonho, um projeto. E surge diante das pessoas com força pessoal capaz de sacudilas e colocá-las em movimento. Ele “passa” e sua presença as atrai arrancando-as da acomodação. Faz-se do chamado um caminho, quando se partilha a vida com quem chamou. Responder ao chamado feito por Jesus significa tornar esse chamado um caminho de entrega e de serviço.
O Evangelho de hoje (15º domingo do Tempo Comum) confirma que a missão requer andanças. A forma de realizar a viagem identifica o discípulo como representante do Reino. A disponibilidade para colocar-se em marcha deve ser total, imediata e sem distrações. Não há nada imprescindível para o trajeto senão a vontade de executar o percurso; as autênticas necessidades estão do outro lado do caminho, de maneira que Jesus nos mobiliza na atitude do despojamento como estratégia que evita o imobilismo e a lentidão do deslocamento.
“Nada para o caminho” favorece a fixação unicamente no propósito fundamental da marcha. Há uma exceção: “um cajado somente”. O cajado exclui, neste contexto, qualquer significado associado a mando, violência, poder, direção. A necessidade do cajado adquire sentido por sua relação ao caminho e por sua condição de símbolo do caminhante. O cajado identifica o discípulo em sua missão itinerante e repele a sedução do sedentarismo.
Os convites de Deus são absolutos e constantes. Se estamos apegados ao que temos, jamais seremos capazes de “fazer estrada com Deus” e participar da preciosa vida que Ele nos oferece.
Pioneiras são as pessoas que vão a lugares em que ninguém esteve antes: “gente de fronteira”.
“Peregrino, peregrino, que não sabes o caminho: aonde vais? Sou peregrino de hoje, não me importa onde vou; amanhã? Nunca talvez. Admirável peregrino, todos seguem teu caminho” (Manuel Machado).
Na estrada do peregrino, há o despojamento, a pobreza, por vezes a fome e a sede, os caprichos das estações, a incerteza dos dias de amanhã. Há a liberdade do espírito, horizontes infinitos, sem limites nem constrangimentos, os ímpetos de adoração, de oblação, de ação de graças. Há o imprevisto, o acontecimento inesperado, favorável ou adverso, que é o melhor e mais seguro dos sinais de Deus, que comanda o ritmo da marcha, as paradas, as estadias, as partidas, as mudanças de rumo ou itinerário. Há o encontro com “fiéis e infiéis”, companheiros que só por algum tempo “seguem caminho”, ou companheiros que se mantém fiéis, amigos que ajudam, inimigos que espreitam, gatunos que roubam, pobres que compartilham o mesmo pão.
Quando compartilhados, os caminhos transformam os caminhantes. As pessoas aprendem a se desfazer do supérfluo, a acelerar ou retardar o passo, a partilhar dramas, a ouvir e a falar, a experimentar a humildade de pedir acolhida... Enfim, achegar-se ao próprio coração.
Finalmente, a Estrada aproxima o peregrino cada dia, a cada instante, da meta ainda escondida, mas certa. Ao voltar-se para trás, ele se dá conta de que o itinerário foi realmente maravilhoso, que a experiência o transformou, que está mais “puro”, mais “livre”, mais “autêntico”... numa palavra, que Deus, que está no têrmo, já palmilhava a Estrada com Ele.
Textos bíblicos: Mc. 6,7-13
Na oração: Jesus das estradas poeirentas
“Dá-me percorrer contigo, Senhor, tua terra de andanças. Dá-me seguir-te a Ti somente.
Tu passaste deixando tuas “pegadas” no pó da estrada, e sem perguntar “por que” muitos te seguem. Vás sem nada, peregrino, caminhando qual romeiro; e vás chamando seguidores, que te seguem sem nada levar. Quem se atreve a pisar descalço tuas pegadas, sempre em marcha? A cidade não é teu caminho, é dura para as tuas sandálias. Gostas de deixar na terra a marca de tuas pegadas.
Senhor dos Caminhos, que tiras as pessoas da segurança, das suas casas, de seus bens... e as atrai para seguir teu passo, feito atalho estreito, um convite para ir onde quer que vás.
Quero ser caminhante, de coração pobre e livre, feito tenda aberta em teu chamado. Amém!”
- Nas nossas vidas acontece algo de verdadeiro e belo quando nos dispomos a buscar dentro de nós mesmos a razão da nossa existência: falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar...
- No “mapa espiritual” de nosso interior ainda existe uma “terra desconhecida”, que proporciona interesse à vida, suscita curiosidade, nos põe a caminho... Grandes surpresas interiores estão à nossa espera, e a capacidade de continuar procurando é que dá sentido ao esforço e vigor à vida.
- A nossa vida é um êxodo, um sair constante de uma realidade para entrar em uma outra realidade nova.
O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
11.07.2012
“Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares” (Mc. 6,4)
Jesus Cristo continua a nos surpreender enquanto referência inspiradora da grande ousadia humana. Ele fez brilhar a “novidade” de Deus nas vilas e cidades da Palestina. Desde seu cotidiano na vida oculta até sua corajosa atividade pública, Ele nos ajuda a reler o Evangelho com olhar novo e coração abrasado. No encontro com as pessoas, com os conflitos, com os momentos de alegria e com os riscos de sua missão, Ele mostra vigor e coragem de ir além.
Sua postura de mestre e sua atuação desencadeiam no seu povo uma crise, ou seja, rompe com a “normalidade doentia” das pessoas e se revela imprevisível e desconcertante. Na realidade, o ser humano tende a instalar-se, acomodando-se facilmente ao conhecido e se deixando levar pela rotina que evita sobressaltos; isso lhe confere uma certa sensação de segurança e tranquilidade: “para quê e por quê mudar...?” E isso ocorre também com suas ideias, crenças, cosmovisões...
Habituado a ver a realidade a partir de uma determinada perspectiva, custa-lhe abrir-se a outras percepções, novas ou desconhecidas. A crise que Jesus introduz entre os seus visa redimir o ser humano, isto é, tirá-lo de seu horizonte limitado e estreito para elevá-lo a um horizonte amplo, próprio de Deus.
A crise irrompe quando os dois horizontes se entrechocam. Jesus proclamou uma mensagem que constituía uma crise radical para a situação social, religiosa, política e humana da época. Proclama o Reino de Deus.
No Evangelho de hoje, Jesus provocou, por suas atitudes e palavras, um cisma nos seus conterrâneos, isto é, produziu uma crise que levou a uma ruptura-decisão pró ou contra Ele. Jesus é realmente a crise do mundo. Ele veio para provocar uma derradeira decisão das pessoas pró ou contra Deus, agora manifestado em sua pessoa, em seus gestos e em suas palavras.
Ele não foi simplesmente a doce e mansa figura de Nazaré; foi alguém que tomou decisões fortes teve palavras duras e não fugiu a polêmicas.
O relato de hoje é surpreendente. Jesus foi rejeitado precisamente pelos seus parentes e familiares. É a primeira vez que Ele experimenta uma rejeição coletiva, não dos dirigentes religiosos, mas de sua comunidade familiar, com quem convivera tanto tempo. Jesus se sente “desprezado”: os seus não o aceitam como portador da mensagem profética de Deus. Por isso, fecham-se em sua ideias preconcebidas a respeito do seu vizinho Jesus e resistem a abrir-se à novidade revolucionária de sua mensagem e ao mistério que se revela em sua pessoa. Porque estavam acostumados a ouvir sempre o mesmo, rejeitam-no por ensinar “coisas novas”.
Mas Jesus não se deixa domesticar e nem se acomoda às expectativas de seu povo. Aos olhos de Jesus nada é mais perigoso para o espírito humano do que vidas satisfeitas, que não investem seu tempo alimentando sonhos e esperanças; mentes sem inquietações, sem o impulso das buscas; corações quietos, acomodados, ajustados, medrosos, covardes, petrificados, sensatamente contentes com aquilo que são e têm.
Há uma “normalidade doentia” que reprime a nobreza potencial no humano. Para Kierkegaard, “ser um homem normal é ser doente”. Há uma saúde fictícia, caracterizada pela ausência de um sentido maior, pela atração ao conformismo coletivo, pelo medo de expor-se, de arriscar-se a ser... pela incapacidade de assombrar-se diante dos acontecimentos e encontros cotidianos. “Tudo torna-se tão normal... e sem sal”; nada afeta, nada causa admiração ou espanto.
Vida morna, sem sabor, sem criatividade; incapacidade de transfigurar a existência cotidiana. Aliado ao conformismo e à segurança aparece o medo da mudança. A pessoa fecha-se no conhecido por medo do desconhecido. Marcada pela “normose”, ela fica presa no interior de uma pequena toca.
Para quem não está disposto a ousar transparecer, a prisão da toca pode ser mais atraente do que o desconhecido proporcionado pela liberdade. “Em uma cabeça com medos não há espaço para sonhos”.
O medo das trilhas criativas da originalidade gera hábitos fechados, ideias fixas, conservadorismo, rotina sem sentido, ações insensatas (sem sentido, mecânica, automática, sem novidade...); sabe “fazer” mas não sabe “criar”; faz o que os outros mandam e faz bem, mas sem paixão, sem emoção, sem inspiração...; é perfeccionista, para satisfazer as expectativas dos outros e não ser criticado... Por não viver a partir do interior, a pessoa deixa de ter horizontes, de sonhar, de desejar...; tem medo de fazer a “travessia” pois não tem direção, não tem projeto. Daí o desânimo existencial.
O desafio é este: ousar ir além ou se conformar, evoluir ou estagnar, ser original ou mero repetidor...
Existe em nós um desejo de plenitude e, ao mesmo tempo, o medo de arriscar, a pulsão de vida e a pulsão de morte. A normose está relacionada com a pulsão de morte. É a estagnação ou morte do desejo, impedindo o fluxo da vida.
Somos convocados a existir, a trazer uma novidade, um canto novo, uma dança nova... Não nascemos para morrer, nascemos para ser. O ser humano é um ser do caminho; cada um se tornará um ser plenamente humano à medida que investir as reservas de criatividade presentes no próprio interior.
Se a pessoa for capaz de escutar o desejo profundo que a habita e atravessar os medos paralisantes, alcançará uma identidade pessoal, ou seja, a capacidade de ser ela mesma. Isto significa romper com os padrões que atendem às expectativas dos outros, transgredindo com o legalismo e o moralismo impostos a partir de fora.
Os “não-normóticos” são aqueles que fazem a experiência da “outra margem”, vislumbram o outro lado, vão em busca das surpresas, das novas descobertas, tocam as raízes mais profundas do próprio ser.
É preciso sair dos trilhos conhecidos e viciados da normose para tomar as desconhecidas e criativas trilhas evolutivas, nas quais o ser humano enfrentará seus medos e florescerá com vigor e ternura; urge fazer o êxodo da estreiteza de nosso ser à largueza do coração.
É uma grande aventura tornar-se humano, sujeito da própria existência, ser dotado de um semblante único e assumir a direção dos próprios passos, realizando assim, a aspiração profunda de seu coração. O novo sempre vem e sempre nos surpreende. E o risco é a essência de uma vida espiritual integrada. O risco fortalece, revitaliza, faz fluir a adrenalina através da corrente sanguínea de nossa vida, faz com que de novo mereça a pena viver a vida.
Como são humanamente repletos de vida aqueles que ainda se encantam com as buscas! Sua vida é penosa, sem dúvida, mas repleta de razões, fervor, criatividade, entusiasmo e vitalidade. O ser humano é um eterno enamorado de esperanças, um ousado, um contestador de tudo.
Ousar também tem a ver com “transgredir”. Nós cristãos seguimos Aquele que é considerado o maior “transgressor” da história: Jesus Cristo.
Como o próprio Jesus, precisamos cultivar a arte de transgredir a inércia, o “pensamento único”, a normalidade petrificada. Há sempre um “mais além” com que podemos sonhar. Transgredir é transcender, é abrir estradas fechadas, é alargar horizontes estreitos, é soltar os desejos algemados.
Transgredir é inventar alternativas. E ousar é transgredir em favor da humanidade.
Texto bíblico: Mc. 6,1-6
Na oração:
Dar nomes às normoses presentes na sua vida.
“Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?” (foi criativo, inventivo...)
- O que asfixia, tira a criatividade e o ânimo nas atividades assumidas no dia-a-dia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
03.07.2012
“Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que tu ligares na terra...” (Mt. 16,19)
O texto nos ajuda a ler nossa vida. Afirma-se nossa identidade; e a identidade de uma pessoa é dada por aquilo que é sólido, consistente... no seu interior, que não se desfaz com as adversidades do mundo no qual vivemos (crises, fracassos...).
Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.
“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas. A própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que cada pessoa tem, para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis golpes da luta pela vida. É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser.
A oração é a chave interior que faz a pessoa chegar até o próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado mais positivo de si mesma, mas o próprio Deus. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde a pessoa mergulha no silêncio, à escuta de todo o seu ser.
Temos em nossas mãos as chaves da vida. O que fazemos com elas: podemos abrir ou fechar, ligar ou desligar, atar ou desatar.... Ter a chave da vida: abrir ou fechar as portas do futuro, das relações, dos sonhos, da missão... Dar direção à vida. Atar e desatar os nós da vida.... Aqui está o grande desafio: abrir-se ou fechar-se. Abrir-se à vida, ao novo, ao outro, ao desafiante ou diferente... ou fechar-se...
Deus confiou e colocou em nossas mãos a chave da vida. Ele não impõe, não obriga. Corre o risco de criar-nos livres. Aqui está a grandeza do ser humano: optar por uma vida aberta ou fechada, ser nó ou desatar, ligar ou desligar, expandir ou retrair... Sempre há o perigo de construir, dentro de nós, um condomínio onde portas se fecham, chaves se perdem, segredos são esquecidos... e, com isso, mergulhamos na mais profunda solidão.
Pior ainda é quando confundimos o “poder das chaves” com a “chave do poder”. Quem tem a chave tem o poder. “Ter poder”: esta expressão ecoa forte no coração humano. O poder deslumbra, ofusca e pode facilmente se tornar o centro da identidade de uma pessoa. O poder é objeto de desejo de extraordinária magnitude e fascínio para o ser humano. Seu brilho encanta e seduz; sua proposta é extremamente atraente; para muitos, ele é a suprema ambição. Não há ser humano que não tenha sido tentado pelo canto desta sereia.
O coração humano sofre ao ver-se dominado por este desejo de poder que intoxica suas aspirações mais profundas de comunhão e solidariedade. A vida se torna uma arena de disputas. Talvez não exista relação mais ambivalente que aquela existente entre a pessoa e o poder. Os relacionamentos são balizados, tanto no espaço institucional como nos encontros interpessoais, pela disputa do poder; o exercício do poder se expressa nas atitudes de dominar, manipular, subjugar e definir tudo segundo os próprios interesses.
A perversidade do coração humano encontra no exercício do poder o campo mais propício para a revelação de suas mazelas, autoritarismos, vaidades... Em nome do poder gera-se a morte, a divisão, a solidão.
Nenhum exercício do poder é evangélico. Não há nada mais contrário à mensagem de Jesus que o poder. Jesus não transfere “poder” a Pedro; reforça nele a liderança para o cuidado e o serviço aos outros. Nenhum ser humano é mais que outro, nem está acima do outro. “Não chameis a ninguém de pai, não chameis a ninguém chefe, não chameis a ninguém senhor, porque todos vós sois irmãos”. A única autoridade que admite é o serviço. Jesus não exerceu poder porque o poder nunca é mediação para a libertação do ser humano (seja poder político, religioso, ou qualquer outra expressão de poder).
Jesus despoja-se do poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas”. Sua autoridade é caminho para o serviço e a promoção da vida. Por isso a autoridade de Jesus não tem nada a ver com o poder que domina ou a liderança que se impõe. Jesus tem “autoridade” porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir.
Quem tem “poder”, ao contrário, o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, decide pelo outro... A palavra “autoridade” vem do verbo latino “augere”, que significa literalmente: aumentar, acrescentar, fazer crescer, dar vigor, robustecer, sustentar, elevar, levantar o outro, colocá-lo de pé, impulsioná-lo para frente... É a qualidade, a virtude e a força que serve para apoiar, para alentar, para ajudar as pessoas a serem elas mesmas, para fazê-las crescer, desenvolvendo suas próprias potencialidades.
“Autoridade” significa recuperar a autoria, devolver a autonomia àquele que está impedido de optar e de fazer seu caminho. Nesse sentido, a autoridade nunca é perigosa para a pessoa, jamais é imposição ou atentado contra sua legítima autonomia ou liberdade. A autoridade é essencialmente amor.
Também o exercício da autoridade deve ser medido pela palavra e pela obra de Jesus Cristo. E não pode ser de outra maneira, já que, se a origem da autoridade na Igreja é divina, também deveria ser “divina” o modo de exercê-la. Se toda autoridade provém de Cristo, deveria ser exercida à maneira como Cristo a exerceu, e isto vale tanto para aqueles que detém uma autoridade instituída como para aqueles que, devido às suas qualidades e carismas, exercem, de fato, autoridade de serviço nas comunidades cristãs.
Neste “como” se exerce e deve ser exercida a autoridade na Igreja está o desafio que as comunidades cristãs devem assumir. O Evangelho de hoje é claro quanto à maneira como se deve exercer a autoridade: a partir do serviço. Aquele que serve não domina, convertendo-se no centro, mas anima e integra o diferente. Aquele que serve, despoja-se de seus interesses privados e investe sua vida em benefício de todos.
Isto significa que todos aqueles que exercem a autoridade hão de voltar sempre ao manancial de onde brota o autêntico ser da Igreja, que é a palavra e a ação de Jesus. Não deve existir autoridade na Igreja que esteja por cima da ação do Espírito; ela não deve buscar outra coisa a não ser a vinculação de todos os membros da Igreja no amor e no serviço mútuo. Uma autoridade que se desvincula do “carisma de autoridade” do Espírito tende sempre a converter a instituição em um fim, esquecendo que só pode ser justificada na medida em que serve à obra do Espírito.
A autoridade deve ser exercida no marco da visão de Igreja que o Vaticano II nos deixou, ou seja, potenciar a comunhão. É urgente que o exercício da autoridade na Igreja vá assumindo os traços característicos de uma Igreja de comunhão, se queremos ser fiéis ao “modo de proceder” de Jesus.
Texto bíblico: Mt. 16,13-19
Na oração: Muitos caminhos conduzem à própria interioridade. A oração é a chave de acesso; ela é esse silencioso exercício de deixar que Deus me habite para que eu possa abrir as portas do coração e janelas da mente àqueles com quem me encontro.
Onde o Deus de Jesus tem liberdade de atuar, ali desaparece todo resquício de poder que desumaniza.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
26.06.2012
“João é o seu nome” (Lc. 1,63)
Esta frase é uma mensagem da gratuidade e bondade de Deus. João é um nome muito especial. Nele são guardadas muitas e importantes lembranças. De fato, o nome “Yohanan” significa “Deus se mostrou misericordioso”. João é um dom gratuito de Deus, pois está além dos cálculos humanos; por isso, pertence plenamente a Deus. Nem sempre Deus elege o tradicional, o velho costume, o caminho trilhado. Agora nasce um tempo novo: o Espírito vai por caminhos novos, que nem sempre são fáceis de conhecer.
É Deus quem toma a iniciativa e chama pelo nome. O “nome” encerra toda a verdade da pessoa e, ao mesmo tempo, todo o mistério da sua relação direta com Deus. Na Bíblia, o nome é algo dinâmico, é um programa de vida. A troca de nome implica uma missão que deve ser realizada pela pessoa (Gen, 17,5; Jo. 1,42). Um nome novo: uma aventura que começa; uma história a ser construída. O nome é ponto de partida e de chegada na relação com Deus.
Quando Deus nos chama à vida, Ele não revela logo tudo o que quer: apenas pronuncia o nome. A Palavra de Deus pronunciada sobre cada um de nós revela a nossa verdadeira e plena identidade. É preciso crescer na consciência de que o próprio nome tem uma história e manifesta uma identidade única, irrepetível, original. O nome próprio está relacionado com nossa realidade pessoal, responsável, criativa e livre. Essa identidade vai sendo elaborada ao longo de nossa história pessoal com os avanços e recuos, vitórias e fracassos, as alegrias e os sofrimentos... que vão pontilhando nossa existência e formando esse ser único que somos nós.
Cada um de nós descobre ser chamado em nossa vida. O fato de sentir, em nossos desejos, que estamos insatisfeitos, cultivar aspirações sempre novas, procurar entender quem somos, o que devemos fazer, o que nos torna realmente felizes..., no fundo é um contínuo chamado pelo nome.
Deus pede a cada mergulhar no “fluxo da vida”, evitando deixar que uma só das Suas palavras, do Seu chamado, possa cair no vazio. A dinâmica da relação com Deus passa através da minha história, das minhas alegrias, dos meus sofri-mentos, e das minhas perguntas: “Quem sou eu?”, “O que quereis de mim?”. Não posso permanecer indiferente. É preciso ter coragem de perguntar: “Quem me chama?” e “a quê me chama?”; pedir ajuda para conseguir entender, reconhecer, descobrir o próprio nome. Deus, no momento em que me chama pelo nome, me revela a mim mesmo. Assim, meu nome se torna a minha própria vida, o meu patrimônio existencial, a minha realidade.
A palavra “nome”, na linguagem bíblica, significa aquilo que torna a pessoa única. O nome é um símbolo que exprime a individualidade de cada um. No nome está toda a pessoa. O nome é a pessoa. Interessar-se por conhecer o nome é interessar-se pela pessoa; é o primeiro passo para o encontro pessoal; é pelo nome que nos identificamos. Os orientais, por exemplo, não dizem o seu nome a qualquer um. Só aos amigos, aos seus mais íntimos. Conhecer o nome de alguém, para eles, é conhecer a pessoa toda. Fazer saber o seu nome é prova de amizade.
Cada um de nós tem um nome, que é próprio, não comum. É de uma pessoa. Ele expressa o nosso ser, indica alguma coisa a realizar, uma vocação, um apêlo a responder.. Somos chamados. É isso que significa ter um nome. Nós realizaremos nossa vocação, sendo nós mesmos, com nosso modo de ser, nossas possibilidades, nossa originalidade. Ninguém a realizará por nós. Ser fiel ao nome é ser fiel à própria vocação.
Um nome, quando ouvido pela primeira vez, é apenas um “nome”. Mas, na medida em que se convive com a pessoa, o nome se torna a essência da pessoa, revela algo de essencial. No nome se espelha a experiência de uma força e de uma vontade. Pronunciado o nome, evoca-se a profundidade, o ser.
O nome é referência reveladora da verdade da pessoa. É a porta de entrada de cada história particular. Nos nossos encontros, no primeiro dia, carregamos todos um crachá com o nome. Nós chegamos e procuramos a pessoa pelo nome escrito no crachá, até encontrá-la. Na hora em que a encontramos, nós não olhamos mais o crachá, mas levantamos a cabeça e olhamos o rosto. E o nome que, antes, era só um nome, torna-se agora a janela de um rosto, a revelação de uma pessoa. Na medida em que se aprofunda a convivência com a pessoa, maiores serão o significado e a densidade do nome dela.
Quando um nome é pronunciado, ou invocado, a “energia potencial” existente é transformada em “energia vital”. Basta dizer o nome e uma realidade pessoal se coloca diante de todos. Há nomes que geram recordações, saudades, reavivam sentimentos, atualizam propósitos, despertam compromissos. Esta é a razão quando se diz que alguém “tem nome”, ou seja, uma pessoa “de nome”. Por outro lado, “sujar o nome” significa prejudicar o caminho de alguém, com maledicências e mentiras. Zelar pelo próprio nome é abrir caminhos para encontros que efetivem a experiência de pertença e de sólida referência a Deus. Honrar o próprio nome é tornar-se servidor, pela conduta, da experiência da fé.
É preciso cair na conta de que tenho um nome, sou pessoa única e com características muito particulares. Eu tenho uma dignidade imensa: sou imagem e semelhança de Deus. Com essas características eu devo me colocar a serviço dos outros. Meu nome secreto, Deus o conhece!... “Eu darei... um nome novo, que ninguém conhece senão aquele que o recebe” (Apc. 2,17).
Deus sabe o meu nome: “Eu te gravei na palma de minha mão” (Is. 49,16).
Deus nunca pode olhar Sua mão sem ver o meu nome. E o meu nome quer dizer: “EU mesmo”. Deus garante a minha identidade: posso ser eu mesmo.
Deus investiu-se a Si mesmo em cada um de nós. Colocou-se no coração de cada um de nós. Ter recebido um nome de Deus significa tomar um lugar na história, uma missão a cumprir.
Texto bíblico: Lc. 1,57-66
Retorna ao preciso momento em que Deus-Pai te criou e escuta, o nome que Ele pronunciou sobre ti. Como te chamou neste momento?
Agora, sabendo o que Deus-Pai pensa de ti, poderias descobrir o teu nome? A tua identidade? Quais os teus “sinais digitais divinos”?
Que resposta darias de ti mesmo, agora, se um repórter te entrevistasse e te perguntasse: “Quem és tu?”
O que colocarias na tua carteira de identidade que te diferenciasse de todas as outras pessoas?
Quais seriam os teus sinais digitais mais originais?
Ser “João” é ser graça amorosa de Deus na vida e na história de tantas pessoas.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
19.06.2012
“”Anunciava-lhes a Palavra por meio de muitas parábolas...” (Mc. 4,33)
Retomamos o tempo litúrgico chamado “Tempo comum”. Cada tempo, cada dia, cada mês... com sua originalidade, novidade e surpresa, chamando-nos a fazer a travessia para descobrir o sentido da existência escondido na apressada rotina do cotidiano. Vivemos no tempo e desejamos a eternidade.
Para compreender o tempo de cada coisa e dar respostas ao que a vida pede e espera de nós, a liturgia nos faz mergulhar na luz da Palavra. A Palavra se faz tempo e se aproxima de nós, criando pontes, horizon-tes, chegando a lugares jamais imaginados ou tocados por nós. É no encontro com a Palavra revelada que brotam palavras criativas, carregadas de esperança e de sentido. Por que será que o Criador usou da Palavra para dar início à Criação? Quê mistério e força contém a palavra para merecer tanta exclusividade diante da Encarnação do Filho de Deus? (“E a Palavra se fez carne...” – Jo, 1,14).
“Nós somos palavras”. Temos respirado e respiramos palavras desde que nascemos. Basta abrir a boca que as palavras jorram. Povos de todos os tempos e lugares sempre chamaram a atenção para o vínculo que existe entre as palavras e a vida. Conhecemos expressões comuns que demonstram a força e o peso da palavra: “as tuas palavras me fizeram bem”, “me fizeram pensar”, “me feriram”, “me ajudaram a ver as coisas de maneira diferente”, “eu esperava essas palavras”, “eu precisava daquela palavra”, “nunca me esqueci das tuas palavras”, “agradeço pelo que você me disse”, “bastou-me aquela palavra”, “a tua palavra foi diferente”...
Muitas vezes, o presente mais precioso que podemos dar a uma pessoa é o de uma “palavra diferente”.
O futuro de uma amizade rica e enriquecedora depende daquela palavra.
As palavras promovem a circulação dos pensamentos e sentimentos com os quais as pessoas revelam a si mesmas, se expõem e se propõem ao encontro, dando a cada uma a possibilidade de semear em outros aquilo em que ela crê e ama. Um “falar-semear” que é o sentido belo do viver.
A amizade, o amor e todos os sentimentos fortes, tem necessidade de palavras. Esta é a nossa vida. Somos feitos para a comunhão, para unir as nossas vidas. É graças à força das palavras que derrotamos o silêncio angustiante da solidão, derretemos o gelo da indiferença, aprendemos a partilhar o ser e o ter. De modo particular os poetas, os amantes, os místicos e os filósofos perceberam, desde sempre, a força e a sedução da palavra.
Não possuímos nada que tenha, ao mesmo tempo, o poder e a leveza das palavras. As palavras podem mudar a vida, para o bem ou para o mal. Há palavras que ferem e há palavras que curam. Há uma palavra que constrói e uma que destrói uma palavra que comunica calor e luz, outra que semeia frieza, uma que infunde confiança, outra que o arrasa...
As palavras nos tocam e nos modelam; às vezes, elas nos tocam como brisa suave, às vezes como punhais, mas sempre nos deixando marcas profundas de estímulos ou de desânimo: sentimentos de alegria ou tristeza, de paz ou guerra, de tranquilidade ou inquietação, de fé ou descrença, de amor ou ódio... Sinceras ou falsas, pensadas ou espontâneas... são um de nossos maiores tesouros.
Há uma palavra pela qual tudo começa e recomeça, outra pela qual tudo termina, deixando o silêncio atrás de si. Depois de certas palavras, não resta mais nada a dizer. Todos conhecemos pessoas destruídas pelas palavras, como também pessoas reconstruídas, recriadas pelo toque das palavras. A palavra tem uma força ressurreicional. Todo encontro com o nosso semelhante revela a nossa relação com as palavras, as boas e as más, as que unem e as que dividem, as que consolam e as que amedrontam, as que curam e as que matam. “Morte e vida estão em poder da língua” (Prov. 18,21).
As palavras perdem força e criatividade quando não nascem do silêncio. O mundo está repleto de “papos” vazios, confissões fáceis, palavras ocas, cumprimentos sem sentido, louvores desbotados e confidências tediosas. Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a uma civilização que teme o silêncio Fala-se muito para dizer bem pouco. Jornais, revistas, tevê, outdoors, celular, redes sociais... há demasiado palavrório. Carecemos de poesia.
“Sim, senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que contam, as que sobem e baixam... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as...
Amo tanto as palavras... As inesperadas... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem... Vocábulos amados...
Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho...
Persigo algumas palavras. São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema...
Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as...
Deixo-as, como estalactites em meu poema, como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda... Tudo está na palavra” (Pablo Neruda)
No evangelho de hoje, Marcos afirma que “Jesus anunciava a palavra usando muitas parábolas...); Lucas completa: “as pessoas ficavam admiradas com as palavras cheias de encanto que saíam da boca de Jesus”. Com exemplos tomados da experiência dos camponeses, Jesus desperta nas pessoas a esperança e o sentido da própria existência: o decisivo é semear a Palavra que abre novo futuro e que anima. “Palavra viva” que carrega dentro de si uma força transformadora que já não depende mais do semeador.
Tal situação nos ajuda a considerar o mistério escondido naquela palavra que sai de nossa boca e de nosso coração de forma afirmativa, redentora... bendita. Quando assim conseguimos comportar com nossas palavras, estamos contribuindo, literalmente, para a “edificação humana” do outro.
É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Principalmente nos primeiros anos de vida. Como é importante para um adulto, um dia criança, ter escutado palavras ordenadoras de emoções, de autoestima! Essas palavras são bem-aventuradas, pois se tornam capazes de fazer crescer, sustentar, enfim, edificar pessoas mais saudáveis no convívio social, humano-afetivo, espiritual.
Formados e purificados pela própria Palavra no forno do silêncio, estaremos prontos para proferirmos palavras benditas, palavras que possuem um magnetismo especial, que libertam, acalentam, invocam emoções. Certas palavras nos acompanham durante muito tempo. Todos nos lembramos de palavras proferidas por pessoas especiais em momentos de dificuldade, que nos deram luz e força.
Portanto, na oração, cave palavras nas minas do seu silêncio, palavras carregadas de sentido e de ânimo; deixe que o Espírito lhe diga a “palavra” misteriosa, a “palavra diferente” reveladora de sua verdadeira identidade. Palavra divinizada que favorece o encontro, a proximidade e a acolhida mútua.
Para muitos místicos, as “palavras reveladas” são música. Eles as usam como quem toca um instrumento, porque elas são belas, pelo prazer que elas são e despertam no leitor-orante. Fernando Pessoa diz que a poesia é uma rede de palavras por cujas fendas se ouve uma melodia que faz chorar. Todo dizer poético aspira por um silêncio de palavras, para que a música seja ouvida. Podemos falar, então, do prazer do texto. O profeta Ezequiel “comeu” a Palavra e afirma: “eu comi e pareceu doce como o mel para o meu paladar”.
Como polpa de uma fruta madura na boca, basta provar o sabor da Palavra, antes mesmo de conhecer o seu misterioso sentido. É o Espírito que nos diz a “palavra” misteriosa. Porque não sabemos o que dizer, na oração deixamos o Espírito gemer em nós com suspiros profundos.
Texto bíblico: Mc. 4,26-34
Na oração:
Percorrer as palavras proferidas, normalmente, ao longo do dia: são palavras que elevam? curam? animam? Palavras marcadas pela esperança? Palavras carregadas de sentido? Palavras criativas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
15.06.2012
“ISTO É O MEU CORPO”
“A festa de Corpus Christi quer nos fazer recordar que CORPO é cálice, onde se bebe o vinho da alegria e da salvação, inserido no CORPO místico e cósmico de Cristo. Só haverá futuro digno quando todos os CORPOS viverem em comunhão, saciados da fome de pão e de beleza. (Frei Betto)
“Isto é o meu corpo” (Mc. 14,22), nos diz Jesus. Ele poderia ter dito: “Esta é minha vida, esta é minha história, eu mesmo...”. Mas diz: “Isto é meu corpo”; e, contido nele, sua maneira de estar na vida e de situar-se nela, seu modo de olhar, de sentir, de estar presente...
O único recurso de que Jesus dispõe antes de ser preso é seu próprio corpo. Não tem outra riqueza nem outro dom que oferecer. Esse corpo era sua vida, feita doação.
Como o corpo da mulher, capaz de conter e alimentar com seu sangue à criatura que carrega dentro de si, o Corpo de Jesus é um corpo aberto e vulnerado, quebrado e repartido. Constantemente doado.
No encontro com este Corpo podemos nos reconhecer e perdoar mutuamente, criar comunidade, multiplicar o amor e recolhê-lo para que nada se perca.
Como viveu Jesus em sua corporalidade a relação com Deus e com os outros e como nós somos convidados a viver?
Aqui precisamos encontrar a justa proximidade para nos relacionar com o corpo e estabelecer um vínculo sadio com ele. Afinal, nossas maneiras de relacionar-nos estão configuradas por ele. Não há experiência de amor, e por isso não há experiência de Deus e dos outros que não ocorra em nosso corpo.
O nosso corpo nos pede espaço, tempo, atenção, alimento e, sobretudo, nos pede descanso e bem-estar, inspiração e contemplação... O corpo não é só a unidade de nossos membros, mas a presença de nossa pessoa; por ele estamos e somos.
É com razão que se pode falar da sabedoria do corpo. O corpo não sabe mentir. Se desejamos conhecer nossa verdade num momento determinado, o caminho correto não é dirigir-nos à nossa cabeça em busca de explicações, mas perguntar a nosso corpo: “como você se sente?”
Diante de nossa tendência a “fugir” para o passado ou para o futuro, nosso corpo nos traz sempre ao presente. Diante de atitudes de nostalgia ou de ansiedade, a atenção ao corpo nos abre o caminho para viver a profundidade do momento, do aqui e agora, o único que temos realmente ao nosso alcance.
O corpo é o grande aliado na tarefa de ser pessoa, de conhecer-nos e de viver-nos de um modo adequado.
Uma boa concepção do corpo supõe evitar a parcialização, a polarização e a dicotomia e buscar a harmonia e a integração.
Para ter uma visão e intuição completa do corpo é necessário contemplá-lo em sua totalidade e em sua originalidade: é “meu” corpo; conheço-o e reconheço-o; sei descrevê-lo; não é um estranho para mim. Com, em e pelo corpo, vivo minha história, caminho pela vida e tenho minha aventura de crescimento e de maturação, de amor e de conhecimento, de encontrar-me com os outros e comigo mesmo, com meus desejos e minhas fobias, minhas alegrias e minhas dores, minhas esperanças e meus desesperos, minhas desilusões e minhas vitórias... Tudo isso está escrito em minha “carne”.
Este corpo me limita e me define. Cada corpo é original e irrepetível; o meu também.
Ele me situa no espaço e no tempo, me separa e me une aos outros; conhece o que é bom e belo e também o que é desagradável e mau. Meu ser profundo, meu ser essencial se manifesta, se abre para fora através de meu corpo. Os gestos, o olhar, o tom de voz são autenticamente a transparência do coração. O corpo é o espelho do meu interior.Não há dúvida que quando nos encontramos com uma pessoa rica em bondade, entrega generosa aos outros, simplicidade e humildade, de coração grande e capaz de perdoar, nos damos conta que seu rosto é luminoso, sereno, cheio de uma beleza única, interior; irradia alegria, serenidade, harmonia, paz...
O corpo é o companheiro inseparável de nosso caminho. É preciso começar por sentí-lo, percebê-lo, escutá-lo. Mas é preciso ir mais longe: podemos afirmar que o corpo se transforma em caixa de ressonância da “voz de Deus” que nos previne contra caminhos equivocados e nos orienta para uma vida natural e plena.
O corpo é “lugar” teológico, lugar da manifestação de Deus; neste sentido é morada do divino, habitação do Espírito enquanto participa, pensa, sente, deseja, decide.
Quem não escuta nem percebe seu corpo não pode compreender o sentido da vida, do amor, das relações... pois cairá no narcisismo de seu próprio ego.
Não é possível viver feliz sem relações amistosas e próximas com o corpo, para poder entendê-lo e expressar-se adequadamente com ele. Para conhecer-se é necessário acolher o corpo, querer o corpo, observar o corpo, olhar para dentro do corpo com atitude reverente.
Minha própria casa é meu corpo; o templo onde Deus se revela a mim. Só eu posso habitar e possuir meu corpo. Eu me identifico com meu corpo, sem o qual não posso viver. Deus anima meu corpo; mas não pode habitar em mim a graça de Deus sem a colaboração e a abertura de meu corpo.
Eu sou meu corpo animado, com vida e com sentido. Eu decido com meu corpo e graças a ele.
Nosso corpo constitui nossa presença no mundo; a acolhida do próprio corpo nos projeta para uma relação sadia com o corpo do outro. Segundo Mt. 25,31-43, é o cuidado do corpo do outro que determina nossa relação com Deus (Mt. 25,31-46). O corpo do ferido, do faminto, do preso... tornam-se “territórios sagrados” onde crescemos e nos humanizamos; são os “lugares” nos quais Deus se faz “totalmente, humanamente, concreto para nós”.
O corpo é um documento histórico: há corpo burguês e corpo proletário, corpo de cidade e corpo de roça; há corpos explorados e corpos que são só força de trabalho; corpos que são modelos anatômicos; os “corpos empobrecidos” gritam a Deus por justiça, por alimento, por saúde e por novas relações entre os humanos e o cosmos, gritam a Deus por viver.
O corpo desrespeitado, expropriado e dominado de muitas pessoas, clama a liberdade, a paz, a vida.
O corpo é lugar de êxtase e de opressão, de amor e de ódio, lugar do Reino, lugar de ressurreição.
O corpo é espaço de salvação, de justiça, de solidariedade, de acolhida, é lugar da experiência de Deus, da celebração, da festa, da entrega...
Texto bíblico: 1 Cor. 6,15-20 Mc. 14,12-16.22-26
Na oração: Você vive a relação com seu corpo como objeto de suspeita ou como lugar de encontro?
Sinta que você é um corpo de argila, mas um corpo que carrega o “Sopro” do Espírito.
Procure saboreá-lo internamente. E deixe atuar em você a força da inspiração e da expiração para que todo o seu corpo seja iluminado e plenificado.
“Tomai, Senhor, e recebei”, toda minha corporalidade, com suas pulsões, seus limites e sua energia profunda. Que não fique nada em mim onde Tu não entres. Nenhum quarto escuro nem fechado que não seja invadido por Ti”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
04.06.2012
“A Santíssima Trindade é a melhor comunidade” (CEBs Brasil)
“Eu sou o Pai que cria,
O Filho que se une a todo o criado,
O Espírito que dignifica tudo.
O Misericordioso que espera o filho extraviado
O Manso que carrega o jugo pesado
Vosso Consolo, quando desesperais.
Sou o Semeador que espalha a semente
Sou o Grão que morre sepultado
Sou o Alento de Vida que tudo renova.
EU SOU TRINITÁRIO:
um Deus COMUNIDADE
um Deus PARTICIPAÇÃO
um Deus INTERRELAÇÃO
no SEIO do qual cabe TUDO”.
Afirma-se que o dogma da Trindade é o mais importante de nossa fé católica, pois estamos diante do maior Mistério que os olhos não viram, os ouvidos não escutaram, nem a mente consegue compreender... Nada do que podemos definir, pensar ou dizer sobre a Trindade é adequado a seu Ser mais íntimo.
A Trindade não é uma simples verdade para crer, mas a base de nossa experiência cristã. O dogma trini-tário quer expressar o mistério da Vida mesma de Deus que nos é comunicada.O mais urgente neste momento para o cristianismo, não é explicar melhor o dogma da Trindade, e menos ainda, uma nova doutrina sobre Deus Trino. Seria, em definitiva, a busca de um encontro vivo com Deus. Não se trata de demonstrar a existência da luz, mas de abrir os olhos para ver.
Tudo o que “sabemos” da Trindade pode ser um estorvo para viver sua presença vivificadora em nós. Calar sobre Deus, é sempre mais exato que falar. Dizem os orientais: “Se tua palavra não é melhor que o silêncio, cala-te”. O decisivo é viver o Mistério da Trindade a partir da adoração e da partilha fraterna.Grandes teólogos fizeram profundos estudos sobre a Trindade, tratando de pensar conceitualmente o mis-tério de Deus. No entanto, eles mesmos dizem que, para “saber” de Deus, o importante não é “refletir” muito, mas “saber” algo do Amor.
O mistério de Deus Uno e Trino é fruto da experiência de revelação progressiva na história da Salvação. “Deus é UM, mas não está jamais só”. Deus não é um ser isolado, distante da Criação, solitário. É um Deus comunitário, família, sociedade, fraternidade, etc... Por isso, o cume de toda a revelação bíblica é esta: “Deus é Amor”, ou seja, Deus não é uma realidade fria e impessoal, um ser triste, solitário e narcisista. E o Amor nunca é solidão, isolamento, mas comunhão, proximidade, diálogo, aliança...
O Deus revelado por Jesus é Amor e aproximar-nos do Deus Amor é descobrir a Trindade. Em Deus o Amor não é uma qualidade como em nós, mas sua essência. Se Deus deixasse de amar um só instante, deixaria de ser Deus. O movimento que parte do Pai, passa pelo Filho e se consuma no Espírito é um movimento de Amor sem fim.
O dogma da Trindade, portanto, nos liberta do Deus Poder e nos lança nos braços do Deus Amor. O Deus “todo-poderoso” é o contrário do Deus Trino. Deus é Amor e só amor. Não podemos imaginá-lo como poder impetrável, fechado em si mesmo. Em seu ser mais íntimo, Deus é vida compartilhada, diálogo, entrega mútua, abraço, comunhão de pessoas. O amor trinitário de Deus é amor que se expande e se faz presente em todas as criaturas.
Esta é a essência do Evangelho. A melhor notícia que um ser humano podia receber é que Deus não o afasta de seu Amor. A Trindade nos ensina que só vivemos, se com-vivemos. Nossa vida deve ser um espelho que em todo momento reflete o mistério da Trindade.
Somente na medida em que formos capazes de amor, poderemos conhecer o Deus Comunidade.
“Só corações solidários adoram um Deus Trinitário”.
Como homem e como mulher trazemos esta força interior que nos faz “sair de nós mesmos” e criar laços, construir fraternidade, fortalecer a comunhão. Fomos feitos para o encontro e a comunicação.
-o ser humano não é feito para viver só; ele é chamado a viver em comunhão com todas as pessoas;
-ele necessita com-viver, viver-com-os-outros;
-é essencial descobrir o sentido e a vivência da relação com os outros, da fraternidade...
- o sentido da vida em comum é um dom de Deus, que nos foi dado a todos.
Deus nos fez amor para o mútuo encontro, para a doação, para a comunhão... Fomos criados “à imagem e semelhança” do Deus Trindade, comunhão de Pessoas (Pai-Filho-Espírito Santo). Quanto mais unidos somos, por causa do amor que circula entre nós, mais nos parecemos com o Deus Trindade. “Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu Amor em nós é perfeito” (1Jo. 4,12)
Deus colocou em nossos corações impulsos naturais que nos levam em direção ao convívio, à coopera-ção, à acolhida, à solidariedade... A fraternidade, a vida em comum se mede pelo amor, por atos e gestos de doação, por vivências de comunhão, por experiências de partilha do mesmo ser, da mesma vida, da entrega mútua gratuita...
O amor é olhar o outro com olhos tão limpos, bondosos, desinteressados, tão profundos... que só desejo que o outro seja o que é... Alegro-me de vê-lo assim, tal como é...
Aquí está a grandeza do ser humano, criado à imagem e semelhança do Deus Trindade. E é fácil intuir isso: sempre que sentimos o dinamismo de amar e ser amados, sempre que sabemos acolher e buscamos ser acolhidos, quando compartilhamos uma amizade que nos faz crescer, quando sabemos dar e receber vida..., estamos saboreando o “amor trinitário” de Deus. Esse amor que brota em nós tem n’Ele sua fonte.
Por isso, quem vive o amor a partir da Trindade, aprende a amar a quem não lhe pode corresponder, sabe doar sem esperar recompensa, é capaz de compadecer-se dos mais pobres e excluídos, pode entregar sua vida para construir um mundo mais amável e digno de Deus.
Nesse sentido, o melhor caminho para aproximar-nos do mistério do Deus Trindade não são os tratados teológicos que falam dele, mas as experiências amorosas que compartilhamos na vida. Só encontramos Deus com o coração.
Quem é incapaz de dar e receber amor, quem não sabe compartilhar nem dialogar, quem só escuta a si mesmo, quem resiste relacionar-se com os outros, quem só busca seu próprio interesse, quem só deseja o poder, a competição e o triunfo, não pode experimentar nada da Trindade amorosa.
Textos bíblicos: Rom. 8,14-17 Mt. 28,16-20
Na oração:
Deus é amor, mas esse amor não corresponde à nossa idéia do amor.
Deus é o que ama, o amado, e o amor. Os três ao mesmo tempo.
Incompreensível para nós, porque em nós são realidades diferentes.
Em nós sempre haverá um sujeito que ama, um objeto amado e o amor mesmo.
A criação é a mais pura manifestação desse Deus.
Em toda criatura fica refletida Sua maneira de ser.
Em todo ser criado está o amante, o amado e o amor.
O ser humano tem a capacidade de entrar conscientemente nessa dinâmica. (Marcos Rodrigues)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
01.06.2012
“O Espírito Santo é o bom humor de Deus” (D. Pedro Casaldáliga)
O relato da aparição do Ressuscitado aparece unido ao dom da paz, da missão, do Espírito e do perdão. João, que não relata o episódio de Pentecostes, já havia situado o dom do Espírito no momento mesmo da morte de Jesus que, “inclinando a cabeça, entregou o espírito”. O que agora faz é confirmá-lo como dom do Ressuscitado.
A imagem de “soprar sobre eles” contém uma riqueza profunda: significa compartilhar o que é mais “vital” de uma pessoa, sua própria “respiração”, seu mesmo espírito, todo seu dinamismo; trata-se de uma imagem que nos faz sentir a respiração comum que compartilhamos com Ele e com todos os seres.
As angústias mais radicais do ser humano são reunidas e transformadas pelo sopro do Espírito: um sopro vital que possibilita a vitória da esperança contra o desespero, da comunhão contra a solidão, da vida contra a morte. A voz sopra onde quer, a Palavra vem do alto, o Espírito chega impetuoso rompendo o silêncio da morte. O Vento traz a vida, mas não se sabe de onde vem e nem para onde vai.
De fato, “Espírito” parece ser um dos nomes mais adequados para referir-se a Deus, enquanto Dinamismo de Vida e de Amor que faz com que tudo exista. Desde o começo do tempo e desde antes, está acostumado a abrigar sua criação e habitá-la, a fecundar, remover e renovar tudo quanto existe.Segundo o livro do Gênesis, no início da Criação a multiplicidade dos elementos – “águas” – representava o caos. Ali o Espírito “pairava”, criando uma integração harmoniosa – “cosmos”. Ele é também Ela e todos os gêneros: é feminino em hebraico (ruah), neutro em grego (pneuma) e masculino em latim (spiritus).
O Espírito é dinamismo, vida, relação, comunhão divina. É alento, vento, água. É unguento, é consolo, é companhia. Espírito é invenção, é fonte de criatividade, de autêntica novidade. É fonte de novas possibilidades no mundo, energia inaugural de novas auroras. É a energia materna de Deus que aquece o coração da Criação, e que tudo sustenta.
Na bíblia hebraica, o Espírito apresenta forma feminina: é “a Ruah”, a brisa, o “esvoaçar” de Deus sobre as águas, sopro impetuoso que gera vida, ar que impulsiona, alento ou respiração que mantém a vitalidade dinâmica do ser humano. Hálito, sopro, vento, respiração, força, calor... com nome feminino que fala de maternidade e de ternura, de vitalidade e carícia.
Há um antigo ícone medieval, uma pintura muito interessante que se encontra em uma Igreja de Urschalling, na Alemanha, que representa a Trindade, onde o Espírito, entre as figuras masculinas do Pai e do Filho, é representado com um rosto e um corpo de mulher. A Ruah, em hebraico, é sopro que possibilita a existência, o solo de tudo o que vive, é um termo feminino: “a Espírito”.
Nos relatos da Criação, a Ruah de Deus gera harmonia no caos, dando a cada criatura seu lugar, o espaço que precisa para desenvolver suas possibilidade. Nessa relação adequada, cada erva, cada montanha, cada ser que vive, tem seu lugar e seu sentido.
Hoje somos conscientes e podemos agradecer essa presença da Ruah como presença feminima naquelas e naqueles que se empenham pela paz e pela justiça, em sua cumplicidade com os ciclos que favorecem a vida, na contribuição do ecofeminismo para a integridade da Criação.
Desatar a dimensão feminina que mulheres e homens trazemos dentro de nós é sinal do movimento da Ruah. Acolher em nós seu potencial de ternura, de cuidado e de resistência frente a todas aquelas situações e forças que desintegram a vida; fazer da colaboração, da interdependência, do diálogo e da abertura às diferentes culturas e às diferentes tradições espirituais maneiras novas e necessárias de situar-nos no mundo.
O ser humano vive tencionado entre dois pólos, entre luz e escuridão, entre céu e terra, entre fragmentação e unidade, entre espírito e instinto, entre solidão e vida comum, entre medo e desejo, entre amor e ódio, razão e sentimento... Essa é a terra propícia onde atua o Espírito. Onde há mais carência, vulnerabilidade, pobreza... há mais criativas possibilidades. Nenhuma situação pode afastar-nos de Sua visita; pelo contrário, maior desamparo, maior proximidade; maior sofrimento, maior unção.
Toda terra baldia é boa para o Espírito. Ele é o buscador incansável de fragilidades e de conflitos. No não-amor, na não-existência, na não-possibilidade, vem com um “sim” ousado e forte que re-cria de novo nossa história, estabelecendo o “cosmos” (harmonia e beleza) em nosso “caos” existencial.
Viver uma “vida segundo o Espírito” é deixar-nos recriar, deixar-nos mover, transformar, alargar.
Soltar as asas nos momentos mais petrificados e pesados de nossa vida é sinal de sua silenciosa Presença. De imediato, nos sentimos livres do peso que fomos arrastando durante tanto tempo e, por uns instantes, nos atreveremos a “viver no Vento”.
Eduardo Galeano tem uma bonita história sobre o vôo do Albatroz que poderia ser uma parábola sobre a vida conduzida pelo Espírito:
“Vive no vento. Voa sempre, voando dorme. O vento não o cansa nem o desgasta. Aos sessenta anos, continua dando voltas e mais voltas ao redor do mundo.
O vento lhe anuncia de onde virá a tempestade e lhe diz onde está a costa. Ele nunca se perde, nem esquece o lugar onde nasceu; mas a terra não lhe pertence, tampouco o mar. Suas patas curtas mal conseguem caminhar, e flutuando se enfastia.
Quando o vento o abandona, espera. Às vezes o vento demora, mas sempre volta: busca-o, chama-o, e o conduz. E ele se deixa conduzir, se deixa voar, com suas asas enormes planando no ar”..
Falar do Espírito e celebrar Pentecostes é, portanto, celebrar a festa, a vida. Ele é o Sopro último, o Dinamismo vital que pulsa em todas as expressões de vida que podemos ver e que nelas se manifesta. Não há nada onde não possamos percebê-lo, nada que não nos fale d’Ele. Ele é o “ambiente de realização do ser humano”, porque n’Ele a vida adquire profundidade, consistência..., dando-nos firmeza à vontade, equilíbrio aos sentimentos e iluminação à mente.
Não é estranho que, com o Espírito, Jesus envia seus discípulos em missão: é o mesmo Espírito – seu sopro – aquele que quer manifestar-se em nós e quer que nos deixemos conduzir por Ele, como aconteceu com Jesus.
Textos bíblicos: Atos 2,1-11 Jo. 20,19-23
Creia no Espírito Santo, pois “sem o Espírito Santo, Deus está distante, Cristo permanece no passado, o Evangelho é letra morta, a Igreja é uma simples organização, a autoridade é tirania, a missão é propaganda, a liturgia é arcaismo, e a vida cristã é uma moral de escravos.
Mas no Espírito, e numa sinergia indissociável, o cosmos é enobrecido pela iluminação do Reino, o ser humano luta contra o egoísmo, o Cristo ressuscitado se faz presente, o Evangelho é uma força vivifica-dora, a Igreja realiza a comunhão trinitária, a autoridade se transforma em serviço, a liturgia é memori-al e antecipação, e a ação humana é divinizante”. (Patriarca Ignacio de Antioquia, em Upsala, 1968).
Em nome do Pai, do Filho e da Santa Ruah. Amém.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
22.05.2012
ASCENSÃO: “olhar o divino para descobrir o humano”
“contemplar o céu para comprometer-se com o mundo”
“A maior consolação que descobrira era contemplar o céu e as estrelas. Fazia-o muitas vezes e por muito tempo, porque com isto sentia em si um grande desejo para servir a Nosso Senhor” (S. Inácio)
“Ressurreição”, “Ascensão”, “sentar-se à direita de Deus”, “envio do Espírito”, são todas realidades pascais. Em todas elas queremos expressar a mesma verdade: o final “deste Homem” Jesus, não foi a morte, mas a Vida. O mistério pascal é tão rico que não podemos abarcá-lo com uma única imagem; por isso temos que desdobrá-lo para ir aprofundando calmamente e expressá-lo no nosso modo de viver o seguimento de Jesus.
Os três dias para a Ressurreição, os quarenta dias para a Ascensão, os cinquenta dias para a vinda do Espírito, não são tempos cronológicos, mas teológicos. Eles nos revelam a maneira de ser de Deus, não o tempo em que Ele atua.
A Ascensão nos faz refletir sobre um aspecto do mistério pascal. Trata-se de descobrir que a posse da Vida por parte de Jesus é total. Participa da mesma Vida de Deus e, portanto, está no mais alto do “céu”. Nem Mateus, nem Marcos, nem João, nem Paulo, mas somente Lucas, no final de seu Evangelho e, mais detalhadamente, no começo dos “Atos dos Apóstolos”, narra a Ascensão como um fenômeno constatável pelos sentidos.
Lucas, em seu Evangelho, põe todas as aparições e a Ascensão no mesmo dia. No entanto, nos Atos dos Apóstolos, ele fala de quarenta dias de permanência de Jesus com seus discípulos, provavelmente como um modo de indicar que eles haviam recebido a formação necessária para levar adiante a missão (“quarenta dias” com o mestre era o tempo que o discípulo precisava para alcançar uma preparação adequada).
Ao mistério da Ascensão corresponde o mistério da Kénosis (esvaziamento) do Verbo; o Deus que se despojou de sua glória e majestade e se fez homem, agora é elevado aos céus e com Ele toda a humanidade redimida e divinizada. Em Cristo, a humanidade inteira já se encontra envolvida por Deus; em Cristo, céu e terra se encontram. Celebrando a glorificação de Cristo, tomamos consciência de nossa própria vocação à glória. Ao celebrarmos a entrada de Jesus na glória, não celebramos uma despedida, mas um novo modo de presença; celebramos que Ele é, realmente, o Emanuel, o Deus-conosco para sempre.
No Evangelho de hoje, a despedida de Jesus é descrita com singeleza; não produz tristeza, mas alegre confiança, enquanto os discípulos se preparam na oração para assumir a missão. Ao partir para o Pai, Jesus não nos abandona, pois realizou uma comunhão definitiva com a humanidade, garantindo a ela um destino de plenitude. Ele subiu ao céu para abrir-nos o caminho, mas agora é o Espírito aquele que nos move e nos conduz ao Pai. Cabe a nós, agora, esforçar-nos em fazer o nosso êxodo, sob a ação do mesmo Espírito e confiantes na fidelidade de Deus.
A Ascensão de Cristo ao céu nos torna encarregados da missão à qual Ele, em sua glória, preside. Nós é que devemos reinventá-la a cada momento.
Portanto, a Ascensão de Jesus marca o início de nossa missão, ou seja, um novo modo de presença no mundo. Viver com os olhos voltados para o Senhor glorioso não nos dispensa de estar com os dois pés no chão, afundados na terra da história. Na dinâmica do Tempo Litúrgico, após uma longa e criativa caminhada com Jesus, a liturgia nos faz “desaparecer em Deus” , como o Cristo da Ascensão “desapareceu em Deus”. Não há mais nada a não ser Deus. A Ascensão é abertura para o cotidiano, para a realidade do serviço. É preciso partir e viver o chamado do Mestre ao longo da experiência.
Na Ascensão, enquanto Jesus “sobe” ao Pai, nós “descemos” à realidade para transformá-la, tornando presente o Reino. Quando amamos, cuidamos, servimos... nos elevamos. O que nos eleva está em nosso interior. E nos elevamos à medida que descemos em direção à humanidade. Essa Ascensão não pode ser feita às custas dos outros, senão servindo e cuidando de todos. Como Jesus, a única maneira de alcançar a meta é descendo até o mais fundo. Aquele que mais desceu, é o que mais alto subiu.
A Ascensão é o lugar onde vai acontecer uma mudança profunda na vida de cada seguidor de Jesus: partimos para a missão; deixamos a Terra Santa, como os Apóstolos, e até o fim da vida seremos os peregrinos de Cristo. Somos arrancados de tal experiência para adentrar-se em um caminho de seguimento de horizontes desconhecidos, mas centrados no compromisso apostólico da missão na e da Igreja.
“Passamos” da particularidade de um lugar para a universalidade da missão. O desejo de seguir e servir a Cristo abarca o mundo todo. Nossa meta, como a de Jesus, é ascender até o mais alto, o Pai. Mas tendo em conta que nosso ponto de partida é também, como no caso de Jesus, o mesmo Deus. Muitas vezes preferimos seguir um Jesus no “céu”. Descobri-lo dentro de si mesmo, nos outros e no mundo é demasiado exigente e comprometedor. Muito mais cômodo é continuar olhando para o céu... e não sentir-se implicado naquilo que está acontecendo ao nosso redor.
A festa da Ascensão nos revela que vivemos o “tempo do Espírito”, tempo de criatividade, de ousadia, de novidade... O Espírito não proporciona aos seguidores de Jesus “receitas eternas”. Por isso, não podemos ficar olhando para cima. O Espírito nos dá luz e inspiração para voltar a cabeça para a realidade, buscando caminhos sempre novos para prosseguir hoje a missão de Jesus. Torna-se necessário descruzar os braços, deixar de olhar passivamente para o céu e, com os pés plantados no chão, prosseguir a obra iniciada por Jesus.
O mistério da Ascensão nos sensibiliza e nos capacita para aproximar-nos do nosso mundo com uma visão mais contemplativa. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da humanidade. A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo, entra em comunhão com a realidade tal como ela é. Ascensão nos convida a olhar o mundo como “sacramento de Deus”. Um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que existem no mundo; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e por isso gerado de misericórdia; um olhar que compromete solidariamente.
Enfim, a celebração do mistério da Ascensão nos impulsiona, ao mesmo tempo, para Deus e para o mundo. Paixão por Deus e paixão pelo mundo. Podemos assim estar sempre enraizados firmemente em Deus e, ao mesmo tempo, imersos no coração do mundo. O cristão é tão familiar com Deus que admira e se encanta com a variedade e a multiplicidade do mundo, e não teme o mundo com toda sua complexidade. Ao mesmo tempo, é tão familiar com o mundo que sente o Espírito de Deus que trabalha em todos os lugares e da maneira mais inesperada. “Fora do mundo não há salvação” (E. Eschillebeeckx).
Textos bíblicos: Mc. 16,15-20 Atos 1,1-11 Ef. 1,17-23
Na oração: Que nossa ascensão seja: romper as cadeias de injustiça e morte; derrubar toda parede e muro; ir pela vida como samaritano; mostrar os caminhos ascendentes; oferecer razões de esperança; despertar o instinto criativo; interpretar os sinais dos tempos; pôr o coração nas estrelas...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
15.05.2012
“Amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei” (Jo. 15,12)
O evangelista João põe na boca de Jesus um longo discurso de despedida, no qual recolhe aquilo que será a marca distintiva dos seus seguidores, para serem fiéis à Sua pessoa e ao Seu projeto. A nova comunidade não se caracterizará por pertencer a uma determinada religião, nem por doutrinas, nem ritos, nem normas morais... mas por viver no amor com que Jesus nos ama, o Amor que tem sua fonte no Pai. Amar como Ele é transformar-se n’Ele.
Ser cristão, em primeiro lugar, é uma questão de amor.
O mandamento do amor não é apresentado como uma lei que torna nossa vida dura e pesada, mas uma resposta ao que Deus é em cada um de nós, e que em Jesus se manifestou de maneira contundente. Nosso amor será “um amor que responde a seu amor”. O amor que Jesus nos pede tem de surgir a partir de dentro; trata-se de manifestar o que é Deus no mais profundo de nosso ser.
Quando amamos não é preciso dizer que Deus está em nosso coração porque, de uma maneira melhor, estamos no coração de Deus, participamos do próprio dom de seu amor. Encontramo-nos, assim, envolvidos pelo amor de Deus.
Esse amor, ativo e primeiro, suscita em nós a gratidão que nos leva a corresponder com um amor-serviço; o amor sempre se faz serviço, assim como todo serviço é inspirado e sustentado pelo amor. Trata-se da mística do “serviço por puro amor”. Por isso, esse amor é fonte de alegria, ou seja, um estado permanente de plenitude e bem-estar. Sem amor não é possível dar passos em direção a um cristianismo mais aberto, cordial, alegre, simples e amável, onde possamos viver como “amigos” de Jesus.
A palavra amor, na língua grega, tem vários sentidos bem diferentes (“pornéia”, “pathé”, “Eros” “phylia” “kháris” “ágape”). Não há oposição entre elas e nenhuma delas exclui as outras, mas só o “ágape” expressa o amor sem mistura de interesse pessoal. Seria um puro dom de si mesmo, só possível em Deus. Ágape é o amor divino. Esse amor é o mais raro, o mais precioso, o mais milagroso. Estas são algumas características do ágape cristão: é um amor espontâneo e gratuito, sem motivo, sem interesse, até mesmo sem justificação, oblativo, expansivo... o puro amor.
Ao empregar a palavra “ágape”, João está fazendo referência ao amor que é Deus, ao grau mais elevado do dom de si mesmo. Deus não é um Ser que ama, é o Amor. N’Ele, o Amor é sua essência; se Deus deixasse de amar um só instante, deixaria de existir. Não podemos esperar de Deus “amostras pontuais de amor”, porque não pode deixar de demonstrar o amor um só instante.
O Amor que é Deus, temos que descobri-lo dentro de nós, como uma realidade que está unida intimamente ao nosso ser. Por isso, só há um mandamento: manifestar esse amor que é Deus, em nossas relações com os outros. Indecifrável como a obra de arte, o Amor nem se define nem se enquadra: é cada vez outro, novo, surpreendente, desconcertante..., embora tão antigo.
S. João nos diz que “Deus é Amor (Ágape) e aquele que habita no Amor, habita em Deus e Deus habita nele” (1Jo. 4,16). Portanto, é proposto ao ser humano uma experiência. Ele é chamado para exercitar sua capacidade de gratuidade e graça. Em um mundo onde tudo se paga, onde nada é gratuito, ele é chamado a ser presença gratuita, a viver a graça e a gratidão.
O amor que Deus tem por nós é absolutamente desinteressado, ativo e criativo, gratuito e livre. Ama o sem valor, aqueles que não tem valor em si mesmo. O seu Amor é que valoriza o outro. A criatura não é amada porque tem valor por si mesma, mas tem valor porque é amada por Deus, que lhe comunica generosamente a sua própria riqueza. Nisso consiste a Criação: Deus, num transbordamento do seu amor intra-trinitário, deu o ser ao que não era nada.
O amor (ágape) impregna o ser humano. “Afeta a totalidade humana; roça a sensibilidade, aloja-se na medula dos ossos, pulsa nos batimentos cardíacos, arfa na respiração, circula pelo sangue, aquele o pensamento, rola pelos braços, agita as mãos, baila na consciência, escorre no olhar, sonoriza-se na palavra, recolhe-se no silêncio, peregrina nos passos, oculta-se no inconsciente, murmura na oração...” (Juvenal Arduini). O Amor é onipresença. “É um estado de ser” (R. May).O amor é a habitação do ser humano. “O amor jamais acabará” (S. Paulo).
Somos capazes de Ágape, de amar aquele que não nos ama e não devemos nos privar dessa liberdade. O seguimento de Jesus nos convida a esta liberdade que se encontra na palavra “Ágape”, o amor da superabundância, o amor de gratuidade, o amor que transborda, que nada pede em troca. Amar sem ter nada de particular para amar. Amar não a partir de sua carência, mas amar a partir de sua plenitude. Amar não somente a partir de sua sede, mas amar a partir de sua fonte, de sua fonte que corre.
O amor é fazer o vazio dentro de si mesmo, para que haja lugar para o outro. O amor tem um rosto. Assim como Deus, que se “esvaziou de sua divindade”, o ágape se esvazia de si mesmo para dar mais lugar, para não invadir, para deixar ao outro um pouco mais de espaço, de liberdade... “Amar é encontrar sua riqueza fora de si” (Alain).
Para o poeta Rilke, o amor é constituído por “duas humanidades que se inclinam uma diante da outra”. Amor como dom gratuito de si mesmo. Não é motivado pelo valor do outro, isto é, pela recompensa que meus gestos de amizade podem trazer-me. Com efeito, neste caso, não se ama o outro porque ele é bom (como na amizade verdadeira), mas para que seja bom, já que o amor quer o bem do amado.
Não é porque as pessoas são amáveis que devemos amá-las; é na medida em que as amamos que são (para nós) amáveis. A caridade é esse amor que não espera ser merecido, esse amor primeiro, gratuito, espontâneo, de fato, que é a verdade do amor e seu horizonte. Uma liberdade de amar o outro em sua diferença, de amar o divino no outro, de amar o outro como a mim mesmo, reconhecendo-me nele.
O amor é um estremecimento, um frêmito que desperta em nós o que existe de mais nobre, puro e humano. Tal como a flor de Lótus, o amor mais nobre tem suas raízes na lama, na argila de cada um de nós; é o divino germinando nos meandros do humano. O amor é a realidade que nos faz mais humanos. Tal como a água de um rio escavando seu leito profundo, o amor é a força que nos escava, que alarga e aumenta nossa capacidade de irmos para além de nós mesmos. Uma das maiores razões para o amor ser uma experiência de expansão se deve à sensação de imortalidade e eternidade que nos proporciona.
O amor carrega em si a marca da eternidade. Quem ama vê o tempo se ampliar e a vida ganhar mais sentido. Alguns dizem que há lugares de nós mesmos que só passam a existir após o sofrimento ter penetrado ali. Há lugares em nosso interior que não existem enquanto o amor não tiver penetrado. O amor nos torna flexíveis, atentos à inspirações do Espírito; é um estado de escuta, o desenvolvimento de uma grande atenção em relação a tudo o que vive e respira. É a natureza humana verdadeira, quando não está entulhada pela ilusão e pelo ego. Amar é desfazer-nos de tudo aquilo que acreditamos ser, para que somente fique em nós o que é Deus.
Para aprender a amar é preciso sair de nossos hábitos, sair do conhecido; aprender a amar é sempre uma aventura. Se entrarmos nessa aventura, nossa vida será virada pelo avesso e completamente questionada. “O amor é o que diz sim, em nós”, sim à vida, sim ao compromisso, sim à compaixão... É preciso encontrar dentro de nós este estado de sim ao que é. Dizemos que Cristo só tem sim dentro de si mesmo. É necessário que descubramos em nosso interior, o sim mais profundo.
Quando o amor nos habita, tudo se torna sagrado; nossos olhos se tornam contemplativos, ou seja, o olhar que libera o que há de melhor em nós e no outro. Transformamo-nos naquilo que olhamos e tornamo-nos aquilo que amamos. O amor é uma irradiação do nosso ser.
Texto bíblico: Jo. 15,9-17
Na oração: Faça uma leitura das “marcas” do Amor de Deus em sua vida; crie um clima de ação de graças.
“Eu sou a videira e vós os ramos” (Jo. 15,5)
Se há algo que caracteriza nosso tempo é a nova consciência de ser rede-comunhão-interconexão-unidade. Todos já sabemos que tudo está interconectado: a globalidade é interação. Lentamente vai-se tomando consciência de que formamos parte de um todo. Há em nós uma necessidade básica de viver conectados com os outros, de entrar em relação com o mundo.
Este tempo pede de nós “uma espiritualidade da conexão”, da busca da experiência da Unidade, de estender pontes entre culturas, raças, sexos, crenças religiosas, ideologias, de romper fronteiras, de estreitar laços, de criar espaços acolhedores... Precisamos sair de nossos pequenos círculos para criar vínculos com tantas pessoas, grupos, organizações sociais e movimentos que buscam outra globalização, a globalização da solidariedade, da interconexão responsável, da comunhão universal.
“Conectar computadores é um trabalho. Conectar pessoas é uma arte” (Eckart Wintzen)
O desafio que se apresenta diante de nossos olhos é o de sermos fiéis à realidade para poder descobrir nela a novidade de Deus, uma experiência “mística” que nos faça tocar o mais profundo de tudo, e como consequência, denunciar o que obstrui e mata este dom novo de Deus.
Também através dos “chips”, “bytes” e “satélites” de nosso universo eletrônico o Espírito se infiltra. Através dos circuitos eletrônicos nos aproximamos da solidariedade universal, da busca da transcendência, da defesa do meio ambiente, da luta em favor da vida, do compromisso com a justiça...
Nessa direção, a oração cristã é um grande corretivo, é um convite a sentir-nos com os outros, a conectar-nos com todos e a viver em comunidade. Nela dizemos que nossa origem e nosso destino é comum (viemos de Deus e voltamos para Deus) e pedimos juntos o acontecer do Reino.
A imagem da videira e dos ramos, no Evangelho de hoje, nos revela a teia das relações, das interdependências e da comunhão de todos com a Fonte originária de tudo. Pertencemos a uma comunidade cósmica de vida tal como foi criada e sustentada por Deus. Somos quem somos somente na relação e por nossa relação com todas as criaturas e com o próprio Criador; somos alimentados pela mesma seiva divina, que tudo sustenta com sua mão providente.
Isto significa que há uma unidade fundamental que perpassa todas as partes do universo, na forma de uma “rede”. Nós, seres humanos, também fazemos parte desta vasta rede de inter-relações, conectados a todos os elementos da natureza, desde a menor célula até a ecologia global. Sentimo-nos impulsionados pela seiva do Espírito que alimenta as energias do universo e a nossa própria energia vital e espiritual. Conectar-se com a videira possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio nas relações; viver em profunda fusão com a videira desperta as energias criativas, todas as grandes motivações adormecidas, toda bondade aí presente.
Sem a seiva divina que nos atravessa nunca poderemos dar o verdadeiro fruto.
No entanto, percebemos, no contexto atual, que o ser humano tem perdido o contato e a comunhão com o cosmos e com os seus semelhantes, recusando receber a seiva que a todos alimenta; ele está conectado com tudo e com todos e, no entanto, tal conexão não lhe nutre, nem lhe oferece sentido à sua existência. A compulsão dos meios eletrônicos o ameaça de superficialidade, de individualismo e de isolamento. Isto tem provocado nele toda espécie de mal-estar, de doenças, de conflito e divisão, de insegurança, de ansiedade, de solidão, de aridez existencial... É aguda a consciência de uma fragmentação do eu interior.
A verdadeira nobreza do ser humano consiste nisto: há nele “algo” de interior, decorrente de sua profunda conexão com a Videira, de onde recebe a seiva que o nutre e o faz entrar em relação com tudo e com todos; há nele uma força latente, como uma energia fundamental, que o impulsiona a viver, que o ajuda a crescer e a melhorar continuamente, aumenta a sua capacidade de resistência, estimula-o a alcançar aquilo que é o sentido de sua própria existência: a verdade, a liberdade, o bem, o amor...
Com a presença desta força interior, a pessoa se sente guiada pelo seu dinamismo, que lhe proporciona saúde física, lucidez mental e limpidez afetiva. É esta força que comanda os melhores momentos da vida humana como um princípio ativo, dinâmico, criativo... Tais forças primordiais, vitais, presentes nas diferentes etapas do crescimento, são essenciais ao ser humano, graças às quais ele se orienta diante das solicitações da vida pessoal e das múltiplas escolhas, constrói a sua vida pessoal, reforça as relações comunitárias e sustenta o seu compromisso solidário no caminho em direção à plenitude do seu ser.
Quando esta “força vital” permanece bloqueada, o ser humano perde a direção, seca a criatividade e o gosto por viver, não faz progredir a sua potencialidade e demite-se da própria vida.
É decisivo religar-se à Fonte e aproveitar, para o desenvolvimento integral da personalidade, os abundantes nutrientes e recursos presentes nas profundezas do coração humano. São forças construtivas e autônomas, livres de influências externas, que devem ser colocadas a serviço da construção de uma personalidade sadia, equilibrada e mais rica. Com isso, todo seu interior se alarga e se dilata. A seiva de nosso ser essencial constitui nossa autêntica vida. Descobri-la, abrir-nos a ela, fazer-nos transparentes a ela e vivê-la cada dia constituem a plenitude de nossa realização.
É seiva divina, presente no eu mais profundo, que nos arranca de nosso fechamento e nos faz ir para além de nós mesmos; ela nos abre a uma Realidade maior que nos transcende; é ela que nos faz perceber que temos no coração um espaço que está feito à medida de Deus. Precisamos viver mais nas raízes de nosso ser; precisamos aprender a viver de uma maneira mais profunda e autêntica, a partir do núcleo mais íntimo de nosso ser, a partir de nosso ser essencial.
E viver a partir de nosso ser essencial é nossa autêntica realização e plenitude. É chegar a integrar e harmonizar todos os níveis de nossa pessoa: corpo, mente, afetividade, coração... com a fonte de nossa vida. Intuímos um poço tão precioso dentro de nós, uma fonte tão profunda... Muitas vezes, passamos a vida buscando água em poços alheios, e não descobrimos nosso manancial.
Trata-se de descer em profundidade, de achar o nosso centro, aquele ponto de gravidade por onde passa o eixo do nosso equilíbrio pessoal. A oração nos ajuda a encontrá-lo e a ampliá-lo.
É nesse conjunto de recursos e dinamismos vitais que a Graça (seiva) de Deus trabalha; Ela pode ser considerada como uma presença dinâmica, um estimulante das energias latentes do eu. A presença da seiva é um reforço, um suporte, um energético do eu, uma ativadora das capacidades do eu; ela não constrange, não violenta, mas ajuda, esclarece, mobiliza as energias presentes, facilita largamente a missão de cada um.
Mais ainda, o Espírito habita nosso ser profundo, sustenta nossas energias sadias, aumenta nossas forças, compromete-nos a crescer de forma autônoma. Ele age como um “princípio dinâmico” e como um “energético ativo”, que reforça as atividades criativas do eu. Temos de viver a partir do Espírito, transformando e vitalizando nossos gestos, pensamentos, compromissos, encontros.
Na oração:
Eu canto por ser ramo, unido à Videira. Sou ramo que se alarga, ampliando a minha vida. Eu deixo vida feita folha verde e cachos de uvas. Sou ramo e jorro minha vida feito vinho saboroso. Sou ramo desde a origem. Sou ramo ligado à Videira. Sou ramo alimentado pelo vigor incontido da seiva.
Alguém vive em mim no silêncio. Alguém que conhece o bem, a verdade, a liberdade. Levo a Videira em minhas entranhas como um canto de libertação. Meu “interior” conhece a Videira. Conhece a Vida.
Sua Vida é minha vida. Seu viver é meu viver. Para mim, a vida é sua Vida. Sou ramo. Meu interior conhece a seiva da Videira. É algo como o espírito que me anima.
É algo que me “marca”, que me dá identidade. Se a Videira não me tivesse dado sua vida através de sua seiva, hoje eu não seria ramo.
Sou ramo e deixo a seiva transbordar em mim. A Videira se fez minha liberdade e minha força. A Videira me deu um nome: ramo. Sou peregrino no “silêncio”.
Sou ramo e o serei para sempre. Ramo sem fronteiras. Ramo sem cálculos. Ramo transbordante.
Sou para a aventura, sou para o desconhecido, sou para o novo, sou para o amanhã...
Sou fecundo como a Videira. Eu sei que em minha Vida há raízes eternas. Eu sei que vivo desde a origem. Eu sei que me alargarei enquanto chegue a vida da Videira.
Sou ramo e quero gritar bem alto. Sou ramo e vivo. Amo minha vida e não quero abafá-la. Amo minha vida e não quero morrer sufocado, desconectado da Videira. Grito a ti Videira, Fonte de minha vida!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.05.2012
Como Bom Pastor, Jesus transborda ternura sobre nossa humanidade ferida.
Todo 4º. domingo de Páscoa é o do Bom Pastor. Embora o Evangelho de hoje não fale de “aparições” do Ressuscitado, não nos afastamos do tema pascal, pois Jesus afirma expressamente: “Eu dou a minha vida pelas ovelhas”. A “Vida” é o verdadeiro tema pascal.
Jesus de Nazaré “passou fazendo o bem”, não de qualquer modo. Aquele homem que movia multidões por toda a Galileia, por sua pregação e milagres, não era um revolucionário violento. E, no entanto, nem por isso, deixa de ser inquietante e perigoso. Como Bom Pastor, aproxima-se e cuida, de forma preferencial, dos mais fracos, pequenos, necessitados..., deixando-se “tocar” e “tocando” as situações humanas mais desgarradas, mais quebradas, mais dolorosas, mais sofredoras e marginalizadas....; os pobres, os ignorantes, os pecadores, os excluídos, descobrem n’Ele uma bondade e uma ternura inesperadas. Sua presença constitui um encontro extraordinário, tornando visível a ternura misericordiosa de Deus Pai. É o tempo da ternura de Deus pela humanidade; em Jesus “apareceu a bondade e a ternura de nosso Deus” (Tit. 2,11).
Recuperar o sentido da ternura exige de nós contemplar a vivência da ternura de Jesus de Nazaré, e não só como um mero modelo ético de atuação, senão em sua profunda intimidade e filiação referida a um Pai materno cujas entranhas se estremecem e sente ternura por seus filhos e filhas.
Só contemplando a Jesus, poderemos descobrir que nosso Deus é um Deus de ternura.
Recuperar a imagem esquecida do “Deus de ternura” supõe enraizar-se no coração do Bom Pastor, imagem que nos revela a capacidade do ser humano de abraçar empaticamente a situação de fragilidade e dor do outro com uma compaixão feita vida em gestos revitalizadores e humanizadores, cheios de ternura.
Só quem experimentou a ternura de Deus, revelado em Jesus, se sabe possuidor de uma “segunda pele” que certamente o faz mais vulnerável, mas ao mesmo tempo mais humano, ou ao menos, mais apto para penetrar no secreto de uma humanidade capaz de sentimento e estremecimento até os limites não imaginados. Nele pulsa o coração de Deus que se sintoniza com a pulsação do coração do mundo.
Com razão afirmava Abrahán Heschel, que “o grau de sensibilidade diante do sofrimento humano indica o grau de humanidade que temos atingido”. E é a ternura aquela que desperta em nós essa sensibilidade e mede, por isso, o grau de humanidade alcançado.
A ternura é o afeto que devotamos às pessoas e o cuidado que aplicamos às situações existenciais marcadas pela fragilidade . É uma proximidade que se revela como intuição, vê fundo e estabelece comunhão.
A ternura brota quando a pessoa se descentra de si mesma, sai na direção do outro, sente o outro como outro, participa da sua existência, deixa-se tocar pela sua história de vida.
Esse sentimento é um modo de ser existencial que afeta todas as dimensões da pessoa.
A expressão por excelência da ternura é o carinho, onde se acentua a proximidade física e o respeito ao outro. O carinho em certas situações é a melhor forma de comunicação não-verbal.
Ele revela cuidado solícito, manifesta sensibilidade através do contato físico, expressa-se como gesto sensível que quer acolher a pessoa como tal.
A ternura é fenômeno íntimo e comunicacional, é forma de viver e de conviver, circula entre as pessoas e luta por nova sociedade, é valor original que se irradia pela vasta verdade. A ternura acolhe os abandonados, mas não se cansa de amar.
Forte é a ternura que permanece resistente.
A ternura revela lucidez, firmeza e tenacidade. Não se deve confundir ternura com emocionalismo.
A ternura possui fibra e sustenta causas justas. A ternura mantém fidelidade às pessoas e assume posições sérias. A verdadeira ternura é destemida, não se amedronta e sustenta a verdade, é corajosa, não compactua com a violência, a crueldade, a exclusão. A ternura pode e deve conviver com o extremo empenho por uma causa: “hay que endurecer pero sin perder la ternura jamás” (Che Guevara).
A ternura emerge do próprio ato de existir no mundo com os outros. A ternura mantém a reciprocidade com o diálogo, a afetividade, a compreensão, a amizade, o respeito, o direito, a solidariedade; ela é aberta, não se fecha, ajuda o mundo a ser humano, e não selvagem, alegre, e não triste, pacífico, e não belicoso, justo, e não ensanguentado, limpo e não sujo. Assim, a ternura ética preserva a humanidade, ventilada pelo sopro da dignidade. A ternura leva a pessoa a sentir-se gente.
A ternura vital é sinônimo de cuidado essencial. O exercício da ternura é fundamental para desenvolver atos de cuidado.
O cuidado faz o ser humano aberto, sensível, solidário, cordial e conectado com tudo e com todos no universo. Sem o cuidado o humano se faria inumano.
O cuidado vive do amor primal, da ternura, da carícia, da compaixão, da convivialidade, da medida justa em todas as coisas. Sem o cuidado, o ser humano definha e morre.
O cuidado abre-nos caminho para viver, com mais intensidade, nossa humanidade. E viver “humanamente” significa viver em vulnerabilidade.
A arte do cuidado confere a cada um a capacidade de exercer a paternidade-maternidade espiritual; cuidar é sentir o outro, é verdadeiramente escutar, é ter um olhar desarmado, eliminando todo preconceito. Cuidar é dar atenção com ternura, isto é, descentrar-se de si mesmo e sair em direção do outro, participando de sua existência; é esvaziamento de si mesmo para deixar o mistério da fragilidade do outro, que também traz em si, encontrar abrigo no coração.
Cuidar é entrar em sintonia com... Disso emerge a dimensão de alteridade, de respeito, de sacralidade...
Quem não aceita a própria vulnerabilidade e interdependência não desenvolve atitudes de cuidado. Quem não aceita ser cuidado, também não está disposto a cuidar dos outros. Somos educados para ser-mos “super-homens” ou “super-mulheres”; aprendemos a não admitir e a não aceitar o limite, a vulne-rabilidade, o fracasso... O ser humano é finito, portanto vulnerável. Ele não se basta a si mesmo; necessita de relações com o seu meio, com os seus semelhantes e com o Transcendente, dando sentido à sua existência.
Texto bíblico: Jo. 10,11-18
Na oração: quem já foi afetado por um olhar de uma pessoa pobre ou sofredora, e deixou que este olhar penetrasse no fundo do seu coração, sabe que não sai “ileso” desta experiência; algo mudou dentro de si: a ternura é despertada e o cuidado é mobilizado.
O modo-de-ser-ternura e cuidado do Bom Pastor se prolonga em nós, seus seguidores.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.04.2012
A páscoa está passando por nós. Em mim, ela perpassa todo meu ser e existir. Este mistério grandioso nos escapa. Não podemos abarcá-lo em nossa pequenez e por vezes experimentamos lampejos dessa luz que aquece nosso coração impregnando-o do perfume da esperança e da confiança de que somos ardentemente amados por Deus.
Uma alegria me invadiu e mandou embora toda preocupação, toda dúvida, todo medo... Por alguns dias sei que vou me sentir assim e é importante viver essa alegria, deixar-se inundar por ela e registrar, escrever esse milagre que acontece nos corações que se abrem à graça, mas também naqueles que nem se dão conta do clarão que os ilumina. A memória é frágil e pode esquecer... Já o coração, como disse a Adélia, quando o coração experimenta não esquecemos jamais, por isso temos a capacidade de recordar.
Precisamos recordar sempre esse grande amor que foi derramado em nós, para que nos momentos de dificuldade, de angústia e tristeza, que certamente virão, possamos encontrar a paz de Jesus e revelá-la aos irmãos. É aí que esse amor se faz mais necessário. Afinal “viver é perigoso”, ainda mais neste mundo em que vivemos tão injusto e desumano, tudo tão volátil, passageiro, descartável... Onde poderemos colocar nossa confiança? Só em Deus, sempre em Deus. Essa é a certeza imutável que muda nossa forma de viver: somos amados e cuidados por Deus. Isso nos dá serenidade diante dos problemas e possibilidade de ouvirmos a sabedoria do Espírito Santo que não cessa de soprar sobre nós a verdade que nos liberta: Jesus ressuscitou verdadeiramente. Aleluia!
Lilian Carvalho
24.04.2012
Todos sabemos por experiência que as convicções e determinações mais fortes de nossa vida, nossas inclinações e afetos mais enraizados, ou, pelo contrário, os maus sentimentos que às vezes carregamos em nossa intimidade mais secreta, tudo isso não brotou em nós por coisas que ouvimos ou aprendemos, senão por experiências muito fortes que nos marcaram.
O mesmo acontece com a fé em Deus. Ou seja, a fé no Deus vivo não se faz vida em nós como resultado de alguns argumentos ou teorias, mas, sobretudo por aquilo que vemos e sentimos, por aquilo que apalpamos com nossas próprias mãos, por tudo aquilo que, ao senti-Lo, se faz vida em nós. Deus entra pelos sentidos e O encontramos na vida.
Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no Deus de Jesus está na vida que leva. Quando alguém se deixa invadir pelo humano, quando uma pessoa se humaniza de verdade e é sensível à dor do mundo, então é porque Deus entrou-lhe pelos sentidos, então é quando de verdade ela se encontra com o “Deus desconcertante”, o Deus que Jesus de Nazaré nos revelou.
É exatamente por isso que Deus quis se fazer presente e comunicar-se conosco mediante Jesus, um homem de carne e osso, o qual não só se pode ouvir, para aprender suas ideias, senão que se pode ver e tocar, apalpar e experimentar, sentir e gostar, o que é e o que representa a bondade de Deus, a proximidade de Deus, a delicadeza e a ternura de Deus. É por isso que a primeira carta de João começa dizendo: “o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e o que apalpamos com nossas mãos acerca da Palavra da vida” (1Jo. 1,1).
O autor desta carta começa seu escrito repassando os sentidos. Ou seja, chegamos a Deus pelos sentidos.
Assim o alcançamos e nos relacionamos com Ele. É um Deus que se comunica a nós no mais humano que há em nós. E bem sabemos que a vida é, não só espírito, ideias e conhecimentos, mas também sentidos e sensibilidade, ou seja, o que apalpamos, o que sentimos, isso é o que nos entra em nosso ser inteiro e se faz vida em nós.
O relato do Evangelho de hoje trata justamente da realidade dos sentidos com mais claridade.
Está claro que os discípulos de Jesus não só ouviram sua “doutrina”, senão que, juntamente com isso, viram, tocaram e sentiram de perto sua “maneira de viver”. Quando nós percebemos ambas as coisas, não só a doutrina, mas também sua vida, seu estilo, seus costumes, sua maneira de relacionar-se com as pessoas, então é quando se faz possível a fé. Porque então é quando o Ressuscitado se faz vida em nós.
Esta é a experiência de Ressurreição. Por isso, é decisivo “ressuscitar os sentidos”; em outros termos, é decisivo cristificar os sentidos.
“Ressuscitar os sentidos” significa harmonizá-los com a presença do Espírito, torná-los silenciosos, despojados diante d’Aquele que é.
Quando falamos de “sentidos espirituais” estamos fazendo referência aos sentidos ressuscitados, habitados, animados pelo Espírito de Deus. Os sentidos não são destruídos, mas transfigurados; eles se tornam “sentidos divinos”, pois tornam o ser humano cada vez mais “capaz de Deus”.
É preciso “ressuscitar os sentidos” para que encontrem seu lugar insubstituível na experiência de fé. E só podemos descobrir o “lugar” dos sentidos através do encontro com a “sensibilidade de Jesus”.
O mestre de Nazaré desenvolveu a sensibilidade no seu sentido mais belo. Educar nossa sensibilidade “ao estilo de Jesus” implica empapar-nos de sua forma de ser e de sentir, de vibrar com tudo aquilo que lhe fazia vibrar, de rejeitar tudo aquilo que Ele rejeitava, e assim reagir frente à realidade e às pessoas do mesmo modo que Ele reagia.
Ele conseguia ver encanto numa pobre viúva e percebia as emoções represadas numa prostituta. As dores e as necessidades dos outros mexiam com as raízes de seu ser. Na realidade, trata-se de querer ter sempre – na expressão de S. Paulo – os “mesmos sentimentos de Cristo Jesus”. Buscando e desejando a identificação com Jesus, nossos sentidos aprendem d’Ele a ter ternura, visão, escuta, sabor...
“Despertar a sensibilidade” ao estilo de Jesus não se limita somente a ver, ouvir, gostar e tocar .
Nascemos com olhos, mas não com o olhar; temos, sim, ouvidos, mas não sabemos escutar; podemos cheirar e gostar as coisas, mas nem sempre somos capazes de desfrutar e saborear a vida. Tocamos e abraçamos os outros, mas não nos comprometemos.
Uma opção de seguimento evangélico que não conte com a “ressurreição dos sentidos” está destinada ao fracasso, pois, sem uma identificação com a sensibilidade de Jesus nossos sentidos passeiam vazios e sem bússola pelo mundo, como que afundados na noite.
Estamos vivendo uma cultura profundamente desconectada do sensitivo. Os sentidos estão ficando atrofiados e nos lançamos desesperadamente em busca de compensações virtuais. Nossos medos estão impossibilitando os sentidos ocuparem o lugar que lhe corresponde em nossos comportamentos e atitudes.
Talvez hoje, mais do que nunca, precisamos de uma ascese que purifique nossos sentidos de tantos estímulos que invadem nossa intimidade, nos intoxicam, nos aprisionam e deturpam nossa sensibilidade, impedindo-nos de perceber como “Deus faz novas todas as coisas” (Apoc. 21,5).
Precisamos fazer um jejum de imagens e sons que nos invadem com cobiças impostas de satisfações imediatas, para que no vazio humilde da alma e do corpo, possamos ser surpreendidos pela presença transparente e reveladora do Ressuscitado.
Nesse processo de purificação poderá renascer em nós uma nova sensibilidade para “buscar e encontrar”, com mais nitidez, a proximidade do Ressuscitado, tanto na beleza como na dureza do mundo.
Na oração: diante do Ressuscitado “repassar” os cinco sentidos:
Atrofiamos nosso olfato pelo temor a um mau odor. Desprezamos com indiferença os odores de nosso entorno, das pessoas, dos objetos...se não vem com a garantia de um perfume etiquetado. Buscamos espaços descontaminados, assépticos..., pois o odor da pobreza, da exclusão... nos inquieta e nos causa medo.
Em estreita relação com o olfato, nossa respiração, fonte vital de energia, se faz cada vez mais doentia. Praticar uma respiração profunda e tranquila está se transformando em um luxo.
O “viver com sabor” transformou-se numa loteria onde poucos tem possibilidade de acessá-la. Ficamos cada vez mais impossibilitados de “gostar” a fruta pelo sabor, para passar à alimentação ingerida mais pelos olhos. São os invólucros de nossos alimentos que nos alimentam. O sabor não conta para os experts em manipulação genética. O “saborear as coisas” pertence ao passado.
Nossos ouvidos, assaltados pela música virtual e por ruídos estridentes, se desconcertam ao descobrir o silêncio. Perdemos a sintonia dos sons naturais. É exagerado pedir que distingamos o cantar de um pássaro. A contemplação auditiva não registrada em CD nos parece uma perda de tempo.
A visão que, sem dúvida, é o sentido por excelência e o mais estimulado, é, ao mesmo tempo, o mais manipulado e violentado pelo excesso de imagens virtuais. Nosso campo de visão é cada vez mais reduzido, unicamente ampliado pelas telas digitais. Vemos tudo e não olhamos nada.
A urgência em “ver” tudo tira a atenção e o tempo necessário para poder “olhar pausadamente” e captar o “mistério” das coisas e das pessoas.
Portanto, um olhar desprovido de sentimento, de imaginação, de profundidade, de horizontes... Daí o olhar reprimido, desviado, insensível, frio, duro, ríspido... olhar supérfluo e imediatista, olhar narcisista, olhar morno, sem vibração, sem brilho, sem assombro... Nesse olhar não há lugar para a admiração e o assombro, nem para a acolhida e a presença do outro.
O tato supõe proximidade, imediatez... Tocar ou nos sentir tocados é, em determinadas circunstâncias, a linguagem mais inteligível do amor. No entanto, nosso mundo está cheio de alambrados, muros, valas e fronteiras; usamos de artimanhas para “ver de longe”. Com isso nos defendemos dos que são de outra raça, cor, religião, sexo, classe social... e nos fechamos no preconceito e na rigidez dos relacionamentos.
Precisamos de um autêntico transplante de pele.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.04.2012
A fé no Ressuscitado não nasce da constatação de poder ver o sepulcro vazio. Os exegetas estão de acordo que nem as aparições nem o sepulcro vazio foram a origem da primitiva fé. A fé interpreta o sepulcro vazio: no sepulcro não há nada, é vão ir ao sepulcro. As mulheres vão ao sepulcro buscando um cadáver, mas Jesus não é um cadáver: “Por quê buscais entre os mortos aquele que está vivo?”, “não está aqui”.
Ao refletir sobre os relatos das Aparições padecemos de um míope e estéril realismo: quê viram? Quê aconteceu? Como Ele apareceu?... Interessa-nos muito mais a curiosidade do investigador. Lemos os Evangelhos mais como jornalistas do que como pessoas de fé. Nosso desejo era ter estado ali e ver tudo com nossos próprios olhos.
Mas, se tivéssemos estado ali, teríamos acreditado no Crucificado? Esta é a pergunta decisiva. Esta é a finalidade do relato de João, especialmente do conjunto Paixão/Ressurreição: “que creiais no Crucificado”. Aquele que não sente sua fé interpelada, posta em perigo, pelo crucificado e pelos crucificados do mundo, não tem uma fé bem enraizada.
Os relatos das Aparições nos advertem de que não se trata de uma crônica de acontecimentos. O que João quer nos comunicar são vivências internas dos discípulos reunidos; o que ele quer nos transmitir está mais além daquilo que entra pelos sentidos ou podemos imaginar.
Destacamos algumas das expressões do relato de João para formular a fé no Crucificado/Ressuscitado. Este relato se revela como uma catequese muito rica em conteúdo. Por uma parte, vincula a ressurreição com a paz, o dom do Espírito, o perdão, a fé, a missão... Por outra, parece querer responder aos cristãos da “segunda geração”, que já não haviam conhecido o Jesus histórico, nem haviam participado daquela primeira experiência “fundante”. É a eles, representados na figura de Tomé, que lhes é dito: “Bem-aventurados aqueles que creram sem terem visto”.
* “O primeiro dia da semana”: começa uma nova Criação e com ela, uma nova Aliança. Em Jesus se completa a criação do ser humano, levando a humanidade à sua plenitude.
O local fechado, como consequência do medo, delimita o espaço da comunidade em meio a um mundo hostil. A mensagem de Maria Madalena fazendo-os saber que Jesus vivia, não os havia libertado do medo.
Jesus sai ao encontro dos discípulos inesperadamente; sua presença se efetua diretamente. Ele é quem toma sempre a iniciativa e aparece no centro da comunidade, porque, agora, Ele é para eles a única referência e fator de unidade. A presença que experimentam não é uma invenção nem surge de um desejo ou expectativa dos discípulos. A nenhum deles teria passado pela cabeça que Jesus pudesse aparecer, uma vez que tinham testemunhado seu fracasso e sua morte.
A experiência se impõe a partir de fora, a partir de uma instância superior. Jesus se faz presente na vida real. A nova maneira de Jesus estar presente não tem nada a ver com o templo ou com os ritos religiosos; nem sequer os discípulos estão orando quando Jesus se faz presente.
O movimento cristão não começou seu caminho como uma nova religião, mas como uma forma de vida. Todos os relatos das Aparições revelam aos primeiros cristãos que é nos afazeres cotidianos que o Cristo se faz presente. Se não O encontramos nas situações da vida real, não O encontraremos em nenhuma parte. A ressurreição é um acontecimento já presente; somos já ressuscitados, ou seja, a Vida ilimitada que se manifesta no ritmo normal da vida.
* “A paz esteja convosco”: Jesus os saúda; o calor da saudação elimina o medo e as incertezas; é o gesto que conecta o que está acontecendo com o Jesus que viveu e comeu com eles.
A presença de Jesus se impõe como figura próxima e amistosa, que manifesta seu interesse por eles e que busca conduzi-los à sua plenitude de vida. A primeira saudação pretendia afastar-lhes o medo; a segunda saudação procura dar-lhes forças para a missão. Trata-se de uma paz para o presente e para o futuro.
* “Mostrou-lhes as mãos e o lado”: Jesus é reconhecível, é o mesmo, é o crucificado, é seu corpo chagado. Trata-se de crer no crucificado. Mais uma vez, os sinais são inseparáveis da morte e da entrega a uma causa: o Reino. Não é a passagem a uma condição superior à do ser humano, mas a mesma condição humana levada a seu cume, assumindo sua história anterior.
As chagas, sinal de seu amor extremo, evidenciam que é o mesmo que morreu na cruz. Já não há lugar para o medo da morte. Ninguém poderá tirar de Jesus a verdadeira Vida, nem tirá-la dos seus discípulos. A permanência dos sinais de sua morte indica a permanência de amor; elas são as cicatrizes de um compromisso com a vida. Além disso, elas garantem a identificação do Ressuscitado com o Jesus Crucificado.
* “Soprou sobre eles”: É o mesmo gesto do Criador ao fazer do homem de barro um “ser vivente”. Tudo isso é obra do Espírito. Deus atuou em Jesus, atua em nós e atua no mundo. A obra da Criação continua. No sétimo dia, Deus não descansa, o Salvador não descansa até que todos sejam filhos e filhas. Jesus é nova Criação; nós também. Somos criadores com Deus, à sua imagem e semelhança.
* “Meu Senhor e meu Deus”: A resposta de Tomé é tão extrema quanto sua incredulidade. Ao chamar-lhe "Senhor”, reconhece o amor de Jesus e o aceita dando-lhe sua adesão. Ao dizer “meu” expressa sua proximidade, como Madalena. Não precisou tocar as chagas, mas precisou tomar consciência de que o Ressuscitado é infinitamente mais que aquilo que nossos sentidos podem captar. E ao reconhecê-Lo, modifica-se também a percepção de nossa própria identidade e nos mergulhamos no assombro, na admiração e no louvor.
Tomé tem agora a mesma experiência dos outros: “ver a Jesus em pessoa”, que não é uma mera afirmação de visão sensorial; significa a experiência de Jesus que o transformou. Essa incrível transformação se faz visível no grupo dos seguidores de Jesus, que passam de um grupo medroso em dispersão a uma comunidade corajosa que dá testemunho de sua fé em Jesus.
A reprovação de Jesus se refere à negativa de crer no testemunho da comunidade. Tomé queria ter um contato com Jesus como o que tinha antes de sua morte. Mas a adesão não se dá ao Jesus do passado, mas ao Jesus presente, que é ao mesmo tempo o mesmo e diferente.
O dinamismo da comunidade torna possível a experiência de Jesus vivo, ressuscitado.
* “Bem-aventurados os que creram sem terem visto!”: O Ressuscitado convida a “crer” porque, quando se crê, se “vê”. A fé possibilita um olhar contemplativo: vê o que todo mundo vê, mas de maneira diferente. Vê sinais do Ressuscitado em tudo o que existe e compreende que tudo tem um sentido, imperceptível à luz dos sentidos externos.
“O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas olhando para a direita e para a esquerda, e de vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento é aquilo que nunca antes eu tinha visto, e eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo...” (Fernando Pessoa)
Nossa cultura contemporânea nos modela para a especialização e o especialista fechado é aquele que perdeu o olhar aberto, simples e natural, o olhar assombrado diante de cada aspecto da realidade. É alguém com a nuca rígida, o pescoço duro que perdeu os movimentos e a flexibilidade de olhar para os lados, para cima, para baixo e para trás.
É alguém com uma viseira que restringe a amplitude do olhar. Neste olhar estreito e minimizado, o inusitado nos escapa. Perdemos o deslumbramento, o espanto essencial. Padecemos no túmulo do conhecido e rotineiro; já não renascemos para a “eterna novidade do mundo”.
No caminho viciado e repetitivo, a acomodação assassina o movimento do olhar ousado; a criança divina que nos habita perde seu “pasmo essencial”.
Ter um olhar contemplativo significa “olhar” para a realidade através de todos os seus lados, ângulos e recantos. Os olhos estão ligados ao coração – olhos abertos, olhos claros e luminosos, olhos compassivos e acolhedores. Um olhar profundamente sensibilizado possibilita o encontro de pessoa a pessoa, de coração a coração. Só o coração que abre o depósito de seus sentimentos disporá de um belo trampolim para contemplar o “mistério” escondido na realidade. “Quando o coração está cheio, os olhos transbordam”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
15.04.2012
Tua vida se via destruída mas tu alcançavas a plenitude.
Aparecias crucificado como um escravo mas chegavas a toda liberdade.
Havias sido reduzido ao silêncio mas eras a palavra maior do amor.
A morte exibia sua vitória mas a derrotavas para todos.
O Reino parecia esvair-se contigo mas o edificavas com entrega absoluta.
Acreditavam os chefes que te haviam tirado tudo mas tu te entregavas para a vida de todos.
Morrias como um abandonado pelo Pai mas Ele te acolhia em um abraço sem distâncias.
Desaparecias para sempre no sepulcro mas inauguravas uma presença universal.
Não é apenas aparência de fracasso a morte do que se entrega a teu desígnio?
Não somos mais radicalmente livres quando nos abandonamos em teu projeto?
Não está mais próxima nossa plenitude quando vamos sendo despojados em teu mistério?
Não é a alegria tua última palavra em meio às cruzes dos justos?
Benjamin González Buelta sj
UMA VIDA CONSUMADA FAZ FECUNDA A MORTE
“A tragédia não é quando um homem morre; a tragédia é aquilo que morredentro de um homem enquanto ele ainda está vivo” (Albert Schweitzer)
O sentido da vida: não há pergunta que se faça com maior angústia, e parece que todos são por ela assombrados de vez em quando: “vale a pena viver?”Ninguém tem uma razão pela qual viver se não tem ao mesmo tempo uma razão pela qual morrer. O ser humano tem necessidade de uma causa, de canalizar todas as suas forças, seus desejos, energias, im-pulsos vitais e recursos internos e externos em direção a um objetivo no qual acredita apaixonadamente. E a ele dedicar-se com tudo que é e possui. Com intensa paixão.
A vida tem fome e sede de significado. A questão do “sentido da vida” ou a “vida com sentido” é fundamental na existência humana.- Por quê vivemos? Para quê vivemos? Quanto vale uma vida e o quê vale na vida?- Quem quer ficar ancorado? Quem não aspira preencher a própria vida de relatos, encontros, paixões, gestos, lições, projetos, idéias e sentimentos?Sabemos que, para viver uma vida verdadeiramente humana, precisamos de sentido. Segundo Nietzsche, “aquele que tem um porquê pelo qual viver pode tolerar praticamente qualquer como”. Ao perder o sentido de sua origem e do seu fim, o ser humano perde o sentido da própria vida.
Por trás do ritmo acelerado e stressante dos nossos tempos, esconde-se um enfraquecimento do sentido da existência. A crise pós-moderna que vivemos revela este traço sinistro: as pessoas não percebem mais razões e causas pelas quais se entregar, pelas quais dar a vida. E assim não encontram igualmente motiva-ções para viver intensamente. Segundo S. Inácio, uma pessoa vale pela causa à qual se entrega.Muitas vezes, nossas fomes viscerais, nossos desejos que nos devoram as entranhas, nossos sonhos que nos inquietam... não encontram canais amplos para jorrar. E então se atrofiam, permanecendo reféns de uma triste mediocridade. Surge então a “normose” que mina as forças, atrofia os sonhos e mata a criatividade. E o pior de tudo: anestesia a paixão. Se não há paixão naquilo que fazemos, tudo vira rotina cansativa, não há empenho e nem compromisso possível. “Viver a fundo” é não passar pela superfície da vida, é não perder a capa-cidade de amar, de vibrar, de buscar... Aqueles que são movidos pela paixão apostam que o ser humano tem potencial criador e foi feito para voar alto, para tentar, mil e uma vezes, alcançar cumes distantes.“A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, es-quivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade” ( C. Drummond de Andrade)
A vida humana é fecunda, é potencial humano, é explosão de criatividade... Assim como na semente há vida latente espe-rando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano encontram-se ricas possibilidades, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se plenificarem.Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos vivem, porque incapazes de re-inventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transpa-recer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira vida se libere. O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
Há um dado que nos afeta a todos nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da experiência humana. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana.Vivemos uma das grandes mentiras de nossa cultura, ou seja, a morte já não está presente no cenário cotidiano, já não existe. A morte é distante e virtual, que não afeta à nossa própria sensibilidade. Vivemos como se tivéssemos que ser imortais. Sempre é assunto dos outros, mas nunca pode ser assunto “meu”. Quando ela está perto, as pessoas se afastam dela, ou então, ela é afastada para locais específicos. É o fracasso radical de uma cultura fundada sobre o êxito e o sucesso e, quando sente-se a presença da morte, tudo fica desestabilizado.
Mas o confronto com a morte não precisa desembocar em um desespero que possa destituir a vida de todo sentido. Ao contrário, ela pode ser uma experiência que nos faz despertar para uma vida mais intensa.Ela nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ela aumenta a consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida intensa e plenamente, acumulando o mínimo de arrependimen-to possível. Paul Theroux disse que a morte é tão dolorosa de se contemplar que nos faz “amar a vida e valorizá-la com tal paixão que ela poderia ser a causa verdadeira de toda felicidade e de toda arte”.A experiência da morte pode servir como uma experiência reveladora, um catalisador extremamente útil para grandes mudanças na vida. “A morte, menos temida, dá mais vida”.Pensadores mais antigos nos lembram da interdependência entre vida e morte.Eles nos ensinaram que aprender a viver bem é aprender a morrer bem, e que, reciprocamente, aprender a morrer bem é aprender a viver bem. Quanto mais mal vivida é a vida, maior é a angústia da morte; quanto mais se fracassa em viver plenamente, mais se teme a morte.S. Agostinho escreveu que “é apenas perante a morte que o caráter de um homem nasce”.Muitos monges medievais mantinham uma caveira humana em suas celas para concentrar os pensamen-tos na mortalidade e para servir de lição à condução da vida. Montaigne sugeriu que a mesa de trabalho de um escritor deve oferecer uma boa visão do cemitério para estimular o pensamento.
E a morte não é o fim da vida, mas sua plenitude, quando esta é vivida com sentido.A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão...Desperdiçar a vida é estragar a existência. É trágico que a pessoa jogue fora a vida. Quem conhece o valor da vida não pode degradá-la.E a morte é processo permanente de esvaziamento do ego para viver a entrega aos outros. Este esva-ziamento não significa a anulação da “pessoa”, mas sua potenciação. Na medida em que os aspectos que a limitam diminuem, aumenta o que há de plenitude.O essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”.A vida aumenta quando compartilha e se debilita quando permanece no isolamento e na comodidade.De fato, aqueles que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se dedicam apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros.O Evangelho de hoje nos ajuda a descobrir que o cuidado doentio da própria vida atenta contra a qualidade humana e cristã dessa mesma vida. Aqui descobrimos outra lei profunda da realidade: alcança-se a maturidade da vida à medida que ela é entregue para dar vida a outros.
Texto bíblico: Jo. 12,20-33
Na oração: Somos grãos de trigo na grande seara do mundo; e o grão de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com sentido. Aprendamos a morrer para nossos interesses mesquinhos para que os outros vivam.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Terceira semana da Quaresma: Espaço para a autenticidade
Gosto, mas gosto muito, que a primeira palavra de Jesus no Evangelho de João seja uma pergunta (e seja aquela pergunta): “Que procurais?” (Jo 1,38). Consola-me ir percebendo que o que sustenta a arquitetura dos encontros e dos desencontros que os Evangelhos relatam é uma espécie de coreografia de perguntas, um intenso tráfico interrogativo, construído a maior parte do tempo a tatear, sem saber bem, com muitas dúvidas, muitos disparos ao lado, muita incapacidade até de comunicar. Isso é uma âncora, por muito que nos custe, pois uma vida só assente em respostas é uma vida diminuída, à maneira de uma primavera que não chegou a ser.
Não sei como vai rebentar em nós a primavera, como se vai acender este reflorir que a natureza insinua, este renascer que o gesto pascal de Jesus espantosamente (res)suscita na nossa humanidade. Sei apenas que nas perguntas, mesmo naquelas que são difíceis e nos estremecem, reencontramos a vida exposta e aberta, certamente mais frágil, mas a única que nos permite tocar as margens de uma existência autêntica.
Todos somos habitados por perguntas e elas cartografam zonas silenciosas, territórios de fronteira do nosso ser. Estes dias reencontrei a pergunta de Pilatos (ainda no Evangelho de João): “O que é a verdade?” (Jo18,38). E dei comigo a aproximar esta pergunta de uma das frases emblemáticas de Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,2). Sem querer relativizar a natureza densamente dogmática do enunciado, dei comigo, porém, a revisitá-lo em chave existencial. E era como se Jesus, mestre da vida que incessantemente se reformula em nós, nos desafiasse a uma apropriação. Sim, a uma apropriação.
É necessário que perante a multidão dos caminhos percorridos e a percorrer cada um de nós diga: “eu sou o caminho que percorro”. É decisivo que as verdades que acordamos não sejam uma sobreposição, mas uma expressão profunda do que somos: “eu sou a verdade”. É urgente que a vida não seja só a acumulação do tempo e do seu cavalgar sonâmbulo, mas que cada um, pelo menos uma vez, possa dizer plenamente: “eu sou a vida”. Acho que é disto que o mistério pascal fala.
José Tolentino Mendonça
in: site do secretariado nacional da pastoral da cultura de portugal
Jesus, na sua vida pública, nos revela que Deus não é propriedade de nenhuma religião ou sacerdócio e que ninguém pode reduzi-Lo a uma verdade única, porque Ele se mostra no amor mútuo e na entrega da própria vida. Ao mesmo tempo, Jesus denuncia o “deus” manipulado pelos representantes religiosos e que justificava os seus poderes sobre as consciências das pessoas.
Os fariseus e sacerdotes queriam um Deus e um céu que não se contaminassem com os deserdados desta terra; queriam um Templo como lugar de pureza e de perfeição, legitimado por uma ordem que se constrói sobre o sofrimento e a exclusão. Eles não queriam um Templo que fosse a casa dos impuros, dos abatidos e excluídos, dos encurvados e oprimidos, dos leprosos, cegos e coxos...
O Templo, como não pode ser o lar dos filhos e filhas afligidos da casa de Israel, será destruído.
O lugar da Presença que alimentava as esperanças de Israel se converteu em cova de bandidos; o Templo passou a ser gerido pelos traficantes da dor, aqueles que fazem sofrer em nome de Deus. Tal denúncia desestabilizou o sistema religioso sobre o qual a instituição sacerdotal se sustentava.
Esta foi a principal fonte de conflitos de Jesus com os fariseus e sacerdotes que, em nome de Deus, exerciam o poder e a dominação sobre as pessoas e sobre o mais íntimo que há em cada um: sua cons-ciência e sua liberdade para tomar decisões na vida e expressar sua fé em Deus.
O conflito de Jesus foi o conflito com o poder, mas o poder levado até sua raiz última: o “poder religi-oso”. Por isso, Jesus compreendeu que, para mudar o comportamento dos dirigentes do Templo, a pri-meira coisa a fazer era desmontar o “ídolo” que legitimava o poder autoritário daqueles que oprimiam o povo indefeso. No fundo, o que preocupava Jesus era o problema de “Deus”; e Deus não era como os dirigentes imaginavam e que estava de acordo com seus critérios e sua posição social.
Jesus desmontou o “seu deus” e atirou por terra “seus podres poderes”. Este é o círculo infernal que Jesus quis romper.
Templo de Jerusalém! Não ficará pedra sobre pedra. Jesus não quer que se negocie com a dor dos mais pobres e excluídos, os preferi-dos do Pai. Jesus não quer sangue, nem in-censo; quer compaixão, ternura, quer justiça, quer que o ser humano viva, e viva intensamente.
O Deus que Jesus nos revelou é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como representantes do divino.
O Deus de Jesus é o Deus que responde e corresponde aos anseios de respeito, dignidade e felicidade, que todos trazem inscritos no sangue de suas vidas e nos sentimentos mais autênticos e nobres.
O Deus Misericordioso não impulsiona ninguém a desejar poderes, por mais divinos que sejam. Ele é o Deus que só legitima a identificação e até a fusão com o destino das vítimas deste mundo.
Este confronto de Jesus com os poderes religiosos ficou evidente na cena da “expulsão dos vendilhões do Templo”. Este é o momento mais tenso da atuação de Jesus: com seu gesto Ele atinge o centro do poder religioso, encarnado no Templo; Ele arremessa diretamente contra o Templo, pois este não dá frutos e nunca dará.
O Templo já não é mais a morada de Deus, pois Ele foi desalojado pelo poder sacerdotal. O Templo, o sacerdócio, a lei, não deram frutos libertadores para o ser humano Estão aí, secos e estéreis, e não servem para a realização humana; por isso, Jesus expulsa seus representantes
Jesus colocou o ser humano acima da Lei e diz “não” a uma aliança fundada no culto externo ou ritual.
Rompe com todo o ritualismo e legalismo anterior e nos oferece uma alternativa encarnada na vida. Não se trata mais de uma imposição baseada na Lei, mas algo que todos podemos experimentar.
Não se realiza no Templo, mas fora do Templo, em nossas casas abertas, em nossas ruas e estradas, onde todos têm acesso e a partilha criativa possibilita que todos tenham vida.
Jesus, literalmente, “virou as mesas”, e a nova mesa que Ele propõe está fora do Templo, aberta a todos. O “ser humano” é agora o centro desse culto, que consiste na entrega aos outros. Não é mais a Lei que impera, mas o amor; não é condenação, mas a acolhida e a compaixão. O templo é a própria pessoa que está acima da lei e do culto. A relação com Deus não necessita intermediários e a relação entre as pessoas é horizontal. “Outro Deus é possível”.
Há um traço na personalidade de Jesus que os Evangelhos destacam: Ele era um “transgressor”.
Rompeu com a família, afastou-se da vida normal que todos levavam, rompeu com as tradições de seu povo, violou a lei do sábado, não respeitou as hierarquias, a ordem estabelecida, revelou-se livre perante o Templo, o culto... Sua transgressão decorria da percepção de situações extremamente injustas vigentes na sociedade e das quais as primeiras vítimas eram os excluídos. Jesus optou por ficar do lado das vítimas.
Jesus ousou transgredir. E transgrediu fronteiras que pareciam intocáveis. Transgrediu o sábado e considerou a vida como prioridade. “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc. 2,27). Transgrediu a Lei de Moisés e não permitiu que a mulher adúltera fosse apedrejada (Jo. 8,3-11). Transgrediu a prioridade do “sacrifício”.“Misericórdia é que eu quero, e não sacrifício” (Mt. 9,13).
Jesus transgrediu fronteiras judaicas e mostrou que o projeto de Deus ultrapassa limites geográficos.
Aquele “dia de entrada no Templo” foi uma autêntica manifestação de desafio; Jesus transgrediu ousadamente ao “expulsar os vendedores e cambistas” instalados no Templo. E essa foi a “sua hora”: desmascarar a manipulação e extorsão com as quais o poder religioso tinha oprimido o povo.
Quando os chefes religiosos perguntam a Jesus com que autoridade desafia o poder estabelecido, Ele responde: “Destruí este Templo e em três dias o reedificarei”. E o evangelista acrescenta: “Ele se referia à própria pessoa”.
O sujeito do culto não é mais o poder, mas a pessoa mesma.
O templo e a lei devem ficar submetidos e devem estar a serviço do ser humano; portanto, este não pode ser objeto de nenhuma manipulação.
Jesus diz que o autêntico templo de Deus é a pessoa e que esse templo não há quem o destrua. Ele revela que o ser humano é o grande valor querido por Deus, e que o sábado, a lei e o Templo são meios para facilitar a humanização; é a vida humana está revestida de sacralidade e não os altares, os templos e os costumes antigos.
Texto bíblico: Jo. 2,13-25
Na oração: As portas do “novo Templo”, que é Jesus, estão abertas para todos; ninguém está excluído.
Podem entrar nele os pecadores, os impuros, os excluídos, os marginalizados da religião... O Deus que habita em Jesus é de todos e para todos.
Somos também o “novo templo”, morada do Espírito, presença que alarga nosso interior para que todos possam ali ter acesso.
Quem são os “frequentadores” do seu “templo interior”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.03.2012
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