“O Senhor volte para ti o seu rosto e de dê a paz!” (Nm 6,26)
O relato do Nascimento de Jesus nos desafia a superar a rotina acostumada e romper as estreitezas da vida para poder acolher a admirável profundidade que se esconde e se revela na simplicidade da cena, que em seu nível mais profundo ou espiritual, fala de todos nós. Ali fala-se de alguns pastores, de um presépio, de um recém-nascido, de uma mulher que “guarda” um segredo, de um homem silencioso... Toda a cena quer introduzir-nos em um Silêncio admirado e agradecido, pleno de luz, de paz e de gratidão.
A simplicidade do relato nos convida a mergulhar no Mistério que aí se expressa. Tudo está aí. E, da mesma maneira, tudo é agora. Pastores, presépio, recém-nascido, um casal silencioso...: quando sabemos olhar, descobrimos que tudo está cheio da Presença que pacifica.
A Presença ou o Mistério não é uma realidade separada da nossa vida, nem à margem da realidade e da criação. Por esse motivo, os personagens presentes na Gruta de Belém representam a realidade inteira: somos nós mesmos, é tudo o que nos rodeia neste preciso momento, são todos os seres.
E diante dessa manifestação, o que nos resta? A atitude de Maria: acolher todas as coisas, “guardá-las”, “meditando-as no coração”. Ir mais além dos conceitos e das palavras e, desse modo, descansar – admirados, agradecidos, irmanados, pacificados – no Mistério e deixar-nos conduzir por Ele.
“Meditar as coisas no coração” significa ativar o “olhar contemplativo” que se encontra em todos nós e que se manifesta quando cessamos nosso palavreado crônico. Serenados interiormente, somos presentea-dos com o dom de permanecer no presente, onde tudo está bem, onde tudo flui mansamente e na santa paz.
Este é o desafio diante do Novo Ano que se inicia: devemos primar por construir “ambientes de paz”: paz que vem do alto, que aquece nossos corações, plenifica nossas relações e se expande, tal como perfume, em todas as direções.
Paz é aspiração congênita do ser humano. Nosso coração humano foi feito para a paz e anseia a convi-vência harmoniosa com Deus, com o cosmos, com os nossos semelhantes. É processo interminável.
Na raiz bíblica do termo “shalom”, (em latim “pax”) está a ideia de “algo completo, inteiro”. A paz pertence à plenitude, à completude, enquanto a violência está do lado da falta, da carência, do incompleto.
Paz reflete harmonia consigo, boas relações com os outros, aliança com Deus, enquanto a violência infecciona os relacionamentos, contamina a convivência, rompe os vínculos, exclui os mais fracos...
Paz: há milênios esta palavra ressoa e ecoa na história dos povos. Inúmeros homens e mulheres a culti-vam secretamente no coração. Todos a invocam. Muitos dão a vida, defendendo-a...
A paz autêntica contém densidade humana. É paz de consciência inocente dos justos que fazem o bem, dos profetas que se arriscam em favor dos outros. Paz é humanidade alegre, espontânea, confiante.
Paz não é sossego, não é alienação, nem cumplicidade.
Paz requer bravura. Somente o ser humano amante da paz é realmente “perigoso”, não o violento.
Mas, a paz ainda não encontrou espaço para ser a companheira de estrada em nosso cotidiano. O contexto social-político-religioso no qual vivemos está carregado de profundas divisões, ódios, intolerâncias, mentiras, preconceitos, violências... Há um “cheiro de morte” que nos paralisa e nos impede viver relações mais sadias e respeitosas para com os outros.
No entanto, permanece a promessa profética de que ela habitará na nossa terra. Assim, o sonho impossível, que reina desde sempre no coração do Senhor, amante da Paz, se realizará, graças àquelas pessoas revolucio-nárias, que acreditam, desejam e realizam a paz. Na Gruta de Belém tudo exala paz e o encontro com Aquele que é o “príncipe da paz” nos inspira a sermos presenças pacificadoras.
Paz “solidária” que abraça os excluídos; paz “resistência” que não se acovarda; paz “audácia” que não se amedronta; paz “limpa” que não corrompe a ética; paz “profética” que encarna a justiça; paz “rebelada” que não se dobra; paz “estética” que revela a face bela da nova humanidade... (cf. Juvenal Arduini).
Na carta de S. Paulo aos Efésios, Cristo é chamado “a nossa paz” (Ef. 2,14).
A paz é característica do reino messiânico que Jesus inaugurou. Ele revela que a paz é um trabalho muito paciente, de artesanato. Ele era um artesão, um carpinteiro.
Ele sabia que para ser mestre na arte de fazer móveis era preciso saber aplainar muito bem. A paz começa nesta arte de aplainar o que em cada um de nós é áspero e duro; há divisões e conflitos em nosso interior..., mas nós podemos, pacientemente, construir a paz do coração.
Quem tem paz irradia luz; quem vive na luz constrói a paz. Paz expansiva, paz que é respiração da vida, paz marcada pela esperança.
“Que a Paz de Cristo reine em vossos corações” (Col. 3,15)
No início deste Novo ano confessamos: apareceu um Menino; fizeram-se visíveis a ternura, a paz e a doçura do Deus que salva.
A ternura pobre do presépio ajuda a dizer “sim” ao que importa e a recuperar nosso centro em Deus.
Por isso, a paz é carregada de ternura. Só a ternura de uma criança pode nos tirar de nossos lugares atrofiados. A ternura de Deus continua fazendo-se alternativa original. Quando expandimos nosso espaço interior e a acolhemos, a ternura nos move a fazer visitas inesperadas a enfermos, presentear tempo e não objetos, investir a “fundo perdido” em quietude, oração e reconciliação e substituir as felicitações impessoais dos celulares por palavras de vida, que ajudem a curar feridas do caminho.
A ternura alternativa acolhe solidões, sofrimentos familiares e enfrenta os contratempos da vida tal como aparecem, anunciando que Deus nasce para todas e cada uma de nossas histórias. Depende de nós abrir-lhe a porta e deixar que ela faça morada em nós.
Na Gruta de Belém todos são acolhidos e a paz brota da hospitalidade. Se queremos a paz, preparemos as boas-vindas, aprendamos a ver os outros não como inimigos, mas como seres humanos, cujos rostos nos convidam a expandir nossas fronteiras para encontrar-nos neles, em diálogo e comunhão com suas necessidades, sorrindo com eles e recebendo-os em nossas casas. A hospitalidade é a chave para construir um mundo humano, sem fronteiras, onde todas as pessoas possam viver juntas e em paz.
A paz, por si mesma, é expansiva; por isso, encontrar-nos com Deus na própria morada interna não é fechar-nos num intimismo estéril; implica ampliar o espaço do coração para acolher o outro que pensa, sente e ama de maneira diferente, porque também ele é morada da Criança de Belém.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: A paz é um dos dons que se faz visível no rosto do Deus-Menino e, como seus
(suas) seguidores(as), somos desafiados(as) a uma visão mais aprofundada, pessoal e coletiva, sobre o sentido e a força mobilizadora da verdadeira paz.
- Como exercer o “ministério da pacificação” no seu ambiente cotidiano? Como reconstruir os vínculos que foram rompidos por questões políticas, religiosas...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
31.12.22
“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14)
Nenhuma palavra consegue expressar com profundidade o mistério do Natal que estamos celebrando. Talvez o melhor seria aplicar o provérbio oriental: “Se tua palavra não é melhor que o silêncio, cala-te”. Só em chave de silêncio podemos compreender a Encarnação e o Nascimento de Jesus. O que devemos descobrir não pode vir de fora, mas deve surgir do mais profundo de nós mesmos.
As leituras dos evangelhos indicados pela liturgia para o “tempo do Natal” certamente farão transbordar em nosso interior os sentimentos mais nobres e elevados. Mas isto não basta para nos situar diante do Mistério e vivê-lo com intensidade. Falamos de uma noite surpreendente, mas para a contemplação. Sem esta contemplação, permanecerá um vazio interior, sem nenhum sentido religioso. O valor desta festa depende de nossa atitude. Nada substituirá o itinerário para o centro de nós mesmo. Só ali acontece o mistério; só no mais profundo de nós mesmos descobriremos a presença de Deus.
Celebrar a Encarnação-Nascimento de Jesus pode nos ajudar a encontrar a Deus dentro de nós e no coração dos outros. Jesus nasceu, viveu e morreu em um lugar e um tempo determinado, mas não estamos celebrando um aniversário. Os dados históricos não têm maior relevância: não sabemos onde Jesus nasceu, não sabemos quando, nem em que dia ou mês. Tudo o que digamos d’Ele, a partir do ponto de vista histórico, aponta para o desconcerto. Não se trata de recordar e celebrar o que aconteceu faz dois mil anos, mas de descobrir o que está acontecendo hoje em cada um de nós. Devemos descobrir, celebrar e viver conscientemente essa realidade sublime. Este é o sentido do Natal.
O que celebramos, na noite de Natal, é precisamente isso: o “sublime Mistério da Encarnação de Deus” em cada coração humano e em todo o Universo.
Como costuma ocorrer com os grandes mistérios da fé, acabamos adocicando e esvaziando o conceito original de “Encarnação”. Preferimos dizer “natal ou natividade”, fazendo referência a um termo latino relacionado com o “nascimento”. Por isso, nos fixamos em um nascimento – o de Jesus – e colocamos à margem o que realmente significa “encarnação”. Talvez, no fundo, “essa coisa de carne” não nos convence muito: é como se fosse algo muito “vulgar”, material, prosaico..., que se conecta com nossa dimensão corporal-sexual.
Afirmar que “Deus se fez carne” é quase uma heresia. Segundo a mentalidade que foi se propagando no cristianismo Deus é o Absoluto e não pode ser “contagiado” com a matéria corporal.
No entanto, a partir da Revelação bíblica, a Encarnação é Deus dentro de nós e dentro de toda a Realidade existente, sem se confundir ou desaparecer no que é perecível, no transitório.
Este é o grande “milagre” de Deus. “O Verbo se faz carne” na pessoa de um Menino que, dentro de sua corporeidade e sua realidade como ser humano verdadeiro “interioriza Deus na Humanidade”.
“Tão humano, tão humano... só podia ser Deus” (L. Boff).
Assim, a moral cristã, durante muitos séculos, alimentou uma espiritualidade “desencarnada”, piegas, cheia de culpas, angústias e remorsos. No fundo, negou-se uma dimensão humana tão nobre: o ser humano “é carne”. É da sua essência. O mistério da Encarnação-Nascimento vem iluminar e dignificar esta dimensão “carnal” que foi tão desprezada e gerou tantos conflitos morais. Na Encarnação do Filho, Deus se faz “carne”, se humaniza; assume e plenifica tudo o que é humano. Nada do humano é considerado como suspeita, fonte de pecado... Afinal, somos obras maravilhosas do Criador.
É preciso superar a pobreza do dualismo “corpo-alma” e retornar à visão antropológica bíblica onde o ser humano não “tem” corpo nem “tem” alma. Ele “é” corpo, “é” alma, “é” espírito, “é” sentimento, “é” relação, “é” afeto, “é” razão... Ele “é”, nas suas diferentes expressões.
A partir da Encarnação do Verbo não dá mais para imaginar um ser humano “compartimentado”, desintegrado, dividido nas suas dimensões existenciais. Ele “é” um todo, integrado, unido, pacificado...
Quão distante estamos da essência do Mistério da Encarnação!
Inácio de Loyola, ao propor a “contemplação da Encarnação”, nos Exercícios Espirituais, afirma: “recordar como as Três Pessoas divinas determinam, em sua eternidade, que a Segunda Pessoa se faça homem, para salvar o gênero humano”.
A Encarnação é o mistério fundante de nossa fé a ser vivido e não pensado. A Encarnação não é um evento isolado da história. Toda a Criação foi afetada; todos os fatos da história encontram nela seu sentido. A história humana se faz História de Salvação.
Assim sendo, “Deus não só se encarna; Ele é Encarnação”. A Encarnação não é um ato pontual, mas uma “atitude eterna de Deus”. A Encarnação já começa na criação do mundo: “Tudo foi feito por Ele, e sem Ele nada se fez de tudo que foi feito” (Jo 1,3); tudo é perpassado pela Sua Presença. Estamos falando do Verbo que tem a ousadia de penetrar as categorias de espaço e tempo, as únicas que nós temos para conhecer em plenitude a realidade de tudo.
Deus já veio, está vindo deste sempre; só o esperamos e o celebramos seu Nascimento de um modo simbólico, religioso, fraternal. Por isso, o Natal é tão inspirador e nos enche de paz, por saber que carregamos Deus dentro de nós, embora nem sempre saibamos disso, nem O vejamos. Deus deixa de ser o eterno desconhecido para se tornar “Emanuel”, Deus conosco. Já estamos salvos porque Deus se “encarnou” em nós, em todos: sem distinção de credo religioso, raça, língua, época em que se viva, idade que tenhamos, etc. “Assim novamente encarnado”, nos diz S. Inácio nos EE (n. 109). Encarnação permanente.
E por isso nos felicitamos, porque não somos órfãos, nem estamos perdidos em um Universo imenso, mas porque Deus é nosso cúmplice, o melhor avalista de que nossa vida é já Vida n’Ele.
Eis o “realismo da Encarnação”! Cada vez mais nos conscientizamos, com maior evidência, de que a Encarnação do Filho é isto: tomar a carne concreta da humanidade para viver nela, a partir dela, através dela, para dignificá-la na sua plenitude.
O Verbo não fez uma experiência de homem, mas, antes, “se humanizou”, se fez “carne”, na expressão de João (1,14). Mas é “Carne” que podemos ouvir, que podemos ver com os olhos, que podemos contemplar ou apalpar com as nossas mãos (1Jo. 1,1); “carne” de presépio e de patíbulo, “carne” de ternura e de coragem, “carne” de trabalho e de descanso; “carne” de homem e de mulher, “em tudo semelhante a nós”.
No Natal celebramos precisamente que Deus se fez “pele” e se deixou impactar por tudo aquilo que o rodeava. Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano. Na pobreza, na humildade da própria história pessoal, inserida na grande história da humanidade, torna-se possível acolher o dom do amor de Deus visível no Menino do Natal.
Texto bíblico: 1Jo. 1,1-18
Na oração: No Natal, diante do “Deus Ternura”, nossas reservas de bondade, compaixão, ino-cência, mansidão... são ativadas para dizer “sim” ao incompreensível Amor...
- Alargue seu interior para acolher a surpresa perma-nente da Encarnação d’Aquele que, em sua humanida-de, iluminou e deu sentido a tudo o que é humano.
- Mergulhe na contemplação do “mistério da Encarnação” e deixe ressoar o chamado a ser “presença encarnada” neste mundo tão carente de vida, de beleza, de humanização...
Desejo a todos(as) um inspirado Natal!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.12.2022
Imagem: adoração dos pastores - Rembrandt
“José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa...” (Mt 1,20)
A liturgia do quarto domingo do Advento nos motiva a buscar inspiração na pessoa de S. José, indicando-o como apoio e guia nos momentos de obscuridade e de dificuldade; ele é o homem do discernimento que, na solidão, no silêncio e na atenção ao seu coração, vai vislumbrando o caminho a assumir e a decisão a ser tomada. Sua presença silenciosa põe em destaque a pessoa de Maria que, por seu “fiat” e sua maternidade se revela a protagonista do Advento.
No contexto do mistério da Encarnação José se revela como um personagem de “segundo plano”, discreto e silencioso, recordando-nos o protagonismo oculto, mas imprescindível, de todos(as) aqueles(as) que atuam em favor do Reino, aparentemente escondidos(as) ou na “segunda fila”.
O Advento realça o valor de todas essas pessoas que não são como os cata-ventos que brilham no alto, mas vigas que sustentam o edifício no porão, e que tecem o essencial da existência. Pessoas aparentemente anônimas – mães, mestres, avós, amigos – que estão aí ajudando a construir um novo mundo, às vezes sem o reconhecimento por sua atitude sem preço. Assim também foi o caso do próprio Jesus de Nazaré, durante a maior parte de sua vida.
Neste 4º. domingo do Advento, fazemos memória de S. José como o referente de todas as pessoas que vivem uma profunda fidelidade a Deus, quase sem serem percebidas, mas com um protagonismo sem igual na história da Boa Notícia. O mundo precisa de homens e mulheres de discreta e humilde presença para sustentar os outros, sobretudo aqueles que carecem dos recursos necessários e vínculos humanos.
A atitude de José, homem de “segunda fila”, revela uma humildade e uma confiança tão cheia de generosidade como de incompreensão. Também foi grande o seu “fiat”. Abandonou-se no mistério de Deus, e isto implicou assumir uma missão incômoda que, certamente, não foi compreendida e aceita entre seus parentes e vizinhos; com plena disponibilidade e fé adulta acolheu os planos de Deus sem exigir maiores explicações. Seu lugar, a partir de então, é de “segunda fila”, cuidando amorosamente de sua família e renunciando todo protagonismo de intenso brilho.
José é conhecido como o santo do Advento porque neste tempo nos ensina com sua vida a atitude da espera e da confiança total em Deus que sempre cumpre suas promessas, embora, às vezes não coincidam com nossos planos. Com S. José podemos aprender de sua fé e sua humildade a dobrar nosso ego; sua valentia nos inspira a viver com mais disponibilidade; seu despojamento nos ajuda a afastar de nossa vida a busca de ostentação e vanglória... Atitudes estas que certamente acabaram lhe proporcionando uma verdadeira paz interior.
José de Nazaré foi aquele que se abriu ao Deus surpreendente e deixou-se conduzir por Ele. Dele não se diz muito nos evangelhos, mas o que ali se diz nos revela uma presença surpreendente, capaz de ver mais além do cotidiano e estabelecido. Presença que aponta para uma outra presença, a de Jesus.
Lendo o Evangelho com uma sensibilidade mais apurada podemos encontrar, com facilidade, uma descrição muito aproximada de quem era José, da casa de Davi. Em cada gesto de Jesus, revelava-se um ensinamento do Pai e de seu pai José; em cada parábola havia uma expressão da natureza e da terra com o selo de José, e uma mensagem espiritual inspirado a partir do alto. Em cada cura que Jesus realizava havia um modo e uma sensibilidade de tratar o enfermo, o desvalido, herdados da tradição mantida por José; e à hora de orar havia um hábito criado na casa de seu pai, fiel cumpridor da lei mosaica e aberto à novidade e ao mistério que seu filho Jesus deixava transparecer.
Enfim, quem, senão José, juntamente com Maria, pôde ensinar a Jesus a tratar às pessoas, a servir os mais pobres, a olhar, a falar, a sorrir...! Seria um equívoco considerar José uma espécie de marionete nas mãos de Deus, ou que fosse atropelado na sua liberdade. A mensagem evangélica tem como ponto de partida a convicção de ser possível o ser humano "escutar e praticar" a vontade de Deus, mesmo quando lhe é pedido algo, à primeira vista, superior à capacidade de suportar. José não deu mostras de agir a contragosto, acuado, pressionado ou duvidoso. Agiu com a liberdade de quem sabe o que faz, colocando-se à inteira disposição de Deus, com total generosidade. Ele conhecia as bases em que se fundamenta sua relação com Deus, onde se enraíza sua disposição para viver em profunda sintonia com Aquele que conduz a história para a sua plenitude.
José, na sua vocação paterna, torna-se “diá-fano” de Deus Pai (deixa transparecer a imagem pater-na/materna de Deus). Através do seu modo de ser e de agir, carregado de silêncio inspirador, José, não só revela uma profunda comunhão com Aquele que o chamou a assumir a vocação paterna, mas deixou “fluir”, no cotidiano e na simplicidade de sua vida, os atributos d’Aquele que o conduzia. O coração de José passa a pulsar em acorde com o coração de Deus Pai: a Paternidade divina flui na paternidade humana.
Deus Pai encontrou liberdade para ativar e tornar visível em José as características próprias de um pai:
“Não se nasce pai, torna-se tal... E não se torna pai, apenas porque se colocou no mundo um filho, mas porque se cuida responsavelmente dele. Sempre que alguém assume a responsabilidade pela vida de outrem, em certo sentido exercita a paternidade a seu respeito”. (Papa Francisco, Patris Corde)
Porque estava presente a Deus, José fez-se presente nos momentos decisivos da Família de Nazaré, bem como fez-se presente na vida das pessoas. Uma presença que faz a diferença: presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de um pai que acompanha tudo com ternura.
Sua presença não era presença anônima, mas comprometida; presença que é “música calada” nos lugares cotidianos e escondidos, que sabe enternecer-se e escutar as inquietações que procedem desses lugares. Uma presença que descobre o próximo no próximo, que sabe resgatar a solidariedade na vida cotidiana; uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.
Em meio à rotina de uma vida simples, José foi fazendo-se perguntas, esperando as respostas, ouvindo o que seu coração lhe dizia e discernindo o que Deus queria dele. Ano após ano, em um pequeno lugar, detrás de uma vida que nada tinha de diferente das outras vidas.
José, em Nazaré, continua sendo luminoso e inspirador para todos nós, num momento em que as transformações são rápidas e exigem de nós maturidade, aprendizado, diálogo, novas expressões de fé...
Como homem, José precisou passar pelo processo do amadurecimento lento, lançando mão de todos os recursos que encontrou em seu próprio interior e ao seu redor.
Cozinhar a fogo lento é bem difícil neste mundo de pressas e imediatismos. E hoje, mais do que nunca, se fazem necessários os “tempos de Nazaré”, esses tempos de aparente rotina nos quais se alimentam os sonhos, onde se forjam as vontades, se domam as impaciências, se aclaram os caminhos, se discerne a Voz, se dissipam as névoas do caminho... Em definitiva, esse tempo onde nosso canto e o de Deus se afinam juntos para formar uma única melodia e fazê-la ressoar no mundo.
Texto bíblico: Mt 1,18-24
Na oração: Deus nunca deixa de atuar no meio das nossas noites, dúvidas, provações. Ele conhece nossos pensamentos e temores. E, no momento certo, nos liberta dos nossos medos e nos dá a conhecer sua Vontade.
- Recordar momentos de dúvidas, incertezas, desolações..., mas que lhe ajudaram a amadurecer na fé e na adesão ao projeto de Deus.
- Diante de pequenas ou grandes decisões: há espaço e tempo de discernimento? de escuta atenta?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.12.22
Imagem: Vicente Lopes Portaña
“Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo” (Mt 11,4)
Na prisão de Maqueronte, onde está confinado por ordem de Herodes, João Batista recebe notícias de Jesus; e o que ele ouve o deixa desconcertado, pois Jesus não corresponde às suas expectativas. João espera um Messias que se imponha pela força terrível do juízo de Deus, salvando àqueles que acolheram seu batismo e condenando àqueles que o rejeitaram. Quem é Jesus? Nem João, nem os rabinos, nem os sacerdotes, nem os apóstolos estavam capacitados para entender Jesus. Sua presença e atuação não se ajustavam ao que eles esperavam do Messias. Jesus rompe com todas as concepções e esquemas mentais, desmonta todas as expectativas, frustra uma visão...
A novidade de Jesus é muito maior do que aquilo que podiam esperar; além disso, o que Ele traz vai na direção contrária do que esperavam do Messias. Não vem com podere força; não vem impor nada, senão propor uma dinâmica de serviço e desatar a vida travada. Jesus “tem um caso de amor com a vida”.
Para sair de suas dúvidas João envia dois discípulos que perguntam a Jesus sobre sua verdadeira identidade: “És tu, Aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro”?
A resposta de Jesus não é teórica, mas muito concreta e precisa: contai a João o que estais vendo e ouvindo. Eles perguntam a Jesus por sua identidade e este responde através de sua atuação terapêutica (curar e cuidar da vida); Ele se dá a conhecer através de ações concretas em favor da vida: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam...
O que o profeta Isaías anunciava como futuro, agora se faz presente em Jesus.
Jesus sabe que sua resposta pode decepcionar àqueles que sonhavam com um Messias poderoso. Por isso acrescenta: “Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim!”. Que ninguém espere outro Messias que realize outro tipo de “obras”; que ninguém invente outro Cristo a seu gosto, pois o Filho foi enviado para tornar a vida mais digna e ditosa para todos, até alcançar a plenitude na festa final do Pai.
Estes são os sinais da presença do Messias: alívio para quem sofre, acolhida para quem é excluído, vida para quem se sente morrer, visão para quem se encontra na penumbra, fortaleza para os joelhos frágeis... Feliz aquele que aceita que este é o Deus da Vida, Aquele que desce, se faz carne humana, para acolher em si a dor e o sofrimento de todos, sobretudo daqueles que são vítimas e estão excluídos.
O modo de agir de Jesus em favor da vida deve também inspirar o nosso modo de agir durante o Advento. Não tem sentido despertar nossa sintonia com Aquele que colocou a vida dos mais pobres e sofredores no centro de sua missão se não ativarmos nossa sensibilidade e nosso compromisso com aqueles que são vítimas das estruturas sociais e políticas injustas. Viver em “estado de Advento” não é se fixar no futuro, aguardando a vinda d’Aquele que já está sempre presente e que se faz visível nos rostos dessas vítimas.
“Ser Advento” implica “descer” junto à humanidade, recompondo vínculos quebrados, superando ódios e intolerâncias, mobilizando energias e criatividade para que a vida de todos possa ser desbloqueada e encontre espaço para se expressar em sua plenitude. Portanto, Advento sem compromisso com a vida é Advento estéril, com cheiro de morte.
Para conhecer Jesus, o melhor é ver de quem Ele se aproxima e a que Ele se dedica. Para captar bem sua identidade não basta confessar teoricamente que Ele é o Messias, Filho de Deus. É preciso sintonizar-nos com seu modo de ser Messias, que não é outro senão o de aliviar o sofrimento humano, curar a vida ferida e abrir um horizonte de esperança aos pobres.
Os cegos, surdos, coxos, leprosos, pobres e muitos outros coletivos no mundo de hoje, continuam sendo símbolos da marginalização mais radical que afeta muitíssimos seres humanos. O texto do evangelho deste domingo quer ressaltar que a chegada do Reino terá consequências para todos, mas sobretudo para os mais excluídos, que tinham perdido toda esperança e o sentido do viver.
Como podemos perceber, entre os sinais da presença do Messias não há um só sinal “religioso”: nem culto, nem rezas, nem sacrifícios, nem doutrinas, nem leis... Isto nos deveria fazer pensar. Nós cristãos, com frequência, esquecemos que, para Jesus, primeiramente vem a vida, depois o culto; em primeiro lugar, o compromisso em aliviar a dor humana, depois a religião.
Não são só os cegos, surdos, coxos, doentes que fazem presente o Reino, mas também aqueles que se preocupam com eles. Só as ações em benefício dos outros deixam transparecer a presença de Deus. Entrar na dinâmica do Advento, significa estar dispostos a aproveitar qualquer ocasião para tornar presente o Reino, não frustrando aqueles que esperam de nós atitudes comprometidas com a vida.
Nas páginas dos Evangelhos não vemos um Jesus fixo no deserto ou no templo, mas caminhando por toda a Galiléia; aproxima-se dos últimos e excluídos, vítimas do contexto social e religioso da época. O centro da sua missão é aliviar todo sofrimento humano, restabelecendo a vida onde ela está ferida.
Quando se luta contra o sofrimento, quando se alivia a dor, quando se abre uma vida mais sadia... ali está atuando o Reino de Deus. O que Jesus fez, fundamentalmente, foi curar a vida.
Pode-se dizer que toda a atuação de Jesus está encaminhada a criar uma sociedade mais saudável, mais humana, mais respirável, mais leve... Recordemos a rebeldia de Jesus frente a tantos comportamentos patológicos de raiz religiosa; como Ele critica o rigorismo, o legalismo, o culto vazio de amor... Jesus quer sanar a religião; seu esforço visa criar uma sociedade mais justa e solidária; sua oferta de perdão gratuito é para todos; sua atitude acolhedora envolve a todos os maltratados pela vida ou pela injustiça dos homens...
Em tempos de fanatismos, intolerâncias e preconceitos, precisamos assumir uma atitude firme a partir do evangelho da Boa Nova de Jesus. Atitude que nos faça ter “os olhos fixos em Jesus” (Heb 12,2) para recriar a história a partir de seu sentir. Precisamos desprender-nos de nossas “catedrais simbólicas” e de nossos rituais estéreis que nos distanciam da realidade escandalosa da exclusão. “Não há cristianismo sem carne” (Pagola), sem vida e paixão pelos últimos e abandonados.
É preciso sair dos limites conhecidos, de nossas seguranças, para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...
É decisivo estarmos dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer...
A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições para aprendermos e que nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
As fronteiras e as periferias constituem o espaço privilegiado onde nascem e crescem as alternativas, onde brota o emergente como possibilidade de Vida nova, que transcende todo sinal de morte.
Para meditar na oração:
Como cristãos, a que Messias seguimos hoje? Somos seguidores(as) de uma Pessoa que fez do compromisso com a vida o centro de sua missão ou seguidores de uma religião só preocupada com ritos, doutrinas, leis...?
Dedicamo-nos a fazer as “obras” que Jesus fazia? Que estamos realizando em meio a este mundo marcado por tantas violências e mortes? O que as pessoas estão “vendo e ouvindo” na Igreja de Jesus? O que elas estão “vendo e ouvindo” em nossas vidas? Deixamos transparecer o “espírito do Advento” no nosso encontro com os outros?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.12.22
imagem: pexels.com
“O machado já está na raiz das árvores” (Mt 3,10)
Sentimos indignação quando alguém corta uma árvore e deixa desnudo uma cepa do velho tronco com suas raízes ainda fundadas na terra. Estava já velha, dizem alguns. Era um perigo, comentam outros. Só ocupava lugar, exclamam mais alguns. Todos apresentam justificativas para eliminá-la e jogá-la abaixo. Todos têm razão quando se trata de eliminar o que é visto como inútil ou velho.
No entanto, quando acreditavam que o velho tronco estava condenado a desaparecer, se esqueceram que ainda não tinham arrancado suas raízes. Subitamente, quando menos esperavam, viram como novos rebentos brotavam no tronco velho. O tronco estava para ser cortado, mas as raízes ainda tinham vida. E enquanto há vida nas raízes, a vida é possível. “Do velho tronco de Jessé, brotará o rebento que é Jesus”. A vida é mais forte que a velhice; a vida é mais forte que o robusto tronco; a vida sempre triunfa sobre aquilo que consideramos inútil, estorvo ou perigo.
O problema que nos aflige hoje, talvez, não seja tanto referente aos troncos, mas um problema de raízes. Há demasiadas vidas sem raízes profundas; há demasiadas instituições carentes de raízes, que terminam sendo instituições vazias; há demasiadas vocações sem raízes profundas, que nascem de ideais mais emotivos que evangélicos; há demasiadas decisões sem raízes, porque são tomadas em um momento emocional, mas sem terra que as sustente; há demasiadas convicções ideológicas sem raízes...
Por isso são vidas que morrem facilmente; morrem com a facilidade com a qual morrem os sentimentos que as sustentavam. Suas raízes estão tão na superfície da terra que acabam morrendo antes que o tronco.Cultivamos os ramos com muito esmero, mas nos esquecemos das raízes. Cultivamos muito o tronco, mas não alimentamos as raízes; cultivamos muito a aparência, mas não nos preocupamos em colocar água nas silenciosas raízes que não se veem.
Quando as raízes têm vida, pode ser que alguns ramos se sequem, mas ainda permanecem outros sufici-entes para embelezar a árvore. Quando as raízes têm vida, podemos encontrar dificuldades no caminho, mas a vida é mais forte que os obstáculos. Quando as raízes têm vida, podemos passar por momentos de prova, mas a vida que sobe pelo tronco é mais forte. Com frequência, passamos a maior parte do tempo regando os ramos enquanto as raízes morrem de sede.
O evangelho deste domingo nos revela que João Batista é o broto novo no velho tronco. No velho “tronco” de ontem (1º. Testamento), “vem a palavra de Deus sobre João, filho de Zacarias, no deserto”. João não é do AT. Tampouco do NT. Ele é a travessia, a ponte, o broto novo. Ele é o anúncio do novo que está prestes a brotar. O AT é um velho tronco que já não dá fruto, mas em suas raízes ainda perma-nece uma Vida que no NT será revitalizada. Porque o que Deus semeou durante séculos são sementes de Vida. Desaparecerá o tronco, mas suas raízes ainda têm vida.
João é o novo rebento que anunciará a nova Árvore e a nova Vida. E ele mesmo começa por lançar água nas velhas raízes, anunciando a conversão do coração. Cultivar as raízes é fazer que, até os velhos troncos renunciem a morrer, mesmo que os cortemos, pois a vida das raízes encontrará novos brotos para continuar crescendo e vivendo. Serão vidas novas; serão troncos novos.
O tempo litúrgico do Advento se revela como um momento privilegiado que nos motiva a “descer” em direção às nossas raízes interiores, para ativá-las, cultivá-las e evangelizá-las. Nosso contexto social-político-religioso está saturado das “palhas” da aparência e da superficialidade, gerando o veneno do ódio, da intolerância e da violência contra quem “pensa-sente-ama” de maneira diferente. É preciso levar as águas vivas do evangelho às profundezas do coração.
Nesse sentido, Advento nos revela um componente de expansão, que alarga nosso ser, que nos dinamiza e nos eleva, ao mesmo tempo que é experiência radical daquilo que é mais humano em cada um. A partir das “raízes interiores” o Advento ilumina e dá sentido ao nosso modo de ser e viver; ao abarcar toda a vida, alcança também a nossa ação transformadora no mundo.
Espiritualidade do Advento é a força vital que sacode nosso mundo interior, alimenta nossas raízes e faz surgir novos brotos que se visibilizam na nossa maneira original e inspirada de ser e viver no mundo de hoje. Tal força regenerativa procede do Espírito Santo de Deus, que nutre e aquece nossa vida.
Compreendemos, então, que espiritualidade não tem a ver com práticas piedosas alienadas e autocentra-das; é uma experiência que deve ter raízes no coração, precisa de interioridade. Se não tem interioridade,
não tem sonhos nem criatividade. No interior de cada um existe uma riqueza acumulada que procura se expressar (sentimentos, atitudes e valores, crenças, motivações, intuições...). O nível profundo é o nível da Graça, da gratuidade, da abundância... onde a pessoa mergulha no silêncio à escuta de todo seu ser.
O Evangelho de Mateus nos apresenta João Batista clamando por conversão, “porque o reinado de Deus está próximo”. João contempla a realidade de seu povo e sente o impacto da violência e exclusão que tanto o poder religioso como o civil impunham a todos. Sua mensagem se concentra neste grito: “Preparai o caminho do Senhor, endireitar suas veredas!” Também o Papa Francisco grita a mesma mensagem aos cristãos de hoje e nos lança uma pergunta: “Estamos decididos a percorrer os caminhos novos que a novidade de Deus nos apresenta ou nos entrincheiramos em estruturas caducas, que perderam a capacidade de resposta?”.
O Advento nos mobiliza a “descer” ao chão da vida para cultivar e cuidar do nosso ser essencial com o mesmo cuidado que tem o camponês quando trabalha a terra e a plantação. Apenas aquelas pessoas que se mantêm próximas ao chão, às raízes da vida, conseguem manter também esta postura totalmente radical, a “humilitas” que vem de húmus, o chão escuro, úmido e fértil da terra.
Somos Advento, ou seja, pessoas “radicais”, que vivem a partir das raízes. “Radicalidade” significa, portanto, ser suportado, carregado e alimentado por uma raiz que está plantada fundo no chão. É como uma árvore que se apoia, se sustenta e se alimenta das suas raízes. Radical é aquele que vive perto da raiz, que se alimenta da raiz, que toma as coisas pela raiz, pelo fundamento.
O sentido que “radicalidade” transmite é esta proximidade do chão, este estar plantado no chão da vida ou estar enraizado na terra, na realidade. Quando dizemos que os homens e as mulheres do Advento costumam ser radicais, queremos mencionar, em primeiro lugar, esta proximidade da terra e do húmus, esse enraizamento profundo que alimenta a vida, que sustenta o tronco e a copa da árvore em todo e qualquer tempo, dando-lhes firmeza e consistência.
Texto bíblico: Mt 3,1-12
Na oração: Sou pessoa de “raiz” ou me deixo determinar pela superficialidade, aparência? Posso dizer que minha vida está enraizada na pessoa de Jesus e na causa do Reino?
- João foi o oposto da sociedade de seu tempo; ou seja, não se encaixou comodamente à maneira de ser e de pensar de seus contemporâneos. Como eu me comporto no ambiente em que vivo? Há algo de anúncio-denúncia em minha maneira de ser e viver? Minha presença na realidade cotidiana é inspiradora? Faz a diferença?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
01.12.22
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“...ficai preparados! Porque na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá” (Mt 24,44)
Estamos no primeiro dia do Novo Ano litúrgico. Começamos com o Advento, que não é somente um tempo litúrgico, mas um modo de viver. Trata-se de uma atitude vital que precisa atravessar toda nossa existência. Não teremos entendido nada da mensagem de Jesus se ela não nos inspira a viver em constante busca daquilo que já está presente em nosso interior. O importante não é recordar a primeira vinda de Jesus; isso é só o pretexto para descobrir que Ele já está presente em nós e na nossa realidade. Também não se trata de nos preparar para a última vinda, que é só uma grande metáfora. O importante é descobrir que Ele está vindo neste instante.
É preciso re-acender o espírito do Advento, porque estamos adormecidos ou sonhando com conquistas superficiais, e não assumimos a existência com a devida seriedade. Tudo o que esperamos de Deus, já o temos dentro de nós.
“Vigiai”, “estai despertos”, “ficai atentos”: são apelos que ressoarão em nosso interior durante a travessia do Advento. Para ver, é preciso não só ter os olhos abertos, mas também luz. Não se trata de contra-atacar o repentino e nefasto ataque de um ladrão. É preciso estar desperto para assumir a vida com uma consciência lúcida. Trata-se de viver intensamente, para que a vida não transcorra na esterilidade e no vazio.
Se permanecemos adormecidos, não acontecerá nada. Isto é o que pode nos causar medo: transcorrer nossa existência sem desatar as ricas possibilidades de plenitude que nos foram confiadas. A alternativa não é salvação ou condenação. Ninguém vai nos condenar. A alternativa é: viver com mais sentido e sabor ou simplesmente vegetar.
O Advento é tempo para dispor-nos a algo surpreendente. O que estamos esperando é alucinante, imenso, fora do nosso tempo rotineiro. Intuímos que nossos olhos foram criados para uma visão mais profunda, mais humana, mais plena; desejamos ser um pouco mais lúcidos, mais sensíveis, muito mais corajosos para descobrir a profundidade e a riqueza de tudo o que acontece ao nosso redor e dentro de nós.
Eis o mistério: o Esperado traz uma novidade que nos mobiliza e que se revela em cada gesto de humanidade e em cada fragmento de tempo, deste “kairós” colocado em nossas mãos.
Tudo na vida requer preparo, e toda preparação exige empenho e mudança..., envolve uma espera.
Somos feitos disso: desejo, súplica, anseio, busca, esperança... No mais profundo de cada um brota um desejo que nos faz bradar ao Eterno, pedindo ajuda: “Vem, Senhor, nos salvar! Vem sem demora nos dar a paz!” Tudo aponta para o vazio infinito dentro de nós, ressoando uma certeza: Ele vem! Ele está vindo em nossa direção!
O texto do evangelho deste primeiro domingo de Advento pertence ao chamado gênero apocalíptico. Este gênero literário, recorrendo às imagens e palavras que parecem catastróficas, se utiliza delas para falar de um futuro que se revela como novidade radical. Para acolher Aquele que vem ao nosso encontro é preciso romper os espaços estreitos de nossa vida, alargar o coração, expandir os sentimentos...
Para além das imagens utilizadas, a intenção parece clara: é um chamado a “despertar”, “a estar vigilantes”, “a estar preparados”...
Dentro do mal-estar social persistente que estamos vivendo, há algo muito saldável: nosso desejo de viver de uma maneira mais propositiva e menos deprimida, mais digna e menos superficial. O que precisamos é re-orientar nossa vida. Não se trata de corrigir um aspecto ou outro de nossa pessoa. Agora o importante é ir ao essencial, encontrar a fonte de vida e salvação.
Não podemos deixar que o desespero e o desânimo destruam em nós o dinamismo e o desejo de continuar caminhando dia-a-dia, cheios de vida; não podemos deixar que a esperança vá se diluindo em nós quase sempre de maneira silenciosa e imperceptível; não podemos deixar que, sem nos dar conta, nossa vida vá perdendo cor e intensidade; quando parece que tudo começa a ser pesado e cansativo, a verdadeira alegria vai desaparecendo de nosso coração e já não somos mais capazes de saborear o bom, o belo e o verdadeiro que há na nossa vida.
Apesar das sombras e sofrimentos causados pela violência social, política e religiosa que estamos vivendo, o Advento vem “des-velar” (tirar o véu) e ativar os dinamismos de solidariedade, compaixão, gratuidade... presentes no coração de cada um. A bondade nos constitui, é da nossa essência O ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus-Amor, amor incondicional e misericórdia sem limites. O bem e o amor em
nós, são mais fortes que o mal e o ódio. O que de Deus há em nós é maior que nossa miséria e limites. Nosso verdadeiro ser é bondoso. Fomos feitos de amor e para o amor. Se vivemos isso, de verdade podemos ser sal, luz e força, uns para com os outros, como nos ensina Jesus.
Com a mente bem aberta, atenta, podemos e temos de analisar o que está acontecendo conosco, descobrir e compreender suas causas e comprometer-nos com as mudanças necessárias. Inspirados(as) com a força do Espírito podemos levar adiante as transformações que se fazem necessárias.
Assim, o percurso do Advento vem despertar aquela “virtude teologal” tão ausente no atual contexto social e religioso: a esperança; ela é o recurso secreto do ser humano itinerante. Somos abertura e, portanto, estamos sujeitos à mudança. A esperança é a guia que nos orienta na mudança.
Esperar é ousar re-nascer, advir, vir-de-novo, re-começar... na fulgurante arte de tecer a vida nisso que ela tem de mais íntimo e cotidiano.
Um canto de fé e de esperança segura: esse é o sentido da existência cristã.
Movidos por essa esperança, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples. Ter esperança é, essencialmente, busca incessante, luta por aquilo que não tem lugar agora, mas, acredita-se, terá um dia.
A esperança tem suas raízes na eternidade, mas ela se alimenta de pequenas coisas. Nos pequenos gestos ela floresce e aponta para um sentido novo.
É preciso ter a audácia de reinventar o humano; é preciso resgatar a paixão por uma causa irrecusável; paixão pela inconformidade de as coisas serem como são; paixão pela vitória da esperança; paixão pelo sonho de, procurando tornar as pessoas melhores, melhorar a si mesmo; paixão, em suma, pelo futuro.
Texto bíblico: Mt 24,37-44
Na oração: “é proibido pecar contra a esperança!”
A esperança tem sempre algo em comum com o desejo. Quem não deseja não pode esperar.
Desejar é manter-se maduro(a) para a esperança. Sua ausência paralisa, bloqueia, desumaniza...
- Que esperanças alimentam sua vida neste momento e contexto social tão marcado por divisões, conflitos, ódios?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.11.22
Imagem: pexels.com
“Jesus, lembra-te de mim, quando entrares em teu reinado” (Lc 23,42)
Rei, não há outra palavra menos apropriada para Jesus. Jesus, rei atípico. Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos: explorando, dominando...
Jesus, no entanto, reina perdoando, amando e comunicando vida a partir de uma situação de humilhação e impotência extremas. Um rei crucificado é uma contradição e um escândalo. Lucas nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até à morte. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres e excluídos, de liberdade e justiça, de solidariedade e de misericórdia.
O título de Cristo Rei corre o risco de ser utilizado de uma forma pagã, como uma pura imitação dos reis deste mundo. O triunfalismo religioso e político tem utilizado este título para defender ideias dominadoras, triunfalistas e conservadoras.
Esse é a maior contradição da história humana: o Crucificado é esperança dos pobres, dos pecadores e de todos os sofredores. Jesus é Rei desta forma e não da forma triunfalista como querem os cristãos “gloriosos”. Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia dos excluídos e não dos poderosos deste mundo. Um rei que lava os pés dos seus, um rei que não tem dinheiro e que não pode defender-se, que não tem exército... Um rei sem trono, sem palácio, sem pompas, sem poder.
Jesus crucificado é um estranho rei: seu trono é a Cruz, sua coroa é de espinhos. Não tem manto, está desnudo. Até os seus o abandonaram. Pobre rei!
Por isso, para poder aplicar a Jesus o título de “rei”, devemos despojá-lo de toda conotação de poder, força ou dominação. Jesus sempre se manifestou contrário a todo tipo de poder, sobretudo do poder religioso, o mais nefasto. E não só condenou aqueles que dominam como também condenou, com a mesma veemência, aqueles que se deixam dominar.
Jesus quer seres humanos completos, isto é, livres. Ele quer seres humanos ungidos pelo Espírito de Deus, que sejam capazes de manifestar o divino através de sua humanidade. Tanto o que escraviza como o que se deixa escravizar, deixa de ser humano e se afasta do divino.
Jesus quer que todos sejamos “reis” ou “rainhas”, ou seja, que não nos deixemos escravizar por nada nem por ninguém. Quando responde a Pilatos, não diz “sou o rei”, mas “sou rei”; com isso, está demonstrando que não é o único, que qualquer um pode descobrir seu verdadeiro ser e agir segundo esta exigência.
Há uma nobreza presente em nosso interior e que é ativada no encontro com o outro, através da compaixão, do serviço, do amor solidário...
Devemos estar conscientes de que o sentido que queremos dar a esta festa não é aquele dado pelo papa Pio XI, há quase 100 anos, e nem mesmo aquele sentido que é dado pela maioria dos cristãos. Devemos conservar o título, mas mudar a maneira de entendê-lo, ou seja, com o Evangelho na mão podemos continuar falando de “Jesus rei do universo”.
Jesus será “Reino do Universo” quando a paz, o amor e a justiça reinarem em todos os rincões da terra, quando todos forem testemunhas da verdade, quando em todos os ambientes a mesa do Reino se tornar mesa de inclusão e de acolhida... Jesus será Rei quando estivermos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela. E são tantos os crucificados no nosso contexto social e religioso!
O Evangelho da festa de hoje faz parte da narração da Paixão de Jesus. Fixemos nosso olhar nos persona-gens que assistem ao tremendo espetáculo da crucifixão. O povo estava ali olhando. Não é a multidão que habitualmente O segue, mas pessoas que assistem com curiosidade zombadora.
Os chefes, as autoridades religiosas escarneciam de Jesus. Eles conservavam a ideia de um Messias triunfal. Tem um Deus feito à medida de seus interesses. A mensagem de Jesus não os afetou. Julgavam-se em posse da verdade. Os soldados também lhe zombavam. Aproximavam-se dele para dar-lhe vinagre. Os executores da violência do poder romano não podiam entender um rei que não fazia nada para defender-se.
O letreiro também indicava ironia: “Este é o rei dos judeus”.
Um dos ladrões o insultava: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!”.
Ninguém parece ter entendido Sua vida e Sua mensagem. Ninguém compreendeu seu perdão aos algozes. Ninguém viu em seu rosto o olhar compassivo do Pai. Ninguém percebeu que, pendente da Cruz, Jesus se unia para sempre a todos os crucificados e sofredores da história. Mas, a grande surpresa está reservada para o final da cena: aquele homem impotente, que agonizava na Cruz, promete o paraíso a outro condenado à morte e que se dirigira a Ele assim: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares em teu reinado”. É o único personagem em todo o Evangelho que se dirige a Jesus chamando-o simplesmente por seu nome, sem acrescentar nenhum outro título como Senhor, Mestre, Filho de Davi ou Messias.
Sem saber, ele estava em profunda sintonia com o sentido da missão daquele Homem crucificado, a quem o invocava: aproximar-se, encurtar distâncias, viver entre nós como um entre tantos, entregar-nos seu nome e sua amizade, compartilhar de nossa fragilidade, estar tão perto a ponto de escutar o sussurro de todos aqueles que, sem alento, morrem ao seu lado...
O “bom ladrão” reconhece a Jesus na cruz como rei, um rei que morre na fidelidade à sua missão de mensageiro de um projeto de vida diferente, de um Reino de misericórdia aberto a todos, também ao pior dos malfeitores, e que oferece sua vida para indicar o caminho da verdadeira vida que vence a morte: o amor até o extremo. E nisso consistiu sua glória, sua realeza e seu triunfo.
Jesus sempre viveu “em más companhias” e agora morre entre dois ladrões. Mais uma vez, não assume o papel de juiz sobre os outros, mas oferece uma nova chance de salvação. Ele é o moribundo que dá vida: presença solidária, que, mesmo em meio ao pior sofrimento, oferece companhia a outros sofredores.
O Justo e o pecador, ambos crucificados, participam da vida definitiva que a morte terrível na cruz não pode vencer. Jesus é o rei, e o primeiro cidadão que ingressa em Reino é esse malfeitor que confiou n’Ele. Assim, impactado pela serenidade e testemunho de Jesus, “rouba o paraíso”.
No alto da Cruz, Jesus revela uma promessa que muitas pessoas precisam ouvir hoje, sobretudo aqueles que carregam cruzes injustas e pesadas, que vivem realidades atravessadas pela dor, pela solidão, dúvida, incompreensão ou pranto...
Que ressonância têm estas palavras no interior de cada um de nós: “Hoje estarás comigo no Paraíso”.
Hoje: porque as mudanças, a nova criação, a humanidade reconciliada, não tem que esperar mais; hoje, agora, já...; talvez, se esse “hoje” não chega é por causa de tantas pessoas que não decidem, não optam, esperam sentadas... Comigo: a promessa de viver em sua companhia desperta ecos de uma plenitude que não conseguimos entender.
No paraíso: que não é um mítico Eden, mas lugar de plenitude de vida, onde não haverá mais pranto, nem dor; realidade que já se presente entre nós, sobretudo onde habita a justiça, a paz, a compaixão...
Texto bíblico: Lc 23,35-43
Na oração: Situar-se diante do Rei Crucificado e dos crucificados da história. No nosso atual contexto social, político e religioso são muitos os julgamentos, ódios, mentiras, intolerâncias, precon-ceitos... que continuam crucificando e fazendo vítimas. E tudo isso em nome da “religião e da moral cristã”. O Crucificado Inocente continua revelando seu rosto nos crucificados de hoje.
- Como tirar das cruzes as vítimas inocentes que estão dependurados nelas?
- Como construir hoje o paraíso? Neste momento histórico, como ativar e despertar a esperança nas vítimas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.11.22
“Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído” (Lc 21,6)
A mudança de mente, de coração, de esperança, de paradigmas... exige de nós que, de tempos em tempos, revisemos nossas vidas, conservando umas coisas, alterando outras, derrubando ideias fixas, con-vicções absolutas, modos fechados de viver... que impedem a entrada do sol e da brisa da manhã.
São muitas “pedras”, pessoais-sociais-religiosas, que criam muralhas e que precisam ser destruídas: ódio, intolerância, violência... Coração rígido que se visibiliza na petrificação das relações; rompe-se a cultura do encontro para alimentar a cultura da indiferença; trava-se a abertura ao novo para fechar-se no conserva-dorismo mais agressivo; bloqueia-se toda possibilidade de racionalidade para cair nas atitudes mais arcaicas e medievais...
Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção, a fechar-se em guetos. Nada mais contrário ao Seguimento de Jesus que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores...
Numa vida assim faltaria por completo o princípio da criatividade, a capacidade de questionar-se, a audácia de arriscar, a coragem de fazer caminho aberto à aventura.
Se quisermos que a nossa vida cristã tenha a marca da adesão a Jesus, é necessário compreender que somos chamados a um compromisso diferente e mais profundo: sair da reclusão de nosso mundo para entrar na grande “casa” de Deus; romper com o tradicional para acolher a surpresa; deixar a “margem conhecida” para vislumbrar o “outro lado”; desnudar-nos de ilusões egocêntricas; afastar a “pedra” da entrada do coração para poder viver com mais criatividade...
As respostas do passado às questões atuais já não satisfazem; as velhas razões para fazer coisas novas, simplesmente já não movem os corações num mundo repleto de novos desafios.
Não há razão para permanecer nos castelos e templos quando todas as circunstâncias mudaram. É muito tarde para reconstruir nossas vidas utilizando moldes antigos. Estamos vivendo um tempo de mudança, mas também tempo emocionante e santo. Há um poderoso fogo sob as cinzas. Precisamos avivar a chama, acolhendo o momento presente e vivê-lo até suas últimas consequências. “Este é o tempo de graça, o tempo de salvação”.
Vivemos um momento de densidade única; participamos de uma sociedade rica pela diversidade e pelo pluralismo. No entanto, não teremos nada que oferecer a ela se não nos deixarmos “empapar” pela experiência do discipulado. Com a vida cristificada seremos impulsionados a inventar constantemente, a ousar sem medo, a “deslocar-nos” sem cessar, na busca de um “novo começo” ...
A possibilidade de romper com hábitos que nos atrofiam ou com padrões conservadores que travam o fluir de nossas vidas é a marca do Evangelho deste domingo. A primeira atitude é reconhecer que nossa vida está “estreita”, cercada por pedras e muralhas, e que precisamos nos colocar num horizonte diferente. A lucidez do seguimento nos revela que a utopia de Jesus é possível. N’Ele acontece algo totalmente novo, é Ele que nos revela uma nova maneira de viver que não cabe nos nossos esquemas. O Seguimento é uma novidade que rompe velhos barris. “Vinho novo em odres novos”. Sentimentos novos em um coração ardente; visão nova em olhos ousados; razões inspiradas em uma mente aberta.
Para encontrar Jesus Cristo é preciso “sair”; é inútil permanecer nos “templos” e “bloqueados” nos guetos de fanáticos. É preciso caminhar em direção às “periferias existenciais”, o Grande Templo onde o Vivente se deixa encontrar; vivemos mergulhados na magia do discipulado; esta é a paixão que não nos dá repouso.
Mais uma vez, e evangelho deste domingo nos situa diante de Jesus, homem livre e transparente, que não se deixou “formatar” pelas estruturas sociais e religiosas desumanizadoras de seu tempo. Ele não quis purificar o Templo para reformulá-lo, mas quis destruí-lo para que pudesse surgir um santuário diferente, “não feito por mãos humanas”. As coisas que o ser humano “fabrica” são “ídolos”, algo que pode pôr-se e se põe a serviço do poder e do domínio de uns sobre os outros. Contra isso, o verdadeiro templo deve identificar-se com a humanidade reconciliada, que é o Reino de Deus.
Quem segue Jesus, aos poucos vai descobrindo que permanecem ainda muitos muros por derrubar; é preciso entrelaçar mãos que construam pontes de reconciliação e não de divisão; essas mesmas mãos que, em lugar de empunhar armas, devem pegar em martelos e malhos para derrubar as paredes do ódio e da intolerância.
Não esqueçamos esta dura realidade: também aqueles que constroem muralhas acabam se tornando vítimas de sua sandice; tornam-se prisioneiros das fortalezas que edificam, vítimas do próprio veneno da soberba e da crença de que são “donos” da verdade. Tudo isso é expressão de um coração petrificando.
Na vida, nem sempre é questão de construir. Também, às vezes, é preciso destruir. De fato, a vida e a mensagem de Jesus revelaram uma novidade de tal magnitude que gerou uma radical conflitividade com as estruturas desumanizadoras de seu tempo. Com a presença de Jesus, chega também para nós a “Boa Nova”, não precisamente para pôr remendos no tradicionalismo, moralismo e legalismo, mas para anunciar a possibilidade de uma nova maneira de viver, uma nova atitude que deixa transparecer as “beatitudes originais” e que habitam nosso coração: compaixão, mansidão, paz, busca da justiça, partilha...
Precisamos profetas que vão derrubando nossos muros de ignorância e de resistência à novidade do Espírito e que saibam apresentar respostas criativas aos problemas que a humanidade tanto padece.
Mais cedo ou mais tarde, a vida mesma se encarrega de derrubar muitos desses muros que nos impedem ver a realidade externa com mais claridade. Quando vemos tudo escuro, é sinal de que há algum muro que impede a entrada da luz do discernimento em nossas vidas.
“Constrói pontes em lugar de muralhas, e terás amigos”: pontes de diálogo humanizador, onde o outro possa ser respeitado na sua diversidade, no seu modo de pensar, de ser, de amar; também o outro diferente é possuidor de fragmentos da verdade que podem se integrar aos nossos e, assim, alimentar uma consciência mais plena e expansiva. Que busquemos viver a “cultura do encontro”, confiando no desafio da diversidade que nos enriquece!
É preciso estender pontes de reconciliação que nos permitam ter acesso aos lugares onde ninguém quer estar, para abraçar àqueles que são rejeitados e saborear juntos o mistério da comunhão e da acolhida; pontes que permitam apalpar, na dor solidária e na beleza dos “sacramentos de cada dia”, a presença carinhosa do Deus Pai/Mãe que sempre bendiz a humanidade inteira. No Seu coração a diversidade é aquecida e pacificada.
Texto bíblico: Lc 21,5-19
Na oração: Viver o Seguimento de Jesus hoje é deixar expandir tudo o que é vida dentro de nós. É contaminar de Luz as trevas que criamos e que sufocam a alegria plantada em nós desde sempre.
Deixemo-nos iluminar, levemos a Luz nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos de nosso cotidiano. Destruídos os muros e afastadas as pedras… resta caminhar..
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.11.22
“Jesus viu as multidões, subiu à montanha e sentou-se… e começou a ensiná-los” (Mt 5,1-2)
No próximo domingo (32º do Tempo Comum) celebraremos a festa de Todos os Santos e Santas, ou seja, todos aqueles(as) que, sem exceção, estão na Memória, na Entranha, no Consolo de Deus, na eterna Compaixão que regenera, na Grande Comunhão que é o coração do próprio Deus. Ela nos recorda ainda que esta é a vocação fundamental à qual somos todos chamados, enquanto seguidores de Jesus Cristo. A santidade de Deus é a vocação universal de todos, cada um à sua maneira.
Todos os santos e santas estão no coração do mundo pois são plenamente em Deus. Todos são santos(as), porque já vivem a Vida Eterna e dão alento ao coração do nosso tempo e do nosso mundo.
Nossa vocação é a santidade da Vida para além de todo sistema moral, para além de toda crença, para além de toda religião, porque fora da Igreja há salvação ou santidade. Mais ainda. A santidade é nossa verdade mais íntima e universal.
Somos santos(as). Não somos santos(as) porque somos irrepreensíveis, senão simplesmente porque somos, e vivemos, nos movemos e somos sempre em Deus e Deus em nós, também quando nos sentimos medíocres e inclusive fracassados(as). Ainda não temos encontrado nossa plenitude, não temos realizado nosso ser verdadeiro, mas para esse horizonte caminhamos na santa comunhão de tudo quanto é. Somos um tesouro em vasos de argila em formação, e Deus é o paciente oleiro na sombra mais profunda de nosso barro.
O Evangelho que nos foi confiado é um programa para alcançar a felicidade, a vida ditosa, prazerosa, bem-aventurada. Na boca de Jesus brilha sempre a palavra-chave: “Felizes”.
A felicidade, proclamada por Ele no evangelho deste domingo, é já uma realidade presente na Sua pessoa e na Sua missão. Todas e cada uma das bem-aventuranças são autobiográficas. Elas são, portanto, a expressão do que constitui o centro mesmo da pessoa de Jesus e da sua vida, dos seus sentimentos, atitudes; numa palavra, do seu mistério.
Poderíamos dizer que as bem-aventuranças são o auto-retrato de Jesus. Elas são o compêndio do seu ministério. Não é lei que se impõe por si mesma; é confissão: “o Reino chegou”.
A primeira “canonização”, pois, teve lugar quando Jesus, num determinado dia, subiu à montanha e com grande solenidade declarou felizes os pobres, os aflitos por causa do Reino, os mansos que não recorrem à violência, os que tem fome e sede de justiça, os misericordiosos, os que não tem segundas-intenções no coração, os que trabalham em favor da paz, os perseguidos por causa da justiça. Todos eles(as) são declarados felizes porque são os que mais se parecem com Deus, ou seja, deixam transparecer em suas vidas a santidade d’Ele. E a felicidade está justamente na vivência do chamado universal à santidade.
As Bem-aventuranças não, portanto, são uma doutrina, mas um estilo de vida, um modo de proceder. Jesus não prega diretamente uma moral. Proclama a “irrupção” da graça, do amor, da misericórdia, da santidade de Deus na história da humanidade.
Porque tem a certeza de que chegou a “hora” de Deus intervir na história, Jesus fica feliz e proclama “fe-lizes” os até agora indefesos, oprimidos e marginalizados, mas que mantiveram viva a confiança em Deus.
Jesus fala da felicidade não no singular, mas no plural. Em outras palavras, o que Ele afirma é que a felicidade de cada um está em íntima relação com a felicidade dos outros, com quem cada um convive.
As bem-aventuranças compartilham uma mesma visão “macro-ecumêmica”: valem para todos os seres humanos. O Deus que nelas aparece não é “confessional”, não é “patrimônio” de uma religião específica; não exige nenhum ritual de nenhuma religião, senão o “rito” da simples religião humana: a pobreza, a opção pelos pobres, a transparência de coração, a fome e sede de justiça, a luta pela paz, a perseguição como consequência do empenho em favor da Causa do Reino... Essa “religião humana básica fundamental” é a que Jesus proclama como “código de santidade universal”, para todos os santos e santas, os de casa e os de fora, os do mundo “católico” e os de outras expressões religiosas...
Nesse sentido, a liturgia da festa de Todos os Santos e Santas vem nos indicar este caminho, ao apresen-tar o texto das Bem-aventuranças como um programa para viver a felicidade; e o motivo primeiro é porque todas elas são, na verdade, o caminho da santidade universal (acima e além de toda religião, pois elas são simples e profundamente humanas). As Bem-aventuranças são como o mapa de navegação para nossa vida; são o horizonte de sentido e o ambiente favorável para nossa santificação, entendida como empenho para viver com mais plenitude, segundo o querer de Deus.
Santos e santas são todos aqueles e aquelas que vivem com sentido e inspiração a vida de cada dia, deixando transparecer a “faísca de santidade” que o Deus Santo colocou no coração de cada um.
A santidade é, pois, um dom recebido de Deus, que alimenta na pessoa o desejo e a disposição de “sair de si mesma” para viver a experiência do amor na relação com o mesmo Deus, no encontro com os outros e no cuidado e proteção da Criação.
“Viver a partir da santidade de Deus” representa a melhor definição da santidade cristã: reconhecer-nos como quem recebe tudo de Deus, deixar-nos amar e guiar por Ele, assemelhar-nos a Ele para tornar carne viva em nós os sentimentos de compaixão e misericórdia que Ele tem com as pessoas.
O Evangelho nos propõe um modelo de santidade muito mais dinâmico e próximo da vida cotidiana, com seus altos e baixos, alegrias e dores. Ele revela uma nova forma de santidade: a santidade da vida comum, da resposta à Providência divina em meio às rotinas do tempo, uma caridade tecida nos pequenos gestos cotidianos. O(a) santo(a) faz as coisas que todo mundo faz, mas faz de maneira diferente. Há um “mais” qualitativo. Há algo na conduta, no brilho do olhar, na bondade do gesto, na pureza do agir, na liberdade, na gratuidade que o faz ser diferente. Isso é ser santo(a).
É na vida cotidiana, com seus desafios, onde se tece a santidade e não em outro lugar. Pois a santidade não é uma questão de “separados” e de “segregados”, mas de viver a inserção na realidade até o mais profundo, inspirados na maneira original de Jesus “estar no mundo”. A grande maioria vive a santidade no anonimato ou, quando muito, na memória dos seus mais próximos ou daqueles a quem lhes causaram admiração pro-funda ou de quem aprenderam que viver de verdade podia ser feito de outra maneira; são tantos e tantas por quem sentimos admiração, respeito e desejo de imitá-los para dar um sentido diferente às nossas existências.
Homens e mulheres que se deixaram e se deixam moldar pelo amor, porque descobriram e descobrem que essa era e é a maior das riquezas, a única que lhes podia e lhes pode fazer felizes de verdade; deram-se conta, ao mesmo tempo, que, comunicando esse amor podiam fazer felizes também a outras pessoas. Um “amor” oblativo, sem credos nem ideologias; um amor que vai além da raça, cultura, condição social. Um amor que procede da intimidade mais profunda de seus corações, lugar exclusivamente reservado para o mais absoluto e infinito dos amores: o Deus de Jesus.
Nenhum desses santos e santas terão seus devotos, nem estão sobre os altares dos templos e ninguém escreverá livros sobre eles e elas; no entanto, são aqueles(as) que viveram e vivem o cotidiano criativo nos altares da vida, do compromisso e do serviço. Para eles e elas o melhor dos altares foi e é sua consciência. E o único e grande devoto é o próprio Deus que acreditou neles(as) desde o princípio e continuará fazendo por toda a eternidade: “Sede santos porque eu Sou Santo”.
Texto bíblico: Mt 5,1-11
Na oração: A chave da felicidade está em permitir que se revele o sentido da luminosidade que se encontra no fundo de nosso ser. O que nos tira a energia e nos torna impotentes é afastar-nos desse princí-pio vital que é o Divino em cada ser. A santidade é luz expansiva do divino que se faz visível no “modo contemplativo” de viver.
- Sua presença junto às pessoas é transparência da santidade de Deus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
03.11.2022
“Que vossos rins estejam cingidos e as vossas lâmpadas acesas” (Lc 12,35)
A morte, sempre estranha e, com frequência, incômoda; e no mundo ocidental ela fica escondida em locais funerários, afastada do ambiente familiar. Sem cair em extremismos, este fenômeno diz respeito a um dos problemas que temos como cultura: falar da morte nos dá medo, mesmo sabendo que é uma das poucas certezas que temos. Preferimos ridicularizá-la, negá-la ou silenciar, antes que reconhecer que é uma dimensão de nossa vida que não podemos ignorar. E é questão de tempo, sempre termina por chegar, em ocasiões de uma maneira inesperada: tantas vidas ceifadas, tantas mortes prematuras, tantas histórias truncadas em muitos lugares de nosso mundo.
São mães, pais, maridos, mulheres, irmãos, filhos, amigos, avós, vizinhos, companheiros de trabalho, de comunidade...; tantos que faleceram por diferentes causas e que estão presentes em nossa memória, na lista de ausências. A morte traz dor pela ausência, saudades pelos momentos que se foram, desejo por um presente no qual não estão. Na fé, que ajuda a trazer um horizonte de sentido, a memória dos que partiram desperta também uma profunda gratidão pelas vidas daqueles(as) que amamos, pelas “marcas” que deixaram em nossas vidas, pelas presenças inspiradoras que despertam uma serena consolação, pela esperança de que, um dia, de outro modo, voltaremos a nos encontrar e não haverá mais tristeza, nem pranto, nem dor... Eles e elas, na vida foram, aos poucos, nascendo e nascendo até acabar de “nascer” em Deus.
A vida se transforma no coração da Vida, em Deus. Então, vale a pena, no dia de hoje, ativar a “memória agradecida”.
Neste Dia de Finados, passarão por nosso coração e pela nossa memória, de um modo muito especial e íntimo, aquelas pessoas que foram e são parte de nossa vida e que, ao fazerem a “travessia” para outra margem continuam presentes, amando-nos e sendo amadas por nós. Precisamos parar um momento e acender uma vela por dentro, e escutar. Escutar os ecos que suas presenças nos deixaram, suas palavras, seus gestos... Quê palavras, olhares, gestos não quero esquecer das pessoas de minha vida que já não estão mais aqui? Segundo Guimarães Rosa, as pessoas não morrem, ficam encantadas no nosso coração e na nossa memória.
Finados é um “dia memorial”: memória agradecida que não nos fixa na saudade do passado, mas, nos ins-tiga a prolongar na nossa vida o modo original de viver de tantas pessoas que agora estão “no coração de Deus”. Este é o objetivo dos ritos de finados: ajudar-nos a processar a vida, a morte, a dor, a alegria..., carregados de oração e emoção que move nosso interior à contemplação.
Eles e elas continuam estando presentes, não só na esperança de futuro. Continuam estando em nós que os recordamos (visitamos de novo com o coração). Continuam presentes no amor que partilhamos, na memória dos abraços que ninguém pode nos arrancar, nas imagens que cada um registra em nossa memória, nas conversações que nos constroem, nas canções que nos fazem evocá-los, no sorriso com o qual acolhemos uma lembrança, naquilo que deles(as) aprendemos, nos sentimentos mais elevados que os fazem sentir orgulhosos de nós. Continuam estando em nós, porque quando amamos, decidimos que alguém permaneça conosco para sempre. Até mais além da vida; até mais além da morte.
Há tanto que agradecer a estas pessoas que, como silencioso fermento, fizeram história com Deus no inte-rior de nossa pobre humanidade. Foram presenças inspiradoras que melhoraram uma parte do mundo e nossa gratidão as acompanha. Ditosos eles e elas, e ditosos também nós porque, na comunhão com aque-les(as) que já vivem a Páscoa definitiva, somos movidos a seguir seus passos pelo caminho da vida, para sermos dispensadores humildes de felicidade, compaixão, mansidão, famintos e sedentos de justiça, de paz.
Sabemos que dentro de cada pessoa encontra-se o desejo de eternidade gravado no coração. É um desejo instintivo de transcender-se para além dos limites que nos apresentam o cotidiano, a rotina, a evidência de que pouco a pouco nosso corpo se deteriora.
Por isso, costumamos nos referir à vida em termos de caminho, itinerário ou processo no qual o traçado do mesmo são nossos próprios passos, um processo em constante ascendência, inevitavelmente atravessado por dificuldades, sofrimentos e crises. E enquanto caminhamos e ascendemos vamos nos dando conta de que o verdadeiro progresso se dá “para dentro”. E o horizonte de eternidade vai se vislumbrando.
A vida é simplesmente eterna. E ela se aninha em nós e, passado certo lapso temporal, ela segue seu curso pela eternidade afora. Nós não acabamos na morte, pois ela representa a porta de ingresso ao mundo que não conhece a morte, onde não há o tempo, mas só a eternidade.
Com a morte começa a vida para sempre, no coração do Deus amor. E se a morte é capaz de nos privar do dom da vida, o “amor tem poder para nos devolvê-la”, nos afirma o bispo Balduino de Cantebery.
Neste Dia de Finados, fazer memória das pessoas que já fizeram a travessia é despertar a reverência pela vida. A vida é tanta surpresa, tanta novidade e riqueza que desperta o assombro e o encantamento.
Fazer memória daqueles que viveram intensamente (mesmo que por pouco tempo) nos mobiliza e nos compromete a viver mais intensamente. E viver intensamente é viver aqui e agora de “modo eterno”.
A vida é dom que não pode ser desperdiçado. Para quê viver? Tem sentido? Quê marcas quero deixar?...
Alguém já afirmou que a morte é a realidade mais universal, pois todos morrem, mas nem todos sabem viver. Por isso, viver é uma arte; é necessário reinventar a vida no dia a dia, carregá-la de sentido.
“A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter).
Quem viveu intensamente deixa “marcas”; fazemos, então, memória dessas marcas. “Aquilo que a memó-ria amou fica eterno” (Adélia Prado). A memória é a presença da eternidade em nós. Tudo o que recor-damos da pessoa que “já partiu” é semente de eternidade. Sua passagem entre nós não foi em vão.
A vida é feita de partidas e chegadas. De idas e vindas. De travessias. Assim, o que para uns parece ser a partida, para outros é a chegada. Nesse caminho em direção à plenitude, um dia, todos nós partiremos como seres imortais que somos ao encontro d’Aquele que nos criou.
Portanto, como seguidores de Jesus, no Dia de Finados vamos celebrar a vida, a vida verdadeira, a plenitu-de dos irmãos que já vivem para sempre, que estão no coração de Deus. Porque a vida, como um rio, tem duas margens; a ponte para cruzar de uma margem à outra é construída diariamente com o amor, a fraternidade, a solidariedade, a esperança..., que ao longo da vida vamos semeando em nós, nos outros e na criação, dando a esta vida uma dimensão celestial.
A vida se expande quando compartilhada e se atrofia quando permanece no isolamento e na comodidade. E a morte é o ins-tante da expansão plena para aquele que soube dar um sentido inspirador à sua existência. Podemos afirmar, então, com muita propriedade, que todos morremos para o interior da Vida.
Texto bíblico: Lc 12,35-40
Na oração: Para viver despertos é importante viver com mais calma, cuidar do silêncio e estar mais atentos aos chamados do coração. Só quem ama e serve, vive intensamente, com alegria e vitalidade, despertado para o essencial. Uma certeza podemos ter: o Espírito está sempre pronto a criar, recriar, a transformar, a renovar e “fazer novas todas as coisas”, abrindo-nos a um novo tempo com a feliz esperança de “novos céus e nova terra”, num mundo outro e pleno de vida.
- No “silêncio memorial” cala a palavra, mas o coração sente a voz daqueles(as) que já estão no silêncio pleno de Deus. Deixe vir à tona a presença de pessoas que fizeram “diferença” na sua vida. Alimente gratidão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.11.22
Imagem: pexels.com
“Então, ele correu à frente e subiu numa figueira para ver Jesus, que devia passar por ali” (Lc 19,4)
O Evangelho revela um mundo povoado por encontros e desencontros, numa rica variedade. Jesus se encontra com amigos e opositores, ricos e pobres, homens e mulheres, indivíduos, grupos e multidões, Deus, seu Pai. Algumas vezes é Ele quem toma a iniciativa para o encontro, e outras vezes são os outros que o encontram, pois já o estavam buscando ou se cruzam com ele casualmente.
Seus encontros e desencontros tem lugar no interior das casas, nas sinagogas e inclusive no templo, mas também no caminho e ao ar livre, no campo e à beira-mar, andando, sentado, de pé, numa barca ou num monte. O lugar de encontros e desencontros acaba sendo a vida, e nenhum de seus espaços fica à margem. Jesus se encontra e se deixa encontrar a partir de carências humanas, necessidades e desejos, insatisfações, marginalizações e irregularidades.
Jesus, com sua presença inspiradora e provocativa, transforma os espaços de encontro, mudando seu sentido, de forma que qualquer lugar é lugar adequado para estar com Ele, ao seu lado ou à sua frente.
Os encontros, além disso, são progressivamente inclusivos e reveladores do ser humano: quem se encontra com Jesus ou é encontrado por Ele fica a descoberto, desvela seu interior e mostra quem é no fundo de si mesmo. Por outro lado, os encontros contribuem também para clarificar a identidade de Jesus. Revelam quem e como é Jesus. E desvelam quem é e como é cada um.
Essa é a nossa vocação enquanto seguidores(as) de Jesus: converter a “indiferença” em “encontro”, o diferente em convidado, o estranho em amigo, e criar o espaço livre e sem medo, no qual a fraternidade pode ser experimentada em plenitude.
Na realidade, aqui se trata de um movimento expansivo onde se dá a travessia da indiferença ao encontro. Tal passagem é repleta de dificuldades: nossa sociedade é marcada pela presença de pessoas temerosas, defensivas e agressivas, agarrando-se ansiosamente ao seu modo fechado de viver, inclinadas a olhar ao redor com suspeitas, sempre à espera de que um inimigo apareça de repente e cause algum dano.
A indiferença e a hostilidade campeiam nas redes sociais e a xenofobia circula como um veneno: daí a agressividade preconceituosa no campo político-social-religioso-racial-sexual... De fato, ultimamente, os “estranhos” e “diferentes” tornaram-se mais sujeitos à hostilidade do que à hospitalidade: protegemos nossas casas com cães e trancas duplas, nossos edifícios com vigilantes, nossos colégios com guardas, nossas estradas com policiais, nossos aeroportos com seguranças, nossas cidades com polícia armada...
Nosso coração pode querer ajudar os outros e mostrar simpatia para com os pobres, solitários, rejeitados, minoritários...: no entanto, rodeamo-nos com um muro de medo e de sentimentos hostis, evitando instintivamente pessoas e lugares que possam nos lembrar de nossas boas intenções.
Em um mundo tão competitivo, mesmo pessoas próximas, como colegas de classe, de equipe, de trabalho, todos podem ficar infectados pelo ódio e pela hostilidade quando sentem o outro como uma ameaça à sua segurança pessoal. Muitas vezes, instituições criadas para oferecer espaço e tempo propícios para o desenvolvimento dos encontros hospitaleiros (família, escola, religião...), tornam-se tão dominadas pelo “defensismo” hostil que acabam atrofiando e bloqueando o melhor que cada pessoa traz em seu coração.
Encontro hospitaleiro não é mudar as pessoas, mas oferecer a elas um espaço no qual a mudança pode acontecer. Não é trazer homens e mulheres para o nosso círculo, mas oferecer uma liberdade sem as amarras de linhas divisórias. A hospitalidade não é um convite sutil para adotar o estilo de vida do anfitrião, mas a dádiva de uma chance para que o hóspede descubra o seu próprio estilo.
Vamos contemplar uma cena típica de encontro, no evangelho de Lucas deste domingo. Os protagonistas da cena, Jesus e Zaqueu, são duas pessoas completamente diferentes entre si, diametralmente opostas; porém, procuram-se mutuamente.
O encontro de ambos acontece na estrada, onde caminham, onde ocorrem os acontecimentos do dia a dia, onde a vida transcorre, onde passam os dias e os anos.
A agitação, a pressa e o entusiasmo, com os quais se pôs à procura do Mestre, eram a clara demonstração de que surgira em Zaqueu uma estranha inquietude.
O nome e a pessoa de Jesus tiraram o véu que encobria o vazio de seu coração, a solidão na qual se encontrava, a insignificância de seus próprios dias.
Para saber “quem é Ele” é preciso sair da multidão; Zaqueu não fica constrangido em subir nos galhos de uma árvore e aguardar; este seu gesto abre possibilidade para que Jesus o veja, o chame pelo nome e o convide a descer depressa, pois deseja ficar em sua casa. Situar-se sobre os galhos pode ser um bom ponto de partida para iniciar um encontro. Mas, Zaqueu não pode permanecer aí; é como se Jesus dissesse: “Não fique aí, acima dos outros, no alto de sua vaidade! desça até às raízes de sua vida! o decisivo acontece nas profundezas de sua casa interior; descerei com você para cearmos juntos”.
Um convite que desfaz os medos e as culpas de quem se sabe pecador e que abre um espaço de esperança, permitindo-lhe uma mudança de vida. Não há no relato nenhuma palavra de condenação e sim uma certa urgência em “descer depressa”. Jesus não quer desperdiçar a oportunidade de viver um encontro com aquele que não podia encontrar-se com ninguém, pois era um explorador. Também Zaqueu não desperdiçou a oportunidade e recebeu Jesus com alegria em sua casa.
Em Zaqueu aconteceu uma mudança de perspectiva decisiva, radical. Anteriormente contemplava os outros a partir dos galhos do próprio ego.
Agora ele não está mais sozinho e não se sente mais uma pessoa insignificante. O olhar do Mestre de Nazaré encheu-lhe o coração; a sua casa não está mais vazia; a tristeza não o sufoca mais. Finalmente, ele descobriu a luz de um olhar e experimentou a ternura de ser procurado e amado.
Não foi preciso que Jesus dissesse muitas coisas a Zaqueu para que este encontrasse um tesouro em seu interior, muito maior que todas as riquezas acumuladas; seus desejos desordenados ficam polarizados por aquele hóspede inesperado que vai transformar daí em diante sua vida: compartilhar o que tem com os pobres e devolver com medida generosa aquilo que roubou. O encontro com Jesus faz Zaqueu alargar seu espaço interior para se encontrar com os outros; ou melhor, amplia seu coração para deixar os outros entrarem em sua vida. Um encontro que desencadeia outros encontros.
Zaqueu, um personagem instigante em quem nos vemos; seu modo de proceder des-vela atitudes de todos nós. Quem de nós não precisou afastar-se da multidão e subir a um lugar mais alto para poder ver por cima dos obstáculos? Há sempre em nossa vida momentos nos quais, por algum motivo, queremos “ver mais além”, ampliar nossos horizontes, sair de nossos espaços estreitos e rotineiros. Há muitas coisas que nos impedem sonhar mais alto, respirar novos ares, ativar o espírito de busca... Precisamos fazer alto diferente, sermos mais ousados e criativos...
Os galhos de uma árvore podem oferecer uma visão mais ampliada da realidade, do contexto social, mas não podemos permanecer aí; é preciso descer ao chão da vida; no meio dos galhos não há possibilidade de viver a acolhida e o compro-misso com o outro. Situar-nos sobre os galhos não pode ser uma atitude permanente. Alguém, lá de baixo, nos apela: “Desça depressa, pois hoje devo ficar em sua casa!”.
Texto bíblico: Lc 19,1-10
Na oração: Todo encontro transformador implica “troca de olhar”. Olhar para Jesus provoca, convoca, exige descer dos galhos da acomodação, da “zona de conforto” e tomar posição. Olhar para Ele e ser por Ele olhado implica disposição, exposição, compromisso para com a mudança. Nada estático, intimista, mas dinâmico, impulsionador de nova vida, novos envios, nova missão...
- “Desça, acompanhado(a), à raízes de sua vida”: quais as verdadeiras “riquezas” alí escondidas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
28.10.22
Imagem: James Tissot
“O publicano voltou para sua casa justificado” (Lc 18,14)
Se algo fica patente no Evangelho deste domingo é a denúncia, por parte de Jesus, do perfeccionismo farisaico. Fariseus de ontem e de hoje. O tão proclamado “ideal de perfeição” chega a enraizar-se tão profundamente na vivência religiosa que acaba produzindo consequências desastrosas para as pessoas. A busca de perfeição torna-as rígidas, legalistas e intolerantes; seu “deus” é pura projeção de sua rigidez e moralismo: um “deus desumano” que cobra até o último centavo e ameaça sempre com o “inferno”.
A Bíblia nunca nos apresenta, como modelos de fé, pessoas perfeitas e sem falhas, mas sim, justamente pessoas marcadas pela fragilidade e fracasso e que colocaram sua esperança unicamente em Deus, ao invocarem-no do fundo do abismo.
Jesus, através de uma simples parábola, desmascara uma religião centrada no moralismo e no julgamento dos outros. Nesta parábola, Jesus contrapõe os dois extremos da sociedade judaica daquele tempo: o fariseu, expressão máxima da piedade e da moralidade, e o publicano, que por sua profissão, era a expressão máxima do pecador, distante dos ideais religiosos.
Ambos vão ao templo e, na oração, cada um deles revela sua vida e seus sentimentos.
De fato, é na oração que o ser humano exprime aquilo que é mais íntimo e mostra como ele se relaciona com os outros e com Deus. O risco do “farisaísmo” é subir o pedestal da “perfeição” e do “legalismo”, distanciando-se do amor e da misericórdia de Deus; com isso, cai no orgulho religioso e é incapaz de converter-se a Deus no seu íntimo.
Na prática, a oração do fariseu significa submeter Deus a si mesmo, cobrando o prêmio pelas boas ações. Agradece porque é sem vícios, não porque se sinta amado por Deus. Seu louvor e agradecimento é apenas um pretexto para louvar a si próprio, inflar o próprio ego. Ele tem méritos e nada deve a Deus; ao contrário, Deus é quem lhe deve: a enumeração de suas boas obras implica a pretensão de uma recompensa; ele acha que pode impressionar Deus com suas qualidades aparentes, seus sacrifícios e boas obras puramente formais, sem extirpar de seu coração o orgulho e o desprezo pelos outros.
A salvação que esperamos não é fruto de nosso trabalho e penitência, de nossa prática legal e de nossas virtudes. Ela é puro dom de Deus, divino presente de seu coração de Pai. Só nos resta acolhê-la em atitude de humilde gratidão.
Na sua auto-suficiência e com sua oração um tanto blasfema, o fariseu está aí, de pé, para dar espetáculo, aguardando o aplauso da plateia. O publicano, no entanto, nos revela que basta redescobrir o caminho da humildade (do húmus), bem no fundo de nós mesmos: este é o lugar da oração.
Esta humildade é a porta de abertura para sair de um coração fechado em si mesmo, de um coração auto-suficiente e perfeccionista, onde tudo gira em torno do próprio eu, onde não há espaço para o Outro e os outros, onde a Misericórdia não tem como agir para poder transformar a pessoa.
A palavra latina “humilitas” está relacionada com “húmus”, com terra.
Ser “humano” é reconhecer-se terroso, argiloso; é por essa razão que somos todos irmãos já que somos todos feitos de argila. Somos “argila” e devemos cuidá-la, cultivá-la e fornecer-lhe as condições para mantê-la aberta ao Transcendente. A “humildade” é a própria essência do ser humano; ela é a própria condição para ser aquilo que se é: para ser “humano”. Essa é a verdade de nossa humanidade.
Somente o humilde, que está preparado para abraçar seu húmus, sua humanidade, sua fragilidade, sua sombra, experimentará o Deus verdadeiro.
Só a aceitação de sua verdade completa conduzi-lo-á no caminho da libertação. E a verdade é que em cada um jazem unidas a luz e a sombra. Em cada santo dorme um pecador, e não reconhecer isso conduz ao farisaísmo e ao moralismo; mas em todo pecador dorme também um santo, e não o perceber supõe um empobrecimento humano, desesperança e vazio.
Numa espiritualidade perfeccionista, o ideal é o ser humano puro, sem defeitos nem fraquezas. Mas isso leva a um rigorismo moral, contra quem se dirige a parábola do “publicano e do fariseu”.
Aqui está a aparente contradição da espiritualidade cristã: nós “subimos” para Deus precisamente quando “descemos” à nossa realidade humana.
Nesse sentido, o caminho para Deus não é visto como uma estrada de mão única que nos leva sempre para o alto, em direção às virtudes e à perfeição. Pelo contrário, o caminho para Deus passa pela limitação e fragilidade, pelos erros e desvios enganosos, pelo fracasso e pela decepção consigo mesmo.
Quem se identifica com “ideais” muito elevados, quem se exalta a si mesmo na busca da “perfeição”, mais cedo ou mais tarde terá de confrontar-se com suas “sombras”, será forçado a tomar consciência de sua condição humana e terrena, de seu “húmus”.
Quem “desce” até sua própria realidade, até os abismos do inconsciente, até a escuridão de suas sombras, até a impotência de seus próprios sonhos, quem mergulha em sua condição humana e terrena e se reconcilia com ela, este sim, está “subindo” para Deus, faz a experiência do encontro com o Deus verdadeiro.
Na parábola acima mencionada, os dois personagens correspondem a dois aspectos de nossa própria pessoa. Vive em cada um de nós um eu prepotente, que se considera justo e rejeita todo o imperfeito; é o eu rígido, fruto da super-exigência, que se identifica com a imagem idealizada de nós mesmos e se alimenta do orgulho. Mas junto a ele, e com frequência sufocado, vive “outro eu” que teve de esconder-se porque não se sentiu reconhecido em sua verdade nem aceito em seus limites.
A parábola revela-nos que a reconciliação virá por esse lado. Precisamos abraçar toda a nossa frágil realidade, em toda a sua verdade e, a partir dessa humildade, começar a viver em gratuidade e em gratidão.
A parábola nos fala da necessidade de acolher o desprezível que descobrimos em nós, de receber amorosamente em nossos braços o pobre publicano interior, de contemplá-lo com olhos compassivos e alimentá-lo. Desse modo, iremos reduzindo nosso abismo interior e avançaremos para a totalidade a que Deus nos chama em Jesus.
Será justamente a partir da consciência de nossa pobreza e de nossa negatividade que poderemos nos abrir à experiência da gratuidade; é quando nos encontramos sem nada que sentimos mais necessidade de nos abrir para cumular-nos dos dons da graça divina.
Segundo a espiritualidade que parte do “chão da vida”, ali pode estar a maior de todas as chances, ali pode estar também nosso tesouro. É ali que entramos em contato com nossa verdadeira essência. E é ali que alguma coisa poderá ganhar vida e desabrochar.
Dorotéo de Gaza disse certa vez: “Teu entulho seja teu pedagogo”.
Onde nós caímos, onde nos afastamos de Deus, é que aprendemos uma lição, a lição que a busca da perfeição não é capaz de nos ensinar. Justamente onde nos deparamos com nossas fraquezas pessoais é que nos tornamos abertos para Deus. Na nossa fraqueza somos capazes de reconhecer a Vontade que Deus tem para conosco e o que Ele poderá fazer de nós quando Ele realizar totalmente sua graça em nós.
Deus nos educa justamente também através de nossos fracassos, através de nossos escombros.
“Descer” à nossa realidade, significa considerar a experiência da impotência e do fracasso como o lugar da verdadeira oração e como chance de chegarmos a uma nova relação pessoal com Deus.
É decisiva a reconciliação com todas as paixões, com todas as feridas, com todas as fragilidades..., pois todas elas podem levar-nos a Deus. Não é preciso outra coisa senão “descer” até onde elas se encontram e interrogar o que elas têm a nos dizer. Este é o caminho da espiritualidade que brota do húmus: descobrir novas possibilidades de vida e de encontro com Deus.
O Amor de Deus se mistura com nosso pobre amor, de modo que os dois se tornam um: eis o despertar do coração! Eis a verdadeira espiritualidade!
Texto bíblico: Lc 18,9-14
Na oração: Quando nos vemos demasiadamente organizados, demasiadamente perfeitos, exigentes, rígidos, ansio-sos, agressivos..., agiríamos bem perguntando-nos o que o nosso “ego” perfeccionista está escondendo.
- Quais são as “marcas” da perfeição impregnadas no seu interior pela formação familiar, pela religião...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
20.10.2022
Imagem: James Tissot
“E Deus, não fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam por Ele?” (Lc 18,7)
Na oração, mergulhamos em Deus e liberamos em nós profundidades que desconhecemos. Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser. Descobriremos recursos, potencialidades de conhecimento e de amor ainda inexploradas, que nascerão para a vida sob a ação do olhar de Deus. Ele é a verdadeira fonte do nosso ser, mais próxima de nós do que nós de nós mesmos.
Quando mergulhamos nas profundidades do oceano interior ficamos fascinados pelo esplendor daquilo que contemplamos. Esse mundo de silêncio e riquezas torna-se inesquecível para nós.
O evangelho deste domingo (29º Domingo do Tempo Comum) nos ajuda a buscar inspiração para a chamada “oração de petição”. Não pedimos humilhados, temerosos, como o servo diante de seu senhor. Não se trata de “informar” a Deus, mas “educar nossos olhos” para descobrir sua presença amorosa e providente; não convencer a Ele, mas convencer-nos, animar-nos e converter-nos para entrarmos no fluxo do Amor divino.
Então, todos os sentimentos e desejos, situados em sua justa relação, podem brotar no nosso coração orante: agradecer, adorar, deixar-nos inundar pela confiança e perdão...
O ser humano é um indigente que pede, descobrindo Deus em seu interior, pedindo com Ele e n’Ele. “Clamar” nos desperta para entrar em sintonia com a presença divina que nunca nos abandona.
Toda a vida é isto: pedir, buscar, clamar... Evidentemente, aquele que pede, busca e clama está se colocando em movimento, está caminhando, está saindo de si... A oração é mobilizadora, nos arranca da passividade e nos faz entrar em sintonia com o querer e o desejo de Deus: que vivamos intensamente. Tudo é de Deus em nossa vida, mas tudo é nosso. Nós vamos nos tornando mais gente (mais humanos) na medida em que somos oração.
Nessa direção se situa a parábola da viúva deste domingo, a quem a lei e o direito não lhe davam segurança; só lhe restava seu rosto indignado e seu grito suplicante para exigir justiça, sendo assim capaz de impactar e mudar o coração de um juiz iníquo.
Nas parábolas de Jesus aparecem muitas mulheres: a que perdeu a moeda (Lc l15,8-10), a viúva que depositou dois trocados no cofre do templo e era tudo o que tinha (Mc 12,41-44), a pobre viúva, corajosa, que enfrentou um juiz (Lc 18,1-8).
Elas nunca são apresentadas como discriminadas, mas com toda sua dignidade, à altura dos homens.
Na tradição bíblica, a viúva é, junto com o órfão e o estrangeiro, o símbolo por excelência da pessoa indefesa que vive desamparada, a mais pobre dos pobres. A “viúva” é uma mulher sozinha, sem a prote-ção de um esposo e sem apoio social algum. Só tem adversários que abusam dela.
Na parábola deste domingo, a viúva é apresentada como modelo de atitude diante de Deus pela sua persis-tência, pela sua coragem frente a um juiz surdo à voz de Deus e indiferente ao sofrimento dos oprimidos. Ela não desiste, continua lutando por si mesma e por seu direito à vida, indo ao juiz dia após dia.
A pobre viúva, longe de resignar-se, clama por justiça; ela não tem outra coisa a não ser sua voz para gritar e reivindicar seus direitos. Toda sua vida se transforma num grito de protesto: “faze-me justiça!”. Seu pedido é o de todos os oprimidos injustamente. Um grito que vai ao encontro daquilo que Jesus dizia aos seus seguidores: “Buscai o Reino de Deus e sua justiça”.
Podemos também interpretar a parábola do juiz e da viúva como uma imagem do nosso interior: lugar da nossa intuição que nos diz que possuímos um brilho divino, que somos seres originais, filhos e filhos de Deus. Nosso interior representa os sonhos que carregamos durante nossa vida, os recursos que ainda não foram mobilizados, as possibilidades que não foram ativadas... Nele se faz visível algum traço do rosto do Deus vivo, afinal, nosso eu profundo é sua morada sagrada.
Mas, nosso interior carrega também um tribunal com um juiz frio e insensível, que, numa postura arro-gante, nos julga de forma excessivamente dura, e, às vezes, nos rejeita e nos condena constantemente; ele emite juízos taxativos, cortantes, condenatórios, alimentando em nós sentimentos de culpa e impotência.
Ele tem o catálogo de leis nas mãos e é implacável mesmo diante dos mínimos deslizes, distribuindo prêmios (poucos) e castigos (abundância).
Em cada um de nós o instinto de julgar está enraizado profundamente; podemos até dizer que todos nascemos portadores de uma cátedra de juiz. Muitos cultivam ardorosamente esta vocação de juiz e encontram abundantes ocasiões para praticar juízos, sobre si mesmos e sobre os outros, submetendo-se a um horário esgotador. Daí a proliferação de “tribunais ambulantes e permanentes”.
No Evangelho, nos encontramos com algumas expressões categóricas que nos convidam a abandonar este ofício bastante perigoso. Muitos, com seu amadurecimento, ficam persuadidos de que existem coisas mais importantes a fazer do que dedicar-se a serem juízes.
Embora se trate de uma grave enfermidade, esta “síndrome de juiz” é curável. Existem muitas terapias que podem arrancar a cadeira do juiz e desalojá-lo de seu ofício.
Na parábola da viúva e do juiz injusto Jesus nos mostra como podemos conviver com o juiz interior. Como a viúva, nós nos vemos ameaçados por um inimigo – pode ser um inimigo interior ou exterior ou um padrão de comportamento que não nos permite viver com serenidade e paz.
Nesse contexto, o juiz representaria nosso juiz interior, que nos despreza continuamente e nos julga desprezíveis por termos ideais tão altos ou exigências tão ambiciosas para nós mesmos.
Nessa interpretação, a oração também passa a ser o lugar onde nosso interior encontra justiça, onde o juiz interior é desapoderado. Na oração nos tornamos cientes da nossa dignidade como seres humanos, que fomos criados por Deus e que Ele nos julga capazes de realizarmos nossos desejos. Por meio dela, entramos em contato com a imagem única e singular que o Pai tem de nós; toda auto-depreciação e auto-condenação se dissolvem durante esse momento.
Se orarmos com essa parábola em mente, a nossa oração adquire uma força diferente.
Nesse sentido, a oração é o espaço onde a dimensão feminina é despertada através do seu clamor, da sua insistência e perseverança.
O ser humano carrega dentro de si amor e agressão, razão e emoção, gentileza e dureza, juiz e viúva, animus e anima – dimensão masculina e dimensão feminina da alma.
Muitas vezes vivemos apenas um polo e recalcamos o outro. Enquanto este permanecer nas sombras terá um efeito destrutivo. A arte da humanização consiste na reconciliação da viúva com o juiz interior. Muitos ficam chocados quando, apesar de todo esforço para serem pessoas amáveis e gentis, descobrem em si lados insensíveis, antipáticos, julgadores, ofensivos...
Jesus nos apresenta a oração como caminho para esvaziar o ofício do nosso juiz interior. No espaço da oração experimentamos nosso direito à vida; ali encontramos paz, ajuda e cura. Ao mesmo tempo, a oração nos leva ao espaço interior do silêncio, onde o juiz é desarmado de sua arrogância.
Com o juiz silenciado, acabam-se os ressentimentos, as violências interiores, os sacrifícios, os juízos, os sentimentos de culpa... Morre o “juiz” das proibições, das ameaças, dos castigos e da perpétua vigilância sobre nossos atos e intenções. Com isso, nossa vida torna-se mais leve, os medos se vão e a harmonia toma assento em nosso coração.
Texto bíblico: Lc 18,1-8
Na oração: A oração concebida como clamor nos salva do intimismo narcisista e do individualismo. Ela nos re-situa como cria-turas finitas, mas também à imagem e seme-lhança de Deus e desejosas de comunhão e de justiça; ela nos faz sentir-nos corpo com toda a humanidade e a criação que geme dores de parto; ela já é o vislumbramento de outro mundo possível.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.10.2022
“Mestre, tem compaixão de nós!” (Lc 17,13)
“...atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra, e lhe agradeceu” (Lc 17,16)
Jesus está a caminho, quase chegando à etapa final da viagem: Jerusalém. A estrada é a vida e a missão de Jesus, enviado para revelar o rosto misericordioso de Deus aos homens. A sua estrada é marcada pela solidariedade e cuidado para com os mais excluídos e sofridos.
Entre Jesus e aquela estrada, que conduz a Jerusalém, há uma relação vital: Ele é o “autor” daquela estrada; Ele é a estrada do cumprimento da vontade de amor e de salvação do Pai; Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Essa estrada deverá ser a mesma também dos discípulos, a do seguimento, a que conduz à Cidade santa, à plena bem-aventurança. Um Caminho que faz viver e realiza a comunhão em plenitude.
Logo que Jesus entrou na aldeia, “dez leprosos” foram ao seu encontro. Pela narração do evangelista, temos a impressão de que não há mais ninguém na cena: Jesus parece estar sozinho com os leprosos. A aldeia se apresenta surpreendentemente vazia. É óbvio, os leprosos deviam estar separados e longe de todos.
Na verdade, a lepra era entendida como manifestação de uma condição de pecado.
Os leprosos, embora mantivessem a devida distância, vão ao encontro de Jesus, gritando.
Aqueles pobres miseráveis O buscam como o “misericordioso”: “Jesus, mestre, tem compaixão de nós!”.
É uma oração surpreendente, na qual o homem de Nazaré é chamado pelo próprio nome.
Jesus, por sua vez, pousa sobre eles o seu “olhar” e os envolve com tanta atenção e sedução, que os dez não hesitam, nem um momento sequer, em pôr em prática, com confiança, a ordem que lhes foi dada: “Ide apresentar-vos aos sacerdotes”. Assim, Jesus se põe com eles na estrada da esperança, na estrada da experiência da solidariedade que cura e os acompanha, mesmo de longe, até aos sacerdotes.
A recuperação da saúde deles se torna também re-inserção na sociedade, no espaço familiar e na comunidade religiosa. Eles não serão mais rejeitados.
Dois sentimentos nobres são des-velados no relato deste domingo: a compaixão e a gratidão.
Dois sentimentos que se expressam como duas atitudes básicas na vida; por um lado, revelam a maturidade da pessoa e, por outro, tornam possível uma convivência harmoniosa e construtiva.
Mas, como toda arte, tais atitudes requerem um cuidado expresso e cotidiano. A partir do contexto e da situação em que cada um se encontra na vivência destes sentimentos nobres, sempre é possível dar passos nessa dupla direção, favorecendo conscientemente ser compassivos e agradecidos.
Considerados pecadores e condenados ao ostracismo, afastados de qualquer convivência social e de todo contato humano, com proibição expressa de se aproximarem de qualquer pessoa, os leprosos padeciam, esperando a morte, em colônias mais ou menos numerosas.
Compreende-se que, nessa situação, clamassem por compaixão. O ser humano sempre precisa que os demais “se coloquem em sua pele”, compreendam sua situação e seu comportamento. Mas essa necessidade se faz mais aguda quanto mais frágil e vulnerável se sente.
Esse é o significado profundo do termo “compaixão”: sentir com o outro e agir como consequência, buscando uma solução para a situação de extrema necessidade.
Jesus vive uma contínua travessia e sai ao encontro dos oprimidos e excluídos de todo tipo. Preocupa-se com todos os que encontra em seu caminho, sobretudo aqueles que estão atrofiados em sua vida. Sem a compaixão de Jesus, o relato seria impossível.
É da margem da exclusão que brotam os clamores por compaixão; e Jesus, com sua sensibilidade ativada, deixa-se afetar pelos gritos dos excluídos.
Os leprosos pedem compaixão a Jesus. Desejam ser compadecidos, perceber que sua desgraça não passa desapercebida e sentir o calor da compreensão de alguém significativo e com autoridade. Novamente, Jesus revela que só a compaixão não é suficiente e que permanecer na esfera dos sentimentos não soluciona o problema. Requer-se uma ação que ajude à pessoa a recuperar sua dignidade. Esta é a chave da misericórdia, ou seja, colocar o coração-ação na miséria humana e restaurá-la a partir de dentro.
A gratidão, por sua vez, tem a ver com nosso ser essencial, pois ativa o que há de melhor em nós.
Ela nasce do nosso eu profundo e flui por todos os membros, passa por todos os poros do nosso corpo. Não deixa sem tocar nenhuma parte do nosso ser. Abarca tudo o que somos e desperta o melhor que possamos imaginar ou que possamos aspirar.
No evangelho de hoje é, precisamente, alguém vindo de fora, desprezado pelos de dentro, o único que sabe reconhecer o dom recebido de Deus, dando uma magistral lição àqueles que não souberam agradecer.
Só um retornou para dar graças; só um se deixou levar pelo impulso vital da gratidão. Os outros nove (supõe-se que eram judeus), se sentiram na obrigação de cumprir o que a lei mandava: apresentar-se ao sacerdote para que lhe declarasse puro e pudesse ser reintegrado à sociedade. Para eles, voltar a fazer parte da instituição religiosa e social era a verdadeira salvação. Os nove voltam a submeter-se ao abrigo da instituição: vão ao encontro com Deus no templo e nos ritos. O Samaritano, no entanto, sentiu ser mais urgente voltar para agradecer. Foi aquele que se deixou conduzir pelo coração, porque, livre das ataduras da lei, se atreveu a expressar sua vivência profunda. Este, encontra a presença de Deus em Jesus. É mais importante responder vitalmente ao dom de Deus que o cumprimento de alguns ritos externos.
Pois, foi Deus mesmo quem, ao criar-nos gratuitamente no amor, nos ensinou a “sermos gratuitos e gratos”.
A gratidão é um sentimento que enriquece as relações e eleva o “tom vital” da pessoa agradecida. Quem vive a gratidão manifesta um dinamismo aberto, cordial e animoso, praticamente imune ao desalento.
A gratidão nasce da vivência da gratuidade e caminha de mãos dadas com a aceitação de que tudo é dom. Quando se percebe que tudo é graça, não se pode viver sem agradecimento. E quando se vive em sintonia com a realidade, é possível dar graças por tudo o que dela provém, pois tudo traz uma mensagem e uma oportunidade.
O oposto ao reconhecimento da gratuidade é o narcisismo exigente e auto-referencial que se considera com “direitos” frente a tudo, numa postura egocentrada, incapaz de sair e si e dar valor ao que recebeu. A gratidão possibilita fluir com a vida, permitindo que se expresse livre e adequadamente através de nós.
A gratidão é uma arte que pode ser alcançada na medida em que é ativada. E o melhor caminho para isso é “dar graças” por tudo. Tudo é graça, de graça; somos seres agraciados, cheios de graça...
Cabe a nós, enquanto seguidores de Jesus, pensar-sentir agradecidamente e ter gestos de gratuidade.
Cabe a nós falar agradecidamente. A expressão “muito obrigado” é das primeiras que se aprende quando alguém se inicia em outro idioma. Ser agradecido se aprende agradecendo e tudo se pacifica quando o “gratuito” marca a pessoa por inteiro.
A vida nova vem da vida recebida e partilhada; ela nos coloca acima do êxito e do fracasso, pois está no nível da gratuidade.
Texto bíblico: Lc 17,11-19
Na oração: Criar um clima de ação de graças. Tudo é Graça.
Ponderar com muito amor tudo o que o Senhor fez por mim, por meio dos outros, da Criação e de minha história passada e presente. Como Ele me cumula de seus próprios bens. Tudo é dom de Deus; tudo foi criado por amor para mim (Deus providente).
Pe. Adroaldo Palaoro sj
06.10.22
“Quando tiverdes feito tudo o que vos ordenarem, dizei: ‘somos simples servos, só fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10)
Continuamos o percurso contemplativo, seguindo e aprendendo com Jesus. No evangelho deste domingo (27º Domingo do TC) temos a impressão de que Lucas recolhe afirmações do Mestre da Galiléia que, aparentemente, estão desconexas; no entanto, há um fio condutor muito sutil. Nos relatos anteriores, Ele nos pedia, de diferentes maneiras, para que não colocássemos a confiança nas riquezas, no poder, no luxo; e hoje nos diz claramente: “não coloques tua confiança em tuas ‘boas obras’”. Confia somente em Deus.
Os dois temas que o evangelho deste domingo nos propõe estão intimamente conectados; ou seja, devemos confiar somente em Deus e não nas nossas obras. Aqueles que passam a vida acumulando méritos não confiam em Deus, mas em si mesmos. A salvação por “pontos conquistados” é totalmente contrária ao evangelho. Esta era a atitude dos fariseus que Jesus criticou.
Também hoje é comum a atitude daqueles que não se identificam com Jesus e se limitam a cumprir alguns ritos, observar algumas normas e penitências, realizar algumas “obras interesseiras”.
Suas vidas não deixam transparecer a “fé em Jesus”; quando falta esta adesão pessoal viva, interiorizada, cuidada e confirmada continuamente no próprio coração e nas relações com os outros, a fé corre o risco de atrofiar-se, reduzindo-se à aceitação doutrinal, à prática de obrigações religiosas e obediência a uma disciplina. A vivência da fé cristã consiste primordialmente na identificação com Aquele que nos atrai e nos chama: “Vem se segue-me!”
No relato deste domingo, os apóstolos, depois de um tempo de convivência com Jesus, se dão conta de que lhes falta algo para poder compreender as exigências d’Ele. Por isso, suplicam: “aumenta nossa fé”.
Como de outras vezes e como bom “pedagogo”, Jesus não responde diretamente à petição dos apóstolos. Quer dar a entender que a fé não é questão de quantidade, mas de autenticidade. Além disso, a fé não pode ser aumentada a partir de fora; ela precisa crescer a partir de dentro, como o grão de mostarda.
A fé é um caminho, é uma “travessia” em direção a largos horizontes; e um desejo eternamente insatisfeito; é uma confiança continuamente renovada, um compromisso sem final.
A fé não se resume a um ato nem uma série de atos, nem uma adesão a uma série de verdades teóricas que não podemos compreender, mas uma atitude pessoal fundamental e total que imprime uma direção definitiva à existência. Confiar naquilo que realmente somos nos dá uma liberdade de movimento para desatar todas as nossas possibilidades humanas.
Na Bíblia, a fé é equivalente à confiança em uma pessoa, acompanhada da fidelidade. Nesse sentido, a fé é uma vivência em Deus; por isso não tem nada a ver com a quantidade.
Jesus denuncia a fé dos seus discípulos, que parece frágil, de pouco fôlego, incapaz de manifestar aquela força que muda a vida, o modo de pensar, de sentir e de agir.
A fé supõe o des-centramento de si mesmo e o reconhecimento de Deus como centro da própria vida, numa atitude de confiança incondicional; ela abre para o ser humano o horizonte infinito de Deus. Crer significa deixar Deus ser totalmente Deus, ou seja, reconhecê-lo como a única razão e sentido da vida.
É esta experiência de fé que desata as ricas possibilidades latentes em nosso interior. Com a imagem da amoreira que é transplantada, Jesus nos está dizendo que o dinamismo de Deus está já atuante em cada um de nós e nos possibilita viver profundas mudanças (sair de um lugar estreito, limitado... e lançar-nos a outro lugar amplo, desafiante...). A fé é experiência expansiva da própria vida, movida pela graça de Deus. Aquele que tem confiança em Deus, poderá desatar toda essa energia de vida.
Essa vida é o que de verdade importa. Por isso, crer em Deus é também confiar em cada ser humano e em suas possibilidades para alcançar sua plenitude humana.
Que alimentemos, portanto, dentro de nosso coração, esta fé viva, forte e eficaz. Fé que se visibiliza no serviço por pura gratuidade; ou, segundo S. Paulo, a fé que se realiza “pela prática do amor” (Gal. 5,6).
E Jesus ilustra isso com a pequena parábola do “simples servo”. Parábola dirigida àqueles que confiam em suas obras e exigem uma recompensa de Deus. Daí o perigo da soberba religiosa: comparar-se com os outros, colocando-se acima deles e fazendo-se o centro.
No Reino de Deus, somos todos servidores; nele não se trabalha por recompensa. Já é um privilégio podermos colaborar na obra o Senhor. A parábola revela que o trabalho a serviço do Senhor já é uma graça e a recompensa não pode ser exigida; ela é dom.
Não podemos fazer desse serviço uma “carreira”, com promoções, honrarias e prêmios. No mundo em que vivemos, a mínima prestação de serviço exige uma gratificação específica. Tudo tem um preço. Nossa mentalidade exclui todo espírito de serviço gratuito.
As “obras boas” não são um crédito que podemos apresentar a Deus; são, antes, a manifestação de que temos acolhido o amor de Deus e o manifestamos aos outros. Confiar em Deus é também incompatível com a confiança nos próprios méritos.
Há aqui o princípio ético que deve reger a conduta do cristão, diante de Deus e diante dos outros. É a atitude da inteira disponibilidade, a intensidade do compromisso, sem queixas, sem comparações e nem exigências. Uma ética e uma espiritualidade assim revelam um profundo e inexplicável humanismo.
Sabemos que Jesus desencadeou um movimento profético em favor da vida, mobilizando seguidores(as) a quem confiou a missão de anunciar e promover o projeto do Reino de Deus. Por isso, o mais importante para reavivar a fé cristã é ativar a decisão de viver como seguidores(as) seus(suas).
Nesta perspectiva, o critério primeiro e a chave decisiva para entender e viver a fé cristã é seguir Jesus Cristo. Quem o segue vai descobrindo o mistério que se revela n’Ele, situa-se na perspectiva correta para entender Sua mensagem e vai aprendendo a trabalhar a serviço do Reino de Deus. O seguimento constitui o núcleo, o eixo e a força que permite a uma comunidade cristã expandir sua fé em Jesus Cristo.
Por isso, mais que ter fé em Jesus, o decisivo é “viver a fé de Jesus”; e a fé de Jesus está intimamente vinculada à justiça do Reino, ou seja, comprometida com a vida.
Para Jesus, a fé não está vinculada a um catálogo de crenças, a uma doutrina, a uma religião, e sim, a um modo de viver e agir, profundamente sintonizado com o modo de ser e agir do Pai.
Deixando-nos afetar e seduzir pela identificação com Jesus, vamos nos revestindo das grandes atitudes e compromissos que Ele viveu na sua missão, sobretudo na relação com os mais pobres e excluídos, alimentando neles a esperança de um mundo novo, o Reinado do Pai. É isso que, como seguidores(as), temos de interiorizar e viver sempre.
Texto bíblico: Lc 17,5-10
Na oração: Fazer memória de tantas pessoas que, mesmo no anonimato de suas vidas, foram refe-rências na vivência de fé, integrando uma profunda ade-são ao Deus da Vida e o compromisso em favor da vida.
- Sua vivência de fé faz diferença na realidade em que você se encontra? Ela inspira, move, provoca... a sair das suas “normoses religiosas” (normalidade doentia centrada no legalismo, no moralismo, no ritualismo...)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.10.22
"Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão, à porta do rico” (Lc 16,20)
O Evangelho deste 26º domingo do Tempo Comum nos traz, mais uma vez, uma parábola escandalosa e provocativa. O que Jesus quer nos comunicar através desta parábola que desperta tanto incômodo? A parábola do rico “epulón” e do pobre Lázaro nos inquieta e é inquietante, pois nos situa de novo diante da exigência do amor concreto e comprometido, como serviço ao próximo.
Na primeira parte do relato a ideia prevalente é que tudo o que fazemos repercute nos outros: a situação de Lázaro é consequência do mal proceder daqueles que apodrecem em suas riquezas. Os pobres não existem “porque sim”, mas por uma deficiente partilha dos bens e de uma insensibilidade diante de quem é vítima de uma estrutura social e econômica perversa.
A cena revela-se ainda mais dramática, quando se considera que o pobre se chama Lázaro, um nome muito promissor pois significa, literalmente, «Deus ajuda». Não se trata de uma pessoa anónima; antes, tem traços muito concretos e aparece como um indivíduo a quem podemos atribuir uma história pessoal. Enquanto Lázaro é como que invisível para o rico, a nossos olhos aparece como um ser conhecido e quase familiar, torna-se um rosto; e, como tal, é um dom, uma riqueza inestimável, um ser querido, amado, recordado por Deus, apesar da sua condição concreta ser a de um descarte humano.
A parábola põe em evidência, sem piedade, as contradições em que vive o rico. Este personagem, ao contrário do pobre Lázaro, não tem um nome, é qualificado apenas como «rico». A sua opulência manifesta-se nas roupas, de um luxo exagerado, que usa. De fato, a púrpura era muito apreciada, mais do que a prata e o ouro, e por isso se reservava para os deuses. Assim, a riqueza deste homem é ofensiva, inclusive porque exibida habitualmente: “Fazia todos os dias esplêndidos banquetes”
A sua personalidade vive de aparências, fazendo ver aos outros aquilo que se pode permitir. Mas a aparência serve de máscara para o seu vazio interior. A sua vida está prisioneira da exterioridade, da dimensão mais superficial e passageira da existência. Para o homem corrompido pelo amor das riquezas, nada mais existe além do próprio ego e, por isso, as pessoas que o rodeiam tornam-se invisíveis; seu olhar não as alcança. Assim, o fruto do apego ao dinheiro é uma espécie de cegueira: o rico não vê o pobre esfomeado, chagado e prostrado na sua humilhação.
Ao ler ou escutar a parábola temos uma primeira impressão de que ela vai contra o evangelho, pois o rico é condenado por ser rico, por puro pecado de omissão. Pensamos que esta é uma parábola sem misericórdia: nem Deus escuta o lamento do condenado que pede somente umas gotas de água. Por que não se compadece do condenado?
Mas, lendo o texto com atenção e cuidado, como parábola-advertência, sentimos por dentro que é verdade o que diz: esta é uma parábola provocativa de Jesus, uma advertência profunda para aqueles que, petrificados pela riqueza, acabam correndo o risco de converter a terra em um inferno. Esta parábola nos fala mais do presente que do “mais além”; fala de tudo o que podemos mudar desde agora para ter um futuro melhor: um verdadeiro banquete, onde a única riqueza seja o amor compartilhado.
A parábola denuncia o abismo vergonhoso entre os próprios seres humanos; o que essa imagem nos revela é a ruptura que nossa indiferença constantemente produz, à qual, no entanto, não costumamos prestar atenção. Contra ela, já advertia Martin Luther King: “Quando refletimos sobre nosso século XX, o mais grave não parece ser as ações dos maus, mas o escandaloso silêncio dos bons”.
Por que caímos tão facilmente na indiferença? Sem dúvida, frente aos outros e frente ao mundo, ela esconde uma maior ou menor insensibilidade que, bloqueada ou endurecida, isola a pessoa em um caracol egocêntrico e a instala numa atitude indiferente – oposta à compaixão -, que está na origem das injustiças e violências que diariamente vemos em nosso mundo.
Em sua redoma protetora, o rico não vê os outros a não ser quando necessita deles, considerando-os como se fossem “objetos” a seu serviço; sua capacidade de amar fica bloqueada.
O abismo que causa a dor de Lázaro é também o abismo que provoca a dor do rico. Nos dois “quadros” da parábola – simbolizados no antes e no depois da morte -, destaca-se com intensidade a ruptura como o motivo do mal. Pois bem, esta ruptura não é casual, nem é provocada por Deus, que castigaria o rico por toda a eternidade. É causada pela indiferença do próprio rico que, em sua cegueira, não “vê” o pobre jogado ao chão, à sua porta.
Em seu processo de desumanização o rico “epulón” fez das riquezas seu “deus”. Este “deus” matou seu coração, sua sensibilidade e sua humanidade; ficou sem entranhas de compaixão, pois ao seu redor já não existiam outras pessoas a não ser o seu ego fechado, isolado...
Como poderia ver aquele pobre homem desprezado ou chegar a saber seu nome, caído à porta de seu palácio esperando algumas sobras para comer? Lázaro tornou-se “invisível” para aquele que ficara cego por causa de suas riquezas.
O pobre está fora da porta, rodeado de cães da rua. O homem rico se encontra dentro de casa. Não acontece nenhuma forma de comunicação entre eles. Na primeira parte, ambos se encontravam próximos um do outro; o texto realça a distância espacial que os separa (“um grande abismo”), mas, apesar da distância eles podem se ver e escutar um ao outro. É só abrir a porta.
O destino do rico “epulón” é o melhor espelho para ver a realidade tal qual ela é, essa que o mundo nos impede reconhecer: que o autêntico mendigo e indigente era ele, e que a solidão lhe oprimia em meio ao esbanjamento mais agressivo.
Muitas vezes, as portas protegem do encontro com o diferente, blindam a individualidade e parecem ser itens indispensáveis à sobrevivência. Assim, o indivíduo se tornará um prisioneiro de sua visão de mundo e fará de sua casa uma couraça que protege. A riqueza pode ser um grande portão que impede ver o que há do outro lado; a púrpura e o linho podem ser um impedimento para ver os desnudos da rua; os banquetes podem obscurecer a capacidade de ver aqueles de estômago vazio, atirados à entrada do portão de casa.
No fundo, o que a parábola deste domingo denuncia é a falta de compaixão do rico para com o pobre; sua riqueza o torna frio, distante e petrificado.
Sabemos que a compaixão é o sinal mais claro de maturidade humana. A indiferença, pelo contrário, manifesta nossa imaturidade e atrofia nossa humanidade. A compaixão desperta o contato com a nossa própria vulnerabilidade ou fragilidade.
Quando acolhemos toda nossa realidade humana a partir de uma atitude humilde, é provável que emerja um sentimento amoroso para conosco mesmo; assim, nos tornamos mais sensíveis ao sofrimento dos outros.
A indiferença é, antes de mais nada, cegueira que alimenta uma insensibilidade diante da situação de penúria dos outros, petrificando-nos por dentro. Certamente, constitui um mecanismo de defesa, com o qual nos blindamos diante da necessidade e da dor dos outros – “olhos que não veem, coração que não sente” -; mas, em último termo, nasce de não “saber” que o outro é o nosso espelho: nele nos vemos e nele nos sentimos interpelados. Para isso é preciso abrir as portas do coração para viver a “cultura do encontro”.
Texto bíblico: Lc 16,19-31
Na oração: A parábola deste domingo nos fala também da necessidade de abrir a porta e acolher o que é rejeitado, ferido, desprezível... que descobrimos em nós, de receber amorosamente em nossos braços o pobre Lázaro interior, de contemplá-lo com olhos compassivos e alimentá-lo. Desse modo, iremos reduzindo nosso abismo interior e cresceremos na sensibilidade frentes aos “lázaros” da vida.
- Diante do mundo da exclusão e da miséria, que sentimentos prevalecem em você: indiferença, compaixão, insensibilidade, espírito solidário...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.09.22
“Os filhos deste mundo são mais astutos em seus negócios do que os filhos da luz” (Lc 16,8)
O Evangelho deste domingo nos situa diante de mais uma parábola "escandalosa" de Jesus, ou seja, um relato impactante e provocativo, que ajuda a “despertar” o ouvinte ou o leitor.
Mas o que se trata na parábola não é da injustiça cometida nem da desonestidade do administrador, senão de sua astúcia. O objeto de louvor por parte de Jesus é a esperteza, a audácia e o empenho com que o administrador tira partido de uma situação presente tendo em vista garantir o futuro; Jesus elogia o admi-nistrador não porque roubou, mas porque teve presença de espírito, soube calcular bem as coisas e encon-trar uma saída honrosa, enquanto havia tempo. E a “saída” do administrador, ameaçado de desemprego, foi fazer “amigos” para depois.
A parábola, apesar das aparências, não está centrada no dinheiro, mas na “astúcia” do administrador.
E é então quando a parábola dá o salto “dos filhos das trevas” aos “filhos da luz”, tomando forma de denúncia ou alerta: todos somos “astutos” quando manejamos os assuntos do nosso ego, naquilo que tem a ver com seus interesses. Não aplicamos a mesma inteligência para aquilo que tem a ver com nossa verdade profunda. Precisamos estar atentos para viver coerentemente com o que realmente somos. Em uma palavra: vivemos nas “trevas” ou na “luz”?
Quanto investimos no mal e como somos preguiçosos e sem criatividade na vivência do bem! Não podemos continuar lamentando o mau que os outros fazem; devemos lamentar o bem que deixamos de fazer; não queixemos do mal que está no mundo; lamentemos daquilo que nós, seguidores(as) de Jesus, não fazemos para que nosso mundo esteja melhor.
Não lamentemos dos maus, mas dos inúteis que os bons costumam ser. A comunidade cristã não anda mal pelos pecados que há nela. Anda mal pelo fato de sermos poucos criativos e o pouco que os bons fazem por ela.
Jesus reconhece a esperteza dos filhos deste mundo utilizada para cometer delitos, enganar, roubar ou levar uma vida corrupta, e realça o modo de proceder daqueles que o seguem, ou seja, a necessidade de serem também astutos para fazer o bem e lutar pela justiça. Ele quer que os “filhos da luz” sejam criativos em favor do Reino: estejam atentos, sejam hábeis e permaneçam despertos e ativos para livrar-se do complicado e sutil combate contra os mecanismos do mal; neste caso, o que gera a ambição do dinheiro.
Não devemos imitar a injustiça que o administrador infiel está cometendo, mas utilizar a astúcia e a prontidão com que atua; ele é um filho deste mundo; é sagaz porque, em meio à situação desesperada de ser despedido do emprego, soube aproveitar da situação para preservar seus interesses. Com esperteza, com decisão e sem escrúpulos, aproveita o que lhe pode proporcionar vantagem para garantir sua vida futura.
E é aqui onde encontramos a chave de compreensão do relato: como “filhos da luz” precisamos agir de um modo inteligente, utilizando todos os recursos em favor da vida. Quem são nossos “amigos para depois”? São os cegos, os excluídos, os pobres em geral. Temos amplas oportunidades de usar o “vil dinheiro” para conquistar estes amigos. Essa Vida não é outra coisa que as “moradas eternas” de que fala o texto.
A mensagem do Evangelho deste domingo não só nos instiga a sermos mais astutos com os valores do Reino, mas também nos alerta para o perigo de afeição desordenada com relação ao ídolo dinheiro.
O dinheiro pode ser mediação para ajudar às pessoas, mas também pode se tornar o “absoluto” da existência. No fundo, o evangelho de hoje nos situa diante do maior dilema de nossa vida, diante da única pergunta na qual investimos tudo: quem é o “senhor” que determina nossa vida? Na prática, segundo a resposta que lhe demos, viveremos “para o dinheiro” (nas “trevas”) ou “para Deus” (na “luz).
Na perspectiva bíblica, há uma incompatibilidade radical entre a paixão pelo dinheiro (e outros afetos desordenados) e a paixão pelo Reino. “Ninguém pode servir a dois senhores”. Há uma incompatibilidade de ordem religiosa, porque a fé no Deus único impede a idolatria; uma incompatibilidade de ordem moral: não se pode servir, ao mesmo tempo, ao amor e ao egoísmo; e também uma incompatibilidade de ordem psíquica, porque não é possível experimentar a paixão pelo Reino e pelo dinheiro, ao mesmo tempo, sem divisão para o indivíduo.
Para os seguidores de Jesus, o amor não é apenas um preceito, é uma atitude de vida, que pede um total investimento afetivo. Por isso, o “afeto desordenado” ao dinheiro, como fonte de desamor, se apresenta não somente como problema ético, mas também como problema de crença, de fé.
A fidelidade ao Deus único fica interditada. E o caráter idolátrico que o dinheiro possui é ressaltado nos Evangelhos mediante o uso do termo “mamon” – a etimologia desta palavra parece referir-se à idéia de “depósito”, “provisão; mas na boca de Jesus parece adquirir um caráter de idolatria, na medida em que remete a um lugar que fornece “segurança” à existência.
Como todo ídolo, o dinheiro provoca o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas. De fato, a tentação do dinheiro tem suas raízes fundadas no pânico produzido pela insegurança. O dinheiro, os bens, as posses apresentam-se, então, como solo firme sob nossos pés. Mais ainda: o dinheiro é algo mais do que solo firme e apoio; é carapaça protetora, é um objeto interno, corpo do corpo, ou coisa com a “qualidade do eu”. A dinâmica acumulativa, retentiva, própria da posse do dinheiro, possui toda a força do narcisismo e da auto-afirmação infantil.
Sabemos da perene e escorregadia tentação – uma mentira perigosa que aparece como “verdade” - de solucionar as inseguranças e medos de nosso eu através dos impulsos à cobiça que se aninham em nosso coração. Há coisas que são mentira, mas que aparecem como verdade; aí se enraíza seu atrativo.
Temos medo de “perder pé”; por isso, com o dinheiro, pensamos agradar e robustecer nosso ego. Daí surgem as racionalizações com a desculpa de servir a Deus; no fundo, manipulamos Deus para santificar nossos afetos desordenados. “Eu quero um Deus que queira o que eu quero”.
Cada um de nós precisa encontrar a maneira de agir com sagacidade para conseguir o maior benefício no uso do “dinheiro”, não para alimentar nosso falso eu, mas para construir relações mais sadias, através da partilha. Se somos sinceros, descobriremos que, em nossa vida, confiamos muito mais nas coisas externas e muito pouco naquilo que realmente somos. Com frequência, servimos ao dinheiro e nos servimos de Deus. Proclamamos Deus como o Senhor, mas quem manda de verdade é o dinheiro. Deus é Amor gratuito, mas dinheiro quer tudo..., até a “alma”.
Aos poucos, o “dinheiro” vai se transformando em “senhor” que exige pesados sacrifícios e um alto investimento afetivo, esvaziando outras dimensões de nossa vida.
A criação da nova comunidade, como alternativa às relações perversas do mundo, passa necessariamente pela ruptura com o que se encontra na própria base da desi-gualdade e da injustiça, que é a afeição ao dinheiro.
Texto bíblico: Lc 16,1-13
Na oração: Seu compromisso com o Reino afeta seu “bolso”? Você sabe e sente a força de sedução que o dinheiro exerce e da capacidade que ele tem de atrofiar sua sensibilidade diante da realidade e dos outros?
- Quem é o “senhor” que move seu coração?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
15.09.22
“Alegrai-vos comigo! Encontrei a minha ovelha que estava perdida! ... encontrei a moeda que tinha perdido!...
este teu irmão estava perdido, e foi encontrado” (Lc 15,6.9.32)
O cap. 15 do evangelho de Lucas é conhecido como o “Evangelho dos perdidos”. A experiência de perda marca a nossa existência de várias formas. Perdemo-nos do Pai e da casa paterna; perdemo-nos na fraterni-dade; perdemo-nos no tempo e nas decisões da vida...
As parábolas dos perdidos colocam nossa vida em questão. Na verdade, dentro de nós não existem só coisas belas, harmoniosas e resolvidas. Dentro de nós há sentimentos sufocados, muita matéria por esclarecer, patologias, repressões...; há feridas para serem curadas, dimensões por reconciliar, memórias dolorosas que precisam ser relidas sob outra luz; fracassos que pesam e alimentam culpas... Uma multidão de “perdidos” nos habita, esperando uma ocasião para serem acolhidos e integrados.
As parábolas do evangelho deste dia nos colocam diante desta pergunta: “o que está perdido em mim?”
É preciso tomar consciência da ovelha, da moeda e do filho perdidos em nosso interior. São símbolos de nossa fragilidade, vulnerabilidade, pobreza..., enfim, expressão de nossa condição humana. Cada um dos perdidos pode revelar recursos, dons... que não foram valorizados. A moeda significa riqueza, mas que está perdida em nossa própria casa; o filho, revela a continuidade da descendência, mas que está afastado.
É preciso redescobrir (des-velar), no próprio interior, a presença do pastor, da mulher e do pai. Eles são como que os pontos nutrientes, iluminantes e terapêuticos encontrados em nosso “eu profundo”. Cada um deles revela uma presença diferenciada em relação ao que está perdido. O pastor deixa transparecer o seu cuidado e a iniciativa de sair do próprio redil para ir em busca da ovelha perdida. A mulher revela desvelo no cuidado da própria casa para encontrar a moeda. O pai misericordioso revela paciência e espera o retorno do filho que se perdera, acolhendo-o e integrando-o à família.
Por outro lado, habitam também no nosso interior os fariseus e mestres da lei que, tendo a lei na mão, emitem juízos, não acolhem as ovelhas, as moedas e o filho perdido de nossas vidas. Não abrem espaço para a misericórdia. São inquisidores porque perfeccionistas, e não conseguem integrar os limites e fragili-dades de nossa vida.
Isso requer “humildade” para sair da segurança do redil e ir atrás de tudo aquilo que foi excluído de nossa vida, devido a uma cobrança interior de perfeição. Quando alguém desce em direção à sua “condição humana”, tudo acolhe e tudo integra, vive um processo de humanização plenificante.
Nesta perspectiva, o desgarrado e o perdido des-velam a realidade onde Deus atua e revela seu rosto misericordioso. Exatamente onde existe fraqueza, perda, vulnerabilidade, talvez seja o “lugar mais sagrado”, aquele que exige mais acolhida e cuidado, para ser transformado pela misericórdia.
A tradição moralista e legalista nos ensinou a alimentar um conflito entre o pastor e a ovelha que se perdera; do mesmo modo, conflito entre a mulher e a moeda; ou, conflito entre o pai e o filho que se afastara. Tal tradição moralista deu peso maior às limitações e fragilidades, alimentando culpa, remorso..., esquecendo-se de despertar nossa atenção para as dimensões mais ricas do nosso interior: o pastor cuidadoso, a mulher zelosa, o pai festeiro.
Nesse contexto, queremos dar um destaque às duas pequenas parábolas do evangelho de hoje, pois elas têm um sabor todo especial. Diferentemente das outras, elas falam de uma perda interior, quase íntima: há uma parte do tesouro que se perde dentro da própria casa. Prestemos atenção: a mulher não perdeu tudo, nem a maior parte sequer; de dez moedas, ela perdeu uma; o pastor não perdeu tudo, apenas uma ovelha. Mas quem vive essa perda percebe o que isso representa: um esfriamento, um abrandamento, uma quebra na inteireza de vida, na unidade ampla do sim de amor que nos constitui. Tendo perdido uma ovelha, uma moeda, a vida continua, mas não da mesma maneira.
A mulher que perdera uma moeda, no entanto, não se acomodou, pensando que ainda ficaria com nove moedas: decidiu procurar a parte perdida do seu tesouro. Ela não culpou ninguém pela perda, não ficou de mau humor, nem deprimida..., mas também não se deixou ficar de braços cruzados. Não se lamentou pelo acontecido, mas tomou a iniciativa de acender a luz, varrer, limpar, aclarar...
“Buscar cuidadosamente”, ensina a mulher da parábola. Nós também temos de ir ao fundo e procurar a raiz daquilo que tira nossa vitalidade espiritual; talvez um medo terrível, uma insegurança fundamental, uma falta de confiança, uma perda de sentido...
A mulher e o pastor das parábolas não ficam lamentando a “perda” da moeda ou da ovelha. A perda pode ser ocasião para um novo movimento, para conhecer outras dimensões da casa ou dos prados.
O Evangelho deixa claro: é “proibido queixar-se”.
A vida não é lamento, é expressão de nossas melhores qualidades, de nossos recursos internos. A queixa bloqueia nossa potencialidade e não deixa emergir o melhor que há em nós. A atitude é rebaixada durante a queixa, o tórax se comprime e o coração se encolhe. Isso é morte, não é vida.
A vida, no entanto, é abertura, aventura, encontro, é possibilidade, é vontade de estar bem. A queixa torna a vida pesada e difícil; ela é inútil pois trava os melhores recursos vitais. É preciso passar da queixa à solução, do lamento à busca de uma nova possibilidade. Cada dia, a vida traz sua surpresa; cada dia amanhece um novo sol.
A espiritualidade cristã alimenta uma integração entre as duas dimensões: pastor e ovelha, mulher e moeda, pai e filho. São dimensões encontradas em nosso próprio interior. A espiritualidade não significa alimentar um combate que desgasta, mas possibilitar um encontro entre as duas realidades. Nada se perde, tudo se pacifica e tudo desemboca na alegria festiva.
Há sempre uma nova aprendizagem que brota do encontro com o que está mais frágil. O pastor também aprende ao acolher a ovelha perdida, pois é no encontro com ela que desperta o seu ser cuidadoso. A mulher aprende ao encontrar a moeda perdida, pois passa a tomar consciência mais profunda da sua própria casa; ao varrê-la, vai conhecendo outros pontos surpreendentes, atrofiados pelo ritmo cotidiano. O pai, no retorno do filho, expressa toda a potencialidade e reserva de compaixão, que não tivera oportunidade de expressar na relação com o filho mais velho. Todos os personagens, no encontro com os “perdidos”, saem enrique-cidos e mais humanos.
Enfim, o evangelho deste domingo nos convida a transitar pelos espaços interiores à procura do nosso eu perdido, do nosso centro perdido, dos ideais perdidos, da alegria perdida, da fé perdida, do amor perdido...
Precisamos ser pastor de nossa interioridade; corremos o risco de só “cuidar” daquilo que é ovelha sadia e que está no redil, descuidando das outras ovelhas que estão afastadas e que requerem uma atenção e um cuidado especial. Nada do que é humano deve ser rejeitado.
“O risco que corremos é nos acomodar e nos enganar, fingindo que não damos pela falta de uma outra vida, de um novo ardor, de um coração inteiro. No caminho espiritual o importante é a decisão interior que nos leva a retomar a arte da busca e da inteireza. “Para ser grande, sê inteiro”, nos diz Fernando Pessoa. E o grande desafio da vida espiritual não é o da grandeza, mas o da inteireza. Sermos nós mesmos”. (cf. José Tolentino Mendonça – O tesouro escondido – Paulinas – pp 15-19)
Texto bíblico: Lc 15,1-32
Na oração: re-visite sua casa e seu redil interior; transite pelos espaços onde se encontram os seus “perdidos”; deixe a luz misericordiosa do Deus Pai/Mãe chegar até ali onde tudo foi rejeitado, reprimido, escondido...
- Dê nomes aos seus “perdidos”: acolha-os, pois eles podem ser des-veladores de novos recursos e de novas potencialidades de vida.
Ser capaz de agradecer os “perdidos” que foram encontrados é sinal de maturidade espiritual e humana.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
08.09.22
“Quem não se desapega de sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26)
Para poder entender o sentido do evangelho de hoje (23 Dom do Tempo Comum) é preciso recordar que Jesus está a caminho de Jerusalém. Ele adverte à multidão que o acompanhava sobre as exigências próprias de um autêntico seguimento; para Ele não basta o entusiasmo passageiro e o fervor momentâneo. No fundo, Jesus quer verificar as reais motivações e a sinceridade de atitude daqueles que estão fazendo caminho com Ele. É preciso ter somente um “foco” no caminho do seguimento; há sempre o risco de caminhar em diferentes direções, desviando-se da atenção primeira no caminho de Jesus.
Daí a radicalidade das exigências de Jesus: “desapegar-se da família”, “carregar a cruz”, “renunciar a tudo que tem”. As três se resumem numa só: disponibilidade total. Sem ela não pode haver seguimento.
O seguimento de Jesus é questão de sedução, de atração, de paixão...; exige um “investimento afetivo” total. O(a) discípulo(a) pela metade não pode fazer caminho com Jesus; não servem as entregas pela metade.
Tudo se decide nos afetos. Os afetos podem nos situar no horizonte maior (seguimento) ou podem nos fixar nas mediações (família, apego a si mesmo, às coisas...) atrofiando e esvaziando o impulso do seguimento, travando a liberdade. A afetividade ordenada nos faz livres para viver o seguimento de Jesus com mais leveza. Por isso, é preciso detectar as aderências e fixações afetivas (apegos) que limitam a liberdade e que podem minar o seguimento.
Seguir Jesus é deixar de viver para o “eu”, é descentrar-nos, não ser mais o centro de nosso próprio projeto. O seguimento brota, pois, de uma “sintonia profunda” com Ele, esvaziando nosso “eu inflado” para entrar em comunhão com seu modo de viver e com seu Projeto.
Jesus é presença sem mescla de “ego”: o centro de sua vida não está em si mesmo, mas na comunhão com a vontade do Pai e na solidariedade com os últimos e sofredores. Diante d’Ele, brota em nós uma “ressonân-cia interior”, absolutamente iluminadora e motivadora, que desperta, ativa e mobiliza a segui-lo, descen-trando-nos de nós mesmos. Esta nova experiência modifica a maneira de perceber toda a realidade: a família, os outros, os bens, o nosso próprio eu... A vida mesma é percebida de um modo novo.
Este é o caminho do Seguimento. Jesus quer seguidores(as) com liberdade, com decisão e responsabilidade.
Para isso é preciso “renunciar a tudo” para ser pessoas, em amor e partilha. “Renunciar a tudo” para que todos possam ter, para que todos possam compartilhar fraternalmente tudo.
O que significa “renunciar a tudo” e desapegar-se dos seres mais queridos? Significa sair da visão egocen-trada, nascida da crença errônea de que somos o ego. Talvez pudesse ser expresso desta forma: “Deixa de crer que és o eu separado (e fechado na torre) e descobrirás a riqueza de tua verdadeira identidade; não vejas nem sequer a tua família a partir do ego, porque sofrerás e farás sofrer; contempla-os a partir de tua verdadeira identidade, onde todos sois um, mas sem apego nem comparações”.
Não é a renúncia em si que nos salva, mas o desenvolvimento e a expansão da vida em direção à plenitude.
A renúncia é sempre lícita e aconselhável quando se faz por algo melhor. O apego às coisas ou às pessoas impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o fluxo da vida e o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
Os ensinamentos de Jesus, no evangelho deste domingo, são um chamado ao realismo. Para além das imagens que Ele usa, poderíamos sintetizá-las assim: Até onde estou disposto a ir no seguimento? Estou motivado e decidido a manter o “sim” até o final? Estou pronto para viver a fidelidade à causa do Reino, mesmo correndo o risco de encontrar cruzes?
Sabemos que a cruz só tem sentido quando é consequência de uma opção autêntica em favor da vida ou de uma verdade assumida: por exemplo, se sofremos por levar adiante uma causa justa, por defender pessoas, por evitar um mal ou denunciar uma injustiça... Jesus não morre na cruz para buscar o sofrimento, mas por ser fiel até o final à sua mensagem: o amor incondicional de Deus e o compromisso com os excluídos.
Cruz, (“staurós” no grego) não significa simplesmente patíbulo, instrumento de tortura imposta pelos romanos àqueles que consideravam transgressores da ordem ou subversivos; significa prontidão, estar preparado, estar de pé, mobilizado, firme, fiel até o fim... Nesse sentido, a “cruz-staurós” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros; ela é vivida a partir de uma causa: o Reino. A cruz não é um “peso morto” a ser suportado; ela é consequência de uma opção radical em favor da vida; a cruz não significa passividade e resignação, pois ela brota de uma vida plena e transbordante; a cruz resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.
Existem cruzes que são vazias, sem sentido, in-sensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida. São cruzes que brotam dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... e que não foram integradas Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de sentido; elas se fixam no passado, na mortificação, no ritualismo vazio... com a intenção de agradar a Deus. Fazer o caminho com Jesus, que carrega a cruz da fidelidade, ajuda a romper com as cruzes que afundam no desespero e no fracasso.
Assim entendemos a afirmação de Jesus no evangelho deste domingo: “quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,27). Carregar a cruz significa esvazia-mento do próprio “ego” para viver em sintonia com a causa de Jesus e a fidelidade no compromisso com os outros.
É gratificante trazer à memória tantos homens e mulheres que são presença compassiva e, à maneira de Jesus, arriscam suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua presença ajudam os outros a viver; pessoas que revelam a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregam suas vidas no escondimento, sem vozes que as exaltem; elas são como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.
A cruz, desligada de uma vida comprometida, não tem sentido; nela mesma, não salva; ela é salvífica quando é assumida e vivida em favor dos demais. Nunca é sofrimento buscado, como se Deus necessitasse de nossa dor para nos redimir.
A Cruz liberta quando não acaba na cruz, mas na ressurreição. Enquanto a carregamos, ela se torna leve se temos diante de nós um horizonte de esperança. “Vinde a mim todos vós que estais fatigados e sobre-carregados, e eu vos darei descanso. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve” (Mt 11,28-30).
“Carregar a cruz” não é ser amigo da dor, mas sinal de lucidez. Significa assumir que toda a existência é um caminho progressivo de “morte do ego” (de identificação com ele), para possibilitar que “nasça” e viva o que realmente somos. Como disse-ra o próprio Jesus, se trata de “perder para ganhar”, morrer para viver.
Texto bíblico: Lc 14,25-33
Na oração: a sua maneira de viver o seguimento de Jesus faz diferença no seu ambiente cotidiano (família, trabalho, relações...)?
- Você já fez a experiência de encontrar oposição e perseguição por sua fidelidade aos valores do Evangelho?
- Em que circunstâncias da vida o “ego inflado” tem aparecido? Você se deixa determinar por ele ou pela vida verdadeira que se revela como esvaziamento?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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“Quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos” (Lc 14,13)
Jesus é um profundo conhecedor da interioridade humana. Sabe que ali dois dinamismos estão em contínuo conflito: de um lado, o ego farisaico, que aproveita todas as ocasiões para brilhar diante dos outros (cultura da aparência), ser o centro, chamar a atenção sobre si...; do outro, o eu profundo, sábio que, na sua liberdade e espontaneidade, deixa transparecer sua luz no encontro com o diferente.
As imagens e as palavras de Jesus no evangelho deste domingo são tremendas. A motivação daqueles que buscam ocupar os “primeiros lugares” é expressão de uma interioridade vazia e estéril; ela é reveladora de uma das necessidades características do ego, que busca “aparecer” diante dos outros, como um modo de auto-afirmar-se, de se sentir superior aos outros, humilhando-os e desprezando-os.
Quando uma pessoa é escrava de seu próprio ego, não lhe importa que o outro desapareça ou se sinta marginalizado e privado de seus direitos. Vive tão a fundo sua “auto-idolatria” que até lhe parece normal continuar agindo assim.
A pessoa sábia, no entanto, compreende que tudo o que os outros pensam ou digam a respeito dela não lhe acrescenta nem lhe tira nada de seu valor. Ela não se move a partir da necessidade de agradar ou de “ficar bem” diante dos outros. Vive, simplesmente, na coerência com o que é mais verdadeiro em seu interior, onde o ego não tem predomínio. Da mesma maneira que não busca reconhecimentos nem bajulações, tam-pouco lhe interessa perseguir os primeiros lugares. Vive com liberdade interior, a partir de sua própria cons-ciência de plenitude. Flui em cada momento com o que é em sua essência; fluidez que brota da compreensão de si mesma, aquela que lhe faz consciente de sua “irmandade” com todos os humanos e todos os seres.
Portanto, o sábio não atende aos necessitados – “pobres, aleijados, coxos e cegos” – para receber uma “retribuição” futura, senão porque sabe que são de sua mesma “família”. O comportamento dele – como foi do próprio Jesus – se caracteriza pela gratuidade. Não busca alimentar o interesse egóico, porque não se deixa determinar pela carência. Sua ação é fim em si mesma, porque nasce de uma consciência de plenitude que se transborda.
O evangelho deste domingo nos convida a estar com Jesus numa refeição em casa de um dos chefes dos fariseus; Ele era consciente de que muitos desse grupo religioso estavam contrariados com sua forma de proceder e vigiavam seu modo de falar e agir. Por isso, ali, nessa refeição, Jesus não se sentia à vontade, pois faltava a presença de seus amigos prediletos: os pobres, aleijados, coxos, cegos...
A conduta dos convidados e do chefe fariseu são, para Jesus, uma ocasião privilegiada para propor os valores do Reino. Para Ele, no banquete da vida não basta dar e receber generosamente, mas acolher com gratuidade todo aquele que não pode oferecer nada em troca. A honra não se fundamenta mais no poder e no prestígio, mas na bondade, humildade e hospitalidade. A nova comunidade do Reino é esse banquete no qual todos tem lugar, seja qual for sua origem, crença, situação pessoal; ali todos se sentem convidados, sem merecimentos exclusivos nem dignidades adquiridas.
O relato deste dia não só recorda o modo original de Jesus agir, senão que é um chamado à comunidade cristã para que seja comunidade inclusiva e aberta, na qual se respeite as diferenças, se construa espaços de igualdade, onde se proclame um Deus gratuito e cheio de amor e perdão. Nela não haverá estrangeiros nem imigrantes, não haverá primeiros nem últimos, não haverá resquícios de gênero nem poderes que excluem.
Se não nos assentamos à mesa com o outro, estamos perdendo a possibilidade de saborear os alimentos humanizadores: encontro, alegria, partilha, hospitalidade, festa, vida... Tudo aquilo que acontece na alegria, tudo aquilo que é distribuído com vida, com sentido e sentimento, alimenta algo em nós, ou alguém fora de nós. Multiplica-se, triplica-se os cestos de pão.
Na mesa “cristificamos” e “sacralizamos” os frutos da terra e do trabalho humano. Por isso, os alimentos fornecidos pela natureza e dela extraídos pelo trabalho do ser humano, vêm carregados de tão rico simbolismo: quando postos à mesa significam a mãe natureza dadivosa e boa, criada por Deus e o trabalho do ser humano, que na mesa vem se alimentar para continuar a viver.
A relação de alteridade à mesa tem o poder de reconstruir laços quebrados, perdidos em nosso passado (mesa, lugar da memória); ela tem a força de reavivar os sentimentos soterrados pelos afazeres diários. A presença provocante do encontro com o outro, desperta em nós o “dinamismo conspiratório”, ou seja, respiramos juntos o mesmo ar, compartilhamos o mesmo sonho, a mesma missão...Um caminho “mistagógico”, que é pura acolhida do Mistério revelado na mística da mesa.
Esse caminho é busca, encontro e acolhida.
Podemos ler o evangelho deste domingo também em chave de interioridade: no nosso eu mais profundo há uma mesa pronta para a refeição; geralmente é o “fariseu” que nos habita o controlador desta mesa; é o nosso ego inflado, perfeccionista, legalista, dominador que não admite a presença de nossos pobres, aleija-dos, coxos, cegos, enfim, todas as dimensões de nossa vida que foram excluídas, reprimidas e marginalizadas. O evangelho nos revela que em nossa interioridade há muitas vivências, experiências, feridas, fragilidades, fracassos, crises..., que não foram acolhidas, nem integradas, e que clamam por um lugar à mesa do coração; “multidões” nos habitam e querem compartilhar a mesa da vida.
O nosso fariseu interior também convida Jesus para participar da sua ceia; e Jesus é aquele que acolhe o convite, mas não se sente bem à mesa do fariseu pois nota a falta dos seus amigos pobres. Ele tem liberdade de transitar pelo nosso interior e de acolher tudo o que foi reprimido e excluído. São justamente nossas feridas as portas e janelas abertas por onde entra a mensagem inovadora de Jesus. O “fariseu” já está formatado, petrificado, refratário à proposta de vida apresentada por Jesus.
Também a gratuidade só pode ser vivida quando a identificação com o nosso ego cai. Então, emerge uma nova consciência que se revela no acolhimento de nós mesmos, no deslocar-nos entre os “últimos”, no sentir-nos em comunhão com aquelas dimensões da vida que são excluídas e que não tem nada a retribuir a não ser sua própria fragilidade. Mas, sabemos pela revelação bíblica, que Deus tem mais facilidade de “entrar” em nossas vidas pelas fendas das feridas, dos fracassos, das derrotas...
“Os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos” sou eu mesmo, sou o outro eu que se des-vela no encontro com tantos “eus” diferentes. Aqui descubro a bem-aventurança como minha verdadeira identidade, ou seja, aquela na qual tudo está interligado, como numa imensa rede, onde nada é descartado.
Justamente os aspectos pobres e aleijados, os aspectos cegos e coxos podem me levar ao caminho da completude. Tudo, e principalmente aquilo que eu considero feio em mim mesmo, deve ser incluído e acolhido na completude com Deus. Posso tornar-me completo em Deus apenas se eu lhe oferecer minhas fraquezas, feridas e fracassos... A “descida” à minha mesa interior vai, aos poucos, despertando uma sensibilidade para também “descer” ao mundo do outro; o encontro com minha própria humanidade ativa um deslocamento em direção à humanidade do outro.
Aquele(a) que “desce” às margens de sua interioridade, também se aproxima da terra privilegiada do encontro com Deus, que se manifestou em Jesus de Nazaré, o amigo dos pobres e pecadores.
Textos bíblicos: Lc 14,1.7-14
Na oração: É no mais íntimo que se reza ao Senhor. É no mais profundo da interioridade que se escuta o Senhor.
- Diante da presença de Deus, esteja aberto(a) ao contato com a própria realidade interior, onde uma multidão de “pobres, coxos, paralíticos, cegos” deseja ser iluminada pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.
- Dirija seu olhar para o mais íntimo de si mesmo(a), onde nascem sentimentos e valores, decisões e gestos..., onde você é convidado(a) a se alegrar com os rastros da Graça. Viva a gratuidade na mesa da vida!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
26.08.22
Imagem: Joy Velasco
“...conforme prometera a nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência para sempre”
Neste domingo celebramos a festa da Assunção de Maria. Normalmente, quando pensamos na Assunção, vêm à nossa mente muitas imagens de Maria olhando para o alto, com as mãos juntas, rodeada de anjos, sobre nuvens que indicam que é elevada ao céu. É uma festa que nos fala da santidade e da plenitude d’aquela que mais amou, conheceu e seguiu seu Filho. Mas, se ficarmos só com as imagens tradicionais da elevação de Maria, não dizem muito para nós, porque nossa própria experiência tem pouco a ver com elas.
O próprio Evangelho deste domingo nos ajuda a tomar distância das imagens tradicionais da Assunção e nos apresenta Maria com os pés na terra. Ela foi “assumida” por Deus porque “desceu” ao mais profundo da história humana, fazendo-se solidária e servidora em favor de seus filhos e filhas. É na vivência de “saídas” e “encontros” que Maria se revela próxima de todos nós; continuamente, somos chamados a viver a “cultura do encontro” e do deslocamento solidário, sobretudo com os mais pobres e excluídos.
O evangelho da Visitação, nos revela o encontro de duas mulheres grávidas. Maria e Isabel são o ícone do verdadeiro “encontro”, carregado de hospitalidade, alegria e serviço; ambas, em idades diferentes, se acolhem, se entendem e se ajudam mutuamente, pois compartilham o mistério da vida que cada uma carrega em seu ventre. É como se uma dissesse à outra: “isto que está acontecendo em seu ventre é coisa de Deus, os homens não compreendem!”
Segundo Lucas, Maria, depois de receber a notícia de que será a mãe do Messias, “pôs-se a caminho” com “prontidão”, que também pode ser traduzido “com diligência, com empenho, com cuidado...”
Trata-se de uma decisão que brotou de sua nova condição de futura mãe, de sentir que em suas entranhas crescia a nova Vida que vem de Deus. Deus saiu ao encontro de Maria e esta vai ao encontro de Isabel.
São duas gestações que nos convidam a contemplá-las à luz da fé, porque acontecem em circunstâncias que humanamente são impossíveis. No caso de Maria, porque “não conhece homem algum” e, no de Isabel, porque é anciã, “concebeu na velhice”. A vida que nasce de Deus rompe todas as normas, supera nossos cálculos, nos surpreende, irrompendo com força ali onde nós não vemos possibilidades.
Esta experiência de que para Deus “nada é impossível”, de que Ele sai ao encontro e faz surgir vida em duas mulheres simples, como entre tantos pobres e humildes, é uma realidade vivida pelas primeiras comunidades cristãs, pobres, pequenas e perseguidas. É também a experiência nossa, tanto no nível pessoal como comunitário. São muitos(as) que, às vezes, se sentem como Isabel: idosas e cansadas para algo novo, ou muito sós e cheios(as) de dificuldades para acolher as surpresas de Deus.
Duas mulheres grávidas, que se encontram; de que falam? Sem dúvida, da “novidade” de seus ventres, de sua alegria, do futuro... Neste caso, nos diz o evangelho, que a alegria é transbordante e contagiosa, tão profunda e intensa que “o menino salta no ventre de Isabel” e esta se enche do Espírito de Deus.
E a partir deste Espírito, falam de um futuro que as transcende, que não é só o futuro de seus filhos, é o futuro de todo o povo, de toda a humanidade.
A profundidade da alegria e da fé faz com que este encontro adquira outra dimensão: do encontro de duas mulheres passa a ser o encontro definitivo e permanente de Deus e nosso mundo, seu mundo.
Assim, Maria se põe a cantar ao Deus da vida e ao mundo novo que Ele torna possível; ela, consciente do que está vivendo, deixa jorrar de seu interior um ousado cântico que expressa uma das imagens de Deus mais inspiradoras e carregadas de esperança do Novo Testamento.
Maria expande sua consciência maravilhada da ação de Deus nela e para além dela; em Deus, ela se sente em sintonia com a história de seu povo e da humanidade inteira. Descobre que Deus é grande porque entra na história a partir dos últimos, dos pobres e deslocados. E afirma com contundência que é a ela, humilde mulher nazarena, a quem todas as gerações chamarão bem-aventurada.
E esta experiência de que Deus “faz maravilhas nela”, é a razão pela qual afirma que Ele é misericordioso e que esta misericórdia, realizada nela, se estende, de geração em geração, sobre aqueles que o temem, sobre aqueles que creem n’Ele e O amam.
Sua experiência pessoal é a que lhe faz descobrir como Deus atua no mundo e como está disposto a fazer novo nosso futuro, com ações desestabilizadoras em favor dos pequenos, dos necessitados.
Aclamar e celebrar hoje Maria, que é levada ao encontro definitivo com Deus, nos compromete a viver, como ela, os outros encontros transformadores nos quais partilhamos e cantamos a vida que Deus, por sua misericórdia, derrama em nós, em nossa pobre realidade.
No Magnificat, Maria canta a sua própria história e “faz memória” da história de seu povo. E isso nos desafia a fazer o mesmo. Ninguém vive uma vida espiritual fecunda enquanto não for capaz de assumir aqui-lo que “é” na sua originalidade, se não for capaz de construir a relação com Deus como um diálogo vivo entre um “eu” e um “Tu”. A oração de Maria não é feita de fórmulas. Ela expõe a sua vida naquilo que diz.
À luz do Magnificat, a história não se reduz a eventos opacos, vazios, tristes...
Com o cântico de Maria, a história se ilumina, se transfigura e nos desafia. A ação providente de Deus na história plenifica, dá sentido e costura os eventos, constituindo-se em “História de Salvação”.
O Magnificat nos faz ver o que todo mundo vê, mas de um “modo” diferente: vemos mais longe, vemos além, vemos mais fundo...
O encontro com a História Sagrada nos ajuda a ler nossa história sob nova perspectiva: a da salvação.Deus desce à nossa própria história, iluminando-a e carregando-a de sentido. A história pessoal e a história do mundo tornam-se o lugar habitual da experiência de Deus, a montanha da sarça ardente que não se consome.
A partir dessa perspectiva, nossa história pode ser poderosa motivadora de mudança; ela nos levanta quando estamos dispersos e sem direção; ela não é apenas relato do passado, mas parte viva do que somos agora; ela nos traz para “casa”, para nossa própria integridade e identidade; ela nos abre um futuro de esperança.
Só a memória agradecida está em condição de nos ajudar a entender o sentido, a profundidade e a verdade dos acontecimentos, pois temos de adotar determinada perspectiva e certo grau de isenção no julgamento, a fim de decifrar seu significado. Ela nos distancia estrategicamente dos acontecimentos para poder captar outro sentido, escondido neles; eles passam a serem vistos sob nova luz para serem ressignificados.
A memória nunca é experiência vazia, mas algo pleno, uma faculdade que afunda suas raízes no coração da existência. Quando evangelizada, ela nos ajuda a reler o passado sob nova luz. E só podemos “ordenar” a história quando ela é revivida diante dos olhos misericordiosos de Deus. Então, tomamos consciência que o mesmo Deus encontra mais facilidade de “entrar” em nossas vidas através dos fracassos, feridas, fragilidades... Deus “entra” no mundo pelo “avesso” da história.
Marcados pela “mística mariana”, cremos profundamente na força evocativa e transformadora da história. Encontrar-nos com a história significa caminharmos para o interior do mistério da mesma história; significa também deixar-nos questionar, iluminar e mobilizar por ela.
Com isso, re-iniciamos um novo caminho de aventura, que consiste não só em receber e celebrar a história, mas atualizá-la, reescrevê-la, confirmá-la... Uma história com rosto de futuro... e um futuro em horizonte carregado da presença divina.
Texto bíblico: Lc 1,39-56
Na oração: saborear o Magnificat através do “segundo modo e orar”, proposto por S. Inácio, ou seja, “contemplar o significado de cada expressão” do cântico de Maria; deixar que a simplicidade, o frescor e a profundidade das tremendas afirma-ções do cântico toquem seu coração.
Esta é a promessa de Deus para com seu povo, a promessa que faz Maria exultar de alegria. Esta é a promessa que Deus continua realizando em você e no mundo.
- Inspirado(a) no cântico de Maria “trazer à memória” sua história para saboreá-la de novo, ressignificar fatos, “reciclar” acontecimentos”, “processar” vivências e experiências, e assim torná-las “companheiras de estrada” e não inimigas que travam o fluir da vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.08.22
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