“Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão e tocou nele...” (Mc 1,41)
O caminhar de Jesus pela Galiléia gera situações de alívio; sua missão é aliviar o sofrimento da humanidade. Pelos caminhos, Jesus se encontra com as pessoas “deslocadas”, sem lugar e fora do convívio social. A partir do “Deus vivo” Jesus se move em direção àqueles que estavam sobrando; sua presença entre os excluídos é portadora de vida. Olhando-as nos olhos e acolhendo-as com suas mãos, Ele se deixa afetar por eles.
Jesus não se esquiva da dor, da solidão e da morte; encara-as, toca-as, revela as entranhas compassivas de Deus onde a lei vê impureza, ativa a compaixão do Pai nas entranhas das pessoas indefesas e estas encontram e recuperam sua fortaleza, sua dignidade de ser humano.
Assim procede Jesus; suas mãos deixam transparecer um coração compassivo, solidário e comprometido.
Muitas vezes, Ele cura os doentes através do toque, da imposição das mãos, da bênção...
O evangelho está cheio de momentos nos quais as pessoas querem tocar em Jesus, mesmo que fosse a franja de suas vestes; em outras circunstâncias, é o próprio Jesus que rompe os “protocolos sanitários” e toca os doentes, leprosos... correndo o risco de se contaminar.
Um leproso tinha, no contexto daquela época, a obrigação de viver separado, fora das povoações e distanciado da família, para evitar o risco da contaminação. E tinha o dever de gritar aos outros, prevenindo-os para que não se aproximassem. No relato deste domingo, porém, o leproso quebra o protocolo e vem ao encontro de Jesus. E faz isso, certamente, porque pressentia no profeta de Nazaré a abertura para tal.
Ora, Jesus não fica apenas na palavra: “quero”. Estende também sua mão, tocando o leproso. Podia simplesmente mandá-lo lavar-se setes vezes nas águas do rio Jordão, como o profeta do AT (2Rs 5,10); mas Ele prefere incorrer no perigo da contaminação, desejando tocar a ferida do outro, querendo compartilhar, como só o toque pode revelar, aquele sofrimento, ajudando o leproso a vencer o ostracismo interiorizado por aquela separação forçada.
Jesus não pensa nas severas restrições da Lei, mas deixa aflorar a compaixão, aquele sentimento divino que Ele encarna e torna visível. É a compaixão que o leva a quebrar o distanciamento social e compromete-se. Quando as mãos estão carregadas de compaixão, elas se tornam oblativas, abertas, servidoras... A compaixão é o sentimento que faz a conexão das mãos com o coração. Ter compaixão é ter coração nas mãos.
Tocar é algo mais que uma simples experiência psicológica; tocar é sentir que uma corrente de vida passa de um para outro. O leproso é tocado no sentido de encontrado, assumido, aceito, reconhecido, resgatado, abraçado. Quando toda a distância é vencida, o toque de Jesus reconstrói a humanidade ferida. Ou seja, a pessoa se sente reconstruída em sua integridade; a acolhida incondicional e o reconhecimento que Jesus lhe confere, fazem o leproso recuperar a confiança em si mesmo, abrindo-lhe um horizonte de esperança.
Sabemos que um doente, quando tocado de forma respeitosa e não invasiva, recebe estímulos de humanidade, de autoestima e confiança que facilitam o curso da sua recuperação. Um profissional de saúde deve saber que, por vezes, um simples toque ajuda a amenizar a perturbação, tranquiliza sentimentos agitados e transmite um conforto que nenhuma máquina ou medicamento transmite.
A imposição das mãos também está sendo redescoberta em seu significado sanador. Ao impor as mãos em outra pessoa, o Espirito curador de Deus inunda-a, invade suas áreas de tensão, suas paralisias, seu caos interior.
“Tocar” é uma experiência especial; o tato é o mais visceral, originário e delicado dos sentidos; e a sensação de tocar e ser tocado é primária; basta ver como os bebês querem tocar em tudo e se acalmam quando se sentem tocados.
O toque é primordial na comunicação mútua. A chamada “fome da pele” é experiência reconhecida na vida humana. O mais leve toque pode despertar emoções, expressar calor humano que não se consegue com palavras. Reduzir os sentimentos a meras palavras cessa qualquer mensagem do coração.
O toque alivia a dor, a depressão, a ansiedade; o toque afetuoso dá segurança, faz a pessoa sentir melhor consigo mesma e com o seu ambiente; seu efeito é positivo sobre o desenvolvimento humano, provoca mudanças naquele que toca e é tocado.
É fácil dizer que na vida é preciso andar “com tato”. É verdade que com o corpo e com as mãos, expressamos ternura, abertura, proteção, acolhida, vinculação... O amor também é físico. E hoje, quando há muito contato físico sem amor, ou muitos contatos sem entrega, é necessário sentir essa unidade.
O amor toca, e assim se expressa, de muitos modos, a relação mais profunda, mais intensa e estável. O amor, atento ao outro, se expressa fisicamente de mil maneiras.
O coração é o lugar onde o ser humano se revela. As mãos são expressão daquilo que está presente no coração; um coração cheio de ternura, bondade, compaixão... se expressa através das mãos ternas, bondosas, compassivas, que praticam a partilha... Um coração cheio de violência, arrogância, ambições, malícias... se expressa através de mãos violentas, maliciosas, fechadas... As mãos... o espelho da alma.
É o coração transformado que dirige a mão santificada, delicada. É o coração agradecido que transforma as mãos em instrumentos de graça.
As mãos, portanto, adquirem uma infinidade de expressões (mãos estendidas, enérgicas, punho fechado, mãos abertas, governar com mão de ferro”, “bordar com mão de fada”, “escrever com mão de mestre”, “abrir mão de algum direito”, “dar uma mão a alguém”, “estar de mãos atadas diante de um problema”, “lançar mão de um estratagema”, “estender a mão para alguém”, “pedir a mão da moça em casamento”, “pôr mãos à obra”, “estar nas mãos de alguém”, “impor as mãos”...
Observando estas expressões, encontramos a “mão” como metáfora para a “força, energia, domínio”.
A aplicação figurada provém do fato de as mãos serem o instrumento mais universal de que o ser humano dispõe. Além de instrumento, as mãos são ainda meio de comunicação entre pessoas de línguas diferentes. Através das mãos comunicamos energia, rompemos distâncias...
Mas também, através das nossas mãos, podemos comunicar algo maior e que não nos pertence. Na nossa mão há a Mão da Vida; encontramos esta expressão em diferentes tradições religiosas: “a Mão de Deus”. Algumas vezes podemos nos sentir guiados, como se tivéssemos uma Mão pousada em nosso ombro, em nossa cabeça, nas nossas costas, para nos fazer avançar, para nos manter de pé. Em hebraico, a mão simbolizada pela letra y (yod), é encontrada no tetragrama YHVH, que significa Javé.
As mãos estão sempre associadas à ação, como a cabeça à razão e o coração aos sentimentos.
“Mãos à obra” é uma expressão acertada e precisa. Não é possível continuar fazendo elucubrações vazias sobre as coisas, divagando sobre o legalismo e o moralismo, especulando ideias piedosas e estéreis... Às vezes, em nosso meio cristão, sobram grandes ideias e palavras em excesso, mas sempre faltam mãos abertas, mãos estendidas, mãos ativas, dispostas a se sujar, a gastar-se e empenhar-se no esforço por construir, por abrir as portas à vida daqueles que estão à margem. Sempre serão mais urgentes mãos capazes de reconciliar e de elevar quem está mais afundado, mais quebrado, mais ferido; mãos capazes de suportar a própria carga e a carga alheia, daqueles que não tem quem os ajude ou de quem os defenda, a de quem não tem forças, nem esperança...
Textos bíblicos: Mc 1,40-45
Na oração: Para rezar com o tato você deve, ainda, aprender outras linguagens: das mãos (cumprimentos, abraços, carícias, aplausos); dos lábios (beijos, consolos, palavras agradáveis); dos olhos (sorrisos, lágrimas); do coração (sensibilidade e afetos...)
Ninguém toca ninguém “de longe”. Você também estará tocando em Deus ao se aproximar d’Ele com uma visita, um telefonema, uma mensagem, uma saudação na rua, um favor, um serviço prestado com amor, um serviço voluntário...
Há templos famosos pela liturgia da oração tátil: orfanatos, hospitais, cárceres, periferias, sanatórios, asilos, favelas... Não deixe de frequentá-los.
- Na sua oração, sinta-se próximo de todos. Toque tudo. Acaricie todas as suas recordações. É uma forma fabulosa de rezar a vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.02.2021
No início da vida pública, Jesus atravessa os lugares onde mais fortemente pulsa a vida: o trabalho (barcos, redes, lago), a oração e as assembleias (a sinagoga), os lugares dos sentimentos e da afetividade (a casa de Simão).
Jesus, libertado um homem do seu espírito doente, sai da sinagoga, e logo, como que acossado por algo, entra em casa de Simão e André, onde «logo» (bela a urgência, a pressão dos afetos) lhe falam da sogra com febre (cf. Marcos 1,29-39).
Hóspede inesperado, numa casa onde a responsável pelo servir está doente, e o ambiente não está pronto, não foi preparado no seu melhor, provavelmente está em desordem. Grande mestre, Jesus, que não se preocupa com o desarranjo, com o que de impreparado existe dentro de nós, da sujidade, do ar um tanto ou quanto fechado das nossas vidas.
E também ela, a mulher idosa, não se envergonha de fazer ver-se por um estranho, doente e febril: Ele veio precisamente para os doentes.
Jesus toma-a pela mão, reergue-a, “ressuscita-a”, e aquela casa da vida bloqueada reanima-se, e a mulher, sem reservar tempo para si, sem dizer «preciso de um instante, tenho de me arranjar, recuperar», põe-se a servir, com o verbo dos anjos no deserto.
Estamos habituados a pensar a nossa vida espiritual como em algo que se desenrola nos quartos bem arranjados, e nós bem vestidos e compostos diante de Deus. Acreditamos que a realidade da vida nos outros quartos, essa existência banal, quotidiana, acidentada, não é apropriada para Deus. E enganamo-nos: Deus enamora-se da normalidade. Procura a nossa vida imperfeita para tornar-se fermento e sal, e mão que volta a erguer.
Esta narrativa de um milagre humilde, não vistoso, sem comentários da parte de Jesus, inspira-nos a acreditar que o limite humano é o espaço de Deus, o lugar onde aterra o seu poder.
O que se segue é energia: a casa abre-se, melhor, expande-se, torna-se grande ao ponto de poder acolher, à noite, no limiar da porta, todos os doentes de Cafarnaum. Toda a cidade está reunida no umbral entre a casa e a estrada, entre a casa e a praça.
Jesus, pólen de gestos e de palavras, que ama portas abertas e tetos escancarados por onde entram olhos e estrelas, que ama o risco da dor, do amor, do viver, cura-os. Quando ainda estava escuro, sai em segredo e reza. Simão persegue-o, procura-o, encontra-o: «Que fazes aqui? Desfrutemos do sucesso, Cafarnaum está aos teus pés!».
E Jesus começa a destruir as expetativas de Pedro, as nossas ilusões: vamos para outro lugar. Um outro lugar que não sabemos; apenas sei que não cheguei, que não posso acomodar-me; um “outro” que a cada dia me seduz e amedronta, mas ao qual volto a confiar, diariamente, a esperança.
“Jesus saiu da sinagoga e foi, com Tiago e João, para a casa de Simão e André” (Mc 1,29)
Neste tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum”, nos convém ter referências que nos ajudem a caminhar sem cair na rotina ou na monotonia. O Evangelho deste domingo nos oferece um texto inspirador que sintetiza o modo com que Jesus organizava sua jornada ou dividia o tempo de sua vida pública.
É significativo o fato de que Ele se instale em Cafarnaum, cidade fronteiriça com os povos pagãos, tanto com Tiro e Sidon, como com as cidades da Decápolis. Com isso, Jesus revela que sua missão é universal, e isso será demonstrado em sua incursão pelas terras do Norte ou fazendo travessia para a outra margem do lago, para o leste; por ambas direções adentrava-se em territórios pagãos.
Embora sua presença pública se dê numa cidade comercial e de tanto movimento de pessoas, o início do evangelho de Marcos indica quatro espaços diferentes no quais Jesus se move; cada um deles se converte em ensinamento e inspiração para todos nós.
Pela manhã, vai à sinagoga; ao meio dia, à casa de Simão; ao entardecer atende os enfermos na rua, e na madrugada, de forma sigilosa, se retira a um lugar solitário para orar.
A oração comunitária, a relação doméstica e familiar, a missão evangelizadora e a oração íntima e pessoal com o Pai se conjugam de modo pleno, para nos indicar como deveria ser nossa jornada, quanto à harmonia e ao exercício das relações essenciais: o trato com nosso Deus Pai, a vida social e laboral solidária, a vida de oração e familiar, e a relação interior. Viver a cotidianidade inspiradora: isso faz a diferença.
Quem sabe, poderíamos nos inspirar no modo de viver diário do Senhor, que deverá ser sempre um referente para o nosso próprio estilo de vida. Do equilíbrio que mantenhamos nas diferentes dimensões dependem o crescimento pessoal, a maturação espiritual e a estabilidade na opção de vida cristã.
Um traço característico de nossa sociedade é o individualismo, o isolamento narcisista que nos centra e nos concentra em nosso eu como lugar referencial de atenção, dedicação, cuidado e investimento de quase todas as nossas energias disponíveis. Temos a sensação de que tudo, a partir de fora, convida a viver fechados e surdos às vozes que vem do nosso eu mais profundo. Muitas demandas externas nos impulsionam a reduzir nossa vida ao tamanho de um “bonsai”, a atrofiar nossos desejos mais nobres até reduzi-los aos pequenos bens acessíveis e a conformar-nos com pequenas doses de prazer egoísta.
Ao nos convidar para percorrer, junto ao Mestre, numa de suas estadias em Cafarnaum, o evangelista Marcos nos apresenta uma cena na qual vemos, como num relance, tudo o que vai ser a existência de Jesus: Ele se dirige à casa de Simão e André; ali encontrava-se acamada a sogra de Pedro.
Uma mulher anônima, que só a conhecemos quando referida a seu genro e possuída pela febre, foi introduzida na festa comunitária do serviço fraterno pela mão libertadora de Jesus.
É o primeiro relato de cura em que o Mestre vai ao encontro de uma enferma. Jesus ouve a conversa dos discípulos sobre a doença da sogra de Pedro, toma a iniciativa, vai até a mulher doente e a toma pela mão. Ao tomá-la pela mão, compartilha a sua força. E assim, revigorada pela sua força, a febre a deixa, ela consegue se levantar e se põe a servir.
Assim soam e ressoam em nosso interior as palavras do evangelista Marcos: “Jesus se aproximou, tomou-a pela mão e a ajudou a levantar-se”. Gestos cheios de carinho, de compaixão, de autoridade interior. Tudo o que faltava à religião oficial, é revelado agora por este galileu diferente, desafiador, que não age movido por leis frias, mas por um coração e uma mente integrados, em sintonia com o Pai.
Vale destacar uma constante no evangelho de Marcos: a casa como lugar preferencial da ação de Jesus e da missão dos seus discípulos. Certamente Jesus ensinava nas sinagogas, mas ali sempre encontrava a resistência e o fechamento daqueles que faziam da Lei o centro da vida; por isso, Jesus, como um inspirado mestre, revela um “novo ensinamento”, não em lugares fechados e controlados, mas em espaços abertos, nos campos, à beira do lago de Genezaré, indo pelos caminhos...; Jesus se dirige aos lugares onde homens e mulheres realizam suas atividades comuns, no simples ambiente do trabalho cotidiano e, de maneira privilegiada, nas casas, começando pela sua própria, em Cafarnaum, onde fora residir.
Jesus, como itinerante, dá início a um “movimento de casas”. É que a casa acaba sendo o espaço alternativo que melhor corresponde à atuação do Mestre, enquanto ponto de partida e de chegada de sua missão itinerante. É a partir das casas que Jesus exerce, à margem do que está estabelecido, sua autoridade em favor da vida, sem depender de instituições e funções previamente normatizadas.
Assim, através de uma rede eficiente, ampliada e centrada no Mestre e com funções complementárias, seus seguidores, a partir das casas, prolongam o ministério de Jesus: “viver em saída”, deslocar-se em direção aos excluídos, revelar a presença do Pai na simplicidade do cotidiano das pessoas, etc. Neste sentido, a casa cumpre uma função vital para a expansão da causa do Reino de Deus. Em outras palavras, a causa de Jesus (Reino) encontra nas casas seu lugar natural.
É fácil concluir que esta rede de seguidores nas casas acabe se organizando de uma forma concêntrica, ao mesmo tempo que horizontal, favorecendo de modo definitivo e natural o avanço do Reino; tal organização se diferencia das estruturas piramidais e hierárquicas, próprias de toda e qualquer instituição, com os riscos de esclerose que lhe são inerentes. Aqui, revela-se sumamente estimulante resituar a continuidade da causa de Jesus de Nazaré nos ambientes fraternos e igualitários, onde a casa se revela como espaço próprio da simplicidade e da cotidianidade.
Trata-se, pois, de uma alternativa urgente, frente à persistência petrificada de conservar formas e estruturas anacrônicas que, em função do poder, continuam a predominar em nossos ambientes cristãos, apesar dos apelos insistentes do próprio evangelho.
O Evangelho de Jesus é experiência de casa, de comunhão e palavra para todos, lugar aberto à novidade do Reino. A primitiva comunidade dos seguidores de Jesus não começou formando uma nova religião instituída, nem se preocupou com construções de templos ou com organizações hierarquizadas; ela se apresentou como uma federação de casas abertas, a partir dos pobres e para os pobres, criando redes de comunicação e de vida fraterna, casas-família, impulsionadas pelo testemunho e presença do Espírito do mesmo Jesus.
Ser seguidor(a) é ser chamado(a) a viver no seu dia-a-dia esta mística do amor da maneira como Jesus viveu (na família, no trabalho, no descanso, na luta em favor da vida, nos compromissos sociais...).
O cotidiano é o meio no qual o amor toma densidade e se expressa preferentemente; ele é o lugar privilegiado da vivência da espiritualidade do seguimento, deixando-nos conduzir pelo mesmo Espírito que animou Jesus e o levou a inserir-se na trama da vida humana e a dignificá-la.
Falamos de uma cotidianidade humana, isto é, daquelas atividades de nossa vida diária que, embora irrelevantes em sua aparência, tem uma razão de ser, uma motivação que não se reduz à mera casualidade ou a um impulso instintivo de repetição ou automatismo.
Sabemos que o cotidiano revela um perigo que é a rotina, essa sensação de fazer tudo mecanicamente, inclusive a vivência da fé, e de perder com isso o ardor do novo ou o impacto do extraordinário.
O amor é precisamente o lubrificante que dá sentido à nossa vida cotidiana e nos faz superar as dificuldades inerentes à mesma; o descentramento de nós mesmos, a busca da verdade e do bem comum, a ação comprometida com a vida dos outros... se tornam “normais” quando cultivamos o amor.
Texto bíblico: Mc 1,29-39
Na oração: O Espírito nos faz abrir os olhos às realidades novas em nossa vida cotidiana; mas nossos olhos somente se abrirão se formos fiéis à voz do Espírito nos simples atos de nossa vida cotidiana.
- suas atividades diárias fazem parte do seu caminho para Deus? Você tem consciência que cada dia é um “tempo de graça”? Você “apalpa” a presença de Deus nas “rotinas diárias”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.02.2021
Imagem: pexels.com/pexels-photo-1535288
“Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!” (Mc 1,27)
Depois do chamado dos primeiros seguidores de Jesus, junto ao lago, o evangelho deste domingo nos leva com eles à sinagoga, que era a escola e casa de oração dos judeus. Fazendo com que falem mais os fatos que as palavras, Marcos nos quer ajudar a ver, como através da atuação de Jesus, o Reino de Deus se faz presente.
Não por casualidade, o evangelista situa a cura do homem possuído por “espíritos maus” em Cafarnaum (centro da atividade de Jesus), na sinagoga (espaço da religião), no sábado (dia de culto e oração) e entre mestres da lei, que tinham poder sobre a assembleia e sobre a interpretação da Palavra. Mas, aqueles que tinham “poder” não curaram o homem de seu espírito imundo.
“Espírito mau” significa tudo o que bloqueia a relação com Deus e a comunhão com os outros; representa o que há de mais contrário a Deus e a possibilidade de uma convivência sadia com aqueles que o rodeavam; é o símbolo de tudo aquilo que no ser humano está em radical oposição ao Pai.
A presença de Jesus desata, liberta, purifica o ser humano que se encontrava oprimido dentro de uma sinagoga. Frente à exclusão nesse espaço comunitário, Jesus profere sua palavra que cura e liberta o enfermo/oprimido de sua situação desumanizadora. O relato deste domingo não fala da enfermidade que o oprimido padecia. Diz simplesmente que era “impuro”, alguém que era considerado “manchado”, dominado por um espírito anti-humano e que Jesus desmascara, para que pudesse falar e agir com autonomia.
Jesus, na sinagoga, não discute sobre Deus de forma abstrata; não propõe teorias sobre pureza mais intensa, sobre ritos e alimentos; também não oferece uma doutrina sapiencial de tipo moralista; não apresenta uma doutrina melhor sobre leis ou normas de conduta; não é o rabino mais sábio, nem o escriba mais agudo. Tudo isso é secundário para Marcos. O ensinamento novo de Jesus se identifica com sua autoridade humana, com sua capacidade de destravar a vida dos enfermos na sinagoga. Por isso, seu “ensinar com autoridade era novo”; não era o ensino que repetia o que outros diziam ou aquilo que se lê nos livros; não era um ensinamento aprendido na escola de um professor especializado.
Tratava-se de um ensinar novo, diferente dos mestres da lei; a verdadeira autoridade de Jesus residia em sua pessoa, em sua vida. Seus pensamentos eram expressão de sua vida, era expressão do que fazia; e o que fazia era expressão de seu pensamento. Seu ensinar é novo porque Jesus não é o “profissional das ideias”, mas o “profissional da vida”, o profissional do coração, o profissional que ensina vida, o profissional que sara os corações.
Nosso contexto, social e religioso, também precisa de “profissionais” que nos deem razões para viver, nos deem razões para a esperança, para amar, nos deem razões para aprender a sermos pessoas, livres e criativas; precisamos de “profissionais” que nos mobilizem a viver uma vida plena, sem esses “maus espíritos” que nos atormentam cada dia e nos fazem viver uma vida medíocre.
Jesus fala e atua com “autoridade”; mas sua autoridade é diferente. Não vem da instituição. Não se baseia na tradição. Tem outra fonte. Está cheia do Espírito vivificador de Deus. Jesus não tem “autoridade do poder”, mas o “poder de sua autoridade moral”; não tem a autoridade da força que domina, se impõe e arrasta. Jesus tem o poder da autoridade que brota de seu interior, de seus valores, de sua liberdade. Autoridade que o descentra e o mobiliza a ser presença provocativa frente a todo poder que exclui. Não é o mesmo “poder” e “autoridade”.
O poder é exterior, vem de fora. Uma pessoa tem poder porque lhe foi dado nas urnas, porque foi instituído a partir de “fora” em uma presidência, em uma instituição, em uma empresa... Pode-se ter, pois, poder: títulos, cargos, prestígio,... mas poder não confere autoridade. A autoridade, pelo contrário, é interna à pessoa, e não consiste em ter títulos, nomeações; é a qualidade daquelas pessoas que tem o carisma de suportar as cargas e aliviar o sofrimento dos outros; pessoas que deixam emergir de seu interior a bondade, o alívio, a competência, a liderança solidária...
A pessoa pode ter poder, e poder legítimo, mas pode ser que não tenha a mínima autoridade. É muito perigosa uma pessoa que atua com poder, mas sem autoridade. Pelo contrário, há pessoa que não tem poder na sociedade ou na igreja, mas tem autoridade. Jesus mesmo não tinha nenhum poder no templo, na lei, diante dos escribas, fariseus, sacerdotes... Mas Jesus tinha autoridade: falava e atuava com autoridade. O poder não torna as pessoas boas, nem quem ostenta o poder e nem sobre quem recai o poder.
Sabemos e sentimos que o poder exerce um grande atrativo; ele é sedutor: “quem é que não foi picado pela mosca azul do poder?” É a paixão mais forte do ser humano; este pode até “perder a cabeça” por umas migalhas de poder político, econômico, religioso ou mesmo na família, nas empresas, etc. Atrás de toda busca de poder, ou das atitudes de poder, se esconde uma ansiedade de domínio, de prepotência, de ego inflado; ao mesmo tempo, uma pessoa fanática por poder revela um intenso medo, uma angústia profunda de perder prestígio, um pânico diante da possibilidade de ficar sem pedestal, sem cátedra, sem a atenção dos outros...
Nestes casos, o poder acaba se descambando para o fundamentalismo fanático. Uma pessoa fanática é alguém cuja mente é rígida, esclerosada, bloqueada pelo medo e pânico visceral frente à verdade, das pessoas e dos fatos. Por isso, o fanatismo se identifica com o pensamento dogmático mais intransigente. Em alguns cargos políticos e em algumas posições religiosas se dá uma atitude de poder despótico, agressivo, violento, porque o poder fanático não é capaz de pensar, de dialogar, somente agride.
A autoridade faz bem; o poder se impõe; a autoridade acompanha. O poder dispõe, a autoridade liberta. O poder crucifica, a autoridade está crucificada ou ao pé da cruz. Só a autoridade traz a paz, ilumina e faz crescer; o poder, pelo contrário, gera ansiedade, medo e faz o outro se sentir inferior. Quem tem autoridade, inspira e motiva as outras pessoas a fazerem as coisas com boa vontade e ânimo; o poder, no entanto, as obriga, por causa de sua posição de força.
Por seu caráter impositivo, o poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga, da violência. A autoridade, por sua vez, não tem nenhuma relação direta com a obediência: repousa, isto sim, sobre o reconhecimento da riqueza e da possibilidade do outro. Ela anima, sustenta, desafia e toca aquilo que cada um tem de melhor em seu interior.
A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando sua criatividade e fragilizando seus laços de convivência. Quem tem poder não age, dá ordens; jamais suja as próprias mãos; é impune e não deixa impressões digitais.
O poder não constrói comunidade, pois a pessoa se cerca de subservientes que cumprem suas ordens, dizem amém às suas ideias ou calam-se coniventes. Sorrateiramente este mal toma conta do coração humano e o petrifica, impedindo a vida de desabrochar e a criatividade de se expressar.
Texto bíblico: Mc 1,21-28
Na oração: Todos nós somos habitados por dois dinamismos internos: um, que nos impulsiona para o bem, a verdade, a comunhão...nos descentra; outro, que nos fecha, nos faz autoreferentes, prepotentes, violentos...
- Qual dos dois dinamismos se faz visível no seu agir e falar cotidianos?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
20.01.2021
“O tempo já se completou” (Mc. 1,15)
Não há filósofo que se preze que não lhe tenha dedicado parte de sua reflexão; não há poeta que não o cite em suas obras; não há namorado(a) que não pense que ele “voa”; não há político que não o utilize em suas promessas; não há pregador que não o faça aparecer em seus sermões; não há ser humano que não sinta sua passagem. Estamos falando do “tempo”.
Tem-se dito tantas coisas sobre o tempo...: que “ele tudo cura”, que “temos todo o tempo do mundo”, que “é preciso fazer as coisas a tempo”, que “há um tempo para cada coisa”, que “não podemos apressar o tempo”, que “o tempo passado foi melhor”...
Quando falamos de tempo, não estamos nos referindo, necessariamente, ao tempo físico, ao tempo cronometrado (“chronos”). Esse tempo não é o mais importante. O verdadeiramente importante é o tempo psicológico, o tempo interior, o tempo espiritual, o tempo tal e como nós lhe damos valor.
A Bíblia não concebe o tempo como uma entidade abstrata, vazia, quantitativa, irreversível e retilínea, medida por anos, dias, horas, minutos e segundos, dentro do qual tudo é contido e tudo acontece.
A ideia bíblica de tempo é algo concreto, vivo, experimental e qualitativo, que incorpora os seres e as coisas, marcado por eventos significativos...
A mentalidade judaica considerava que a natureza do tempo presente era determinada tanto pelos atos de salvação de Deus no passado (Êxodo), quanto pelos atos de salvação de Deus no futuro.
Os profetas tinham a tarefa de contar às pessoas o significado do tempo específico no qual estavam viven-
do, em vista do novo ato divino que estava prestes a acontecer.
Este acontecimento futuro iminente qualifica o tempo presente, dá sentido à totalidade da nossa vida no presente e determina aquilo que deveríamos estar fazendo. Se o tempo presente é inteiramente inspirado e qualificado por este ato novo e sem precedentes de Deus, então o próprio tempo presente é tempo totalmente novo, nova era.
Cada coisa, ao ter seu próprio tempo, está numa relação de parceria com outros tempos e outras coisas.
Há uma constante vinculação do tempo ao “ser e acontecer de cada coisa”. Isso porque o tempo é “carregado” da presença de Deus, que continuamente trabalha, realizando a salvação.
É o “Kairós”, tempo de salvação.
Com Jesus chega um “novo tempo”, um tempo decisivo para a história da humanidade.
É Deus quem irrompe de maneira definitiva na temporalidade. A partir desse momento, a história fica dividida em dois tempos: o anterior e o posterior ao nascimento de Jesus.
Desta maneira, o Senhor do tempo faz de Jesus o centro e o ponto de referência do tempo dos homens. Todos os acontecimentos do mundo, tanto passados como futuros, encontrarão sua localização e sentido a partir do “tempo central”, que é o tempo de Jesus.
Jesus vive cada momento numa relação completamente livre com o tempo.
Com os olhos fixos na “Hora do Pai”, Jesus mostra com sua mobilidade que, participando no tempo humano, não se deixa prender pelas ataduras da preocupação, da ansiedade, da pressa...
O tempo de Jesus é kairós, presente, dom, tempo de salvação. É a plenificação de todos os tempos.
É o “tempo esgotado”, capaz de abarcar todas as dimensões da vida e da história.
Jesus acomoda seu tempo ao “tempo de Deus, avança sem pressa nem inquietude e busca viver com alegria e prazer cada momento como um dom inesperado.
É no movimento do “Kairós” de Jesus que acontecem o chamado e o seguimento; por isso, Marcos situa o encontro com os primeiros discípulos nesse momento denso, decisivo, inspirador. É no interior do kairós que o Reino vai se expandindo, e movendo a história em direção à sua plenitude.
Todos carregamos uma certa visão pessimista que desvaloriza o tempo: vemo-lo como efêmero, passageiro, finito, caduco e, inclusive, como ilusório.
Também existe entre nós uma certa concepção que pretende reduzir toda realidade a tempo, a mero tempo; na maioria dos casos, tempo desabitado, sem presença, sem sentido e sem abertura ao futuro.
Outros colocam um preço no tempo: “time is money”. Muitas pessoas, pressionadas pela agenda desumana do ativismo, não conseguem dar um sentido existencial àquilo que fazem. Nada detém o tempo. Sua dinâmica não se submete a nenhum controle humano. O tempo corre como as águas de um rio. Arrasta tudo.
O “tempo novo”, tal como o vive Jesus, é original em cada um de seus momentos, e em nenhum caso torna-se banal. O Pai se mostra propício na temporalidade, e por isso a atitude de Jesus é a de descobrir em cada um dos momentos e dos acontecimentos o dom de seu Pai.
Cada tempo particular é sinal de um Deus benevolente e deve ser acolhido com gratidão.
A pressa descontrolada, o ritmo frenético, o estresse, a antecipação dos acontecimentos, a impaciência diante do desejado, a falta de respeito pelo tempo interior das pessoas,.., são atitudes que caracterizam o ser humano pós-moderno, mas que estão ausentes na pessoa de Jesus.
A liturgia cristã nos diz que estamos no “tempo” para tomar consciência de nosso verdadeiro ser e descobrir que estamos já na eternidade, que nosso verdadeiro ser não está no “chronos”, mas no “kairós”. Seremos cada ano mais jovem se formos cada dia mais livres. Nosso verdadeiro ser é constituído do divino que há em nós, e isso é eterno. Não precisamos esperar nada, pois já somos a plenitude e estamos na eternidade. Sem a eternidade da “alma” que pulsa em nós, que nos unifica e nos integra por inteiro, a vida se empobrece. Na “alma”, no nosso interior, o eterno tem seu templo.
Quando alguém fala de “coisas” eternas, bem que poderíamos olhar para dentro de nós mesmos. Aí, no nosso interior, há tanto de eterno. A eternidade dialoga com a gente, fala por dentro. Talvez ainda somos a onda que ainda não se despertou de que é oceano. Estamos mergulhados no “hoje eterno” de Deus e isso ilumina e dá sentido a cada gesto, cada ação, cada encontro.
Kairós: eis que irrompe a eternidade – eterna idade. Nesse sentido, a própria eternidade é sentida como o fluir de um presente sem fim, dom para ser vivido a cada instante.
A espiritualidade cristã, marcada pelo “tempo” de Deus, pode nos ajudar a fazer a “passagem” do “tempo insensato” (sem sentido) ao “tempo sensato” (com sentido). Tal espiritualidade é uma boa notícia com respeito ao modo de “estar no tempo” e nos introduz na dinâmica da vida que se abre às surpresas do “Senhor dos tempos”. Jesus irrompe em nossa história e nos coloca diante de uma decisão inadiável e única que marca de maneira definitiva nossa existência: “convertei-vos e crede no Evangelho!”
Encontramo-nos mergulhados no tempo da história, levados e sustentados por Deus, “Senhor do tempo”, que nos fala no tempo, comunica-se a nós no tempo, nos conduz no tempo, nos perdoa no tempo, nos convida a trabalhar com Ele no tempo...; no tempo, Ele nos sacode e nos interpela, no tempo, Ele nos capacita para anunciá-Lo e transformar o mundo segundo seu desígnio original.
Por isso, o transcurso do tempo, longe de se constituir um peso, é um grande aliado de nosso desejo, de nossa vida e de nossa fé.
Texto bíblico: Mc 1,14-20
Na oração: Tempo é vida e a vida é feita de tempo: ordenar seu uso nada mais é do que ordenar a própria vida, dando-lhe sentido e direção. A maneira como cada um assume o tempo determina a forma como direciona sua vida.
- Você vive o tempo como dom ou como “inimigo” a ser derrotado? Seu estilo de vida é agitado, sempre de olho no relógio, em permanente estado de ansiedade, ou é marcado pela gratidão que descansa?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.01.2021
Imagem: pexels.com/pexels-giallo
“Foram, pois, ver onde Ele morava e, nesse dia, permaneceram com Ele” (Jo 1,39)
Queremos marcar a experiência da caminhada contemplativa com Jesus, ao longo deste ano litúrgico, fazendo referência ao início da sua atividade pública, no evangelho do João: um relato de busca e de seguimento. Dois discípulos, que escutaram o Batista, começam a seguir o Mestre de Nazaré, sem dizer palavra alguma. Há algo n’Ele que os atrai, embora ainda não sabem quem Ele é nem para onde os levará. No entanto, para seguir a Jesus não basta escutar o que os outros dizem dele. É necessária uma experiência pessoal.
Por isso, Jesus se volta e lhes faz uma pergunta muito instigante: “quê buscais?”. Estas são as primeiras palavras de Jesus no quarto evangelho. Não se pode caminhar atrás de Seus passos de qualquer maneira; é preciso verificar as reais motivações.
Aqueles dois primeiros discípulos ainda não conseguem imaginar até onde a aventura de seguir Jesus poderá levá-los, mas intuem que Ele poderá ensinar-lhes algo que ainda não conhecem; por isso, a resposta deles é outra pergunta sábia: “Mestre, onde moras?”
Não buscam n’Ele grandes doutrinas nem sábias filosofias. Querem que lhes mostre onde vive, como vive e para quê vive. Desejam que lhes ensine a viver. A resposta de Jesus é a de um verdadeiro mestre: “Vinde e vede”. “Experimentai vós mesmos, percorrei meu caminho, caminhai por ele...” Não lhes dá explicações ou uma exortação, nem lhes impõe condições, nem exige deles algum tipo de submissão.
A pergunta de Jesus – “quê buscais?” – levará os dois discípulos a conectar com seu ser mais profundo, com sua realidade mais íntima, com os desejos de seu coração, ainda não configurados pelo amor. Uma pergunta vital, que desperta a consciência e os conduz a um diálogo consigo mesmos.
Por outro lado, a pergunta dos discípulos – “Mestre, onde moras” – não significa limitar-se a entrar em um determinado espaço físico, mas é expressão do desejo de um retorno à “morada interna”.
Os novos seguidores de Jesus não lhe perguntam sobre o seu ensinamento, nem o que faz, mas onde Ele mora para poder, dessa maneira, estar com Ele, compartilhar sua casa, sendo seus amigos. O verdadeiro discipulado é “estar com”, morar juntos... Esta é a missão chave de Jesus e de sua nova comunidade de seguidores: abrir a casa, não ocultar nada, oferecer com transparência sua vida e caminho aos outros.
“Vinde e vêde!”: Jesus lhes oferece sua morada, com tudo o que há nela, para que aprendam, vivendo com Ele, a fazer o percurso interior, para descobrindo a identidade original, ali presente..
Estes discípulos acolhem o convite, vão com Jesus, veem e convivem com Ele naquele dia; sentem-se impactados e transformados pelo estilo de vida de Jesus, mais que por aquilo que Ele diz. Não há necessidade de mais discursos, de palavras fortes: veem como vive Jesus, vivem com Ele e descobrem que Ele é o Messias de Israel. Esta foi e continua sendo a missão de Jesus e de seus seguidores: criar espaços de vida messiânica, ou seja, vida compartilhada...
As primeiras palavras que Jesus, pronunciadas no evangelho de João, também nos deixam desconcertados, porque vão ao fundo e tocam as raízes mesmas de nossa vida. Jesus continua se dirigindo a cada um de nós com uma pergunta que nos remete ao centro do nosso coração, àquilo que nos move: “quê estais buscando?” Sua pedagogia é a da pergunta que desvela, pois nos move a fazer um percurso interior e a encontrar-nos com a fonte que alimenta e inspira.
O desejo do encontro é força determinante para se manter acesa a chama da dinâmica da busca. É uma chama que se mantém acesa em proporção ao sentido e à importância grande de quem ou do que se busca. A sintonia com Deus que é buscada, justifica, com razões de sobra, o esforço e a recompensa do encontro. Vale a pena buscar o que é importante e encontrar Aquele que responde às razões mais profundas da busca.
É preciso aceitar viver à busca de Deus. A Ele é que se deve buscar. Por iniciativa, Ele busca a todos, vai ao encontro de cada um. Ninguém fica de fora.
Uma lógica de contínua busca deve permear o coração de cada um(a), para aprender a viver da busca d’Ele, o Senhor, e da busca de todos os outros, colocando-se a serviço da vida, unicamente por amor.
No fundo, como todo ser humano, também nós andamos buscando algo mais que uma simples melhora de nossa situação; aspiramos algo que, certamente, não podemos esperar de nenhum projeto político ou social.
Na verdade, quando nos interrogamos sobre o que buscamos, sobre o sentido de nossa existência, deixamos transparecer, nas profundezas do nosso coração, a “nostalgia da dimensão perdida”, ou seja, nossa morada interior.
Podemos, então, afirmar que a busca de Deus e o encontro com Ele, a partir de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de nós mesmos, de modo que buscar a Deus é buscar-nos a nós mesmos, a nossa própria interioridade.
Buscamos plenitude, felicidade, quietude, unidade, paz, verdade, amor, harmonia… Pois bem, é justamente isso que somos no nosso “eu” mais profundo. Temos nos distanciado de nossa interioridade e esquecemos as beatitudes originais; com isso nos reduzimos ao ego carente e insatisfeito. Ao aquietar o pensamento e voltar ao momento presente, caem todas as nossas antigas identificações egóicas e fica, simplesmente, o que somos. A busca chega a seu fim no dia em que descobrimos que o buscador é o buscado. Somos já – e sempre foi assim – aqueles que buscamos.
No contexto social pós-moderno, as pessoas relatam que perderam não somente seu lar exterior, mas também o interior. Elas se percebem sem o sentimento de acolhida e proteção; elas já não sabem mais quem são. Perderam seu sentimento de pertença, além de não mais saberem o que as sustenta. Não sabem mais onde poderão encontrar segurança e acolhimento.
O que é “estar em casa” para nós hoje, num mundo estranho e em constante mutação? O que significa “morada” para nós atualmente? Que tipo de sentimento está conectado a ela? Onde nos sentimos em casa?
A imagem dos dois discípulos atrás de Jesus é uma excelente mediação para termos acesso à “morada” em nós mesmos.
Neste mundo disperso, o percurso contemplativo da pessoa de Jesus nos dá referências e amparo. A pergunta que Ele dirige aos seus futuros discípulos nos remete à vivência em nossa casa interior. Entramos em contato com algo que sabemos estar encoberto pelas cinzas existenciais. É anseio pelas raízes, a partir das quais podemos viver com mais intensidade e sentido.
Ansiamos um espaço onde possamos ser nós mesmos. Espaço no qual podemos entrar em contato com algo que nos plenifica e nos expande. Nós temos o sentimento de viver das forças que procedem desse local.
É o espaço no qual Deus mesmo habita em nós. Ali, nós somos plenamente nós mesmos, salvos e íntegros. Verdadeiramente em casa. Precisamos apenas olhar para dentro. O céu está em nós e ali, no céu interior, está a verdadeira pátria que ninguém pode nos roubar ou pode destruir.
Texto bíblico: Jo 1,35-42
Na oração: Deixe ressoar em seu interior as perguntas mobilizadoras: o que, ou quem você busca? Por que busca? Tem sentido e valor o que você busca? Para onde o leva a força da busca?...
Estas perguntas ficam ali, continuamente presentes em um rincão de nossa vida; mas enquanto permanecem vivas são como brasas que voltam a acender-se cada vez que a vida as sopra.
Estas perguntas nos fazem humanos e são tão importantes como o ar que respiramos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.01.2021
“...ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito descer sobre ele” (Mc 1,10)
Com a Epifania, encerra-se o tempo do Natal. De um salto a liturgia nos leva até o Jesus adulto, passando dos magos sábios que buscam o menino-Deus nascido em Belém ao Jesus renascido nas águas do Jordão, para iniciar sua missão messiânica que culminará na Páscoa.
O relato do batismo de Jesus nos situa diante de um fato histórico, mas os evangelhos não se restringem a narrar simplesmente um rito externo, e sim a experiência fundante de sua vida: sentir-se Filho amado do Pai. Por isso, cada evangelista acentua os aspectos que considera mais importantes para destacar a identidade e a missão de Jesus. A narração junto ao Jordão busca concentrar em um só momento o processo que durou toda a vida de Jesus.
O batismo de Jesus revela uma profunda experiência espiritual, muito ligada à sua atitude humilde de aproximar-se do rio Jordão, onde as pessoas simples do povo buscavam, no batismo de João, uma purificação de suas vidas.
Jesus “desce” ao Jordão, gesto que condensa sua descida do céu à terra, sua “kénosis”, a radicalização de sua Encarnação. É uma “descida” às águas da humanidade
Nesse sentido, o batismo é a prova de da verdadeira humanidade de Jesus; Ele “desce” ao Jordão, submerge na vida e na condição humana e ali faz a experiência de ser conduzido pelo Espírito em favor da humanização de todos. Ao “entrar na fila dos pecadores” Jesus descobre novos rostos, novos dramas, novas histórias... e se deixa empapar (banhar) por esta realidade carente de sentido e de horizontes. Ao conectar-se com esta realidade, Jesus começa a ver tudo a partir de um horizonte diferente, no qual cabem outras possibilidades e outras responsabilidades. Descobre uma perspectiva mais ampla que o ajuda a formular melhor o sentido de seu chamado e de sua própria missão.
Ao descer às margens do Jordão, Jesus rompeu com a “normalidade” de sua vida cotidiana, deslocou-se para as margens da humanidade, rompeu fronteiras, abriu os olhos a uma realidade mais instigante e desafiadora. Ao mesmo tempo, no Batismo, Jesus se compreendeu a si mesmo, compreendeu sua missão, compreendeu sua relação com o Pai e com os homens. E compreendeu até o sentido de sua própria morte.
“Sua vida começou a ter um novo sentido”. Porque também Jesus precisou descobrir o “porquê e o “para quê” de sua vida, a partir de sua condição humana.
Jesus, ao saber-se e sentir-se amado infinitamente por um Pai que o chama de “Filho amado”, descobre em si o eixo de seu equilíbrio vital. O amor que experimenta na experiência de seu Batismo se transforma em chamado vocacional, em investidura para uma missão universal e libertadora.
Cessa o tempo da espera, abre-se o céu, escuta-se a voz. E aquele Homem, equilibrado pelo Amor experimentado em seu interior, começa a transformar as mentes e corações desequilibrados por falsas religiosidades que alimentavam temor e submissão. Jesus começa a ativar o equilíbrio em todas as pessoas, libertando-as, com a autoridade que o Espírito lhe conferia, de cargas desumanas e injustas que as desequilibravam: a culpa doentia, a enfermidade, a exploração, a miséria, o legalismo, o moralismo...
Todos estamos de acordo que a primeira experiência humanizadora é a do amor: amar e de sentir-se amado. Isso nos dá segurança e equilíbrio interno como pessoas.
Aqui está a experiência vital de Jesus, onde alcança o equilíbrio entre aquilo que pensa e sente com aquilo que recebe e acolhe em seu interior: “Filho amado, complacência do Pai”.
Sua experiência interior, no batismo, é tão potente que transforma para sempre o modo de entender e viver sua relação com o Pai. Jesus, frente a uma religião centrada na lei e no rito, estabelece uma linha de comunicação (céu aberto) direta de toda pessoa com Deus e Pai, sem necessidade de intermediários e sem necessidade de oferecer “sacrifícios” para “pressioná-lo” em favor próprio.
Jesus acolhe a filiação que lhe é revelada através da voz amorosa do Pai e, também de igual maneira, acolhe o Espírito que lhe dá a força para a missão, a grande tarefa do Reino: equilíbrio entre diálogo com Deus e e compromisso em favor da vida (isso será confirmado pela sua experiência de discernimento no deserto).
A festa do batismo de Jesus, portanto, é uma ocasião especial para retomar nosso batismo, um convite permanente a relançar-nos em Sua aventura, a deixar-nos invadir pelo Seu Espírito, a comprometer-nos com Seu Reino. Na vivência cristã, nosso maior risco é o esquecimento de Jesus e o descuido de seu Espírito. É preciso voltar às fontes, à raiz, recuperar o Evangelho em toda sua pureza e verdade, deixar-nos batizar pelo Espírito de Jesus. Se não nos deixamos reavivar e recriar por esse Espírito, nós cristãos não teremos nada importante a contribuir com a sociedade atual, tão vazia de interioridade, tão incapaz para o amor solidário e tão carente de esperança.
A pergunta para nós, seguidores(as) de Jesus, poderia ser esta: acolhemos o dinamismo despertado pelo batismo e que se expressa como capacidade de encontro com Deus e com Seu amor, para ir criando equilíbrio nos ambientes por onde transitamos ou nos fazemos presentes?
A mesma “voz interior” de Deus, ouvida por Jesus no seu batismo, tem ressonância em nosso interior, marca e define nossa identidade cristã; aqui está, em sua raiz, o que dará equilíbrio à nossa existência, entendida como experiência profunda de sentir-nos amados(as) por Deus Pai/Mãe.
O que o Pai diz a Jesus também nos diz a todos e a cada um em particular: “Tu és o(a) meu(minha) filho(a) amado(a), em ti ponho o meu bem-querer”.
Para isso, é preciso submergir-nos continuamente nas águas do nosso “jordão” interno; a água nos acompanha e nos convida a entrar, a soltar, a escutar. De um lado, o rio, o movimento das águas, que recorda a do Jordão do qual todos procedemos, porque ali surgiu um projeto que evolui em nós.
Do outro, a fila das pessoas, com suas vidas, suas dores e amores, suas paixões e rotinas..., com suas infinitas possibilidades ainda latentes, ou estancadas em seus medos paralisantes.
Nascemos do cosmos, da água... Sem água pura, sem vento, sem terra e sem fogo, sem estrelas do céu, não podemos nascer... Da terra com água brotamos; sem batismo de água (de mundo) não somos humanos.
Não nos batizamos se não deixamos que Deus nos mergulhe nas águas de Sua Vida, de tal maneira que n’Ela vivemos, crescemos, nos movemos e somos, como Jesus.
Não há batismo se esse renascer em e por Deus (como Jesus), pelo Espírito, não nos coloca, como “Ele”, a serviço da Vida, que é a saúde e salvação de todos, a fraternidade na justiça, em gesto de amor ativo, de compromisso pela liberdade, de entrega pela chegada do Reino...
Texto bíblico: Mc 1,7-11
Oração: Ao “descer” junto às margens do nosso Jordão, podemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que dão sentido e consistência ao nosso viver.
- Re-cor-dar (lembrar com o coração) dimensões da vida que precisam ser ampliadas a partir da vivência do batismo. Recordar medos, entraves, obstáculos... que limitam sua vivência batismal.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.01.2020
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"Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo” (Mt 2,2)
A festa da Epifania é a mais antiga que se conhece. Era a única festa de Natal celebrada em toda a Igreja, até que no Ocidente passou a ser celebrada no dia 25 de dezembro. A palavra “epifania” significa, em grego, “manifestação”, referindo-se sobretudo à primeira claridade da manhã, antes do nascer do sol. Depois passou a significar a “manifestação” de Deus a todos os povos, pois Ele inunda com sua Luz todos os recantos escuros de nossa existência.
Mais uma vez a Epifania grita para que nos levantemos e, iluminados pela Luz do Nascimento de Jesus, sejamos espelhos que refletem essa mesma Luz, iluminando toda a realidade envolta em trevas.
Tanto no nível pessoal como comunitário, sejamos luz do mundo, e não nos cansemos de proclamar a todos que nosso Deus se manifesta nas coisas simples e palpáveis, próximas: como um menino que nasce, ou como uma expressão infantil de assombro e surpresa frente ao diferente, ou como cada um dos gestos que podemos e devemos fazer para abrir espaço ao Deus da Vida e àqueles que, como novos “magos”, vêm ao nosso encontro...
A celebração da Epifania nos lança para além dos estreitos limites de qualquer instituição religiosa, de todo dogmatismo, fanatismo e intolerância... Deus se manifesta sempre a todos os povos e em todas as épocas. Todos os homens e mulheres estão sob a mesma mão providente de Deus. No momento em que nos sentimos privilegiados por Deus, fazemos a mensagem desta festa virar pó. Todos recebemos tudo de Deus e todos temos a obrigação de aprender e ensinar uns aos outros; todos temos a nobre missão de acender uma luz, em lugar de maldizer as trevas; todos temos uma estrela a nos guiar até à fonte da verdadeira Luz.
Aqui não se trata de buscar, no relato da Epifania, um fundo histórico, no sentido moderno da palavra. O importante não é o que está por “detrás” da narração, mas o que nela se manifesta, a saber: os sábios do oriente representam a humanidade em busca de paz, verdade e justiça; representam a aspiração profunda do espírito humano, a marcha das religiões, da ciência e da razão humana ao encontro de Cristo.
O caminho dos magos que buscam o Menino Jesus é o caminho de todos os homens e mulheres, de todas as raças e religiões... O Jesus de Belém está sempre disposto a receber o ouro da cultura dos povos, o incenso de todas as expressões religiosas, a mirra de todas as dores.
Os Magos do Oriente são o símbolo de tantos homens e mulheres que, em qualquer parte do mundo, a partir de outras sendas e tradições espirituais, se perguntam, buscam e caminham.
Uma lenda os apresenta como um rei jovem, outro ancião e outro negro, querendo significar que a humanidade toda é mobilizada a “fazer-se caminho”.
Nesse percurso, os Magos escutam outras palavras e sinais, aprendem a filtrar aquilo que “ajuda para o fim” e a não seguir qualquer conselho. Herodes e os escribas estarão sempre presentes e ameaçam reaparecer antes, durante e depois do encontro com o Menino.
E toda viagem que culmina na manjedoura, é ponto de partida para novos caminhos.
O ícone bíblico do relato dos Magos ilustra o risco do fechamento em nós mesmos, de enredar-nos nas armadilhas da nossa própria inteligência, ou de petrificar-nos em nossas sacralidades doutrinárias e legais. Isso se manifesta como rigidez para a mudança, a intensa necessidade de manter a própria imagem, a resistência em aceitar coisas novas que rompam nosso frágil equilíbrio ou os limites da nossa vontade...
A experiência da Epifania supõe uma capacidade de encontro e de escuta de Alguém que chama, uma atenção especial para distinguir vozes diferentes da própria voz, uma sensibilidade para escutar os gritos de nosso mundo e para receber a palavra da comunidade cristã.
O Deus, escondido na fragilidade humana, não é encontrado naqueles que vivem encastelados em seu poder ou fechados em sua segurança religiosa. Ele se revela àqueles que, guiados por pequenas luzes, buscam incansavelmente uma esperança para o ser humano, na ternura e na pobreza da vida.
A viagem dos Magos se torna, assim, o símbolo da vida cristã, entendida como seguimento, como discipulado, como busca.
A viagem exige desapego, coragem, movimento, esperança. Quem está prêso à terra pelo peso das coisas, pelos apegos, pelos egoísmos, não é capaz de se tornar peregrino. Não pode peregrinar aquele que não se dispõe sinceramente a ultrapassar as fronteiras e os esquemas pré-concebidos que muitas vezes lhe fecham e lhe dão segurança. Isto não o deixa livre para encontrar o Deus da Vida que se manifesta.
Quem está convencido de possuir tudo, inclusive o monopólio da verdade, não tem a gana da busca
contínua; é semelhante aos sacerdotes de Jerusalém, frios exegetas de uma Palavra que não os atrai nem converte. Quem está bem instalado na cidade não precisa ir a Belém; ao contrário, Belém se reduz a um insignificante vilarejo de província.
Quando aprende a aceitar e amar a sua própria viagem, novamente a estrela surgirá à sua frente, indicando o sentido de sua existência e mantendo acesa a chama da busca inspiradora.
Os “magos” somos todos. Esta é a festa do Deus que atrai a todos em seu amor. Quando parece que tudo está definitivamente fechado vem os Magos para abrir as portas da vida. Quando parece que o céu está escuro, brilha uma estrela para aqueles que querem continuar caminhando.
O Menino Jesus, Messias de Deus, não está fechado no templo e na estrutura religiosa, mas é coração aberto em Belém para todos os que dele se aproximam. Não é rei que impõe seu direito, mas criança necessitada, nos braços de sua mãe. Não é sacerdote que controla a sacralidade divina a partir do tabernáculo do tempo, mas menino ameaçado que se faz imigrante, assumindo assim a história de todos os excluídos.
Nós somos “magos” para anunciar a todos que há estrelas que apontam para a Gruta onde um Menino é acolhido, na rota da vida, que continua sempre aberta. Devemos mobilizar a todos para criar um mundo onde nenhum menino-Deus morra abandonado.
Somos “magos” quando experimentamos e anunciamos que a vida é um dom, que o ouro do mundo é um presente para todos os homens e mulheres, que os bens da terra estão a serviço da vida, que toda riqueza é para ser compartilhada para o bem de todos.
Somos “magos” quando temos de dizer a todos, com nosso exemplo, que a vida é prazer e glória, é incenso de admiração e de ternura, de intimidade orante e de proximidade. É preciso proclamar que não buscamos a glória do poder, a vitória da imposição, o incenso da mentira, mas buscamos e compartilhamos o incenso do amor que pode ser celebrado na intimidade da família, nas relações pessoais e sociais, no compromisso solidário. Diremos que sempre haverá um perfume ao nosso lado, ao lado de todos os homens e mulheres que poderão festejar, sonhar...
Somos “magos” quando revelamos que a vida é feita também de mirra. Somos todos “mirróforos(as)”, portadores do perfume, para levar o agradável odor em meio aos ambientes fétidos de ódio, intolerância e violência. A mirra é o perfume de amor, mas também é o bálsamo da morte. A mirra é como uma flor preciosa que pode nos acompanhar na vida, no crescimento de cada dia, na comunhão com os outros, na tristeza e na esperança de cada despedida.
Que cada morte seja tempo de amor, esperança de amor e não fruto da violência.
Enfim, a Epifania nos destrava e nos coloca a caminho, seguindo as “pegadas” dos Magos, fazendo opções, usando desvios, lançando-nos pessoalmente a ações concretas..., movidos pela experiência de encontro com a Vida, no despojamento de uma Gruta.
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: Às vezes tenho de me deter na vida, como os magos, para pensar e sempre me perguntar: onde estou? Em quê momento da vida me encontro? A quê estrela sigo? Meu caminho tem coração?... É a arte do discernimento.
A Graça também me precede, me acompanha sempre e libera meus melhores recursos e minha inteligência para abrir-me ao novo, a abertura que permite reconhecer o “Mistério” e deixar-me inspirar por Ele.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.02.2020
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“Tendo-o visto, contaram o que lhes fora dito sobre o menino” (Lc 2,17)
“Vede que realizo algo novo; já está brotando, e vós não percebeis?” (Is 43,19)
Foi essa a experiência vivida pelos pastores quando se deslocaram até à Gruta de Belém: viram a “eterna Novidade de Deus” revelada no rosto de um recém-nascido; é do interior de uma gruta que surge um novo tempo, um novo modo de viver, uma nova maneira de olhar as pessoas e a realidade, um novo compromisso... enfim, uma nova humanidade.
Podemos imaginar o momento do primeiro olhar dos pastores no encontro com o Menino Jesus... Surpresa, espanto, comoção, gratidão, alegria…!
Naqueles olhos que se entrelaçam e se contemplam mutuamente, descobre-se o novo olhar de Deus sobre o ser humano, e o novo olhar do ser humano sobre Deus e sobre os irmãos. Deveríamos, ao longo deste novo ano que se inicia, situar-nos diante de Deus desse modo, com mais freqüência, deixando os olhos, os d’Ele e os nossos, se falarem silenciosamente.
O cristão é aquele que conserva límpido os seus olhos interiores, prontos para perceber a maravilha que está sendo gestada em sua vida e ao seu redor. Movido por um olhar novo, ele acolhe a surpresa de Deus, passa a ser surpresa para os outros, com seu gesto de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola, com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona.
Nesse “estado interior”, tudo é sempre novo. “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). Não se trata da ação de um Deus que intervém a partir de fora, mas do reconhecimento de que, sempre e em todo momento, tudo é novo, pois “Deus é Presença” em tudo e em todos. Mas só pode saborear isso quem sai do nível da superficialidade, na qual está hipnotizado ou enfeitiçado pelas exigências do próprio ego, e se situa naquela dimensão profunda que é essa mesma Presença.
A capacidade de assombro dos pastores pode ser uma boa disposição para iniciar o Ano Novo. O contrário do assombro é a rotina; o “eu já sei” ou “sempre foi assim” nos faz imunes ao milagre cotidiano da vida e seus sinais. Precisamos continuar aprendendo a olhar com profundidade a realidade em seus gestos peque-nos e dirigir nossa atenção para aquilo que, muitas vezes, nossa lógica racional, invisibiliza ou despreza. Talvez, só assim entraremos em sintonia com o mistério do Amor que tudo habita e faz tudo novo.
A maior “novidade” que ninguém podia esperar é colocada nas mãos dos pobres e simples, aqueles que nunca tiveram uma oportunidade de serem escutados e valorizados. Mas, surpreendentemente, serão eles os mensageiros autorizados da transmissão da Novidade de Deus.
Aqueles pastores, surpreendidos em meio ao trabalho, são convidados a sair, a deixar sua cotidianidade para abrir-se à novidade de um Deus que irrompe em suas vidas para transformá-las. Ao chegar no lugar onde estão Maria, José e o recém-nascido, imediatamente eles os reconhecem e sua alegria se converte em proclamação entusiasta daquilo que viram e ouviram. Seu anúncio é tão convincente que todos aqueles que os ouvem ficam impactados por seu testemunho.
Aquela noite, à margem dos grandes centros e dos interesses humanos de poder e vaidade, revelou-se como uma noite cheia de “encontros e conexões”, onde deu-se início a uma nova rede de comunicação acessível a todo aquele que, de boa vontade, deseja entrar nela. É um sistema protegido pelo Espírito do Senhor, de alta fidelidade, que nunca cai, mas que é preciso entrar nele livre de vírus: do ódio, da intolerância, do preconceito, da busca de poder, vaidade...
A imagem dos pastores pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, redescobrir com urgência o encontro humanizador como valor ético e como hábito permanente de vida. Somos chamados a viver o encontro como um estilo de vida, fundado no encontro de Deus com a humanidade.
O encontro, que nos faz sair de nós mesmos, nasce da compaixão e nos leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade criativa para superar toda divisão e conflito
A experiência da Gruta, lugar onde se visibiliza o “novo” de Deus, nos mobiliza a levar adiante a missão, a ir aos lugares do mundo onde há mais necessidade e ali realizar obras duradouras de maior proveito e fruto.
Esta é a dura contradição que estamos vivendo neste início de ano: se, estar separados fisicamente de nossos seres queridos e vizinhos é o mais eficaz para combater a pandemia, precisamos, então, buscar outras expressões de proximidade para que essa distância não se converta em ecossistema e modo de vida. A distância sanitária não pode servir de cortina de fumaça para reforçar outras distâncias que se abrem diante de nós, no campo social-político-religioso-cultural...
Não podemos deixar que o mistério natalino se dilua em meio às distâncias artificiais que desumanizam. Hoje, mais do que nunca, devemos celebrar e recordar que juntos, orientados pela Luz que procede de uma Gruta, poderemos enfrentar, com criatividade, toda e qualquer crise que nos venha. Talvez, esta pandemia nos oferece uma ótima oportunidade para crer e viver isso, de verdade: de transformar declarações ocas em atos sólidos, de resumir tudo o que é a humanidade numa só palavra: proximidade.
Proximidade com aqueles que sofrem, com aqueles que buscam um mundo melhor, com aqueles que estão à frente no combate à pandemia, com aqueles que foram excluídos... Em meio a um mundo onde a distância e a suspeita crescem e se enraízam, a solidariedade é a alternativa de proximidade e colaboração que todos precisamos. O mundo precisa de místicos(as) que descubram onde está Deus criando algo novo, para proclamar esta boa notícia.
À luz da Gruta de Belém podemos afirmar: fisicamente distanciados é quando nos sentimos mais próximos.
Para realizar esta nobre missão, não podemos permanecer sentados. Seguir Aquele que nasceu nas periferias da humanidade exige de nós uma dinâmica continuada, um colocar-nos a caminho em direção às margens. Não podemos nos situar diante da Gruta da Vida a partir de uma cômoda instalação pessoal. A disponibilidade, o despojamento e a mobilidade são exigências básicas.
Como seguidores(as) de Jesus, nosso desafio não é fugir da realidade, mas aproximarmos dela com todos os nossos sentidos bem abertos para olhar e contemplar, escutar e acolher, percebendo no mais profundo dela a presença ativa do Deus que nos ama com criatividade infinita.
Neste dia, fazemos memória dos humildes pastores que se deslocam para uma gruta e vivem um encontro surpreendente; eles se fazem próximos d’Aquele que tomou iniciativa para se aproximar de toda a humanidade. Tal mistério deve nos inspira a provocar encontros e diálogos que ajudem a integrar, a reunir, a religar, a articular o tecido comunitário. Há tantas vidas esparramadas, isoladas, rejeitadas... esperando por sinergia. Na verdade, o Nascimento de Jesus provocou as pessoas a saírem de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para se expandir em direção a uma nova forma relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho do “Reino de Deus”.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: entrar na Gruta requer uma atitude de reverência para deixar-se impactar pelo Deus “que se faz sempre Novo” e que nos move a sonhar e construir o “novo” na nossa história.
- qual é o “novo” que você está vislumbrando no seu horizonte pessoal, social, familiar, eclesial...?
A partir deste humilde espaço por onde flui minhas reflexões dominicais,
deixo ressoar a expressão: “feliz Tempo Novo de Deus!”.
Se conseguirmos que 2021 seja “novo” com a eterna novidade do amor e da bondade,
então também teremos um ano feliz.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.12.2020
Imagem: Gerrit Van Honthorst - The adoration of the shepherds
“Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22)
É profundamente inspirador que a liturgia cristã uma intimamente estas duas realidades: família e Natal. Nestes dias, todas as pessoas, mesmo que a situação sanitária não permita, tem a instintiva necessidade de agrupar-se, encontrar-se e celebrar. Brota em todos nós uma compaixão solidária para com aqueles que, no tempo natalino, não tem com quem compartilhar. Natal e solidão são conceitos contraditórios.
Naquela noite de Belém, Deus não só se humanizou, mas entrou em uma família humana; “Deus se fez família”. Com sua presença, diviniza a família. E toda família é divina se é verdadeiramente humana.
A família de Nazaré é a escola do Filho do Homem, rodeado de gente comum, com sua paisagem natal, como um entre tantos; sua linguagem, seu modo pessoal, sua conduta, sua fé...
Para Jesus, Nazaré é um tempo de aprendizagem: observar o que acontece ao seu redor: cala, vê, escuta nesta escola. Exercício de preparação diante das urgências do Reino. “Tempo de guardar no coração”.
Sabemos muito da vida pública de Jesus: nazareno, filho de um carpinteiro, pobre, livre, compassivo, comprometido com a vidar, que fazia milagres e falava com uma autoridade inegável, que anunciava a utopia do Reino, que logo foi crucificado como o pior dos criminosos, e cujos seguidores asseguraram que tinha ressuscitado... Não podemos negar que Ele mudou a história da humanidade.
Mas, antes de tudo isto, houve 30 anos de vida desconhecida, escondida, silenciosa.
Temos poucos dados sobre grande parte de sua vida no seio de uma família humilde em Nazaré, um povoado que não gozava de boa fama. Assim viveu Jesus, aprendendo a ser humano na escola da família e da comunidade. Se não entendemos que Jesus foi plenamente humano é que não aceitamos a encarnação.
Mas, há algo que podemos trazer à luz daqueles 30 anos “ocultos”: que na lentidão do dia-a-dia, da monotonia e do lar, Deus preparava o caminho. Pouco a pouco, a fogo brando. Em meio à rotina de uma vida simples, Jesus foi fazendo-se perguntas, esperando as respostas, ouvindo o que seu coração lhe dizia e discernindo o que o Pai queria dele. Ano após ano, em um pequeno lugar, detrás de uma vida que nada tinha de diferente das outras vidas. Até que chegou o momento de Deus.
Cozinhar a fogo lento é bem difícil neste mundo de pressas e imediatismos. E hoje, mais do que nunca, se fazem necessários os “tempos de Nazaré”, esses tempos de aparente rotina nos quais se alimentam os sonhos, onde se forjam as vontades, se domam as impaciências, se aclaram os caminhos, se discerne a Voz, se dissipam as névoas do caminho... Em definitiva, esse tempo onde nosso canto e o de Deus se afinam juntos para formar uma única melodia e fazê-la soar no mundo.
As grandes histórias são tecidas na trama do cotidiano; os “tempos” de Deus não são os da eficácia, da produção, do ritmo estressante... Também são os tempos do silêncio, da rotina inspirada e da aprendizagem silenciosa. Todo crescimento pessoal demanda previamente tempo, ritmo, reconhecimento e aceitação da própria verdade, sólidos fundamentos sobre os quais podemos construir nossa pessoa.
Jesus desenvolveu sua vida humana como qualquer outro ser humano. Como homem, precisou passar pelo processo do amadurecimento lento, lançando mão de todos os recursos que encontrou em seu próprio interior e ao seu redor. Foi um homem inquieto que passou a vida buscando, procurando descobrir quem ele era em seu ser mais profundo. Sua experiência pessoal o levou a descobrir onde o Espírito do Pai estava fazendo brotar o “novo” da Salvação, e entrou por esse caminho de libertação.
Jesus, no cotidiano familiar, nos revela que Ele é o homem das “grandes sínteses”: entre o particular e o universal, entre o Deus da intimidade e os irmãos da convivialidade, entre os momentos de cuidado de si e as ocasiões de solidariedade, entre sua interioridade e sua abertura a todos sem restrição, entre ação e contemplação...
Jesus mesmo foi este personagem instigante, que fez brilhar a “novidade” de Deus nas vilas e campos da Palestina. Ele nos fala de “sínteses” com o vigor de alguém que é inspirador para todos nós: Ele sintetiza a ternura de um irmão, a lucidez de um profeta e a revolução de um Messias.
Foi no cotidiano familiar que Ele aprendeu, aos poucos, a ampliar seus horizontes, seus interlocutores e o sentido de sua missão. É a vida cotidiana que nos revela que Jesus foi uma pessoa profundamente humana e humanizante, que vivenciou um processo de maturação, de releitura de suas tradições e assimilação do novo, até chegar à proposta original da Boa-Nova.
Ali, no ambiente familiar Jesus se destaca por sua docilidade, discrição, familiaridade, aprendizagem, bondade, sensibilidade, vivência da fé no Deus Providente... que aprendeu de Maria e de José.
Jesus, em Nazaré, continua sendo luminoso e inspirador para todos nós, num momento em que as transformações são rápidas e exigem de nós maturidade, aprendizado, diálogo, novas expressões de fé...
A família de Nazaré evoca o dia-a-dia do nosso seguimento de Jesus, onde os acontecimentos extraordinários são pouquíssimos. Chega um momento em que a vida cristã parece muito rotineira. Nazaré alimenta o seguimento de Jesus no cotidiano e comum da vida. Nazaré é a escola na qual aprendemos a descobrir a presença de Deus na vida “tal como ela é”, no trabalho das pessoas e nos rostos daqueles que estão ao nosso lado. No lugar onde nos cabe viver é onde o Senhor nos ama e nos convida a descobri-Lo.
São muitos os lares que vivem a dor da ruptura e separação. No entanto, a casa familiar continua sendo o lugar entranhável, a referência segura, a possibilidade restauradora.
Lar: lugar da surpresa, do novo, do desafio... onde a interação pais-filhos possibilita o desenvolvimento e amadurecimento natural de todos.
Lar: do “lugar estreito” ao “lugar amplo” onde é possível a expansão de todos.
Regado pelo amor, o lar torna-se espaço aberto ao futuro.
Mas Nazaré é também um alerta contra a rotina. Cada dia é preciso renovar o seguimento. Por isso Nazaré é o lugar da perseverança, da fidelidade, de dizer cada dia um novo “sim” ao Senhor. No cotidiano há momentos favoráveis e momentos de crise. Mas o cotidiano é a oportunidade para ampliar o olhar para a frente. Nazaré pode ser um lugar de esperança, de onde se pode vislumbrar um futuro melhor.
Nazaré evoca também a comunhão dentro da diversidade. Num pequeno povoado as pessoas são tão diferentes como numa cidade grande, mas a vulnerabilidade delas nos faz despertar a consciência da necessidade que temos uns dos outros. Numa comunidade pequena os problemas de um afetam os outros. Suas fragilidades se fazem fortes quando se apoiam mutuamente; suas solidões que se unem criam comunhão. Vivamos em nossas famílias a grandeza de sermos plenamente humanos!
Texto bíblico: Lc 2,22-40
Na oração: - descubra o significado profundo da sua vida cotidiana mais simples: trabalhos, relações, família...
O ambiente familiar, quando espaço humanizador, integra a vida cotidiana de Nazaré com os desafios de Jerusalém (família que se alarga, sai de si, se compromete, abre-se às causas humanas...)
- Como é sua família? Vive comprometida buscando uma sociedade melhor e mais humana, ou fechada exclusivamente em seus próprios interesses? Educa para a solidariedade, a paz, a sensibilidade para com os necessitados... ou só ensina a viver para o consumo insaciável, o máximo lucro e o esquecimento dos outros?
- No seu ambiente familiar cuida-se da fé, dos valores do Evangelho... ou se favorece apenas um estilo de vida superficial, sem metas nem ideais...? É espaço instigante, de crescimento, aberto ao novo e diferente... ou ambiente atrofiante, sufocante...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
26.12.2020
“Vamos a Belém ver este acontecimento que o Senhor nos revelou” (Lc 2,15)
Não há dúvida que este Natal vai ser muito diferente dos anos anteriores. Para muitas pessoas pode ser um tempo de dor pelas perdas familiares, amizades, trabalho, saúde... Devido ao confinamento, sentiremos muito não poder nos encontrar com tantas pessoas como gostaríamos, nem nos abraçar, nem prolongar a noite de festa. Este Natal vai ser vivido na vulnerabilidade e na incerteza sobre o futuro de nossas vidas, do trabalho, de nossa humanidade e de nossa mãe Terra.
Quem sabe, o espírito natalino talvez nos ajude a encontrar uma outra maneira de superar o confinamento, menos arriscada e mais enriquecedora. Se estamos confinados por fora, busquemos nos des-confinar por dentro. Se somos vazios por dentro, seremos vulneráveis a tudo; diferentes “vírus” poderão nos contaminar. O consumismo, a competição, a política do “pão e circo”... confinaram o Natal e deixaram nossos interiores muito fechados e vazios. Há muito tempo que celebramos o Natal sem “alma”.
O Natal, já tão desfigurado, poderia ajudar a nos enriquecer e nos comunicar por dentro, porque nossos contatos exteriores estão muito limitados; seria uma ocasião privilegiada para recuperarmos o sentido de um natal autenticamente humano e cristão. É preciso “des-confinar” o Natal!
Nesse sentido, e apesar de tudo, Natal pode ser um momento de aprendizagem vital. Crescemos em consciência que o confinamento imposto pela situação pandêmica é movido pelo amor, respeito, responsabilidade, solidariedade, empatia e cuidado de nós mesmos e dos outros.
Inspirados nos “pastores que vão a Belém”, poderemos sair do confinamento tão plenificados por dentro que seremos capazes de suportar essa dolorosa falta de contatos exteriores, tão encantadores e tão necessários.
“Vamos a Belém”, disseram entre si os pastores, cheios de ânimo e surpresos. É de noite e estão ao relento. De imediato a escuridão se ilumina, irrompe a voz dos anjos, que é o divino no coração da vida. “Não tenhais medo. Hoje, na cidade de Davi nasceu para vós um Salvador”. E para lá se dirigiram.
Os pastores nos indicam em que direção buscar o mistério do Natal: “Vamos a Belém”.
Vamos a Belém com os pastores, e entremos com eles na gruta. Eles nos convidam e nos conduzem. Vamos levando o presente de nossa pobreza e de nossos limites humanos; vamos sem medo de não nos sentirmos dignos, carregando em nossas pobres mãos a situação de dor em que se encontra a humanidade inteira.
Para o cristão, celebrar o Natal é “voltar a Belém”.
Não um Belém com reis magos, camelos e dromedários, carregados de tesouros, com pastores ingênuos e cenas costumeiras, neve de algodão e paisagens de serragem, musgo verde, árvores, fogueiras e luzes intermitentes de cores variadas, músicas natalinas, a estrela cravada no céu, vigiando a gruta, com José, Maria e Jesus, o boi e o burrinho... Uma repetição para todos, sem questionamento, sem mensagem; natal doce, regado a comidas e bebidas. Este tipo de “belém” não inquieta, nem incomoda, nem convida à reflexão e oração: apresenta um Natal “normótico”.
O primeiro Belém não foi assim. Foi um acontecimento que gritava, e continua gritando aos quatro ventos, que a situação não podia continuar como estava e como está hoje. Aquele Belém levantou a esperança dos pobres, pôs as periferias em efervescência, abriu um novo horizonte de sentido para toda a humanidade.
Deus não fixou morada entre as muralhas e palácios de Jerusalém, mas em uma aldeia insignificante, berço do rei Davi. Deus “tem um fraco” por aqueles que não são contados: uma aldeia pequena será o lugar eleito. O que ali aconteceu foi como um relâmpago na obscuridade da noite da história...
Não podemos deixar que “nos roubem o verdadeiro Natal”!
“Vamos a Belém”. Mas, a quê Belém? Ao antigo Belém da Judéia? Ou ao Belém das ficções e das crenças? Vamos, antes, aos “beléns” – são tantos – de terra e de carne que povoam a Terra.
Também o Belém histórico, do qual falam os evangelhos, aquele que deu nome a tantos outros lugares, é uma imagem do verdadeiro Belém que ainda não é realidade. Os Evangelhos falam de Belém em termos proféticos, antes que históricos, e a profecia continua sem se cumprir: Belém continua sendo uma localidade submetida na Cisjordânia palestina, ocupada por Israel. Belém rodeada, isolada por um muro inumano, muro de cimento e de soldados que restringem a liberdade de entrada e de saída de seus habitantes.
Belém é toda a geografia do planeta em sua diversidade e contradições, com seus dramas mais terríveis e com seus sonhos mais belos. É figura de todos os “beléns”: imagem de todas as injustiças e feridas do mundo; ao mesmo tempo, imagem de outro mundo que devemos engendrar, imagem da força do pequeno e do simples, da bondade mais forte, da fé na vida e na humanidade, apesar de tudo.
Não é à toa que Belém significa “cidade do pão”, do pão que falta para tantos, de tanto pão que é desperdiçado, pão da alegria dos comensais, da felicidade, da bondade e da partilha...
Belém é o nome dessa cidade futura de todos os homens e mulheres, de todos os viventes.
Esse é o Belém da noite de Natal. Os Evangelhos não são crônicas daquilo que alguma vez aconteceu no campo dos pastores, nos aforas de Belém da Judéia. São muito mais profecia daquilo que devemos fazer com que aconteça: que haja “teto, terra e trabalho” para todos. Como os poemas e as profecias, os evangelhos foram escritos para mover o coração a liberar a esperança, a alimentar a liberdade, sempre tão ameaçadas. Não foram escritos para contar o passado, mas para imaginar e suscitar o futuro.
Caminhemos, pois. Diante do Belém de nossa casa, queremos inclinar-nos diante do menino Jesus – profecia da humanidade – como Maria e José. E voltar a sonhar, e que o sonho nos impulsione a construir o Belém de um futuro muito melhor para todos.
Em Belém seremos pacificados de nossas ansiedades de fazer mais e de ter mais, de nossas aspirações de poder e vaidade, de nossas pressas e de nossos estresses; se permanecermos em silêncio ali, diante do menino deitado no presépio, brotará em nós um desejo profundo de sermos mais humanos, de sermos aquilo que já somos e que se faz visível no rosto aberto daquela criança; ao mesmo tempo, brotará um desejo de venerar cada ser humano, de contemplá-lo em seu interior, esse lugar ainda não profanado em cada pessoa, o lugar de sua infância e de sua inocência.
Há muito que ver em Belém, mas nem todos os olhares poderão acolher o que ali acontece. Há olhares opacos que não se alegrarão, olhares desconfiados que não o entenderão, olhares frios que não vibrarão com a novidade da gruta... Somente os olhares dos pobres e pequenos se admirarão, e a paz do coração será sua recompensa.
“Ver de novo”, ver outras coisas diferentes daquilo que estamos acostumados a ver é também “nascer de novo”. É preciso despertar o “pastor interior” que há em nós, nossa capacidade de atenção à vida, de buscar com outros, de deixar-nos surpreender diante da presença despojada de Deus.
Acostumados a nos deixar impressionar pelo extraordinário e pomposo, somos incapazes de perceber como Deus vem diariamente a nós. O teólogo José Antonio Pagola nos diz que Deus não se deixa aprisionar em nossos esquemas e moldes de pensamento: “Imaginamo-Lo forte e poderoso, majestoso e onipotente, mas Ele se oferece a nós na fragilidade de um pobre menino, nascido na mais absoluta simplicidade e pobreza. Colocamo-Lo quase sempre no extraordinário, prodigioso e surpreendente, mas Ele se apresenta a nós no cotidiano, no normal e comum. Imaginamo-Lo grande e distante, e Ele se faz pequeno e próximo a nós”.
Texto bíblico: Lc 2,1-15
Na oração: com certeza, o Natal deste ano nos oferecerá a oportunidade de celebrá-lo de uma maneira mais autêntica e cristã. Isto requer uma preparação e processo interior.
- Como você está se mobilizando para celebrar este Nascimento surpreendente, que mudou a história?
Um inspirado Natal a todos!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
23.12.2020
Imagem: Bartolomé Murilo
“Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!” (Lc 1,28)
Dois olhares dirigidos a Maria podem nos ajudar hoje a considerar nossa maneira original de estar e viver em Advento: o olhar à mulher que ama e o olhar à mulher que diz “sim”.
Pois o Advento é tempo de Maria, tempo de esperança e acolhida, tempo de espera. Maria foi mãe, testemunha, seguidora..., mas sobretudo foi Mulher do “sim”, do compromisso sincero e real, Mulher de fé capaz de arriscar tudo e deixar-se conduzir por Aquele que a olhou com misericórdia.
Na Anunciação, podemos encontrar Maria numa atitude de escuta, de receptividade, de abertura, de sim. Tal atitude vai colocá-la em contato com o Anjo, com o Mensageiro, com Gabriel.
Entrando em contato com este anjo, ela vai fazer a experiência de uma alegria fontal. A primeira palavra do anjo é, em grego, “kaire te”, que quer dizer: “Alegra-te!”.
A primeira palavra pronunciada pelo anjo não é uma simples saudação convencional.
É um imperativo, um convite à alegria. Na saudação “alegra-te” ecoa o júbilo pela chegada da salvação, nas palavras de Sofonias: “Exulta, filha de Jerusalém e, de todo o coração, dá gritos de alegria!” (3,14). Convidada pessoalmente a alegrar-se, Maria é também a representante e portadora da alegria de todo o Povo de Deus pela vinda do Salvador, anunciada pelos profetas.
Maria fica admirada e surpresa, não pelo que vê, mas pelo que ouve. As palavras da saudação não são só totalmente inesperadas para ela, mas soam aos seus ouvidos como absolutamente novas, literalmente in-auditas. Por isso, “pôs-se a pensar, a refletir, a dialogar consigo mesma, perguntando-se qual seria o sentido da saudação”.
Maria não duvida da ação surpreendente de Deus e nem pede um sinal. Acolhe com fé cada uma das promessas sem pôr obstáculo algum à presença do mesmo Deus nela. Mas, porque não compreende como acontecerá tudo isso nela, pergunta: “Como vai ser isso se eu não conheço homem algum?”
O mesmo Espírito que, no princípio da Criação, pairava sobre as águas, e que havia sido prometido para o futuro como descendo do alto, repousa agora em Maria. E ela se deixa envolver pela “sombra” do Espírito
A expressão “cobrir com sua sombra” significa, originalmente, não uma presença estática, mas a presença ativa e eficaz de Deus no meio do seu povo.
A presença divina, a “glória do Senhor” que repousou sobre a Tenda no deserto e mais tarde sobre o Santo dos Santos no Templo de Jerusalém, vai repousar agora sobre o santuário vivo que é o corpo da virgem de Nazaré, cumprindo as promessas da salvação e inaugurando a Nova Criação.
Os Antigos viam nesta experiência da “sombra” aquilo que dá nascimento à Luz. Neste sentido, Maria é o símbolo de toda a terra, de todo o universo, que acolhe em sua sombra, em seus limites, a semente da Luz.
Maria encerra o diálogo autodenominando-se “a serva do Senhor”. A palavra serva descreve um estado de entrega, um estado de confiança na presença mesma d’Aquele que É.
Sua resposta, embora dinamizada pela graça, é uma resposta livre na fé. O fiat de Maria é o começo da Nova Aliança de Deus com a humanidade.
O seu “sim” revela a grandeza, a beleza e a responsabilidade das decisões da liberdade humana.
A partir disso, podemos interrogar o Evangelho e ver como este estado de sim, como este estado de confiança original, se encarna na vida concreta de Maria.
Antes de mais nada, pensamos em Maria não somente como uma personagem exterior, mas como uma realidade interior, como referência inspiradora, como abertura à presença d’Aquele que vive e é gerado nela, minuto a minuto. E o caminho de Maria na história pode ajudar-nos a compreender nosso próprio caminho; pode ajudar-nos, sobretudo, a compreender a que ponto nós estamos entulhados de memória mórbida, a que ponto é difícil para nós dizer sim e viver uma entrega confiante.
Charles Peguy dizia que “Maria é mais jovem que o pecado”. Isto quer dizer que existe em todos nós uma dimensão mais jovem e mais profunda, não contaminada pelo ego: trata-se da beatitude original.
Falamos demais sobre o pecado original e muito pouco sobre a bem-aventurança original. Assim, os Antigos viam em Maria um arquétipo da bem-aventurança original, ou seja, a relação de intimidade com a Fonte do seu ser original, que é o próprio Deus.
Com Maria é preciso entrar em contato com a nossa confiança original, mais profunda que nossos medos e nossas resistências. É preciso entrar em contato com esta dimensão marcada pelo silêncio, com esta sombra na qual a Luz vai ser gerada. É preciso nos deixar conduzir pelo Sopro da Vida, para viver mais intensamente e gerar vida ao nosso redor.
Existe em nós uma realidade mais profunda, inocente, fonte de toda inspiração, desejo, criatividade... Podemos dizer que em nós habita uma “Maria”, que, em meio ao nosso caos interior (feridas, sentimentos negativos, traumas...) des-vela o que em nós é imaculado, puro, capaz de entrar em sintonia com a presença angelical e dizer “sim”, na confiança radical. Maria é a nossa verdadeira natureza, é a nossa verdadeira inocência, aberta à presença do divino. Infelizmente, a cultura da superficialidade na qual vivemos, nos seduz e nos faz perder o caminho que dá acesso ao que é mais “cheio de Graça” em nosso eu profundo.
Maria é o estado de confiança original. Precisamos, também nós, encontrar esta confiança original.
Certamente cada um de nós já teve a oportunidade de fazer a experiência deste estado: quando brota em nós um sentimento oceânico de alegria, plenitude, consolação..., quando sentimos o impulso para sair de nós mesmos e viver uma presença solidária, quando a gratidão ilumina nossa vida, quando não nos deixa-mos determinar pelo rigorismo, perfeccionismo e moralismo..., quando alimentamos a confiança n’Aquele que É, quando nós dizemos sim aos Mensageiros angelicais que nos envolvem...
À palavra-ação de Deus corresponde a palavra-ação de Maria. O anjo permanece na presença dela até que ela diz a última palavra.
O “sim” de Maria, seu modo livre de consentir, abre as portas à humildade compassiva de Deus. Nela, Deus se humaniza, se faz “carne” e assume toda a condição humana, iluminando-a e divinizando-a.
Deus pede o consentimento a uma jovem aldeã para acontecer em seu seio a humanização do Filho divino.
Dizer “sim” significou, para ela, embarcar-se em uma aventura cujo fim não se adivinhava, significou romper o projeto de sua vida pessoal que tinha, como qualquer jovem de sua idade.
E Maria não pediu tempo para assegurar-se fazendo uma consulta familiar; quando sentiu que era vontade de Deus, pronunciou um “sim” definitivo, através do qual o Filho de Deus se fez “vizinho” da humanidade, em Nazaré. Assim, nas pontas dos pés, através do seio de uma jovem humilde, Deus entrou na história humana.
Para o Antigos padres da Igreja, Maria é o sim original. E este sim é mais profundo que todos os nossos nãos. É preciso também reencontrar em nós mesmos aquilo que diz sim à vida, quaisquer que sejam as formas que esta vida tomar. Não é fácil reencontrar este sim. Na maior parte do tempo estamos na desconfiança, na dúvida, no temor... Isto quer dizer que temos muitas memórias doentias que alimentam medo, que nos fazem resistir àquilo que a Vida nos propõe para viver.
Devemos, então, passar por um estado de silêncio de nossas memórias, de silêncio de nossa mente, para encontrar esta confiança original. Esta atitude é a da “inocência original”.
Texto bíblico: Lc 1,26-38
Na oração: O primeiro “sim” que recebemos e, às vezes, o último que descobrimos, acontece em nosso nascimento. É o “sim” primeiro de Deus à nossa vida, a afirmação profunda que nos faz existir; neste “sim” de puro amor, respiramos e somos.
O segundo “sim” é aquele que nos faz mais parecidos a Deus. É o sim oblativo, aberto, que prolonga o “sim” de Maria e que se revela no deslocamento junto aos outros para afirmar suas vidas, cuidando e ativando suas potencialidades. É o sim que Isabel deu a Maria quando esta foi a visitá-la. Está feito de reconhecimento, respeito e alegria pelo trabalho secreto de Deus em cada um(a): “Bendita(o) és tu”.
- Revisitar os “sins” que fizeram diferença na sua vida, que despertaram a criatividade e a sensibilidade para com os outros, que inspiraram e trouxeram um novo dinamismo à própria existência.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.12.2020
Imagem: Henry_Ossawa_Tanner/ Anunciação
Avançamos na terceira semana do Advento! Somos convidados a alegria, depois da vigilância e do despertar... Alegria que não se confunde com a euforia, o prazer imediato ou a tênue satisfação do consumo! Uma alegria que experimentamos apesar de nossos limites, descortinando as infinitas possiblidades que carregamos em nosso ser. Atitude que não se fia na riqueza, fama, honra, beleza, força; posses exteriores que também são efêmeras, que mais cedo mais tarde acabaremos por perdê-las!
Cabe-nos, como seres humanos, descobrir a alegria de nosso verdadeiro existir e viver na perspectiva de que ser feliz (ou miserável) não depende das circunstâncias ao nosso redor, mas de como cada um de nós responde aos desafios que se nos apresentam. Viver - alegrar-se - “é afinar o instrumento, de dentro p’ra fora, de fora p’ra dentro, a toda hora, a todo momento” (Walter Franco).
E mais uma vez nos inspira João, o Batista, enviado por Deus para dar testemunho da luz. Ora, a luz não podemos percebê-la diretamente: nosso olho vê objetos porque refletem a luz que os atinge! Tudo o que vemos são reflexos da Luz, espelhos da Luz. Não vemos a luz, como não vemos nossos olhos... Vemos através da Luz, contemplamos seu refletir. Pois, não conhecemos aquela luz infinita e distante que habita as alturas, mas aquela luz terrestre e comum, que ilumina cada ser humano e cada história, luz que acaricia cada criatura sem jamais se cansar.
João é o “mártir” da luz, é um punhado de luz atirado na face do mundo, não para deslumbrar, mas para despertar as formas, as cores e a beleza das coisas, para ampliar o horizonte. Testemunha de que a pedra angular sobre a qual a história repousa não é o pecado, mas a graça, não é a lama, mas um raio de sol, que nunca desiste de transfigurar a face da terra. “Luz do sol que a folha traga e traduz...” (Caetano Veloso)
Questionado sobre sua missão e atuação, João nega privilégios, prestígios e expectativas. Diz com firmeza: “não sou a Luz, o Messias, o Profeta ou Elias”! Não se identifica com os preceitos e normas de seus contemporâneos. Sabe dizer “não” aos poderes instituídos para revelar o sim de Deus! É a voz que anuncia a Palavra. A voz que agora escutamos e se perderá no vento, traduz a Palavra, expressão verdadeira do divino amor, que é desde sempre e para sempre. A voz serve à Palavra. A Palavra procura uma voz para se manifestar! “Tua palavra na vida é suave melodia, revela toda verdade e converte a rebeldia!” Eis aqui também sua alegria: preparar o caminho do Senhor!
Aquele homem que habita o deserto, de poucas (e densas) palavras, julgado como sem mérito, é exatamente o oposto de um balão inflado, de uma peça publicitária, tão comum em nossos dias. Ele fala simplesmente sem adicionar títulos ou habilidades; desapegando-se de tudo mostra-nos, assim, o caminho para o essencial, o verdadeiro, o real. Não se é profeta por acúmulo, mas por despojamento: falo palavras que não são minhas, que vêm de antes de mim, que irão para além de mim. Eu não sou o que os outros dizem sobre mim. O que me torna humano é o divino em mim; a luz que faz refletir minha humanidade... A vida vem do Outro (de Deus), flui na minha pessoa, como a água no leito de um riacho. Não sou essa água, mas sem ela nada sou mais. Eis a nossa alegria!
A cada crente é confiada a mesma missão do Batista: anunciar não a degradação, o colapso, a podridão que nos ameaçam, mas os olhos que veem Deus caminhando entre nós, sandálias de peregrino e um coração de luz! Entre nós Ele está: não o conhecemos ou reconhecemos! Sua luz e sua presença nos tocam e atravessam. Por isso, acolhamos os conselhos do apóstolo Paulo aos Tessalonicenses: “Estejam sempre alegres! Rezem sem cessar. Em todas as ocasiões, agradeçam e expressem gratidão. Não apaguem nem esgotem o Espírito! Nem desprezem as profecias, mas a tudo examinem, guardando o que for bom, belo, justo e agradável. Afastem-se de toda espécie de maldade!” (conforme Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses 5,16-22)
Se o mundo atual mais nos parece um «deserto», a serviço da verdadeira alegria queremos estar: apontando os belos reflexos da Luz, anunciando a Palavra com esperança, convidando as pessoas para mergulhar na fonte da misericórdia e do perdão, revelando algo que experimentamos de Deus e Seu amor, algo sabe sobre a «fonte» e de como se acalma a sede de felicidade que há no ser humano. A vida está cheia destas testemunhas, talvez pequenas a nossos olhos, mas certamente enviadas por Deus. São crentes simples e humildes, pessoas muito boas, vivem da verdade, do amor e da alegria. Eles “nos abrem o caminho para Deus”, apontam-nos a Luz que já está entre nós. Que, em breve, possamos ouvir de Jesus: “vocês são a luz do mundo.” Amém
Pe. Paulo Roberto Rodrigues
Festa de Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira da América
12.12.2020
“Quem és, afinal? Temos que levar uma resposta para aqueles que nos enviaram. O que dizes de ti mesmo? (Jo 1,22)
Vivemos um tempo de múltiplas imagens e estímulos, de novas versões e mudanças radicais, de diversidade de comunidades, religiões e línguas, de quebras de paradigmas em todos os campos da humanidade, de profundas transformações sociais, de rompimento de fronteiras... Este contexto de pluralidade faz com que todos se perguntem sobre sua identidade: “quem sou eu? quem somos nós?”
O ser humano está sempre em busca de sua identidade; não lhe basta existir, ele quer saber quem é, para se compreender e encontrar o sentido de sua própria existência.
Como cristãos que somos, não estamos protegidos dos ventos do momento em que vivemos; quem não se define, morre. Por isso, somos desafiados a falar de nossa identidade e adentrar-nos nas profundezas da nossa vida, para apresentar, num contexto global e totalmente mudado, qual é o nosso “rosto” hoje.
Frente às nossas falsas imagens e mentiras, frente às mascaras que nos escondem, frente às convenções sem alma, frente aos silêncios cúmplices, frente à impossível busca da perfeição, frente à negação das nossas próprias capacidades..., o tempo do Advento nos inspira a despojar-nos de capas ridículas que nos cobrem, para deixar aflorar nossa verdade desnuda, nosso “eu original”. É preciso atrever-nos a ser nós mesmos, a partir do mais interior e nobre. Há um grito que se eleva das profundezas existenciais: Viva!
O evangelho deste domingo (3o Dom Advento) quer ser um convite a “desvelar nossa identidade”, descobrindo o que é mais original em nós, lançando-nos a superar aquilo que talvez nos impeça manifestar o que somos e expressar aos outros a riqueza que trazemos dentro de nós...
Sabemos que o ser humano age de acordo com a visão que tem de si mesmo. A percepção íntima da própria identidade é o supremo motivo e explicação das opções e mudanças importantes na vida pessoal.
João Batista tem consciência de sua identidade profunda e por isso proclama: “eu sou a voz que grita no deserto”. Ao mesmo tempo, deixa transparecer uma íntima sintonia entre sua identidade e sua missão; ou melhor, sua identidade se visibiliza na missão de “aplainar o caminho do Senhor”.
Minha identidade determina o meu comportamento. “O que eu sou determina o que eu faço”. O “quem sou eu?” é a base do “que faço eu?” Todo ser age de acordo com sua própria auto-imagem.
O agir se segue ao ser. Assim, conhecendo a mim mesmo acabo conhecendo o segredo de minhas ações e, fazendo emergir o que é mais nobre em mim, posso dirigir o curso dos meus atos, tornando-os mais oblativos e descentrados.
“Eu sou as minhas ações”, porque o que “eu sou” é o que positiva e visivelmente aparece em minhas ações. Quanto mais sou eu mesmo mais amplo é o alcance de minhas atitudes e mais transcendente o sentido de minhas opções.
Portanto, da identidade, assumida e vivida, é que brota a missão.
A identidade faz parte da missão, está em função dela, a inspira, a anima e é por ela configurada.
Com isso fica claro que a Identidade e Missão são inseparáveis, assim como a unidade insuperável entre ser e agir. Não é suficiente continuar adiante com a missão se não o fazemos como João Batista: abrasado com o amor de Deus, deixa transparecer sua verdadeira identidade na missão de ser o “precursor” do Messias.
Ter uma missão sem uma identidade que a inspire é cair no ativismo, na tarefismo, na ação insensata, ou seja, sem sentido, sem motivação e sem horizonte (para quê? para quem?).
Por outro lado, uma identidade que não se expressa na missão é vazia, é carente de humanidade e se fecha num intimismo alienante. Portanto, a identidade já é missão e a missão é revelação da identidade.
A identidade nos dá um rosto, centra-se tanto no ser como no fazer.
Toda pessoa é um mistério para si mesma e para os outros. E quanto mais rica for sua vida, mais profundo o mistério. Mas é no coração que está a fonte, a origem e o mistério do ser humano.
O coração é a expressão da pessoa em sua interioridade e totalidade.
É no coração que se origina a necessidade de comunicação, de relacionamento e de comunhão.
É preciso ter a coragem de mergulhar até o mais profundo de si mesmo, em busca dessa luz infinita que emerge de dentro, quando se tira tudo o que é máscara e revestimento. O “eu original” é livre, criativo, transparente, iluminado... Ele escolhe os melhores caminhos que levam à plena realização de si e à transcendência.
Se a maneira pela qual nos conhecemos determina a maneira pela qual nos comportamos, quanto mais nós nos conhecemos e a tudo o que existe dentro de nós, melhor poderemos orientar nossa vida e dirigir conscientemente nossas opções.
Somos ainda, em grande parte, uma “terra desconhecida” para nós mesmos, e a viagem de descoberta é como a viagem imaginária a uma nova terra, estranha e bela, que desperta assombro frente aos seus encantos e à novidade de suas mil maravilhas. Perceberemos, depois, com surpresa e alegria, que a bela terra nova a que chegamos sem saber é nosso próprio país natal esquecido, subestimado e abandonado. A redescoberta de nós mesmos é a maior e sem dúvida a mais gratificante aventura de nossa vida.
Redescobrindo a nós mesmos, vamos encontrar o nosso lugar na história. Quanto melhor conhecemos o nosso verdadeiro ser, melhor será o valor de nossa vida para os outros.
De onde minha identidade ganha seus contornos originais? No mistério da alteridade, no encontro com o outro que me provoca a ser. A alteridade está no centro da construção da identidade, porque esta não se acha totalmente dada (como a existência), mas está para ser construída.
A identidade de João Batista é realçada pela alteridade do Messias que “está no meio de vós...; e eu não mereço desamarrar a correia de suas sandálias”.
A alteridade é fator constitutivo da identidade. O outro não é o inimigo, o intruso, mas facilitador de minha identidade. O outro é exatamente aquele que, justo por sua alteridade, chama-me, convoca-me e assim me faz sair do enclausuramento em mim mesmo. Aqui se revela o dinamismo mobilizador presente no próprio nome
Cada um de nós tem um nome, que é próprio, não comum. É de uma pessoa. Ele expressa o nosso ser, indica uma missão a realizar, uma vocação, um apelo a responder.. Somos chamados. É isso que significa ter um nome. É preciso crescer na consciência de que o próprio nome tem uma história e manifesta uma identidade única, irrepetível, original. O nome próprio está relacionado com nossa realidade pessoal, responsável, criativa e livre.
Na Bíblia, o nome é algo dinâmico, é um programa. A troca de nome implica uma missão que deve ser realizada pela pessoa (Gen, 17,5; Jo. 1,42).
Um nome novo: uma aventura que começa; uma história a ser construída. Nosso nome secreto Deus o conhece. Ter recebido um nome de Deus significa tomar um lugar na história, uma missão a cumprir.
Texto bíblico: Jo 1,6-8.19.28
Na oração: Diante da presença de Deus, procure estar aberto ao contato com a própria realidade interior, para que venha à superfície aquilo que o sustenta e dignifica o seu viver.
- Dirija seu olhar para o que é mais íntimo em você, onde nascem sentimentos e valores, desejos e atitudes... onde você é convidado a se alegrar com os rastros da Graça.
- Qual é a verdade original presente no seu nome?
- Quê você acredita ser o mais autêntico em sua maneira de ser e viver?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.12.2020
imagem: pexels.com/andrea-piacquadio
Neste segundo domingo do Advento (6.12.2020), duas vozes falam da vinda de Deus: Isaías e João! Vozes despertas para animar o povo peregrino: o Senhor vem com o poder da ternura, traz no peito os cordeirinhos e conduz mansamente as ovelhas-mães... Ternura de Deus, poder possível a cada ser humano. Os dois profetas usam o mesmo verbo, num eterno presente: Deus vem, viajante dos séculos e dos corações, vem como semente que se torna árvore, como fermento que faz crescer a massa, como perfume de vida para a vida. Há quem saiba ver os céus refletidos numa gota de orvalho, o profeta vê o caminho de Deus no pó dos nossos caminhos.
Deus aproxima-se no tempo e no espaço, dentro das coisas de todos os dias, à porta da sua casa, a cada nosso despertar. Mas, há muitas pessoas que já não conseguem acreditar em Deus: não porquê o rejeitem. É que não sabem que caminho seguir para encontrar-se com Ele. E, no entanto, Deus não está longe. Está presente (escondido) no interior da vida! Deus segue os nossos passos, muitas vezes errados ou desesperados, com amor respeitoso e discreto. Como perceber a sua presença?
Marcos recorda-nos o convite do profeta em meio ao deserto: «Preparai o caminho ao Senhor, endireitai as suas veredas». Onde e como abrir caminhos a Deus nas nossas vidas? Não devemos pensar em avenidas ou vias expressas por onde chegue um deus espetacular. Deus vem na contramão, lembra-nos Dom Helder! Ele se aproxima da gente procurando as frestas, as brechas, que as pessoas mantêm abertas ao verdadeiro, ao bem, ao belo, ao humano. São esses resquícios da vida que temos de acolher para abrir caminhos a Deus.
Para alguns, a vida tornou-se um labirinto. Ocupados em mil coisas, movem-se e agitam-se sem cessar, mas não sabem de onde vêm nem para onde vão. Abre-se neles uma fresta para Deus quando param para se encontrar com o melhor de si mesmos.
Há quem viva uma vida «descafeinada», plana, superficial e imediata em que a única coisa importante é estar entretida, ocupada. Só poderão vislumbrar Deus se começam a atender ao mistério que bate no fundo da vida.
Outros vivem submersos na «espuma das aparências». Só se preocupam com a sua imagem, do aparente e externo. Estarão mais perto de Deus se procurarem com simplicidade a verdade.
Quem vive fragmentado em mil pedaços pelo ruído, pela retórica, ambições ou pressa, darão passos em direção a Deus se se esforçarem por encontrar um fio condutor que humanize as suas vidas.
Muitos irão encontrar-se com Deus se souberem passar de uma atitude defensiva perante o divino para uma postura de acolhimento; do tom arrogante à oração humilde; do medo ao amor; da autocondenação ao acolhimento do Seu perdão. E todos nós daremos mais espaço para Deus nas nossas vidas se O procurarmos com um coração simples em meio aos simples e marginalizados.
No princípio, o Evangelho de Jesus! Pode-se começar de novo, mesmo quando a vida está imobilizada, pode-se partir novamente e abrir futuros. Início de uma bela notícia... daqui, só a partir de uma boa notícia se pode recomeçar a viver, a projetar, a apertar laços, e nunca partindo da amargura, dos erros, do mal que assedia. E se alguma coisa de mau ou doloroso nos aconteceu, o perdão torna-se boa notícia, que lava os recônditos mais obscuros do coração.
No princípio, uma bela notícia que é Jesus! Ele, mãos implicadas na densidade da vida, narrativa da ternura de Deus, anúncio de que é possível, para todos, viver melhor, e que a chave está no Evangelho! O bom futuro é Deus cada vez mais próximo, próximo como a respiração, próximo como o coração, perfume de vida.
O mundo está hoje mais próximo de Deus do que ontem. Como se comprova pelo crescimento da consciência mesmo em meio a ignorância, do anseio da liberdade mesmo em face de novas escravaturas, o florir do feminino frente a tanto feminicídio, o respeito mesmo em meio ao preconceito, o cuidado pelas pessoas com deficiência apesar da mentalidadede exclusão, o amor à casa comum apesar do desperdício...
A boa-bela notícia é a nossa história está grávida de futuro bom para o mundo todo, porque Deus está cada vez mais próximo, próximo como um abraço. E perfuma de vida a vida de cada um de nós. Amém.
(Pe. Paulo Roberto Rodrigues, 06.12.2020 - no segundo domingo do advento)
(adaptação de um texto de José Antônio Pagola e Ermes Ronchi)
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“Começo da boa notícia de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1)
Ao longo deste novo ano litúrgico, nós cristãos seremos inspirados pelo evangelista Marcos a viver, de modo sempre criativo e novo, o seguimento de Jesus. Seu Evangelho dá a arrancada inicial com este título: “Começo da boa notícia de Jesus...” Estas palavras nos permitem vislumbrar o que encontraremos em todo o relato de Marcos. O “começo” é um título que abrange e orienta tudo: o livro inteiro de Marcos deve ser ouvido como “boa notícia” sobre Jesus Cristo; boa notícia que desconcerta, que alimenta esperança e que abre um novo sentido para a nossa existência.
Com Jesus “começa algo novo”. É a primeira coisa que Marcos quer deixar clara. Todo o anterior pertence ao passado. Jesus é o começo de um caminho novo e de um tempo inconfundível. No relato, Jesus dirá que “o tempo se cumpriu”. Com Ele chega a boa notícia de Deus.
Isto é o que experimentaram os primeiros cristãos. Quem se encontra vitalmente com Jesus e mergulha um pouco em Seu mistério sabe que começa uma vida nova, algo que nunca havia experimentado anteriormente. Uma sensação de libertação, alegria, segurança e desaparecimento dos medos. Em Jesus, ele se encontra com “a salvação de Deus”.
Causa-nos assombro este início tão solene do evangelho de Marcos, que formula um apelo concreto, como se fosse a condição única para continuar com a leitura: “preparai o caminho do Senhor, aplainai suas veredas”. Esta Palavra, sempre oportuna, nos é presenteada neste tempo de Advento e nos recorda que, para acolher o Senhor, é preciso sair dos lugares estreitos, das posições fechadas, das ideias fixas..., e “fazer estrada” com o Deus Peregrino. Aqui está a verdadeira identidade dos seguidores de Jesus: os “adeptos do caminho” At 9,2 – assim eram conhecidos os primeiros cristãos.
O(a) seguidor(a) de Jesus é aquele(a) que descobre que não pode deixar de caminhar. Seguro(a) daquilo que lhe falta, percebe que cada lugar por onde passa é ainda provisório e que a demanda continua. E esse impulso interior, que é o seu desejo, o(a) faz ir além, atravessar fronteiras e “perder” seus lugares que davam a sensação de segurança. “O místico não habita em parte alguma, ele é habitado” (Michel de Certeau).
“Fazer caminho” não significa apenas deslocamento geográfico. As travessias nunca são apenas exteriores. Não é simplesmente na cartografia do mundo que o ser humano anda. Isso significa não perceber a profundeza do seu ser; “deslocar-se”, querendo ou não, implica uma mudança de posição, uma expansão do próprio olhar, uma abertura ao novo, uma alteração do ângulo habitual, uma adaptação a realidades, tempos e linguagens, um encontro com o diferente, um diálogo tenso ou deslumbrado, que deixa necessariamente impressões muito profundas.
A experiência do caminho é a experiência de fronteira e do espaço aberto que o ser humano precisa para ser ele próprio. Nesse sentido, a viagem é uma etapa fundamental da descoberta e da construção de si mesmo e do mundo. É a sua “alma” que perambula, descobre cada detalhe do mundo e olha tudo de novo como da primeira vez. A travessia é uma espécie de propulsor desse olhar novo e contemplativo. Por isso, é capaz de introduzir na sua vida e nos seus planos, na sua organização, elementos sempre inéditos que podem facilitar aquela transformação radical que, em vocabulário cristão, chamamos “conversão”.
A conversão supõe movimento e implica itinerância, capacidade para sair do espaço conhecido e atrever-se a pisar onde ainda não há confirmação de solo seguro. Conversão e movimento, porque o imperativo está no plural - “preparai!” -, convidando-nos a encontrar com outros para realizar a missão à qual somos enviados; assim, nos convertemos em rastreadores da melhor senda, aquela que possibilita o cruzamento com outros caminhos, o encontro e o diálogo.
Estamos decididos a percorrer os caminhos novos que a novidade de Deus nos apresenta?
Ou nos entrincheiramos em estruturas caducas que perderam a capacidade de resposta?
Caminhar é sair do centro, das seguranças, da acomodação... e ir em busca das surpresas, das novas descobertas; implica arriscar, ter ousadia, não ter medo de fazer a travessia para o outro lado. Somos passageiros, um Caminho aberto à vida de Deus que permanece, caminho que anuncia e prepara a Vida. Por isso precisamos, mais do que nunca, da figura do profeta; autênticos profetas que, sem medo e partindo de sua experiência de Deus, nos ajudem a encontrar o verdadeiro caminho; pessoas que por sua dedicação e experiência pessoal possam lançar alguma luz nesse emaranhado de caminhos que se entrecruzam e que a imensa maioria são sendas perdidas que não levam a lugar nenhum.
A humanidade deveria ser caminho de vida, jamais caminho de morte. Caminhantes somos, todos no mesmo percurso, no mesmo vôo, no mesmo barco.
Mas temos esquecido nossa condição de nômades do tempo e da vida, peregrinos de Deus, pensando que podemos construir, com a ajuda do mesmo Deus, uma casa permanente sobre o mundo, um “tabernáculo” perpétuo onde repousar, seja na forma “sacral” (nossas seguranças religiosas), seja na forma secular (nossos sistemas econômicos-sociais). Mas, as condições dos tempos e, de um modo especial, a experiência mesma do evangelho, nos fizeram descobrir que somos nômades do tempo e peregrinos de Deus, para além de todas as formas e estruturas que fomos criando ao longo da história.
Ser nômade do tempo significa caminhar (voar, navegar), leves de equipagem e por itinerários que ainda não foram percorridos por ninguém, não como aves migratórias que vão e voltam por rotas pré-fixadas na mesma evolução do tempo, pelas estações e pelos ventos da terra. Somente nós, seres humanos, somos verdadeiros nômades da criação, pois para continuar existindo precisamos abrir, por terra, mar e ar (ou seja, por nós mesmos, no interior de nossa humanidade), os caminhos que ainda não existem, pois nós mesmos os traçamos.
Caminhantes somos, e assim o tempo do Advento nos leva para fora dos pequenos lugares de refúgio que fomos edificando (nossas torres de Babel) para amar, viver e morrer no descampado, como Jesus, enquanto buscamos e esperamos a cidade futura. Assim, caminhamos com Ele, sabendo que nem o olho viu e nem o ouvido ouviu o que poderemos olhar e escutar se continuamos caminhando com Jesus.
Neste Advento, não somos simples espectadores, mas, sim, criadores de futuro, ou seja, de nós mesmos, em Deus. Unidos por uma esperança compartilhada, queremos ser pessoas de Advento, sabendo que nossa história não está escrita nem fixada ainda, mas que nós mesmos vamos traçando-a, enquanto Deus percorre seu caminho em nós e por nós. Como cristãos cremos que nossa vida não está escrita, mas que precisamos escrevê-la, nós em Deus e com Deus. Por isso “somos advento”; vivemos em “estado de advento”.
Texto bíblico: Mc 1,1-8
Na oração: - Orar é entrar na Tenda do Senhor, que é o próprio coração: peregrinação interior, mobilidade...
- Deus “passa” e nos coloca em movimento; a oração é “fazer estrada com Deus”, caminhar na mesma direção, entrar no ritmo d’Ele, deixando-nos “ser conduzidos”.
- Para onde você sente que Deus vai lhe conduzindo? Há alguma coisa que o aprisiona?
- Recordar medos, entraves, obstáculos... que limitam sua vida interior, impedindo-o(a) fazer-se peregrino(a)
- Quê eventos inesperados no caminho transformaram sua vida? O quê realmente causou impacto? Era algo planejado? Em quê aspectos da vida você pode “sair” dos terrenos conhecidos? Você já se arriscou alguma vez?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
03.12.2020
Imagem: pexels.com
“Ficai atentos, porque não sabeis quando chegará o momento” (Mc 13,33)
Com o Advento, iniciamos mais um novo “tempo litúrgico”. Qual o sentido dos tempos litúrgicos?
Podemos representá-los graficamente, visualizando um círculo onde começamos com o Advento, percorremos os “tempos” da vida de Jesus, com suas celebrações mais importantes, e o “tempo comum”, que culmina com a festa de Cristo Rei.
Acaso não é assim o grande círculo da vida? Tempos para gestar a vida, para trazê-la à luz, para alimentá-la e cuidá-la, “tempos comuns” para descobrir a inspiração do viver cotidiano, buscando o sentido de tudo o que fazemos e o que acontece ao nosso redor; às vezes, estes tempos são áridos e cinzentos, outras vezes, iluminantes e coloridos; tempos com a marca da solidão e da perda e tempos de primavera em que a vida brota de novo... Podemos dizer que nós, como num espelho, nos vemos no tempo litúrgico, para compreender e inspirar nossa vida a partir de “Jesus” e da “comunidade cristã”.
Vivemos hoje tempos conturbados, tensos...; partilhamos um momento de grande inquietação social, de aridez espiritual, de drama sanitário, de distúrbios existenciais, de profundos dilemas morais...
No entanto, resistimos! Em meio às sombras, perplexidades, contradições, provocações e promessas, que constituem o atual momento histórico, queremos expressar a fé no futuro da nossa vida.
Ainda que soframos ventos contrários e as nuvens se adensem no horizonte, sabemos e confessamos com o profeta Jeremias, e pela graça do Espírito, que “há esperança de um futuro” (31,17).
Para cada momento histórico sempre foi válido o alerta de Guimarães Rosa: “Viver é muito perigoso”. A liturgia deste primeiro domingo de Advento se atreve a proclamar de novo sua esperança, como uma grande trombeta, que não chama para a morte, mas para a vida.
A esperança é um princípio vital, expresso na sábia constatação de que “enquanto há vida, há esperança”. Mesmo diante de desafios quase intransponíveis, consideramos possível ser de outro modo, inventamos e reinventamos opções, criamos novas saídas... e, sem cessar, sonhamos com o “mais” e o “melhor”. A esperança cristã destrói os “germes de resignação” da sociedade moderna e combate a “atrofia espiritual” dos satisfeitos. Por isso, a esperança cristã tem os pés plantados no “hoje” da nossa história, inspirando o esforço de transformação deste mundo marcado por muitos sinais de morte.
É ela que introduz na sociedade a sede de justiça e o compromisso de humanização.
Aquele que vive com esperança se sente impulsionado a fazer o que espera.
Nesse sentido, o futuro esperado se converte em projeto de ação e compromisso.
Ao adentrarmos, mais uma vez, no tempo do Advento, sentimos ressoar, no mais íntimo, a voz do Mestre da Galiléia, que nos convida a estar vigilantes e atentos, a viver despertos...
E temos muitas frentes abertas: superar o medo que nos paralisa, renovar a esperança no sentido da vida, avançar com a comunidade para uma nova Igreja em saída, ser as mãos de Jesus no mundo para curar, consolar, repartir o pão... Tempo para despertar e cuidar da “casa” que foi confiada à nossa responsabilidade.
A “vigilância”, de que fala o evangelho, é o outro nome para a atitude de “atenção”.
Para Simone Weil “a atenção é uma prece”, pois ela nos mobiliza para uma aliança com o “hoje” da vida; se não formos prudentes e generosos para manter os olhos bem abertos sobre o presente, perderemos a possibilidade do encontro com o surpreendente. Viver tem a marca da simplicidade, que precisamos redescobrir, despojando-nos de todas as cataratas existenciais que bloqueiam a visão, para deixar-nos conduzir pelo fluir contemplativo. Estamos muitas vezes alienados da vida, separados dela por uma muralha de discursos, de ideias vazias, de esperanças confusas... Com o olhar contemplativo, podemos perfurar esse muro e deixar-nos impactar pelo novo que se revela do outro lado.
Somos seres “desejantes”. O instigante tempo do Advento ativa em nós os desejos mais nobres e oblativos, nos fazem ultrapassar a barreira do imediato e entrar no movimento que nos impulsiona a ir além, a entrar em sintonia com Aquele que vem e, ao mesmo tempo, já está presente. Desejar o encontro com “Aquele que vem” nos sensibiliza a perceber presente “Aquele que é”.
Por isso, o evangelho de hoje nos apresenta uma imagem sugestiva, que reúne no desejo duas atitudes importantes: o tempo da espera e o permanecer em vigília, ambas vivido no “estar despertos”.
A espera e a vigília da vinda plena do Senhor não nos afastam da realidade presente. Pelo contrário, faz-nos encarnar mais lucidamente nela. Nesse novo tempo litúrgico, a comunidade cristã permanece à escuta dos passos de Deus, em nosso mundo, em nossa vida. Porque o novo, não vem de fora, mas o sentimos e o tocamos por dentro.
Aquele que espera o encontro com o Senhor começa a ler a história como história redentora; descobre os momentos de inovação; é capaz de ver as libertações sendo gestadas no silêncio; conecta com as promessas ainda abertas e pendentes: a nova aliança, o novo povo, o novo êxodo, o Messias...
A atitude de vigília nos faz descobrir os sinais da chegada do Reino no tempo: não nos contentamos com o tempo vazio, “normótico” e sempre igual a si mesmo; descobrimos o tempo de salvação no qual há revelação e realização do novo, da justiça e da graça.
Os “esperantes” cristãos precisam aprender a “ressignificar” o tempo, pois o tempo de Deus e do Reino é o tempo da decisão em favor da vida (kairós). O reino tem seu tempo e seu ritmo. Não é questão de pressas, não é questão de datas e lugares, não é questão de cálculos. Tentar acelerar sua vinda seria como esticar o talo da planta para que cresça mais rápido. O importante é ter a paciência de quem sabe que a semente do Reino está semeada em nossa história e ninguém poderá deter seu desenvolvimento.
Nesta tremenda e instigante história, da qual fazemos parte, precisamos nos situar bem. Não só com a cabeça, pois aí já temos as coisas mais ou menos claras, mas com nossa sensibilidade, com compaixão, com nossos modos de falar e de olhar, com aquilo que deixamos que toque e afete às nossas vidas. Trata-se da sabedoria de “sentir o tempo”.
Diante do tempo dramático que vivemos, nossa tentação é querer saltá-lo, fugindo de suas exigências.
Advento vem ser, então, um tempo para voltarmos para o interior em meio à agitação, olhar para dentro e deixar-nos perguntar: presto atenção à história que todos vivemos, às suas dores e à sua beleza? Reconheço seus poderes (augustos, herodes, quirinos) e a vida vulnerável de Deus iluminando-se nela, apesar de tudo?
Somos iniciados a “sentir o tempo” de um modo novo, a fazer-nos amigos dele, a nomear e acompanhar o tempo que nos toca viver, a habitar com intensidade todas as etapas de nossa existência. Cada momento esconde sua pérola, e é muito emocionante poder chegar a descobri-la. Precisamos recuperar a força do “hoje” de Deus fazendo “memória” dos grandes personagens do passado: Isaías, Jeremias, Elias, João Batista, Isabel, Maria de Nazaré, José... Eles continuam falando, continuam desvelando sinais de vida plena na história presente. Só uma sensibilidade marcada pelo tempo do Advento é capaz de entrar em sintonia com as surpresas de Deus; e a história é o rumor dos Seus passos.
Texto bíblico: Mc 13,33-37
Na oração: Caminhamos para Deus quanto mais nos adentramos no profundo de nós mesmos e da realidade. O maior enraizamento no tempo que nos toca viver desperta maior sensibilidade para sermos surpreendidos pelo novo que brota nos lugares menos esperados; é precisamente ali onde a vida renasce e amadurece.
- Como você se situa diante deste “tempo pandêmico”? Desespero? Medo? Desejo de saltá-lo?...
- Qual é o “novo” que você vislumbra no meio deste tempo? Você percebe algum sentido nele? Para onde ele aponta? É revelador de algo diferente?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Imagem: Bigstok.com
24.11.2020
“Todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes”- Mt 25,40
A festa de Cristo Rei culmina o ano litúrgico, e é hora de nos sentar para “julgar” (melhor, para “discernir”), o sentido e a marcha da nossa vida, a partir da consciência de humanidade que carregamos dentro de nós.
O evangelho deste domingo, de discernimento e salvação, é a parábola do “juízo final”, onde Jesus se revela plenamente identificado com todo ser humano, sobretudo com aqueles que são vítimas de estruturas de morte, violência e exclusão.
A parábola do “juízo universal” não pretende nos oferecer uma visão antecipada de um imaginado “final do mundo”, como alguns fundamentalistas nos querem fazer crer. Trata-se de uma parábola e, portanto, não cabe aqui uma leitura literalista; ela nos fala do nosso “modo de proceder”, aqui e agora, inspirado no modo de ser e de agir de Jesus. Em outros termos, os textos sobre o juízo final não pretendem transladar o leitor ao espetáculo do futuro. Foram escritos para despertar nossa responsabilidade no presente, para promover o melhor que há em nós e afastar tudo o que nos desumaniza.
Na parábola, fala-se de seis situações de necessidades básicas. Não são casos irreais. São situações que acontecem em todos os povos e em todos os tempos. Em toda parte, há famintos e sedentos, há imigrantes e desnudos, enfermos e encarcerados.
Em cada pessoa que sofre, Jesus vem ao nosso encontro, nos olha, nos interroga e nos inspira a prolongar a Sua atuação em favor dos excluídos. Nada nos aproxima mais d’Ele que aprender a olhar detidamente com compaixão o rosto dos que sofrem e ativar nossa sensibilidade solidária, que se visibiliza em ações concretas. Em nenhum outro lugar poderemos reconhecer com mais verdade o rosto de Jesus.
Portanto, o relato deste domingo fala muito mais do presente que do futuro; ele ajuda a nos examinar, ou seja, a situar-nos no horizonte da identificação com Jesus e sua relação com os mais pobres e excluídos. Trata-se de um exercício de discernimento, para verificar qual “espírito” está nos movendo e para onde nos impulsiona: “espírito” de compaixão, solidariedade, compromisso...? ou “espírito” de autocentramento, de preconceito, de indiferença...? O exame aqui não é para alimentar um autocontrole obsessivo, ou autovigilância medrosa, nem autopoliciamento que atrofia. É preciso nos situar diante d’Aquele que é nossa referência última (Jesus Cristo) para ativar em nós uma sensibilidade que quebra toda distância e nos impulsiona a deslocar junto àqueles que são os “deslocados” do mundo, vítimas de estruturas sociais de morte.
Toda a cena do juízo final se concentra em um diálogo longo entre o juiz, o “Filho do Homem”, e dois grupos de pessoas: aqueles que aliviaram o sofrimento dos mais necessitados e aquele que, insensíveis, negaram-lhes ajuda.
Ao longo dos séculos, os cristãos viram neste diálogo fascinante “a melhor recapitulação do Evangelho”, “o elogio absoluto do amor solidário” ou “a advertência mais grave contra aqueles que vivem refugiados falsamente na religião”. O decisivo diante de Deus não são as “práticas religiosas” que alienam, mas os gestos humanos de ajuda aos necessitados. Tais ações podem brotar do coração de uma pessoa que crê em Deus ou do coração de um ateu que atua em favor daqueles que sofrem.
Aqueles que ajudaram os necessitados que foram encontrando em seu caminho não o fizeram por motivos religiosos. Não pensaram em Deus nem em Jesus Cristo. Simplesmente buscaram aliviar um pouco o sofrimento que há no mundo. Agora, convidados por Jesus, entram no Reino de Deus como “benditos do Pai”.
O critério decisivo, segundo Jesus, não passa pela religião, como talvez o leitor do evangelho esperaria encontrar, ou como o fizeram crer, muitas vezes, quando se dizia que a “pessoa religiosa se salvará”. Deste modo, a religião se convertia em salvo-conduto para a “vida eterna” e a pessoa “religiosa” costumava adotar uma postura autosatisfeita e não isenta de um certo sentimento de superioridade.
No entanto, a mensagem de Jesus é completamente clara neste ponto: o critério de salvação não é religioso, mas ético; não tem a ver com crenças mentais, mas com entranhas compassivas. A religião verdadeira é aquela que é mediação para ajudar a viver hoje o que Jesus viveu no seu tempo. Afinal, somos seguidores(as) de uma Pessoa e não de uma religião, doutrina, rito...
Só quem tem um coração compassivo é capaz de viver a ajuda e o serviço a partir da gratuidade. Não faz isso para conseguir algo em troca, nem sequer apresenta uma motivação religiosa: “Senhor, quando foi que te vimos...?” De igual modo, aqueles que, a partir de uma opção religiosa esvaziada de compromisso, procuram querer agradar o Senhor, são repreendidos com dureza por não tê-Lo reconhecido na pessoa dos mais necessitados.
Para Jesus, uma humanidade constituída por nações, instituições ou pessoas comprometidas em alimentar aos famintos, vestir aos desnudos, acolher aos imigrantes, atender aos enfermos e visitar aos presos, é o melhor reflexo do coração de Deus e a melhor concretização de seu Reino. Cada grupo se dirige para o lugar que eles mesmos escolheram. Uns reagiram com compaixão diante dos necessitados; outros viveram indiferentes diante de seus sofrimentos. O que vai decidir sua sorte não é sua religião nem sua piedade. Simplesmente, uns viveram movidos pela compaixão, outros não.
A parábola deste domingo, portanto, em um primeiro nível de leitura, contém uma mensagem revolucionária e subversiva para o mundo religioso: ela vem nos dizer que existe um caminho para nos encontrar com Deus que não passa pelo Templo. O verdadeiro “templo” é o outro, sobretudo os carentes e marginalizados. Esta é, sem dúvida, uma das maiores novidades de Jesus.
O “castigo” ou a “vida eterna” (plena) não é obra de um “deus exterior”, mas o resultado de uma determinada maneira de viver, fechada na ignorância de quem somos ou, pelo contrário, lúcida e desperta.
O “inferno” não é um lugar ao qual Deus nos condena, mas uma situação onde nós mesmos nos “fechamos”. É o que na Bíblia se chama “o endurecimento do coração”, que se opõe à bondade e se petrifica na maldade. Não é Deus que nos envia ao inferno, mas o endurecimento do coração que nos fecha e nos isola.
Precisamente por isto, para ler corretamente o texto do juízo final, é preciso começar por destruir a imagem de um Deus vingador que castiga com as penas do inferno. É fundamental salientar que, em Jesus Cristo, Deus se revela com um amor extremo, incondicional e sem medida.
Muitos textos dos evangelhos contradizem a representação de um Deus que sanciona com pensas eternas.
A justiça vingativa ou vindicativa, que se poderia qualificar também como punitiva ou repressiva, responde o mal com o mal; sanciona o mal com um mal equivalente; tal justiça acrescenta o mal ao mal. Mas, esta justiça não é a de Deus; esta justiça aparece transformada pela justiça restauradora, pela graça de um amor incondicional, sempre oferecido, que abre um futuro sempre novo.
Esta é a lógica da justiça divina restauradora e recriadora. Visto assim, o último juízo é, verdadeiramente, uma Boa Notícia para todos “os benditos do Pai” e “os herdeiros do Reino”.
Texto bíblico: Mt 25, 31-46
Na oração: A experiência cristã entende a compaixão como hábito do coração; por isso, ela deixa de ser “ocasional” e passa a ser um “estilo de vida”, fundado no modo de viver de Jesus Cristo; significa deixar-se afetar pelo “mundo do sofrimento e da injustiça e não ficar indiferente”.
- Seu modo de viver o Seguimento de Jesus tem a marca da compaixão ou se restringe a “praticas religiosas tóxicas”, autocentradas na mera observância de leis, ritos, doutrinas...?
- Rezar as “obras de misericórdia”, presentes no evangelho deste domingo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.11.2020
imagem: Cristo Rei imagem pixabay
“A um deu cinco talentos, a outro dois, a outro um; a cada um de acordo com a sua capacidade”
Neste 33º. Dom. do Tempo Comum, a liturgia nos propõe uma parábola não só complexa, mas difícil de incorporar à nossa habitual interpretação das parábolas dos evangelhos. A história relata um episódio que um homem rico, ao sair em viagem, reparte seus bens entre seus servos com a intenção de que os façam render para que, no seu retorno, possa ver incrementado seu patrimônio. No seu regresso, premia àqueles que tiveram êxito no negócio e castiga duramente aquele que, por medo, enterrou o dinheiro recebido e não gerou lucros para o seu patrão.
Geralmente, ao interpretar ingenuamente a parábola, consideramos que este homem rico está representando a Deus e que os servos representam as diferentes respostas diante dos “talentos” recebidos do mesmo Deus. No entanto, a partir desta compreensão, torna-se difícil entender como Jesus pode apresentar o Deus do Reino atuando de forma tão dura e sem misericórdia com quem não fez crescer o “talento”. O modo com que frequentemente resolvemos a dificuldade é responsabilizar o servo que enterrou seu “talento”. Consideramos que este servo agiu com negligência e covardia e, portanto, mereceu ser castigado.
Sempre corremos o risco de uma interpretação literal e moralista da parábola. Isso dá margem a alimentar uma falsa imagem de Deus. Mas, o Deus de Jesus não atua a partir do critério de prêmio e castigo. A atitude do senhor da parábola não pode ser exemplo do modo de agir de Deus. Jesus nunca acreditou nem nos apresentou a Deus como o senhor desta parábola, que funciona por interesses e rentabilidade. O Deus de Jesus, nosso Deus, é bondade, acolhida, compaixão e misericórdia. Tampouco o Deus de Jesus é um senhor duro e rancoroso, que recolhe onde não semeia, que arranca até o último centavo e que ameaça jogar o ser humano na “geena”, onde haverá choro e ranger de dentes.
Não, Jesus não quer que rendamos lucros para o patrão egoísta e austero, que causa pavor no terceiro servo da parábola. Deus não é austero nem egoísta. Deus é “dom” que se oferece, se compartilha... A presença de Deus nos inspira para que sejamos e ativemos a vida, pelo prazer de ser e de partilhar... E pelo prazer de partilhar com os outros o que temos recebido.
Por isso, a parábola dos talentos é muito mais um protesto contra uma estrutura social e religiosa centrada na cultura do prêmio/castigo, inclusão/exclusão, competente/incompetente...
Pensemos na parábola do filho pródigo, que é tratado pelo Pai de uma maneira completamente diferente. Tirar o pouco que tem daquele que tem menos para dá-lo ao que tem mais, tomado ao “pé da letra”, seria impróprio do Deus de Jesus. Através da parábola, Jesus denuncia o “deus da religião”, manipulado pelos encarregados do Templo (sacerdotes, escribas, fariseus...) para exercer o poder religioso sobre as consciências das pessoas e, assim, mantê-las sob seu controle.
Em “chave de interioridade”, alimentamos em nós a imagem de um “deus” que é fruto de nossas projeções, muitas vezes carregadas de feridas, traumas, medos, autoexigências, busca da perfeição... Uns projetam a imagem do “deus do mérito”, que recompensa aqueles que se esforçam em “multiplicar talentos”; é a imagem do “deus” dos dois primeiros servos. Numa cultura na qual tudo se valoriza pelos resultados, é muito difícil compreender isto. Em um ambiente social onde ninguém se move a não ser por um pagamento, onde tudo o que é feito deve trazer algum benefício, é quase impossível compreender a gratuidade que o evangelho nos pede. Se buscamos prêmios é que não entendemos nada do evangelho.
Outros projetam a imagem do “deus do medo”, duro, intransigente, que cobra até o último centavo, que castiga... É o “deus” do terceiro servo.
Estas falsas imagens de Deus, no entanto, causam danos e afetam a vida em todas as suas dimensões (pessoal, familiar, social, espiritual). Por detrás destas imagens se encontram crenças religiosas às quais chamamos crenças tóxicas.
Estas crenças tóxicas podem gerar personalidades dependentes e submissas, neuróticas e ansiosas, medrosas e passivas, moralistas e perfeccionistas; ou talvez personalidades agressivas, dominantes, vingativas, controladoras. São o reflexo de uma imagem distorcida de Deus e “chegamos a nos parecer com o Deus que projetamos”. Esta distorção é o resultado, muitas vezes, de uma educação rigorosa e moralista, produto de uma espiritualidade dualista que coloca a perfeição como o ideal de todo cristão e o menosprezo de tudo o que não é “espiritual”. Estas crenças religiosas geram uma fé tóxica ou insana porque nos afastam do Deus de Jesus e podem favorecer a dependência religiosa e o abuso espiritual.
Também é insuficiente interpretar “talentos” como qualidades da pessoa. Esta interpretação é a mais comum e está sancionada em nossa linguagem. Quê significa “ter talento”? Também não é esta a verdadeira questão da parábola. Em relação às qualidades pessoais, somos instigados a ativar todas as possibilidades, mas sempre pensando no bem de todos e não para acumular mais e “depenar” os menos capacitados, dando graças a Deus por sermos mais espertos que os outros.
Se permanecermos na ordem das qualidades pessoais, poderíamos concluir que Deus é injusto. A parábola não julga as qualidades, mas o uso que fazemos delas. Quer tenhamos mais ou quer tenhamos menos, o que nos é pedido é que coloquemos a serviço de nosso autêntico ser, a serviço de todos.
Na dimensão da essência, todos somos iguais. Se percebemos diferenças é que estamos valorizando o acidental. No essencial, todos temos o mesmo talento. As bem-aventuranças deixam isso muito claro: por mais carências que tenhamos, podemos alcançar a plenitude humana.
Como seres humanos temos algo essencial, e muita coisa que é acidental. O importante é a essência que nos constitui como seres humanos. Esse é o verdadeiro talento: o que há de mais humano em nós. Ter ou não ter (o acidental) não constitui a principal preocupação. Os talentos, de que fala a parábola, não podem fazer referência a realidades secundárias, mas às realidades que fazem cada pessoa ser mais humana. E já sabemos que ser mais humano significa ser capaz de amar mais. E amar quer dizer servir aos outros.
Os talentos são os bens essenciais que devemos descobrir, pois estão presentes em nosso interior. A parábola do tesouro escondido é a melhor pista. Somos um tesouro de valor incalculável. A primeira obrigação de um ser humano é descobrir essa realidade; devemos estar voltados para o nosso interior e poder ativar todas as nossas possibilidades. A “boa nova” é que todos coloquemos esse tesouro a serviço de todos. Nisso consiste o Reino anunciado por Jesus.
O grande “pecado” dos(as) seguidores(as) de Jesus é a de não arriscarem a segui-Lo de maneira criativa. O tesouro (os talentos verdadeiros da vida) não é algo que se mede em termos pecuniários. O valor do ser humano, seu talento, é a vida como tal, a capacidade de receber e partilhar amor. Neste sentido, “lucrar” é simplesmente ser, deixar-se amar, “lucrar” é simplesmente viver no amor. Não se trata de “lucrar” talentos em dinheiro, mas o talento mais profundo da vida, o “tesouro” que está presente nas profundezas de nossa existência, esperando a oportunidade para “render” mais compaixão, bondade, sensibilidade solidária...
Temos o grande talento, a Vida de Deus, que nos atravessa e se visibiliza no coração compassivo, nos olhos contemplativos, nos pés que quebram distâncias, nas mãos servidoras... Que vivamos sem medo: é isso que a parábola revela. Passar dos “talentos” ao Talento, e em especial ao Talento do Coração (talento do Reino), a serviço da humanidade.
Texto Bíblico: Mt 25,14-30
Na oração: dar nomes aos medos que estão paralisando sua vida, impedindo-o de viver com mais ousadia e criatividade.
- Quem é o “Deus” em quem você crê? É o “deus da lei”, o “deus do mérito”, o “deus” que cobra até o último centavo... ou o “Deus de Jesus”: Pai e Mãe, fonte de misericórdia e compaixão?
- A fé e a confiança em Deus possibilitam ter acesso às suas riquezas interiores e expandi-las?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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12.11.2020
“Dai-nos um pouco de óleo, porque nossas lâmpadas estão se apagando” (Mt 25,8)
As parábolas são relatos provocadores, que revelam o sentido da vida a partir de uma perspectiva diferente. Não são histórias edificantes, nem meditações piedosas, mas enigmas para pensar, decifrar e decidir o horizonte da vida. As parábolas não fecham a mensagem (não são dogmas, nem demonstrações), pois são sinais que cada um deve interpretar e resolver a partir de sua própria vida.
Frente às parábolas, uma pessoa pode rebelar-se, outra pode descobrir o lado oculto de sua vida... Por isso, são imagens interativas que não tem a solução dada de antemão. É surpreendente a insistência com que Jesus fala da vigilância; são numerosas as parábolas que nos convidam a adotar uma atitude desperta e atenta frente à existência, para que esta tenha um sentido.
Interpretar a parábola deste domingo no sentido de que devemos estar preparados para o dia da morte, é falsificar o evangelho. A parábola não está centrada no fim, mas na inutilidade de uma espera que não é acompanhada de uma atitude de amor e de serviço. As lâmpadas devem estar sempre acesas, para ajudar a acolher as gratas surpresas da vida e poder participar da festa d’Aquele que continuamente vem ao nosso encontro. Se não queremos ser insensatos (sem sentido, sem direção), precisamos estar alertas, para entrar em sintonia com a realidade e viver a vida como deve ser vivida.
Nossa maior insensatez seria viver “sem horizonte”, sem desejos e sonhos, sem uma causa mobilizadora... Submergimos no presente sem outra perspectiva mais ampla; e assim afogamos nossa vocação de infinitos na vulgaridade de uma vida superficial e satisfeita. Se estamos adormecidos, é preciso despertar, porque, do contrário, perderemos a oportunidade de entrar na festa das núpcias. Portanto, ser “imprudentes” significa viver “dispersos”, “distraídos”... deixando apagar a lâmpada de nossa fé e de nossa esperança, e sem o azeite de reposição.
A lamparina que arde é a prática da mensagem de Jesus; o azeite que alimenta a chama, é o amor manifestado. Assim entendemos porque as jovens prudentes não podem compartilhar o azeite com as imprudentes. Não se trata de egoísmo; é impossível amar em nome de outra pessoa ou considerar como própria a entrega que o outro realizou. A lamparina não pode queimar com o azeite de outro; a chama não pode ser acesa com azeite comprado ou emprestado.
A parábola do Evangelho nos fala daqueles que não cultivam sua esperança hoje e pretendem viver do azeite das lâmpadas dos outros. E ninguém pode viver da fé do outro, nem da esperança do outro. O sentido de toda uma vida não pode ser improvisado em um instante. Somente a partir da luz de Deus em nós, descoberta, reconhecida e ativada, poderemos viver antenados com o melhor que há em nosso interior (azeite) e com a realidade que nos envolve, cheia de surpresas.
Todos nós somos portadores de uma lâmpada e todos somos convidados à festa. Podemos inspirar-nos mutuamente a viver a partir de nossa verdade mais profunda, a partir da luz que nos habita; mas, no final, a falta ou não de azeite para a nossa lâmpada depende de cada um(a), de nossa responsabilidade, de nossa previsão, do cuidado delicado e agradecido diante de tudo o que foi recebido, da capacidade para sustentar a esperança nas noites escuras e, sobretudo, do amor e da alegria que alimentamos no desejo de nos encontrar, dia a dia, com o Noivo, seguros de que Ele sempre vem.
Só assim seremos luz verdadeira para os outros, iluminaremos – humildemente – as obscuridades que nos envolvem, e contagiaremos a alegria de sabermos que fomos convidados à festa. O que permanece em nosso interior é o fulgor (luz) que vivemos (que brilha) por dentro, ao fazer memória da nossa vida, esse “eu profundo” que é mais “eu” que eu mesmo: “eu” original, iluminado, santo, intocável, faísca de luz que se volta para Aquele que é Fonte de toda luz.
O “ego” é como um planeta do sistema solar; não tem luz própria. Adquire sua luz emprestada e, portanto, vive no engano de que pode continuar sempre assim, no tempo e no espaço. Por isso, o ego inflado com a luz que não é própria, busca, de maneira desenfreada, apoderar-se de tudo aquilo que lhe dá a ilusão de brilhar: poder, riqueza, vaidade... Falsas luzes que um dia se apagarão.
O “eu original”, no entanto, vai ao encontro da luz verdadeira, presente no próprio interior, e deixa-se iluminar por ela; é esta pequena chama que o conduz em direção Àquele que é a Luz, para entrar e participar do seu festim iluminado. Por isso, nós somos, ao mesmo tempo, a lâmpada, o azeite e a luz. Ninguém pode nos emprestá-los, porque é nossa própria vida. Toda vida se move a partir de dentro.
Dentro de nós devemos descobrir a luz que iluminará nossos passos; essa chama, se é autêntica, não pode se ocultar, pois iluminará também a todos os outros. Uma luz que acende outras luzes. Contemplai admirados essa luz que somos! E, mesmo nosso pequeno “ego” brilhará, atravessado por essa luz como o sereno pelo sol do amanhecer.
A parábola deste domingo, portanto, nos provoca a uma tomada de posição: “em qual dos dois grupos eu me encontro? Em qual deles desejo estar?” A narração usa as imagens das lâmpadas e do azeite como símbolos que marcam a diferença entre um grupo e outro.
Nossa vida, enraizada na Vida d’Aquele que é a Luz do mundo, é chamada a irradiar luz, a iluminar a realidade na qual habitamos, embora, muitas vezes, a noite escura nos envolve.
“Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14).
“Em que situação se encontra minha lâmpada? E minha reserva de azeite? De que modo colaboro para que o Noivo possa celebrar a festa? Como sou luz em meio a tantas noites de ódio e violência pelas quais nosso mundo atravessa?” Na realidade, de acordo com a parábola, todas as jovens carregavam suas lâmpadas; todas elas tinham sido convidadas à festa; todas alimentavam o mesmo desejo: aguardar a chegada do noivo. O fato de pertencer a um grupo ou a outro não se impõe a partir de fora. Cada uma das personagens da parábola, no fundo, foi livre e decidiu com sua atitude (previdente e sábia, ou imprudente e descuidada), em quê grupo situar-se.
Hoje em dia existem, nas igrejas e capelas, as velas para todos os gostos; existem aquelas eletrônicas, que são ativadas com uma moeda; e existem até aquelas que podem ser acesas a longa distância, pela internet. Mas, velas originais são aquelas que se consomem na nobre missão de iluminar. Simbolizam a travessia da própria existência: queima-se a cera como nós vamos nos queimando, diminuindo-nos com a passagem do tempo, as dificuldades e as alegrias de nossa travessia humana.
Quando acendemos a chama, é como se tomássemos consciência de que somos luz na medida em que vamos nos gastando em iluminar nosso entorno e chegar a ser cera derretida um dia, tarde ou cedo; passar de luz natural a reencontrar-nos com a Luz total da qual procedemos.
Texto bíblico: Mt 25,1-13
Na oração: A esperança mantém sempre acesa a faísca de luz que todos carregamos dentro. É ela que nos faz cair na conta que somos “luz do mundo”, uma chama que nunca se apaga; somos “sarça ardente” para os outros, consumindo-nos constantemente, através da vida doada; somos uma lamparina humilde, brilhando na janela da nossa pobre casa, indicando aos outros o caminho da segurança e do aconchego.
- Como você deixa transparecer a luz no seu agir cotidiano? Qual é o azeite que brota do seu coração e que alimenta a luz de sua humilde lamparina?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.11.2020
“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá” (Jo 11,25)
Ontem, celebramos “Todos os Santos e Santas”: santidade universal. Hoje, fazemos memória de todos os Defuntos: realidade universal. Neste dia, poderíamos projetar sobre a lembranças dos nossos mortos a luz de “Todos os Santos e Santas”, a festa da vitória de Deus sobre as forças da morte, a festa do destino final da humanidade e festa também da solidariedade.
As festas dos(as) Santos(as) e de Finados não são uma relíquia do passado, nem um negócio de floriculturas; é a oportunidade que temos de nos perguntar: quê significa a morte para nós?
É o momento propício para recordar, de forma agradecida, todos(as) que nos precederam e, ao mesmo tempo, de nos perguntar, pelo menos uma vez ao ano, como queremos viver.
Tendo presente as palavras de Jesus, nós recordamos todos os(as) falecidos(as), sobretudo aqueles(as) com quem convivemos e deixaram marcas evangélicas em nossas vidas; recordamos não só como ausentes, mas também como presentes. Estão presentes porque estão vivos “em-Deus”, que é Deus dos vivos; estão vivos em nosso coração pelo amor que lhes dedicamos; estão vivos nos frutos positivos que semearam em suas vidas e em nossas vidas; estão vivos porque continuam amando, e de uma maneira mais plena, em Deus.
Sabemos que o ser humano é o único animal que sabe que vai morrer. De fato, a morte é inevitável e costuma nos surpreender, às vezes de maneira muito violenta; ela é a única certeza absoluta que temos.
No entanto, apesar de ser algo tão certo e que todos os seres vivos compartilhamos dessa realidade, não é fácil falar da morte; no contexto atual, ela passou a ser um tabu; por isso, ela é escondida.
Hoje, evitamos falar da morte, mesmo estando continuamente presente na nossa vida familiar e em nosso círculo de relações. Acima de tudo, queremos evitar pensar sobre a nossa própria morte, o único evento certo que está diante de nós.
O ser humano pós-moderno, inventa toda sorte de artifícios para não encarar este destino que lhe é insuportável. Ele brinca, arrisca, ri, inventa mil coisas para adiar o prazo do fim. Lança-se no ativismo e na fuga para protelar esse inaceitável momento. É melhor o barulho, a sucessão de desafios e até mesmo o fracasso do que o mergulho no silêncio da morte. Mesmo estando frente à morte dos outros, pensa ainda poder escapar desta decisiva prova.
Esta é a constatação: a morte é afastada para lugares apropriados, tornando-se a única realidade "obscena" que não deve ser vista, contemplada, considerada.
Mas, a vida marcada pelo medo da morte é uma vida “em terra de sombras”, que contradiz nossa vocação de sermos filhos(as) do dia e da luz. Se a morte nos surpreende apegados apaixonadamente à vida, terminaremos humilhados e derrotados.
Para a fé cristã, a morte é passo para a comunhão plena. Último passo. Por isso, não pode ser escondida; antes, preparada. A fé revela-nos a morte como momento em que a pessoa se abre para dimensões nunca antes imaginadas.
Podemos “viver de modo eterno” vivendo as experiências que são eternas: amar, perdoar, ajudar, compreender, aceitar, consolar...
A fé nos diz que fomos feitos por mãos celestiais, chamados à vida, para a liberdade, para a bondade, para a amplidão dos céus. Confessamos que a vida é de Deus e, como Ele, é eterna.
Os(as) santos(as) e os(as) falecidos(as) que conhecemos pessoalmente, sobretudo nossos parentes e ances-trais, são as raízes das quais vivemos. Finados é uma ocasião privilegiada para aprofundar sobre a árvore que nós mesmos somos. Nossa árvore tem raízes profundas e ela abre uma copa no alto; somos seres da terra e do céu. Nossas raízes são nossos antepassados; por meio de rituais compartilhamos de seu vigor e de sua fé.
A morte não entende de títulos, de êxito ou fracasso. E de duração entende algo, mas não muito, porque ninguém tem uma idade garantida, salvo a que temos neste momento. Não é que devamos viver assustados, temerosos de um acidente ou ameaçados por uma doença que nos está esperando atrás de alguma esquina. Não é que a perspectiva de morrer, ou de perder a quem amamos, tenha de nos paralisar. Mas sim, deveria nos dar perspectivas para dedicar mais tempo àquilo que cremos ser importante.
De fato, se rezamos por e com nossos mortos não é para que Deus lhes conceda algo que não obteriam sem a nossa intervenção: o amor de Deus por eles(as) ultrapassa infinitamente o nosso. O que buscamos é tomar consciência da nossa comunhão com eles(as). Todas as suas falhas passadas são também falhas nossas, e todas as suas “virtudes” nos pertencem. Em Deus, a humanidade é, toda ela, una como o próprio Deus é Um. Enfim, a nossa oração com e pelos nossos falecidos deve nos transformar, para que façamos nosso o amor de Deus por eles(as).
Como cristãos, temos o privilégio de olhar a morte de frente. Por quê? Porque podemos olhá-la com esperança, com a certeza de que a morte não é o final do caminho senão a porta para a vida eterna. Jesus Cristo nos precedeu na morte, e ressuscitou para nos dizer que não tenhamos medo. O fato de assumir com inteireza que vamos morrer, pode nos ajudar a viver de uma maneira mais autêntica e inclusive mais alegre, pois nos conecta com nossa realidade de seres finitos.
A “reverência pela vida” exige que sejamos sábios o bastante para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Por isso não devemos nos preocupar com a morte, mas com a vida. A verdadeira pergunta não é: “existe vida após a morte?” O místico e o sábio se perguntam: “existe vida antes da morte?”
Perguntar-nos sobre o que o pós-morte tem a nos oferecer é uma desfeita à vida.
A vida é tanta surpresa, tanta novidade e riqueza que querer especular sobre o que acontece depois dela é grosseria. O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos “vivem”, porque incapazes de reinventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem morte perde-se, no final, na total irresponsabilidade.
Através do “viver para sempre” nos permitimos o prazer, a alegria, o desafio, a criatividade, a festa...
Através do “morrer amanhã” criamos em nós a responsabilidade para viver o hoje com mais intensidade.
Somos todos peregrinos e vivemos contínuas “travessias provisórias” até fazermos a grande travessia para Deus. Quando nascemos recebemos o sopro do Criador; quando morrermos seremos “aspirados” para dentro de Deus. Nosso destino é o Coração de Deus: “D’Ele viemos e para Ele retornamos”.
Por isso, somos eternos: já vivemos a eternidade nesta vida. Descobrimos no coração de nossa vida mortal a eternidade que vive em nós.
Na verdade, a morte nunca fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos fazendo com a própria vida, as perdas, os sonhos não realizados, os riscos que não tomamos por medo...
Nesse sentido, a morte não é o fim da vida, mas sua plenitude, quando esta é vivida com sentido.
A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão...
A existência histórica cresce no útero do tempo e a morte é o parto para a vida plena. A morte é este instante de ruptura, onde toda uma vida incubada, trabalhada no silêncio e no sofrimento, marcada de alegrias e tristezas, vitórias e fracassos, desponta luminosa para a vida eterna.
Texto bíblico: Jo 11,17-27
Na oração: No silêncio de seu coração, “faça memória” de seus entes queridos que já cumpriram sua missão.
Diga: “Eu continuo amando a todos(as) vós, mas já não sei como encontrar-me convosco, nem o que fazer por vós. Minha fé é frágil e carregada de medo. Mas, eu vos confio ao amor de Deus, vos deixo nas mãos d’Ele. Esse amor de Deus é hoje para vós um lugar mais seguro que tudo o que eu possa vos oferecer. Desfrutai da vida plena. Experimentai o calor da intimidade divina, em comunhão com todos aqueles(as) que retornaram ao ventre materno do Deus/Mãe. Um dia, voltaremos a nos encontrar. Será uma festa sem fim”. Amém.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.10.2020
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