“Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém?” (Lc 13,4)
O evangelho deste domingo, exclusivo de Lucas, apresenta uma reflexão sobre a conversão, em forma de parábola, a partir de dois acontecimentos trágicos que causaram comoção no povo judeu. O relato traz à tona este eterno problema: é o mal consequência de um pecado? Assim pensavam os judeus no tempo de Jesus e assim continuam pensando a maioria dos cristãos hoje. Ou seja, uma “visão distorcida” de Deus, leva a acreditar que tudo o que acontece é manifestação de sua vontade. Os males são considerados castigos e os bens são considerados prêmios.
Para entender a “novidade” da resposta de Jesus, é preciso saber que, na mentalidade judaica, a enfermidade e o mal, em geral, eram consequência do próprio pecado. A ausência do mal, pelo contrário, era considerada sinal da benção divina. Por isso, aqueles que sofriam qualquer calamidade ou enfermidade se convertiam automaticamente em objeto de juízo condenatório por parte dos outros; diante do olhar preconceituoso e julgador, eles se sentiam acuados por um angustiante sentimento de culpabilidade e desesperança. A desgraça os limitava; a culpabilidade os afundava.
Jesus se declara completamente contra essa maneira de pensar. Ele se distancia dessa ideia tradicional, desatando o nó “religioso” entre sofrimento e pecado, entre culpa e o mal. Para Jesus, a relação de Deus conosco se situa numa dimensão mais profunda. Devemos deixar de interpretar como atuação de Deus aquilo que é próprio das forças da natureza ou consequência da maldade e violência humana. Nenhuma desgraça que possa nos alcançar devemos atribui-la a um castigo de Deus.
Devemos romper com essa ideia de Deus, senhor ou patrão soberano que, a partir de fora nos vigia e exige seu tributo. De nada serve camuflá-la com estas sutilezas: “Pode ser que Deus não castigue nesta vida, mas castigará na outra vida”; “Deus nos castiga, mas é por amor e para salvar-nos”; “Deus castiga só os maus”; “Merecemos o castigo, mas Cristo, com sua morte, nos livrou dele”. Pensar que Deus nos trata à base de pancadas e prêmios, é ridicularizar a Deus e ao ser humano.
Somos tecidos pela culpa desde o nascimento; somos acompanhados por ela durante toda a vida. Ela nos prende facilmente em suas teias, impedindo a manifestação da força vital que há em nós. Sabemos que o sentimento de culpa pode ser paralisante, ameaçador, freio e obstáculo tanto para o desenvolvimento de uma comunidade humana quanto para o crescimento de uma pessoa; esta, centrada no próprio eu, fica “ruminando” seus limites e fracassos, caindo no desespero e não percebendo nenhuma saída para sua situação.
O sentimento de culpa causa sérios danos que acabam afundando existencialmente as pessoas: isso gera a irresponsabilidade que infantiliza, a passividade que leva ao fanatismo, a atrofia da criatividade, o medo paralisante, o sentimento de indignidade... Também a imagem do Deus Amoroso, do Deus vivo e prazeroso, do Deus livre e libertador, fica diminuída segundo o tamanho de nossa consciência e inconsciência, marcadas pela culpabilidade.
Por obra e força da culpa, “Deus” converte-se em “deus” de morte, em “deus” oprimido e opressor, em “deus onivigilante”, que investiga morbidamente nossa interioridade para captar e julgar qualquer desvio. A este “deus” nada escapa: ele vê tudo, escuta tudo, controla tudo... A mensagem alegre do Evangelho se perverte e a vivência cristã deixa-se invadir por um mal-estar difuso, uma tristeza, uma angústia, um pesar... que muitas vezes tornam difícil reconhecer no anúncio de Jesus uma mensagem da Boa Nova. “Assim como Deus nos libertou do pecado... torna-se urgente libertar Deus da culpa” (Dominguez Morano). Um “Deus de vida” nos foi revelado, mas nossa culpa o transformou num “Deus de morte”. “Libertar Deus da culpa” significa “deixar Deus ser Deus”, abrir espaço para que Ele manifeste sua presença providente e amorosa.
A atitude sadia, portanto, é a da responsabilidade, como sentimento maduro de quem entende a vida como “resposta” (essa é sua etimologia) coerente com as diferentes situações que se apresentam. É a responsabilidade que desperta pesar e dor nas ocasiões em que, afastando-nos da fidelidade ao melhor de nós mesmos, provocamos dano aos outros ou ao nosso meio. Mas esse pesar doloroso, diferente da culpabilidade, não paralisa nem afunda, senão que mobiliza para a mudança.
A consciência responsável, de modo especial, nos move para a cura, a reparação; ao longo da experiência, com a ajuda da Graça e em constante discernimento, poderemos experimentar a contrição que leva à mudança, à busca de alternativas melhores de comportamentos e atitudes, a assumir modos de agir que tornem possível uma vida mais plena e amorosa. Só quando tomamos consciência do dano feito é possível restaurar as condições que favoreçam logo um viver mais feliz e pleno.
É esta responsabilidade que podemos associá-la com a conversão, pedida pelo evangelho de hoje. Porque o “perecer” de que fala não deve ser entendido em chave de ameaça nem castigo, mas simplesmente como a consequência de uma atitude e um comportamento desajustados. “Se não vos converterdes, todos perecereis”. A expressão não traduz adequadamente o grego “metanoia”, que significa “mudar de mentalidade, ver a realidade a partir de outra perspectiva”.
Jesus não diz que aqueles que morreram nas duas tragédias não eram pecadores, mas que todos somos igualmente pecadores e precisamos mudar de rumo. Sem uma tomada de consciência de que o caminho que fazemos nos leva ao abismo, nunca estaremos motivados para evitar o desastre. Se somos nós que vamos caminhando para o abismo, só nós podemos mudar de rumo.
Todos devem assumir a responsabilidade de suas ações. Não somos marionetes nas mãos de Deus, mas pessoas, ou seja, seres autônomos que devemos assumir nossa responsabilidade. A melhor tradução seria: “se não aprendes, inclusive com os erros, perecerás”. Dizendo de um modo mais simples: se não somos responsáveis, se não respondemos humanamente aos diferentes desafios que a vida nos apresenta, estaremos fechando a saída, alimentando infelicidade para nós mesmos, tornando a convivência impossível e destruindo o planeta; ou seja, estamos provocando nosso próprio desastre.
Libertados do “círculo infernal da culpa”, agora sim, podemos aderir à novidade do Reino, na plenitude da alegria e da festa. Temos diante de nós a nobre missão de transformar a realidade em Reino, e isso não será possível enquanto vivermos aprisionados nas malhas da culpa; enquanto a lei, o pecado e a culpa nos enredarem, não será possível perceber a novidade do Reino, que conduz à própria liberdade e à dos outros, à própria aceitação de si mesmo e à aceitação e ao amor aos outros.
O “Deus de Jesus” é Aquele que nos descentra e nos lança à realidade, com toda a dureza que esta pode nos apresentar em muitos momentos de nossa existência; em lugar de solucionar os problemas, Ele prefere nos dinamizar para que nós mesmos trabalhemos na busca de soluções. Deus é a plenitude de todas as aspirações humanas. Não há porque temer o Deus de Jesus.
Texto bíblico: Lc 13,1-9
Na oração: Examinar com cuidado a origem dos sentimentos de culpa, pode produzir um grande avanço no caminho da saúde interior e espiritual. Esclarecer, desmascarar a culpa, pode ser muito libertador, pois fortalece nossa atitude esperançosa; nossa relação com Deus, com o mundo e com os outros revela-se mais transparente e otimista.
- Sua relação com Deus tem a marca da confiança amorosa ou está carregada de culpa paralisadora?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante” (Lc 9,29)
O evangelho deste domingo recorda a Transfiguração de Jesus no monte (o Tabor da vida), face a face, diante do Pai e diante de seus três amigos, revelando assim seu rosto diante de todos. Ele quer que o vejam, que todos o vejamos (com Moisés e Elias), descobrindo assim o rosto do “Deus invisível” no rosto dos homens e das mulheres, para compartilhar com eles(as) vida e conversação.
O evangelista Lucas insiste em centrar a atenção do rosto de Jesus, que “muda de aparência”, se ilumina e aparece como revelação de Deus. Neste tempo quaresmal, Jesus nos faz subir ao monte e se transfigura (se desnuda e se reveste de glória), para que descubramos seu rosto, para que o vejamos, o contemplemos, de forma que saibamos quem Ele é, e possamos dialogar com Ele, em admiração, beleza e compromisso de seguimento evangélico. Pois bem, esse rosto de Deus que se ilumina em Jesus sobre a montanha se estende e se encarna no rosto de cada ser humano, sobretudo dos mais pobres e excluídos.
Dessa forma, Jesus identifica a estética (beleza do rosto) com a ética: move-nos a descobrir Deus nos rostos dos outros, acolhê-Lo presente nestes rostos e dialogar com Ele; deixar-nos interpelar por cada um destes rostos (enfermo, encarcerado, estrangeiro, excluído...), pois eles são em Cristo (sobre o Tabor da história) a beleza e presença suprema de Deus.
É muito frequente na Bíblia a menção à Face de Deus para indicar a sua presença e o reconhecimento re-cíproco entre Ele e o ser humano. “É tua face, Senhor, que eu procuro, não me escondas tua face” (Sl. 27,8).
A face humana tem sempre muito a dizer; por isso, é preciso iluminá-la com a transparência da Face de Deus. E, assim, a face humana se tornará, cada vez mais, face divinizada. A revelação bíblica, ao afirmar que Deus se “fez rosto” e que o ser humano é imagem de Deus, privilegiou o rosto humano. No entanto, hoje, a “deformação do rosto de Deus” ameaça essa face humana, desprezada pela violência preconceituosa, pela intolerância e pelo anonimato das grandes cidades.
Daí a urgência de uma reflexão sobre o rosto que se abre à eternidade, ao inesgotável, e que nos conduzirá ao “Rosto dos rostos”, o de Deus “humanizado”, para permitir-nos decifrar nele a face humana e o ícone do ser humano divinizado. Além disso, todo rosto, por mais desgastado ou destruído que esteja, revela-se único e inimitável, para quem consegue ver com o olhar do coração.
Nós conhecemos os rostos, temos familiaridade com os rostos, aprendemos a colher as suas expressões e nelas ler o interior da pessoa. Na realidade, não vemos com os olhos, vemos com o nosso rosto. Dizendo de outro modo: o “olhar” não se encontra nos olhos, mas no rosto. Os olhos nada dizem, mas o rosto com que olhamos guarda um segredo. É o rosto que desvenda o mistério do olhar. O rosto da mãe revela à criança o segredo do seu olhar. E o rosto da criança revela à mãe o segredo do seu olhar.
A palavra é a linguagem dos pensamentos, o rosto a linguagem das emoções, uma linguagem universal, não ensinada e não aprendida em parte nenhuma, mas por todos compreendida. As emoções falam a mesma língua em todos os tempos e lugares. A face humana é carregada de sentido. Fala, sem utilizar palavras; diz, sem soltar a voz. De repente, a face humana apresenta-se, comparece inesperadamente.
A face humana é mistério. Ata e desata segredos. É presença. Está exposta a todos. É patente. Está aí. Pode ser vista, pode ser comentada, pode ser seguida.
As expressões do semblante, o olhar, a voz, o sorriso, é uma linguagem na linguagem, um dizer no dizer, um texto inconsciente, nascido das profundezas, que se insere no texto verbal consciente. Palavras e expressões do rosto andam juntas e se interpenetram. As expressões do rosto falam mais do que as palavras, porque manifestam inúmeros significados a partir da personalidade humana; elas completam, confirmam e por vezes contradizem o que é dito com palavras e revelam, muitas vezes melhor que as palavras, a veracidade da pessoa. Acrescentam um complemento inconsciente de cor e de verdade às palavras, às vezes absolutamente contra a vontade de quem fala. A sua espontaneidade imediata precede as intenções.
A linguagem do rosto vem do fundo. Falamos do “rosto interior”; nas suas expressões aflora o íntimo do indivíduo, o mundo dos seus estados de ânimo, os quais, sendo intrinsecamente não verbais, fogem à linguagem articulada. E é uma linguagem verdadeira porque as emoções não mentem. Na face humana, escondem-se mensagens intrigantes. A face expressa a identidade da pessoa; ela revela o universo humano, é cenário de certezas, de decisões, de dúvidas, de aspirações, de dramas, de temores, de arte...
Nesse sentido, a transfiguração revela outra realidade de Jesus e nossa; este “mistério” nos desvela e nos move a ultrapassar nossas “falsas imagens” e encontrar-nos com a luz que nos habita. Podemos “entrar” dentro de nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, de transparência, de divino.
A transparência é algo mais estável e faz referência à luz, à vida interior, ao conhecimento próprio, ao desejo de deixar-se ver, à pureza de intenção, à simplicidade e ao deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito de Jesus. Tem a ver com a capacidade de conhecer-se a si mesmo e de comunicar aos outros a verdade de si mesmo, que se visibiliza no rosto iluminado.
Tomamos este conceito como aquela qualidade de uma pessoa que vive e se manifesta aos outros por atos e por palavras, de maneira que fica clara sua verdade, seu sentido de pertença à comunidade dos seguidores de Jesus e sua confiança nos demais membros da mesma comunidade.
Não basta contemplar rostos humanas; importa deixar-se interpelar por eles. É preciso ser perspicaz para ler e interpretar o sentido da face humana. Só quem é transparente, possui um olhar límpido para captar o “mistério” escondido no rosto do outro. Ao contemplar um rosto, o olhar chega ao coração humano, ali onde se encontra o sabor divino mais genuíno na vida da pessoa. E quando somos capazes de olhar em profundidade o rosto do outro, com simplicidade podemos encontrar no coração dele uma “imagem” de meu próprio coração. O olhar transfigurado deve ser portador do bom aroma que atrai ao encontro e à fraternidade.
Em nosso corpo, o “rosto” tem uma importância muito especial: através dele e de seu olhar, nos mostramos e somos percebidos e encontrados. O rosto, o olhar, dão ao nosso corpo sua beleza verdadeira, tão diferente da beleza postiça dos cosméticos, das joias e vestimentas. É a beleza de um rosto que nos leva para a transcendência, a santidade. Quem se unifica e se dilata encontra, sem buscá-lo, seu verdadeiro rosto, porque a beleza do rosto, é “epifania da pessoa”. O verdadeiro rosto nasce do coração, quando este se transfigura.
Texto bíblico: Lc 9,28-36
Na oração:
Deixe que o Espírito lhe conduza até onde seus medos não ousam chegar, dentro da luz, da verdade, e da vida plena.
- É dentro de uma luz mais clara que o seu verdadeiro
rosto se revela, se refazem todos os caminhos e se superam todos os conflitos.
- Coloque-se diante de tantos rostos humanos: faça um “percurso”, começando pelos rostos mais próximos e familiares; lentamente, vá ampliando sua visão acolhendo os rostos dos mais distantes, excluídos, rostos desfigurados, sofridos, rostos que sofrem preconceitos, julgamentos... Por detrás da aparência de cada rosto, capte a presença do “rosto divino”; entre em sintonia e comunhão com todos os rostos, constituindo o grande painel do rosto universal da humanidade. Em cada rosto humano, sinta ressoar a voz do Pai: “este é o meu(minha) filho(a), o(a) escolhido(a)”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Não só de pão vive o homem” (Lc 4,4)
Antes da Quaresma, carnaval...; o carnaval é o tempo dos disfarces, o tempo das máscaras, quando ninguém quer mostrar seu próprio rosto e cada um se esconde detrás de seu próprio disfarce. Às vezes, temos a impressão que é preciso sempre estar usando máscaras, trocando-as de acordo com as circunstâncias.
Somos os mesmos, mas disfarçados. Somos os mesmos, mas dissimulando nossa identidade e revestindo-nos de qualquer outro personagem. Debaixo da aparente segurança, pulsa um rosto temeroso; detrás de uma face risonha há uma expressão de dor.
Agora, quando se apagam os ecos do carnaval, é tempo de tirar as “maquiagens”. Começamos o tempo quaresmal, o tempo do “des-velamento” (tirar o véu, ou a máscara), tempo privilegiado para deixar transparecer nossa verdade mais profunda e nossa real identidade. Mas, o mais curioso é que a Quaresma começa também com um “disfarce”. Com as tentações, percebemos que elas não são outra coisa senão o disfarce do “demônio” para enganar e enredar Jesus. Se examinarmos bem qualquer das três tentações, nos daremos conta de que são “disfarces do mal” “sob a aparência de bem” (S. Inácio).
A tentação tem muito de sedutora e maliciosa; aí está precisamente sua força de atração. A tentação é uma sedução que atrai irresistivelmente nossa liberdade, exerce uma fascinação que nos deslumbra.
Acaso alguém quer o mal pelo mal? Acaso alguém quer afastar-se de Deus livre, voluntária e consciente-mente? A mentira reveste-se de algo que a esconda e a apresente como verdade.
A tentação necessita revestir-se do bem para que nós a aceitemos livremente. A tentação nunca apresenta o rosto descoberto. Sempre aparece escondida e disfarçada. E assim foram também as tentações de Jesus. Tratava-se de demonstrar que realmente era Filho de Deus; ou de fazer-se poderoso e dono do mundo; ou simplesmente demonstrar que nada lhe iria acontecer e que ganharia a admiração de todo o mundo se pulasse da parte mais alta do templo. Mas, onde está o verdadeiro “disfarce” das tentações de Jesus? Está justamente no fato de procurar justificá-las com a Palavra de Deus. Portanto, utilizar Deus como uma justificação e legitimação para alimentar o ego, para fazer-se o centro, para dominar... E esta é a pior tentação e o pior dos disfarces.
Os evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) colocam o relato das tentações de Jesus no início de sua atividade pública. Talvez, com isso, eles estão nos dizendo que, antes de começar o percurso quaresmal, é necessário confrontar-nos com nossos próprios “demônios interiores”.
Sem ter passado por aí, o mais provável é que comecemos a ver “demônios” nos outros, ou que estejamos à mercê dessas forças que permanecem ocultas, mas bem ativas, em nós, conduzindo-nos aonde não queríamos ir.
Os “demônios” dos quais o relato evangélico deste domingo fala são três e que caracterizam bem o nosso ego: o ter, o poder e a vaidade (aparentar). É neles onde o ego se entrincheira e onde se apega para sentir-se que é “algo”. Bens materiais e consumismo, poder e influência, imagem e prestígio: eis aí os interesses do ego. Então, é quando o instinto de viver se transforma em obsessão pela saúde e pela vida longa; o instinto de ter se transforma em cobiça de acumular sempre mais; o instinto de valer, em obsessão pelo prestígio e pelo poder. É a deriva do coração humano, a inversão de sua vocação mais profunda.
Se nos damos conta, o que se busca detrás deles, é uma mesma coisa: segurança. Precisamente por isso, a maneira de “desmascarar” esses “demônios” é reconhecer suas artimanhas e descobrir a falsidade de suas promessas.
O relato das tentações de Jesus não é “história” mas teologia; não é crônicas de um acontecimentos, mas as tentações são descaradamente reais. Empregando símbolos conhecidos por todos, os evangelhos nos querem fazer ver uma verdade espiritual fundamental: a vida humana se apresenta sempre situada entre dois movimentos internos opostos: um, de saída de si, de vida expansiva, aberta a todos, comprometida...; outro, de retração, de medo, de fechamento no próprio “ego”. Trata-se do “joio” e do “trigo”, presente nas raízes de nosso ser. A questão fundamental é esta: “qual dos dois dinamismos alimentamos em nossa vida?”.
Que as tentações sejam três, não é casual. Trata-se de uma síntese perfeita de todas as relações que o ser humano pode desenvolver. A tentação consiste em entrar numa relação equivocada conosco mesmo, com os outros e com Deus. Uma autêntica relação humana com os outros depende, queiramos ou não, de uma adequada relação conosco mesmo e com Deus.
1ª. tentação: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão”. A tentação permanente é deixar-nos levar pelos instintos, pelos apetites, pelas “afeições desordenadas”. Ou seja, fazer em todo momento o que o ego exige. É negar-nos continuar crescendo e superando a nós mesmos, porque isso exige descentrar-nos, sair do círculo fechado do “eu autossuficiente”.
Nossa grande tentação hoje é converter tudo em pão. Reduzir cada vez mais o horizonte de nossa vida à satisfação de nossas necessidades, viver obcecados por um bem-estar sempre maior ou fazer do consumismo indiscriminado e sem limites o ideal quase único de nossas vidas.
Estamos vendo claramente que uma sociedade que arrasta às pessoas para o consumismo sem limites e para a autossatisfação não faz outra coisa senão gerar o vazio e o sem-sentido nas pessoas e alimentar o egoísmo, a falta de solidariedade e a irresponsabilidade na convivência.
2ª. tentação: “Se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu”. O poder, em qualquer de suas expressões, é a idolatria suprema. O poder traz sempre consigo a opressão, nunca é mediação de libertação. Adorar a Deus não significa incensar um “deus exterior”. Trata-se de descobrir o que de Deus há em nós e viver em sintonia com Ele. Nosso autêntico ser não está no ego aparente, mas no “eu profundo”. Se descobrimos nosso ser essencial, não nos importaremos esvaziar nosso falso eu e, em vez de buscar o domínio sobre o outros, buscaremos o serviço para com todos.
3ª. tentação: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo”! Realizar um ato verdadeiramente espetacular, para que todos vejam o quão grande somos. Todos nos exaltarão e nossa soberba chegará ao limite.
A resposta é esta: que deixemos Deus ser Deus. Aceitemos nossa condição de criaturas e, a partir disso, alcancemos a verdadeira plenitude.
Que esse tempo quaresmal possa ser um tempo precioso para “afinar” nosso interior: sermos mais sensíveis à realidade que nos cerca, buscar nela as pegadas de Deus que nos conduzem ao encontro, e deixar-nos alcançar pela graça de um Pai que deseja para todos nós a felicidade e a alegria.
Texto bíblico: Lc 4,1-13
Na oração: Para chegar a teu verdadeiro ser, é preciso atravessar teu próprio deserto. Liberta-te de tudo que acreditas ser, para chegar ao que és de verdade. Somente em teu próprio deserto se desvelará o sentido verdadeiro de tua vida. Isso sim, impulsionado pelo Espírito.
Sozinho e no deserto, tens que tomar a decisão definitiva. A “terra prometida” já está aí, do outro lado de teu falso eu. Mantém-te em silêncio, até que se derrube o muro que te separa de ti mesmo: o muro do poder, da vaidade, da riqueza... Deixa que a luz, que já está em teu interior, te invada por completo. Serás feliz e farás felizes àqueles que vivem junto de ti.
- Como sermos fiéis seguidores(as) de Jesus se não somos conscientes das tentações mais perigosas que nos podem desviar hoje de seu projeto e estilo de vida? Desmascará-las e “dar nomes”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto...” (Mt 6,17)
Quaresma é tempo favorável para “ordenar a própria vida” na direção do sonho de Deus para toda a humanidade. Para que este processo de “ordenamento” aconteça, o tempo litúrgico quaresmal nos convida a “considerar” as nossas relações vitais: com Deus, com os outros, com o mundo e conosco mesmo.
No Evangelho fala-se das “práticas quaresmais” da oração, esmola e jejum, onde nossas relações são iluminadas e questionadas pelo modo de proceder de Jesus. Quê sentido tem, para nossa cultura, estes três gestos que são propostos para uma vivência fecunda da Quaresma?
Em primeiro lugar, são três gestos que nos humanizam e tornam a vida mais leve e com sentido; eles condensam o sentido da vida cristã. A vida é um abrir-se aos demais (esmola), um mergulhar no mistério de Deus (oração) e ser capaz de ordenar e dirigir a própria existência (jejum).
É preciso criar espaço novo no coração e na mente, para que coisas novas aconteçam. Vividos a partir da identificação com Jesus Cristo, os valores da oração, da esmola e do jejum esvaziam nosso “ego” para nos aproximar dos pobres e excluídos, encher-nos de compaixão e misericórdia, exercitar-nos na prática do bem e da bondade, acolher o outro com sinceridade, perdoar gratuitamente, cuidar com ternura e admiração tudo o que nos cerca, encantar-nos com o mistério da vida, deixar-nos envolver pela graça e permitir que o amor circule em nós e no mundo, gerando vida em abundância.
Trata-se de um “modo de proceder” permanente, não só para o tempo quaresmal.
Há “quaresmas” na vida que nos atingem “fora do tempo”, em qualquer momento do ano; quaresmas que não queríamos viver e que sabemos que não nos resta outra alternativa a não ser passar por elas: enfermidades, momentos de crise, etapas de ruptura, tempos de luto por um ente querido que se foi... Mas há quaresmas que são a vida mesma, o tempo cotidiano de muitas pessoas, especialmente dos mais empobrecidos e sofredores de nossa sociedade. Todas estas realidades não são mudas: fazem chegar seus gritos a cada um de nós e nos falam de nossa limitação, de nossa fragilidade, de nosso pecado...
Quando os fiéis entram na fila para receber, sobre suas cabeças, um pouco de cinzas, na quarta-feira que dá início à Quaresma, eles não estão fazendo um ato derrotista, nem expressando uma tristeza inútil, nem mergulhando na escuridão daquilo que o fogo destruiu. Eles estão fazendo uma profissão de fé na força da esperança. Mesmo que tudo pareça arruinado, há uma potência interior que não permite ao ser humano desistir de si mesmo nem dos outros. Ela recobra a energia do perdão, o ânimo para prosseguir no caminho da vida, a confiança nas pessoas, a amizade que ficou ameaçada.
Nossas cinzas tem um valor muito diferente segundo sua origem. A imagem de uma mulher abatida diante do incêndio de sua casa e que perdeu todos os seus pertences, não é igual à cinzas de uma chaminé da casa de campo. “Cinzas: de quê?” Essa é a questão. Nossas cinzas são uma recordação da fragilidade na qual nos movemos na vida: o que perdemos, desperdiçamos da vida que nos foi dada; o amor aos outros que queimamos inutilmente; a terra calcificada de nossas indiferenças e de nossas cumplicidades; os sonhos que não permitimos que chegassem a ser realidade, queimados pela chama da nossa intolerância; os bons desejos que deixamos à beira do caminho, destruídos lentamente pelos pavios fumegantes...
De tudo isso temos que nos revestir; isso é o que carregamos sobre nossas cabeças, que se inclinam com humildade, ante o gesto sagrado. A sorte que temos é que nos é anunciado também um caminho novo, abre-se diante de nós um caminho para percorrer, desperta-se o fogo novo do amor, ativa-se uma nova energia criativa, mobilizam-se inéditos recursos internos... para dar uma nova feição ao nosso seguimento de Jesus. Portanto, no sentido bíblico, a cinza é força, espírito, vida, projeto, síntese e realidade carregada de futuro. É esperança, é ressurreição; é renovação e conversão, de tudo o que é nosso e dos outros. É comunhão e renascimento. A cinza é purificação.
A finalidade da imposição das Cinzas e a vivência das práticas quaresmais (oração, jejum e esmola) é nos ajudar a fazer uma “travessia interior”. Não se trata de viver a Quaresma só retocando, com certa “maquiagem cristã”, o exterior de nossa vida. É preciso deixar que a Graça de Deus encontre liberdade para transitar pelos recantos mais “escondidos” do nosso eu profundo. “E o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa”. Nosso coração há de empapar-se desta Graça, desse afeto a Jesus e ao seu Reino, que nos conduzirá até à alegria da Páscoa.
Precisamos de tempos, silêncios, espaços..., para criar um ambiente favorável para o encontro verdadeiro com Aquele que sempre vem ao nosso encontro; é preciso sair do espaço cotidiano, rotineiro, para entrar em outro espaço, amplo, provocativo, surpreendente... e deixar-nos afetar pelas coisas de Deus.
Redescobrir o próprio lugar interior é sinal de maturidade e sabedoria de vida.
Esse lugar nada tem a ver com o êxito social, ou o reconhecimento dos outros. É um lugar interior, uma atitude de prontidão em ultrapassar todas as camadas exteriores de si mesmo e chegar à dimensão mais profunda, que nem sequer temos palavras para expressá-la. Um lugar no qual não importa nem o que os outros opinam a respeito de nós, nem sequer a ideia que fazemos de nós mesmos. Um espaço íntimo, lugar de serenidade e de intimidade, a partir do qual a Graça tem plena liberdade de atuar.
Esse lugar só se pode indicar como “o escondido”, onde aprendemos a decifrar a vida, onde temos acesso aos recursos e às riquezas mais nobres que desvelam nossa verdadeira identidade. Ali, “no escondido”, é onde devemos acudir para orar, para tornar possível a emergência do “Deus escondido” em nós e nas transformações de nossa vida. Um lugar onde não contam os reflexos e as imagens, mas a realidade primeira, a que fica desvelada a partir do coração, o nosso interior, o centro vital que somos e a partir do qual nos nutrimos e vivemos.
“Entrar em casa” expressa bem uma atitude de movimento de fora para dentro, da rua onde transitamos indiferentes para o lugar onde vivemos a “mística do encontro”. Além disso, “entrar no quarto” indica um sinal especial de intimidade recolhida: é ali, onde é preciso fechar a porta e esperar pacientemente “Aquele que mora no escondido”.
Trata-se de fazer a experiência de entrar no “escondido”, na gruta do Horeb, na fenda das rochas do Sinai, no interior da tenda do deserto, no coração e centro da vida... Ali é onde uma visão nova e diferente da vida é possível: a d’Aquele que vê no “escondido” e sabe derramar graças como uma medida sacudida e ampla: seu próprio Coração.
Precisamos reavivar nossas pobres práticas quaresmais: fazer do coração um espaço humilde e rico; de nossas mãos, carícia e ternura; de nossos pés, desejo de proximidade e comunhão, para ungir com o azeite e vinho de nossa fragilidade tantos feridos e quebrados que se encontram às margens de nossos caminhos.
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Orar é um exercício de ida ao centro, encontrar-se consigo mesmo na essência do ser, e ali encontrar-se com Aquele que é o mais íntimo: o próprio Deus.
Portanto, orar nunca foi e nem será obrigação, regra, norma, lei, mandamento, ou outra coisa qualquer que uma pessoa se sinta forçada a fazer. No dizer de S. Inácio: “orar é uma conversação entre amigos”. Orar é um exercício das pessoas que querem se encontrar, centralizar-se, para sempre agir a partir do seu centro, e não a partir de outros centros (opinião alheia, costumes, moda, meios de comunicação, conveniência, tradição, etc.). Orar é um exercício disponível àqueles que querem ter vida a partir de sua própria vida, junto com o Autor da vida, levando vida a todos.
- Qual é do seu estado de ânimo ao iniciar o percurso quaresmal?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração” (Lc 6,45)
A antropologia bíblica considera o coração como o interior do ser humano em um sentido muito mais amplo que o das línguas latinas, que evocam a vida afetiva, a sede dos sentimentos... O coração é o centro de nosso ser, o nosso cerne mais íntimo, o coração do coração, que consiste, sobretudo, no lugar do encontro com Deus.
“O sentido de nossa vida não é outro que a busca deste lugar do coração” (Olivier Clément). Ou seja, no centro de nós mesmos, unificando nosso ser, está o coração, o “cofre” onde se guarda/oculta o que é mais nobre em nós. Por isso Jesus dava tanta importância ao coração: “a boca fala daquilo que o coração está cheio” (Lc. 6,45); “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt. 5,8).
É no “coração” que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser. Trata-se da dimensão mais verdadeira de si, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde ela vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, de onde partem as suas aspirações e desejos fundamentais, onde percebe as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.
O coração do ser humano é a própria fonte de sua personalidade consciente, inteligente e livre. É o lugar de suas escolhas decisivas, da lei não escrita e da ação misteriosa de Deus. Trata-se do centro existencial que permite à pessoa orientar-se como um todo e plenamente em direção a Deus e ao bem. No coração está gravada a imagem divina oculta, “o homem de coração oculto” (1Pd. 3,4). S. Serafim de Sarov o denomina “o altar de Deus”.
Aqueles que descem às profundidades do seu interior ficam fascinados pelo esplendor daquilo que contemplam. O coração de cada um está habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; aqui, todo ser humano sente-se seduzido pelo que é verdadeiro, bom e belo; busca ardentemente a pacificação, a unificação interior, a harmonia com tudo e com todos...; sente ressoar o chamado da verdade, o magnetismo do amor, da plenitude; sente-se atraído por um desejo irreprimível de autotranscedência...
Por ser livre e responsável, o ser humano é capaz de decisões e de realizações, de ser artífice de seu destino e de sua história. Ele sente por dentro o impulso para a expansão de si; ele escuta por dentro o chamado a viver e a viver em plenitude. Nesse sentido, o “coração” é, de nossa parte, o espaço divino por excelência. “Só o amor pode adentrar-se no Deus que é amor”. Assim, a descoberta do próprio ser profundo aproxima cada um do autor da vida: Deus.
É no coração, “última solidão do ser”, que a pessoa se decide por Deus e a Ele adere. Aqui Deus marca “encontro” com cada um. “Deus é mais íntimo a cada um de nós do que nós mesmos” (S. Agostinho). Chegar ao lugar do coração é dom de Deus: “Eu lhes darei um coração para conhecer-me; saberão que eu sou o senhor. Eles serão meu povo e eu serei seu Deus; eles se converterão a mim com todo seu coração” (Jer. 24,7). Eis o “lugar” onde poderemos estar em segurança, profundamente repousados.
Um coração que vibra harmoniosamente, de modo coerente, “com ondas de frequência elevada”, nos permite perceber a realidade de um modo igualmente harmonioso; sua energia radiante, transmissora de paz, de quietude, de confiança, de abertura, alcança os outros, tornando possível o sonho da unidade entre nós e aqueles que estão ao nosso redor.
Para os antigos monges, o contrário desta abertura de coração é a “sklerokardia”, ou seja, a “dureza de coração”, que impede a entrada em si mesmo e o encontro com os outros e com Deus. O coração pode palpitar ao ritmo da soberba ou da humildade, do amor ou do ódio, do egoísmo ou da generosidade. E está cheio de mesclas: de trigo e de joio.
Quando nosso coração está “fechado”, nossos olhos não veem, nossos ouvidos não ouvem, nossos braços e pés se atrofiam e não se movimentam em direção ao outro; vivemos voltados sobre nós mesmos, insensíveis à admiração e à ação de graças. Quando nosso coração está “fechado”, em nossa vida não há mais compaixão e passamos a viver indiferentes à violência e injustiça que destroem a felicidade de tantas pessoas. Vivemos separados da vida, desconectados. Uma fronteira invisível nos separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia.
A viagem para a própria interioridade, para a terra sagrada do coração, necessita de um hábil discernimento para conhecer as armadilhas e os “inimigos” que aparecem ao longo do percurso.
Quando, numa visão mais profunda de nós mesmos e do mundo, nos vemos como criaturas que surgem do amor de Deus, e quando essa visão é fruto de uma vivência interior e transbordante, começa a brotar no coração humano um movimento de unificação para Deus. Esse movimento é feito de confiança, de canto, de amor, de entrega, de serviço...
Por ser imagem de Deus, e porque “Deus é Amor”, o coração do ser humano é capaz do melhor: tem dada por Deus como dom da Criação, a potencialidade de amar aos outros com o mesmo amor com que Deus lhe ama, ou seja, com um amor gratuito e generoso. Mas, por ser uma imagem ofuscada pela limitação e pela fragilidade, o coração humano é também capaz do pior: de negar sua origem e sair ao encontro com a realidade a partir de suas potencialidades necrófilas (forças de morte); de viver dando as costas a Deus e distorcendo a imagem essencial de seu Criador; de se preocupar com o “cisco” no olho do outro, assumindo atitudes intolerantes e julgadoras...
Quando nosso coração está centrado em Deus, ou seja, quando ele se percebe que vem d’Ele, vive para Ele e para Ele retorna, tudo está em seu lugar, tudo vai bem. É “árvore boa que dá bons frutos”. As “coisas” não são obstáculos, e as pessoas muito menos. Nem sequer o nosso próprio e ambíguo “eu” é tentação.
Até nossos instintos mais primários ficam integrados nessa corrente de amor recebido e amor entregue. Mas quando se produz um descentramento do coração, dá-se um corte com a Fonte e, portanto, com seu destino; quando o coração é presa do “diá-bolos” (aquele que desune, que divide), então tudo começa a desandar: o “eu” inflado se converte num depredador; os instintos básicos se transformam em obsessões; a vida fica fragmentada e dispersa. Tudo se petrifica. O coração torna-se “oxidado”, pois seus impulsos oblativos não são ativados. “Não se colhem figos de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas”. É a deriva do coração humano, a inversão de sua vocação mais profunda.
Faz-se urgente reconectar-se com a Fonte, onde o coração é continuamente gerado, sustentado, alimentado pelo amor de Deus que o irriga, que o restaura. O coração profundo pode estar desprezado, adormecido, fechado, mas não pode morrer.
Texto bíblico: Lc 6,39-45
Na oração: A oração é o caminho interior que faz você chegar até o seu próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado mais positivo de você mesmo, mas o próprio Deus. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde você é chamado a mergulhar no silêncio, à escuta de todo o seu ser.
- Nas profundezas do seu coração, acolha, escute e reconheça o murmúrio da voz de Deus, que, como um rio calmo e ao mesmo tempo vivaz, o(a) acompanha, da nascente ao mar aberto.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc. 6,36)
Tornar presente o Pai como Amor e Misericórdia foi, para Jesus, o cerne de sua missão: toda a sua vida foi uma eloquente demonstração da misericórdia divina para com a humanidade. Jesus, que encarna e torna visível no mundo a misericórdia do Pai, se faz também misericordioso. Anuncia aos pecadores que eles não estão excluídos do amor do Pai, mas que Ele os ama com infinita ternura. O Evangelho só aparece como Boa-Nova se compreendermos esta novidade introduzida por Jesus. Ele, em sua presença misericordiosa, revela um Deus desprovido de dogmatismos, de controle e de poder. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, controlar, verificar; o seu Deus é o Deus da misericórdia, da bondade sem limites e da paciência para com todos.
Jesus propõe um modo de ser humano inseparável da misericórdia do Pai:
“Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc. 6,36)
Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado convite e a mensagem mais profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a si mesmo e aos outros. Deus, em sua misericórdia reconstrutora, libera em nós as melhores possibilidades, riquezas escondidas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis... É ele que “cava” no nosso coração o espaço amplo e profundo para nos comunicar a sua própria misericórdia. A força criativa do seu amor misericordioso põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada.
A experiência de misericórdia gera em nós uma atitude correspondente de misericórdia. O Deus misericordioso cria em nós um coração novo, feito de acordo com o Seu, capaz de misericórdia (“bem-aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia”). É exatamente este o maior sinal da sua Misericórdia: ama-nos a ponto de enviar-nos ao mundo como instrumentos de Sua reconciliação, pondo em nosso coração um Amor que vai além da justiça.
A misericórdia é não só o atributo primeiro de Deus, mas também a mais humana das virtudes. É aquela que melhor revela a natureza do Deus Pai e Mãe de infinita bondade. É a que revela igualmente o lado mais luminoso da natureza humana. Por isso é a que mais humaniza as relações entre as pessoas.
A misericórdia presente em nós é modelada e alimentada pela Misericórdia divina, que se visibiliza no perdão, na compaixão, no consolo, na ternura, no cuidado... Nossa atitude misericordiosa nos configura à imagem do Deus misericordioso. É onde somos mais semelhantes a Ele. A misericórdia como estilo-de-vida cristã nos descentra de nós mesmos e nos faz descer em direção ao outro, numa atitude de pura gratuidade. A vivência da misericórdia nos torna realmente livres, e isso nos proporciona profunda alegria interior.
Uma misericórdia superabundante, generosa... é gesto gratuito e positivo de encontro, de acolhida, de cordialidade, que se torna hábito de vida: ser “presença misericordiosa”. A espiritualidade da misericórdia contém em si a gratuidade do relacionamento, a dimensão desinteressada da doação. É a partir da misericórdia que a pessoa é capaz de amar os inimigos, de fazer o bem aos que a odeiam, de bendizer os que a amaldiçoam, de oferecer a outra face, de emprestar sem esperar recompensa, de perdoar sem limites...
A misericórdia é humilde e não humilha, porque é discreta e silenciosa. Ser presença misericordiosa não significa pôr o outro de joelhos para que reconheça seus erros; ela nasce de um coração “educado” pela Misericórdia divina e se manifesta externamente com uma atitude mansa e condescendente. Essa Misericórdia é uma força poderosa, não se rende diante do mal, porque é sempre capaz de redes-cobrir o bem ou de salvar a intenção do próximo, de abrir-lhe novamente a esperança...
Entrar no movimento da misericórdia humaniza e cristifica essencialmente a pessoa, porque a misericórdia constitui “a estrutura fundamental do humano e do cristão”. Fundamentalmente, a misericórdia significa assumir como própria a miséria do outro, inicialmente como sentimento que comove, mas que, logo em seguida, leva à ação. Ela brota das “entranhas” e se dirige instintivamente ao próximo na forma de proximidade, acolhida e compaixão.
Misericórdia é exatamente: “ter coração” para o outro, dando preferência aos pequenos e pobres.
A misericórdia é a caridade que “toma mãos e pés”, ou seja, o amor que se expressa em uma ação decidida e generosa, capaz de transformar e libertar. Em hebraico, a palavra “misericórdia” – “rahamim”, significa ter entranhas como uma mãe. É comover-se diante da situação de fragilidade do outro; é sentir-se intimamente afetado e, por isso, com a disposição de ser magnânimo, clemente e benevolente para com ele. A misericórdia recebida e experimentada é a base da atitude compassiva, não como ato ocasional mas como estilo de vida evangélico. Torna-se o fundamento e a perene inspiração de uma existência de par-tilha e solidariedade.
Ser presença misericordiosa é um “modo de proceder”, um “estilo de vida” que não está ligado a uma transgressão; é muito mais um estilo de bondade, compreensão, magnanimidade, estilo de quem não se fixa no que o outro merece nem se escandaliza com sua miséria. "Devemos ser presença misericordiosa como pecadores, e não como justos”.
A misericórdia é fundamentalmente uma mensagem de estima e confiança no outro, crer na sua amabilidade. Por isso, a presença misericordiosa é força que provoca no outro a re-descoberta de sua própria identidade (uma pessoa amada e acolhida pelo Deus misericordioso) e ao mesmo tempo desata nele as ricas possibilidades de vida que estavam latentes.
Quem é misericordioso está convencido de que o irmão é melhor que aquilo que aparenta ser. A misericórdia é expansiva, ela abre um novo futuro e ativa os melhores recursos no interior de cada um. Ela não se limita ao erro, mas impulsiona o outro a ir além de si mesmo.
Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano.
Textos bíblicos: Lc 6,27-38
Na oração:
- Pedir maior consciência do Amor Misericordioso do Pai por você; que você possa deixar-se surpreender pelo Amor criativo do Deus Pai/Mãe... e participar em sua festa de reconciliação.
- Ao mesmo tempo, pedir um coração “desarmado”, pronto a re-criar (perdoar é re-criar, é dar oportunidade para alguém viver de novo).
- Entrar no “fluxo” da misericórdia divina: ser canal por onde ela circula para chegar até os outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E, levantando os olhos para os seus discípulos, disse: ‘bem-aventurados vós...” (Lc 6,20)
“Ser feliz”: não há outra meta mais importante na vida de todos nós. De fato, é tão importante que se converteu em um desejo que repetimos de maneira muito frequente e, de forma especial, para as pessoas que mais amamos. Proferimos os votos de felicidade em qualquer evento, em todos os aniversários, no início de cada ano... Não podemos desprezar o excesso de nossas felicitações, por mais rotineiras que nos pareçam. Elas expressam um desejo profundo, talvez o desejo mais íntimo de nós mesmos.
“Que sejas feliz!” Que melhor sentimento que isso podemos desejar a alguém, seja ele(ela) quem for?
A proposta evangélica de felicidade tem algo a nos dizer em nosso momento atual?
A impressão que temos é que a vivência de muitos cristãos está longe de apresentar a Deus como amigo da felicidade humana, fonte de vida, alegria, saúde; na experiência de fé de muitas pessoas, o seguimento de Jesus, muitas vezes, não se associa com a ideia de “felicidade”. Predomina, em certos ambientes ou grupos cristãos, uma doutrina dolorida e uma catequese afastada da busca humana da felicidade. O cristianismo se apresentou, durante muito tempo, como a religião da cruz, da dor, do sofrimento, da renúncia, da repressão ao prazer e à felicidade neste mundo.
Diante de tal situação, Jesus, no Evangelho de hoje, afirma categoricamente: “Felizes sois vós!”. Jesus, ao “descer à planície”, promulga seu programa “com” vida, fundado não numa ética de “deveres e obrigações”, mas numa ética de “felicidade e ventura”. Aqui está a surpreendente novidade do projeto oferecido por Jesus. Sem sombra de dúvida, o significado das bem-aventuranças e, portanto, do programa de Jesus, é algo mais humano, mais próximo e mais ao alcance de ser entendido e vivido por qualquer pessoa de boa vontade.
O Evangelho, a “boa notícia”, é o tesouro que enche o ser humano de uma felicidade indescritível. Com efeito, a primeira característica que aparece nas bem-aventuranças é que o programa de Jesus para os seus é um programa de felicidade”. Cada afirmação de Jesus começa com a palavra “makárioi”, “ditosos”. Essa palavra, significa, em grego, a condição de quem está livre de preocupações e atribulações cotidianas.
As bem-aventuranças substituem os mandamentos que proíbem por um anúncio que atrai para a felicidade. E a promessa de felicidade não é para depois da morte. Jesus fala da felicidade nesta vida.
Conhecemos duas listas de Bem-aventuranças: a de Lucas e a de Mateus. São bastante distintas, porque uma fala dos pobres e a outra fala dos pobres “em espírito”; uma fala de fome e outra de fome de “justiça”... Costuma-se dizer que as Bem-aventuranças de Lucas são bem-aventuranças “de situação”, e as de Mateus são “de atitude”. Ou seja, enquanto Lucas diz: os que se encontram assim, os que estão nesta situação, são bem-aventurados (os que estão chorando, os que tem fome, os que são pobres...), Mateus diz: os que reagem desta maneira diante dos que choram, dos que são pobres, dos que tem fome... são bem-aventurados. É como a atitude que se toma frente aqueles que Lucas descreveu.
Antes de proclamá-las, Jesus vive intensamente as bem-aventuranças; elas são a expressão daquilo que é mais humano no seu interior; elas são seu auto-retrato. Jesus é o bem-aventurado. Ele personaliza tais atitudes: é o pobre, aquele que se comoveu diante da dor e misérias humanas, que expressa uma fome e sede de plenitude e humanização, que é incompreendido e perseguido por causa dos seus sonhos.
O Jesus que os Evangelhos nos apresentam deixa transparecer, permanentemente, um sentimento sereno e agradecido diante da vida. Ele vive apaixonado pelo Reino do Pai; Ele é um homem aberto e próximo das pessoas, com uma enorme capacidade de relação, de maneira especial diante dos mais pobres e excluídos. Mostra uma infinita confiança nas pessoas que encontra, seja qual for sua situação existencial. Ele é o portador definitivo de boas notícias. O evangelho da salvação chega até às barreiras e fronteiras humanas. Seu tempo é tempo de alegria; é a festa das bodas. Jesus nos convida a entrar na nova vida de felicidade e fraternidade. As bem-aventuranças são o caminho da felicidade.
Jesus, ao proclamar “bem-aventurados” os pobres, os famintos, os que choram, os que são perseguidos... jamais quis sacralizar a dor humana. Ao contrário, são bem-aventurados, sim, os pobres, porque, vazios de apegos e cheios de esperança, anunciam o sonho de Deus para a humanidade, uma nova sociedade baseada na solidariedade e na partilha; são bem-aventurados, sim, os famintos, porque trazem nas entranhas a fome de liberdade e sabem que o ser humano e o mundo carregam infinitas possibilidades de crescimento; são bem-aventurados, sim, os que choram porque suas lágrimas demonstram que eles ainda não perderam a sensibilidade, que eles sentem o mundo como injusto e que, por isso, são verdadeiramente os únicos a sonharem, a buscarem e a lutarem por um mundo novo; são bem-aventurados, sim, os que são perseguidos porque seguem corajosamente a estrela do Reino e são sinal de grande transformação realizada por Deus.
As bem-aventuranças nos revelam que somos habitados por um impulso que nos torna “buscadores de felicidade”. A sociedade de consumo que invadiu tudo, realça a felicidade como a meta imediata de nossas buscas, algo ao qual temos direito e que depende de fatores externos. Esta felicidade é passageira, pois quando a alcançamos, invade de novo a insatisfação, a inquietude, o ressentimento, a inveja... e de novo empreendemos nossa busca. Assim, pois, a felicidade nos escapa quando a buscamos “fora”, como fim em si mesma, para saciar nosso ego insaciável.
A felicidade nasce dentro de nós: daquilo que sentimos, que valorizamos, que vivemos... Por isso, as bem-aventuranças não são algo externo, mas atitudes que plenificam nossos corações. A chave da felicidade está em permitir que se revele o sentido da luminosidade que se encontra no fundo de nosso ser. O que nos tira a energia e nos torna impotentes é afastar-nos desse princípio vital que é o Divino em cada ser.
Ser o que somos, em serenidade e profundo sentido. A felicidade, tal como a verdade e a beleza, ao se revelar a nós, desata a potencialidade daquilo que somos e de tudo o que é. Nesse sentido, felicidade pode ser entendida como um “estado de espírito”; felicidade é viver sem chegada, sem partida; é experimentar uma sensação de renascimento de satisfação interior... ou sentir despertar em si um potencial de bondade, de compaixão, de solidariedade...muitas vezes desconhecida.
A verdadeira felicidade coincide com a paz interior; é o prazer de descobrir, cada dia, que a vida se inicia novamente em cada amanhecer; é fazer da mesma vida uma grande aventura... Por isso, a felicidade está relacionada com a gratuidade e com a gratidão.
Texto bíblico: Lc. 6,17.20-26
Na oração: “empalavrar” (pôr em palavras) as bem-aventuranças que brotam do seu coração, aquelas que lhe inspiram e dão sentido à sua existência, como seguidor(a) de Jesus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes...” (Lc 5,4)
Indiscutivelmente, Jesus é o misterioso visitante que cada dia chega até nós para advertir que precisamos nos libertar do tedioso cotidiano, quando ele se torna convencional e, não raro, carregado de desencanto, pesado, estressante... Corremos o risco de sermos apenas imitadores ou repetidores, pois tememos nos perder na busca do novo, bloqueando o desenvolvimento pessoal e comunitário.
O encontro com Jesus nos arranca da rotina, do “sempre fizemos assim” e nos desafia a “pescar” de maneira diferente; sua presença alarga nossa mente e nosso coração instigando-nos a sair dos nossos estreitos mares e entrar no movimento do vasto mar que Ele nos oferece.
Em quê grau Sua presença nos desperta para aquilo que devemos ser como seus(suas) seguidores(as)? São grandes os riscos de vivermos em mares tão estreitos; é cômodo perceber, delimitar, defender e fechar-nos no próprio mar. Isso fazemos de maneira tão zelosa que nem vemos aquilo que está para além da margem onde nos estabilizamos.
Tal estreiteza de vida aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio espaço se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.
Hoje, o lago de Tiberíades se converteu numa grande rede que abarca o mundo inteiro. Mas, o que as pessoas buscam nessa grande rede? E, sobretudo, o quê estamos oferecendo nela para evangelizar?
Com um só click podemos chegar a milhões de pessoas, podemos fazer muito bem, mas também podemos criar muita confusão e inclusive repulsa, podemos levar a mensagem de Jesus ou simplesmente fazer transparecer todo o nosso ego inflado, cheio de si mesmo. As redes sociais têm seus perigos, mas também tem suas grandes oportunidades que não podemos desperdiçar. Vamos nos dando conta que, enquanto não evangelizemos a partir dos meios eletrônicos modernos, não poderemos encher nossas redes de peixes. O seguimento de Jesus implica hoje a necessidade de evangelizadores nas redes sociais.
Tendo as ferramentas em mãos (nossas pobres barcas e redes) e sendo portadores de uma mensagem de vida (o evangelho) somos movidos por Jesus a “ser pescadores do humano”. No mar das redes sociais ressoa mais uma vez o apelo de Jesus: “fazei-vos pescadores do humano”. Frente a esta nova realidade, quê tipo de profecia responde melhor a nossa peculiar forma de cooperar na missão do Espírito do Abbá e de Jesus.
Estamos no mundo das telas: através delas nos interconectamos, transmitimos informações, saberes. As diversas telas tendem à convergência: com um só dispositivo, fixo ou móvel, podemos falar, enviar e receber fotos, música, vídeos e qualquer tipo de arquivo; com o “boom” das redes sociais podemos fazer isso com o grupo que elegemos em cada momento.
Se há algo que caracteriza nosso tempo é a nova consciência de ser rede-comunhão-interconexão-unidade. Encontramo-nos em um tempo surpreendente: as espetaculares inovações tecnológicas nos convidam a entrar numa inimaginável rede de informações, imagens, conexões... Nosso planeta está dotado de uma complexíssima textura de comunicações. Com apenas alguns clics oferece-se, diante de nós, um mundo complexo, de graça e maldade, de alianças para o bem e para o mal, de luzes e trevas.
E aí estamos nós, seguidores(as) de Jesus, “em-redados(as)”, nos perguntando por nossa identidade cristã, na vivência do Evangelho e na missão de nos fazer presentes neste “novo mundo”. Todos já sabemos que tudo está interconectado: a globalidade é interação. Lentamente vai-se tomando consciência de que formamos parte de um todo. A realidade vai se revelando como um manto sem costuras, sem fraturas, onde todos estamos implicados e comprometidos.
“Rema mar adentro!”, ressoa a voz de Jesus. A multidão permanece em terra; somente Pedro e seus companheiros se adentram no mar profundo. Este apelo de Jesus é muito simbólico. Em grego “bados” e em latim “altum” significam profundidade (alto mar); só nas profundezas é que se pode extrair o mais autêntico do ser humano, o que é mais nobre e divino.
Tudo o que, em vão, buscamos na superfície, está dentro de nós. Mas, ir mar adentro não é tão fácil como pode parecer. Exige ultrapassar as seguranças do “eu superficial” e adentrar-nos nas incontroladas águas de nosso ser profundo. Confiar naquilo que não controlamos exige uma fé-confiança autêntica. Dizia Teilhard de Chardin: “Quando descia ao profundo de meu ser, chegou um momento em que não ‘dava mais pé’ e parecia que me deslizaba para o vazio”.
O mar era o símbolo das forças do mal. “Pescar homens” era um dito popular que significava tirar alguém de um perigo grave. Não quer dizer, como se entendeu com frequência, fazer proselitismo ou converter as pessoas à força para a religião cristã. Aqui quer dizer: ajudar as pessoas a sair de todas as opressões que lhe impedem crescer e desenvolver suas potencialidades. Só pode ajudar o outro a sair da influência do mal aquele que encontrou o que é mais verdadeiro e nobre dentro de si mesmo.
Neste contexto atual, onde corremos o risco de nos converter em pessoas “grudadas” a uma tela, se faz mais necessário que nunca humanizar a rede para “pescar o humano” que está escondido no oceano interior de cada um. Esta humanização requer, em primeiro lugar, muita responsabilidade.
Tudo isto nos leva a pensar que na rede há uma grande necessidade de silêncio (“silêncio na rede”), precisamente para que possamos ouvir a verdade com amor. Há excessivas palavras que afogam, notícias falsas, “bullings”, campanhas desqualificadoras e comentários feitos com extrema má educação. Sobretudo nas páginas religiosas, precisamos de um silêncio construtivo para que se escute a verdade que liberta.
Silêncio construtivo significa utilizar uma linguagem propositiva, compreensiva, que estenda pontes de diálogo, que escute o outro que é diferente, que leve em conta o que “o outro” diz, talvez um aspecto da realidade que nos tinha escapado.
Silêncio construtivo significa tomar partido pelos mais fracos e excluídos; significa usar uma linguagem que sare as feridas, que reconstrua os vínculos quebrados. Uma página (mensagem) que só busca condenar, que só revela intolerância e preconceito, não pode ser evangélica. Literalmente, “há demasiado disparos” que desumanizam. Precisamos do azeito do consolo que cura as feridas, o vinho da esperança que nos une como irmãos acima das diferenças, o pão da compaixão que alimenta e eleva ...
É preciso fazer a “travessia” do estreito mar de nossa vida, onde nossas inúteis barcas e redes só “pescam” futilidades e lixo, para o grande oceano que Jesus nos oferece, carregado de vida e vida em plenitude.
Texto bíblico: Lc 5,1-11
Na oração: “Rema mar adentro e desce ao profundo de teu ter!” É um convite dirigido a todo ser humano. Sem essa profundidade, não é possível a plenitude humana. A contemplação é o único caminho.
“Não é necessário que percorras os mares buscando alimento; aprende a pescar em teu próprio mar interior; o que com tanto afinco buscas fora de ti, já tens ao alcance da mão, dentro de ti. Se não tens pescado nada, quê poderás oferecer aos outros? Se não tens aprendido a pescar, como poderás ensinar a outros? Dá verdadeiro sentido à tua vida e ajudarás os outros a atingir o mesmo”. (cf. Fray Marcos)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quando ouviram estas palavras de Jesus, todos na sinagoga ficaram furiosos” (Lc 4,28)
O Evangelho deste domingo é inspirador: as pessoas se admiram com as “palavras cheias de encanto que saíam da boca de Jesus”. Palavras que despertam assombro nelas; palavras diferentes que ativam suas vidas, palavras que não deixam ninguém indiferente; palavras provocativas porque carregam o impulso do novo; palavras que incomodam porque lhes faziam perguntar por suas próprias palavras, seu modo habitual de ser e de viver...
A primeira reação dos ouvintes foi de admiração pela pessoa de Jesus e por sua mensagem. Mas, rapidamente, passaram da admiração à surpresa: quem pensa ser ele, para dizer tais coisas? «Não é este o filho de José”? Reduzem-no assim à sua herança natural; não haviam entendido que, dali em diante, têm à sua frente um novo Jesus, o Filho muito amado do Pai. A única razão que dão para rejeitar as pretensões de Jesus é que Ele é simplesmente mais que um do povoado, conhecido de todos.
Isto é revelador por parte do evangelista Lucas. No início de sua vida pública, Jesus se revela como uma presença original, pois sendo “um entre tantos”, no entanto, sua presença despertava perguntas, dúvidas e até incompreensões e discussões. Todo seu povoado o via como um homem a mais, um galileu a mais. Mas, sendo “um entre tantos”, começou a pensar, viver e agir com um estilo único que o diferenciava de todos. A grandeza de Jesus está justamente em que, sendo um no meio de tantos, foi capaz de descobrir o que Deus esperava d’Ele.
Jesus não é um extraterrestre que traz poderes especiais de outro mundo, mas um ser humano que tira da profundidade de seu ser o que Deus colocou no coração de todos. Fala daquilo que encontrou no seu interior e nos convida a descobrir em nós o mesmo que Ele descobriu. Sua vida começou a desconcertar as pessoas; seu modo original de falar desconcertava a todos; sua liberdade de espírito e seus critérios desconcertavam as pessoas. Diante d’Ele só lhes restava fazer perguntas: quem é Ele? Como explicar sua proposta de vida?
Jesus não quis deixar o mundo como o encontrou; Ele não veio ao mundo para deixá-lo tal como estava; Jesus veio mudar as coisas e deixar-nos um mundo diferente; não um mundo com soldas e remendos, mas um mundo mais habitável. Por isso, no início de sua vida pública, Ele se revela como uma presença diferente, apresentando a proposta de um mundo diferente.
Tudo o que era antigo chegou ao fim; um mundo novo está aberto, diante de todos. Pois, agora, a hora chegou. Os ouvintes de Jesus entendem que vão ter de mudar, de transformar-se. E isto é inquietante: estavam tão tranquilos até aquele momento.
As pessoas de sua comunidade viviam mergulhadas na inércia, no costumeiro e não queriam se abrir ao novo, às mudanças. Preferiam a vulgaridade de ser como todo o mundo à originalidade de ser diferente; preferiam a monotonia de viver como todos e passar desapercebido na massa, sem despertar a atenção para uma original e provocativa presença.
Os moradores de Nazaré estavam fechados à presença divina. E nos oferecem, assim, uma imagem daquilo que, com frequência, também vivemos: o julgamento que fazemos dos outros, o nosso preconceito e a nossa intolerância diante de quem pensa, sente e vive de maneira diferente.
As palavras de Jesus na sinagoga de Nazaré questionam, também hoje, o sentido que nossas palavras têm; elas nos fazem tomar consciência daqueles que se sentem movidos por nossas palavras, nos fazem perguntar sobre a inspiração e a força das palavras que brotam do nosso interior.
Quantas palavras temos dito ou escrito hoje? Talvez tenhamos enviado um correio; ou feito um comentário no Whatsup ou no blog de um amigo; ou tenhamos conversado junto a uma mesa de bar, partilhando conselhos, trocando idéias...; ou tenhamos falado com nossa mãe pelo telefone... Vivemos saturados de palavras. Elas nos assaltam nas canções, estão nos perfis virtuais, nos livros, em mil e uma conversações. Falamos, dizemos, escrevemos, escutamos, lemos... E de tanto usá-las, talvez as palavras tenham perdido o sentido. Estamos tão acostumados a proferi-las que não nos damos conta do muito que significam. Então falamos, mas não vivemos; digitamos palavras, mas não transmitimos calor humano. Assustam-nos converter a palavra em palavreado crônico.
Há palavras que se gastam de tanto serem usadas; há afirmações que, de tanto serem repetidas, perdem sua força. Palavras que perdem seu valor, caindo no terreno comum das “coisas baratas”. Pronunciar, sem enrubescer, palavras que deveriam ser ditas com extremo cuidado como compaixão, justiça, amor, vida... É bonito pensar no poder das palavras, ou em nosso poder e responsabilidade ao pronunciá-las.
Sabemos que o ser humano chegou a ser o que é graças a esse dom evolutivo que é a palavra; ela nos permite pensar, dar nomes às coisas, aos outros seres, às emoções que sentimos dentro de nós e comunicar-nos eficazmente com nossos semelhantes. Claro que, como somos seres complexos, esse dom, que é nossa capacidade verbal, pode ser usada para diferentes fins. Podemos utilizá-la para reconhecer e transmitir o que de verdade sentimos ou pensamos ou enganar-nos a nós mesmos e aos nossos interlocutores.
A diferença radical está no fato de que com a palavra podemos cuidar, acariciar, conhecer, irradiar consolo ou amor, ser artífices de paz e sossego... Ou, podemos gerar ódios, rancor, alimentar preconceitos e julgamentos, provocar invejas, trair, dividir...
Nas “sinagogas pós-modernas” (redes sociais) temos a oportunidade de proferir palavras que ampliam a vida, elevam o outro, abrem horizontes de sentido...; elas também se revelam como o espaço onde escutar palavras oriundas de um coração e uma mente diferentes, que despertam mudanças, a busca do novo... Infelizmente, como nos tempos de Jesus, também este ambiente tem sido o local da expressão de palavras ásperas de julgamento e de indiferença, carregadas de preconceito e intolerância. Ali encontramos a soberba disfarçada de verdade, o conservadorismo farisaico que cria distâncias, o medo camuflado de firmeza, as inseguranças alimentando divisões... Estas atitudes nunca deixam espaço para o novo, a renovação torna-se impossível e a inovação se extingue... Nesses ambientes disfarçados de ortodoxia, fundamentalismo, moralismo, legalismo... nem o Espírito tem espaço para atuar e inspirar “palavras de vida”.
Jesus foi “deletado de sua comunidade” porque ousou pensar de maneira diferente; o seu anúncio e as suas opções rompiam com esquemas mentais arcaicos e petrificados. Por isso, dentro de nossas sinagogas atuais, é preciso alimentar mais sobriedade frente à “falação” vazia”; mais sinceridade frente à mentira; mais acolhimento frente à indiferença...
Talvez o silêncio pode ser algo novo quando não se tem uma palavra diferente que dizer. Mas é certo que se cheguemos a dizer algo novo, algo nosso, há uma terra sedenta que espera ansiosa essa chuva.
Texto bíblico: Lc 4,21-30
Na oração: diante das palavras que brotam de minha sinagoga interior, perguntar-me:
- quantos se sentem tocados pelas minhas palavras? Quantos daqueles que as escutam se sentem anima-dos, vibrantes, curados... Até onde falo daquilo que vivo? Minhas palavras despertam o coração das pessoas?
- Ou, pelo contrário, quantos daqueles que me escutam se sentem entendiados e cansados diante de meu palavreado crônico, de minhas críticas ácidas, de meus julgamentos preconceituosos?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Para libertar os oprimidos e para proclamar um ano da graça do Senhor” (Lc 4,18-19)
O Espírito conduziu Jesus para a experiência do deserto; agora, o mesmo Espírito do Deus do Reino impele Jesus para o deserto da existência humana, ou seja, ser presença inspiradora e comprometida em favor dos últimos, dos mais pobres, dos excluídos e marginalizados da sociedade. Os primeiros a experimentarem essa vida mais digna e livre que Deus quer para todos são justamente aqueles para os quais a vida não é vida. Podemos, então, dizer que a primazia dos últimos inspirou sempre a atividade de Jesus a serviço do reino de Deus. Para Ele, os últimos são os primeiros. Ser compassivo como o Pai exige buscar a justiça de Deus começando pelos últimos.
Lucas captou isso muito bem quando apresenta Jesus na sinagoga de Nazaré, aplicando-se a si mesmo as palavras do profeta Isaías (62,1-2). Aqui Jesus apresenta seu “projeto com vida”, ou seja, começar sua missão resgatando a vida dos últimos, para torná-la mais sadia, mais digna e mais humana. Fala-se aqui de quatro grupo de pessoas: os “pobres”, os “cativos”, os “cegos” e os “oprimidos”. Eles resumem e representam a primeira preocupação de Jesus: aqueles que Ele carrega no mais profundo de seu coração de Profeta do Reino. Ele quer deixar claro que os últimos são os prediletos de Deus.
O Deus de Jesus não é o aliado de uns poucos, nem é o Deus dos piedosos, dos poderosos e dos sábios. É, sobretudo, o Deus dos marginalizados, dos excluídos, dos enfermos e pecadores. O caminho para um mundo mais digno e ditoso para todos começa a ser construído a partir deles. Esta primazia é absoluta; é Deus que quer assim. Não deve ser menosprezada por nenhuma política, ideologia ou religião.
Só estaremos em sintonia com o coração do Deus de Jesus se estivermos com “o coração nas mãos”, comprometidos com a causa da “massa sobrante” (D. Luciano). Caso contrário, estaremos nos relacionando com um ídolo. Uma religião, conivente com qualquer tipo de exclusão e violência, é idolátrica.
Não podemos esquecer esta verdade: a “opção pelos pobres e contra a pobreza”, tal como aparece no evangelho, não é uma questão ideológica, filantrópica ou político-partidário, nem uma moda posta em circulação depois do Vaticano II e Medellin. É a opção do Espírito de Deus e que anima a vida inteira de Jesus na busca do Reino e sua justiça. Deus não pode reinar no mundo sem fazer justiça aos últimos.
Esta afirmação traz consigo o seguinte: o amor aos pobres e contra a pobreza é dom de Deus. O amor aos empobrecidos nasce do encontro vivo e existencial com o Senhor Jesus, que rico se fez pobre (2Cor. 8,9). Deus ama os pobres simplesmente porque eles são pobres, “porque assim é do seu agrado” (Mt. 11,25). E os pobres, os preferidos de Deus, são empobrecidos efetivos, reais e concretos, vítimas de estruturas sociais e políticas injustas. Ou seja, a opção de Deus pelos pobres é absolutamente gratuita. Também a nossa opção, que é uma resposta à interpelação do rosto do empobrecido, nasce da absoluta gratuidade de Deus e é chamada a manifestar esta gratuidade.
Como cristãos, somos seguidores(as) de uma pessoa e não de uma religião, de uma doutrina, de uma moral. O seguimento de Jesus, escola de liberdade cristã, dá ao amor preferencial pelos pobres, por todos os pobres, a verdadeira dimensão e o verdadeiro sentido da nossa existência cristã; sem esse amor pelos pobres caímos numa prática religiosa estéril, desprovida de humanização.
A opção pelos empobrecidos não significa assumir o lugar deles; trata-se de devolver a eles o protagonismo de sua história e a autonomia de seu destino.
O envolvimento com o “outro” (excluído, pobre, marginalizado...) nos conduz à autenticidade, à libertação de apegos e avareza, à liberdade para partilhar e receber e a uma imensa felicidade.
O encontro com o “outro” marginalizado dá um toque especial à nossa espiritualidade e nossa espiritualidade faz nossa ação mais radical – mais enraizada em si mesma e vai mais a fundo nas raízes da injustiça. Aproximar-nos do empobrecido e deixar-nos “afetar” pelo seu sofrimento torna-se a maior fonte de nossa espiritualidade.
Suas “fraquezas” suscitam em nós o melhor de nós mesmos e, ao nos envolver afetivamente em sua vida, fazem com que vivamos um misto de ternura e indignação, a que chamamos compaixão.
Na experiência de “convivência” com os empobrecidos adquirimos os valores evangélicos da capacidade de celebrar, da simplicidade, da hospitalidade... Eles tem um jeito de nos trazer de volta para o essencial da vida. Eles são uma fonte de esperança, de autenticidade. Eles se tornam nossos amigos.“Nosso compromisso de seguir o Senhor pobre, naturalmente nos faz amigos dos pobres” (S. Inácio).
Na medida em que o(a) seguidor(a) de Jesus se vê interpelado pelo rosto do empobrecido e age, esta sua ação revela a compaixão de Deus. A nossa ação deve fazer resplandecer a compaixão de Deus pelos últimos e excluídos.
Quem é possuído pelo ágape de Deus é sensível e comprometido com o mundo dos empobrecidos. O amor preferencial pelos empobrecidos é divino, antes de ser humano. E o ser humano só pode assumí-lo como seu porque antes o contemplou na prática salvadora e amorosa de Jesus Cristo, e porque este amor foi por Deus colocado no mais profundo do seu coração.
Nos Evangelhos, Jesus Cristo é o pobre e o servidor por excelência, Aquele que, a partir de sua condição divina, se encarna, se esvazia e assume o lugar dos últimos. O seguimento de Jesus pobre é a única via de acesso ao mistério glorioso do amor de Deus. A opção pelos pobres e contra a pobreza, tal como aparece na Igreja latino-americana é, portanto, uma opção de amor.
Seguir Jesus hoje é prolongar, criativamente, a sua presença e o seu compromisso junto aos mais excluídos, vítimas da ganância humana. Somos, portanto, chamados construir uma “cultura da solidariedade e partilha”. Significa viver de modo que a solidariedade constitua um pilar em nosso projeto de vida.
A solidariedade implica encontrar-se com o “mundo do sofrimento, da injustiça, da fome... e não ficar indiferente”. A solidariedade, que nasce da compaixão, leva a reconhecer no outro (sobretudo o outro que é excluído) uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação.
Isto pede de nós uma atitude de abertura ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, redescobrir com urgência a solidariedade como valor ético e como atitude permanente de vida, frente a um contexto social e político que alimenta o que é mais funesto no ser humano: o impulso da violência covarde que se visibiliza na “posse de armas”.
Texto bíblico: Lc 4,14-21
Na oração: A experiência de encontro com Jesus na sinagoga de Nazaré desperta em nós a compaixão para com o outro que é excluído, marginalizado, pobre... Somos chamados a viver a solidariedade como um estilo de vida, fundado no modo de viver de Jesus.
- Frente ao mundo dos empobrecidos, sua vida transborda compaixão, compromisso, acolhida... ou, indiferença, preconceito, julgamento...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (Jo 2,10)
O Evangelho deste domingo parece estar fora de contexto. Estamos no tempo litúrgico “Ano C” e deveríamos ter presente algum texto do evangelista Lucas. O motivo é que, antigamente, na festa da Epifania, celebrava-se três acontecimentos: a adoração dos Magos, o Batismo de Jesus e as Bodas de Caná.
Atualmente, no dia da Epifania só se celebra o encontro dos Magos com o Menino Jesus; e a liturgia continua celebrando os outros dois acontecimentos nos dois domingos seguintes (1º. e 2º. dom. do Tempo Comum). Por esta razão, lemos o evangelho de João, que é o único que relata as Bodas de Caná.
O evangelista João não diz que Jesus fez “milagres” ou “prodígios”. Ele os chama “sinais”, porque são gestos que conduzem a realidades profundas e decisivas para nossa transformação interior, e que nossos olhos nem sempre conseguem perceber. Concretamente, os “sinais” que Jesus realiza, orientam para sua pessoa e nos fazem descobrir sua força salvadora. Nessa “transformação da água em vinho” nos é proposta a chave para captar o tipo de transformação salvadora que Jesus realiza e que, em seu nome, seus(suas) seguidores(as) devem oferecer.
O mais surpreendente, no evangelho de hoje, é que João usa a imagem de um casamento para falar-nos das relações de Deus com a humanidade. Tudo acontece no contexto de um casamento, a festa humana por excelência, o símbolo mais expressivo do amor, a melhor imagem da tradição bíblica para evocar a comunhão definitiva de Deus com o ser humano.
A salvação de Jesus Cristo deve ser vivida e oferecida por seus seguidores como uma festa que dá plenitude às festas humanas, quando estas ficam vazias, “sem vinho” e sem capacidade de preencher o desejo de felicidade total.
Deus se manifesta em todos os acontecimentos que nos instigam a viver com mais sabor; Ele não quer que renunciemos a nada do que é verdadeiramente humano. Deus quer que vivamos o divino naquilo que é o cotidiano e o normal da vida. A ideia do sofrimento, da mortificação e da renúncia como exigência divina não tem espaço na experiência evangélica. Deus está presente onde os homens e mulheres se amam, se atrevem a iniciar a travessia da vida na intimidade solidária, em bodas íntimas, mas abertas à solidariedade universal. Ali, nas bodas de Caná, pode-se fazer memória, sem medo e sem mentira, do Deus de Jesus.
Deus é “festeiro” e, certamente, a festa das Bodas de Caná é uma ocasião privilegiada para “sentir e saborear” a presença amorosa d’Ele em nossas vidas. Tal celebração deixa transparecer que Deus não está presente só nos ritos religiosos externos (mais missas sem o pão abundante, mais novenas sem compromissos, mais sacrifícios sem espírito solidário...), mas na festa da vida, no pão e no vinho compartilhados com todos, começando pelos mais pobres e excluídos... “Nosso Deus sempre vem a nós em festa. Deus é festa”.
À semelhança do amor, a festa tem caráter de gratuidade dentro de um mundo mercenário e ingrato que nos cerca; uma gratuidade sem pressas e sem urgências. O ápice da festa é gratuito. Justamente por isso a festa tem algo a ver com o mistério da vida; é esta vida, plena e plenificante, que brota gratuitamente do meio da festa. Por isso, festa não é superficialidade, mas manifestação do mais profundo da vida; ela traz à tona o sentido daquilo que se vive e daquilo que se espera.
A festa verdadeira é subversiva: nasce da vida e remete à vida.
A mensagem do evangelho de hoje para nós é muito simples, mas provocadora. Nem os ritos e nem as abluções podem purificar o ser humano. Só quando saboreia o vinho-amor do seu interior, ele ficará todo limpo e purificado. Quando ele descobre Deus presente e atuante dentro de si mesmo e identificado com todo o seu ser, será capaz de viver a imensa alegria que nasce desta profunda unidade. Portanto, o melhor vinho está para ser servido e está escondido no centro de cada um.
Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é o seu “mistério” íntimo e pessoal. Na adega interna existe um vinho guardado que procura se expressar (sentimentos, emoções, atitudes e valores, crenças, percepções, motivações...). O melhor de cada pessoa é gestado na profundeza de sua vida; às vezes demora tempo em aflorar, mas está aí latente, esperando um olhar ou uma voz que venha despertá-lo. Quanto mais ela mergulha no seu íntimo, mais percebe esta riqueza.
Só quando a pessoa se deixa “habitar” por Deus, a água interior vai se transformando num delicioso vinho. E quando o vinho é provado, canta no coração. O vinho é sempre da melhor qualidade, sempre próximo e fácil. É o vinho presente no “eu profundo” que plenifica tudo o que a pessoa é e faz, que dá um sabor especial à sua vida e ao seu compromisso.
“Sentir e saborear interiormente” é expressão da mística inaciana; só quem é capaz de saborear o “vinho interior” de suas riquezas, dons, intuições, inspirações... estará mobilizado para “sentir e saborear” a realidade habitada pela presença d’Aquele que é Fonte dos Vinhos mais nobres.Por isso, é preciso “habitar a própria casa”, aprender a se conectar com as fontes profundas da Vida que nutrem a existência e acalmam a sede de vida plena que pulsa em todos os corações.
O vinho que brota do coração nos purifica continuamente, nos transforma, dá um impulso vibrante à nossa vivência cristã e, ao mesmo tempo, fornece o elemento vital necessário para que alimentemos novas festas. Não se trata simplesmente de fazer banquetes, mas ser banquete de refeição e amor, de vinho para todos, uma mesa redonda como o mundo: abrir um espaço e tempo de bodas sobre o universo de Deus, sobre o amplo solo da terra, com Jesus como convidado (ensinando-nos a transformar a água em vinho), com Maria como animadora, os convidados como comunidade festiva.
O decisivo é ter acesso ao vinho interior de recursos e energias que procuram chegar à tona, mas muitas vezes encontram resistências e dificuldades. É preciso “descer” até às profundezas para descobrirmos uma nova fonte para a nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia, ressequida e sem sabor.
Somente quando escutamos a voz que vem lá de dentro e lhe damos a devida atenção é que poderemos encontrar o verdadeiro sabor da vida. Somente ali poderemos recomeçar uma nova relação com Deus e com os convidados; somente ali poderemos sentir quem é Deus e o que é a Sua Graça. Alí nos situamos como realmente somos, mergulhamos nas intenções mais profundas e puras, encontramo-nos cara a cara, como que feitos para a eternidade.
Texto bíblico: Jo 2,1-11
Na oração:
- A água transformada em vinho é símbolo de festa, de partilha...
- Chegou o dia da festa para todos, de uma festa que não acaba. A alegria é sem fim porque Deus sempre tira mais e mais vinho para brindar.
- Sua experiência de Deus é vivida somente nos tempos de oração-celebração, ou também é sentida no ritmo cotidiano de sua vida?
- Quem é o Deus em quem você crê? É o Deus da lei, do sacrifício, cuja presença atrofia tudo o que é humano... ou é o Deus de ternura, o Deus da vida e da festa...?
Pe.Adroaldo Palaoro sj
“E, enquanto rezava, o céu se abril e o Espírito desceu sobre Jesus...” (Lc 3,21-22)
Terminado o “tempo natalino”, começamos hoje o “tempo comum” (Ano C), ou seja, a vida pública de Jesus, sua missão como Filho em favor dos filhos e filhas. O relato do batismo – que marca a passagem da vida em Nazaré para a vida peregrina – faz referência a uma experiência fundante de Jesus: confirmado pelo Pai, impulsionado pelo Espírito, Ele descobre o sentido de sua vida e a missão que devia realizar.
O batismo de Jesus significou uma profunda experiência espiritual, muito ligada à sua atitude humilde de aproximar-se do rio Jordão, onde as pessoas simples do povo buscavam no batismo de João uma purificação de seus pecados. Jesus foi reconhecido pelos pastores e magos, mas não pelos que compartilhavam com Ele a fila dos pecadores. Uma fila que margeava o rio Jordão, constituída por aqueles que queriam receber o batismo das mãos de João. E ali se pôs Jesus, entre eles, em silêncio. Não era um a mais, mas parecia ser.
Quê foi que levou Jesus a tomar esta decisão? Quê esperava encontrar com o batismo de João? Quais foram os sentimentos que o acompanharam durante este percurso de mais de 100 quilômetros desde Nazaré até o lugar onde recebeu seu batismo? Foi uma viagem solitária ou a fez em companhia de alguns amigos e amigas que também buscavam o mesmo?
Jesus “desce” ao Jordão; este gesto resume sua descida do céu à terra, sua “kénosis”, seu esvaziamento radical. É uma “descida” às águas da humanidade; por isso, sobre Ele “desce o Espírito”. O Espírito não “desce” sobre aquele(a) que “sobe” ao pedestal da vaidade, do poder, da intolerância, do preconceito... Ali, o “ego inflado” não abre espaço para se deixar inspirar pelo mesmo Espírito que conduzia Jesus. É preciso “descer” às águas da própria existência, “entrar na fila solidária” da fragilidade humana, passar pelas águas da renovação vital e sair do outro lado, purificado e humanizado.
Embora não reconhecido pelas pessoas, ao entrar nas águas do Jordão, Jesus foi reconhecido e confirmado pelo Pai. E fez isso com uma voz potente para que todos se dessem conta de que o Filho queria compartilhar a situação da humanidade. E o Pai lhe deu carta branca para estar entre nós sem privilégios, continuando o despojamento que lhe supôs entrar em nosso mundo.
O batismo comove Jesus por dentro, o transtorna, parece que lhe invadem uma compaixão e ternura infinitas. O Deus dos pais se revela a Ele como Fonte de Vida, como Misericórdia e Compaixão, como fonte de dignificação e perdão. O Céu deixa de estar em silêncio, o Céu não se compraz na Lei e no Templo, o Céu se compraz em Jesus, e, a partir de sua profunda percepção do Deus como Ternura e Fonte da Vida, sua vida vai se revelar como Boa Notícia para os abatidos de toda a humanidade. Jesus não será mais o mesmo; o “filho do carpinteiro” foi tocado pelo Compassivo e sua vida vai se converter em visita de Deus a seu povo, em causa de liberdade para os oprimidos, em saúde para os enfermos, em perdão para os indignos, em inclusão para os excluídos, em festa para os tristes...
A Bíblia nos convida a tomar consciência que os lugares de encontro de Deus com o ser humano não são unicamente os sagrados, institucionais ou majestosos, mas, principalmente, os lugares da “margem”, do cotidiano, das experiências de fragilidade e limite, das obscuridades e dúvidas... enfim, das fendas da vida.
E foi das “fendas da humanidade” que o próprio Jesus entrou em comunhão com o Pai.
Segundo o evangelho de hoje, Jesus se faz presente na “fenda’ mais profunda da terra, no Jordão, e é precisamente ali onde Ele escuta a voz do Pai indicando-o como o Filho amado em quem “põe o seu bem-querer”. A partir desse momento, Jesus se descobre portador dessa “complacência divina” e vai fazendo-a presente nos diferentes lugares por onde se desloca com uma mobilidade surpreendente: do deserto à Galileia, onde anuncia a chegada do Reino; às margens do mar, chamando os primeiros discípulos; em Cafarnaum onde exerce seu ministério terapêutico; às portas das casas, acolhendo uma multidão de enfermos; no descampado onde oferece a grande mesa da partilha; nos territórios fronteiriços, onde acolhe e entra em diálogo com o diferente...
Não são lugares “sagrados”; é sua presença que os converte em “teofânicos” (manifestação da presença divina), porque ali onde Ele se faz presente, os céus se “rasgam” e Deus “se deixa ver” em seu Filho, e Suas palavras continuam ressoando em nós, convidando-nos a escutá-lo.
Viver a vocação batismal ativa nossa sensibilidade mais profunda, fazendo-nos entrar em sintonia com Deus e com a realidade. Deus age diretamente no coração e nos conduz com delicadeza, com carinho e com liberdade, preparando-nos para a grande “salto” na vida. E nosso coração aberto, atento, sintonizado com a ação de Deus, dispõe-se, coopera e responde à Graça divina, empenhando-se por encontrar “o que tanto deseja”. Essa é a experiência mística da vida: “sentir Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”.
O(a) seguidor(a) de Jesus faz a experiência da intimidade, da presença, da comunhão, da proximidade de Deus em sua própria vida. Ele(a) vive embriagado(a) de vida, vive como um peixe nos oceanos de Deus, dizendo um profundo sim às ondas, ao vento, ao sol, à existência... Ele(a) sente-se cativado(a), envolvi-do(a), amado(a), sintonizado(a), habitado(a) por Deus de tal maneira que seus olhos, gestos, suas atitudes, palavras, seu coração, sua existência, transbordam Deus. Sente-se envolvido(a) pela “onda” de Deus e sintoniza-se com o Seu coração. Tal experiência é incomunicável; ninguém pode vivê-la por ele(a).
A vivência batismal implica um contínuo “estar presente” diante do Deus Presente. E estar presente é estar “acordado”, no sentido de desperto e atento, e também no sentido musical de estar afinado, “em acorde”, sintonizado com a Presença que se revela de maneira “sempre nova e inesperada”.
Dentro de cada um de nós existe uma música, uma melodia, uma nota do divino. É preciso criar espaço para que ela possa fluir em forma de canto, de dança, de louvor... No meio desse mundo confuso e dividido é necessário encontrar um princípio integrador; é preciso compor uma sinfonia, buscar a “com-sonância” das diferentes vozes e instrumentos presentes ao nosso redor. O compromisso batismal é esse momento delicado que nos ajuda a recuperar o “som primordial”, e portanto, a unidade do sentido da nossa existência. Por isso, “viver a vocação batismal” não é evento, mas sintonia com o coração de Deus; é estar “antenado” no modo de agir de Deus e corresponder a essa ação divina. Faz-se necessário, portanto, um contínuo discernimento para deixar-se conduzir pelo Espírito e prolongar o modo original de ser e viver de Jesus.
Na oração: Todo(a) seguidor(a) de Jesus é testemunha de uma presença contemplada e ouvida no silêncio da oração.
- Deixe-se levar como se estivesse num rio, observando-se com um olhar interior, escutando, sentindo...
- O Batismo implica expandir os espaços interiores, romper com tudo aquilo que atrofia a vida para acolher o novo: nova missão, novo compromisso, nova presença solidária, acolhida do diferente...
- Renove seu compromisso batismal: ser presença diferenciada em meio a um mundo carregado de morte e violência.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...voltaram para sua terra por outro caminho” (Mt 2,12)
“Por que é que os homens se deslocam em vez de ficarem quietos”? Esta pergunta do escritor Bruce Chatwin nos reconduz ao centro do mistério do próprio ser humano. Somos seres de travessia. As viagens nunca são apenas exteriores. Não é simplesmente no espaço geográfico que o ser humano viaja. Isso significaria não perceber toda sua a profundidade; deslocar-se implica uma mudança de posição, uma ampliação do olhar, uma abertura ao novo, uma adaptação a realidades e linguagens diferentes, uma expansão da sensibilidade, um confronto, um diálogo tenso ou deslumbrado..., que deixam necessariamente impressões muito profundas.
A experiência da viagem é a experiência de fronteira e do horizonte aberto, de que o ser humano precisa para ser ele mesmo. Nesse sentido, a viagem é uma etapa fundamental da descoberta e da construção de sua própria identidade e do conhecimento do mundo que o cerca. É a sua consciência que perambula, descobre cada detalhe do mundo e olha tudo de novo como da primeira vez. A viagem é uma espécie de propulsor desse olhar novo. Por isso, é capaz de introduzir na sua vida elementos sempre inéditos que o incitam a uma mudança contínua. Nada mais anti-humano que uma vida estabilizada em posições fechadas, ideias atrofiadas, visões limitadas pelo medo do diferente...
Mais do que viajantes, aos poucos vamos nos descobrindo peregrinos. Quando fazemos uma peregrinação, muitas vezes nos interrogamos onde é que ela termina, porque uma das coisas que experimentamos é que, à medida que caminhamos, a realidade torna-se sempre mais aberta e nós nos enriquecemos muito mais. A peregrinação não tem propriamente um fim: tem uma extraordinária finalidade. No caso dos Magos é o encontro com o “Rei de Israel”.
Na noite de Natal, Jesus se manifestou aos pastores, homens pobres e humildes, que foram os primeiros a se deslocarem para levar um pouco de calor à fria gruta de Belém. Agora são os Magos que chegam de terras longínquas, também eles atraídos misteriosamente por essa Criança. Os pastores e os Magos são muito distintos entre si; mas uma coisa tem em comum: o céu.
Os pastores de Belém foram correndo para ver o menino Jesus não porque fossem particularmente devotos, mas porque velavam de noite e, levantando os olhos ao céu, viram um sinal e escutaram uma mensagem. Assim também os Magos: investigavam os céus, viram uma nova estrela, interpretaram o sinal e se puseram a caminho. Os pastores e os Magos nos ensinam que para encontrar Jesus é necessário saber levantar o olhar para o céu, não fixar-nos em nós mesmos, ter o coração e a mente abertos ao horizonte de Deus, que sempre nos surpreende, saber acolher suas mensagens e responder com prontidão e generosidade.
O termo “magos” tem uma considerável gama de significados; mas, certamente, em Mateus são sábios cuja sabedoria religiosa e filosófica os põe em caminho; é a sabedoria que leva a Cristo. Somente homens de uma certa inquietude interior, homens de esperança, em busca da verdadeira estrela da salvação, seriam capazes de colocar-se em caminho e percorrer a longa distância entre Oriente e Belém.
Chama a atenção a prontidão da resposta dos Magos. Com simplicidade expressam como no preciso mo-mento em que perceberam a indicação do céu, imediatamente reagiram e a seguiram. A estrela que os guiava era uma estrela nova, superior, peregrina, que despertava assombro e atraía àqueles que a contemplavam. Os caminhos deste novo astro, orientam à salvação divina para toda a humanidade.
A experiência dos Magos nos exorta a não nos contentar com a mediocridade, a não permanecer adormecidos e estáticos, mas a buscar o sentido das coisas, a perscrutar com paixão o grande mistério da vida. Eles nos ensinam a não nos escandalizar frente à pequenez e à pobreza, mas a reconhecer a majestade na humildade e sabermos ajoelhar diante dela. O deslocamento dos Magos ajuda a nos deixar guiar pela estrela do Evangelho para encontrar Aquele que é Luz, e despertar a luz que nos habita. Assim, poderemos levar aos outros um raio de sua luz e compartilhar com eles a alegria do caminho.
Os Magos vêm do Oriente e caminham para a luz. Estão orientados. Oriente significa onde nasce o sol, a luz. A desorientação é a perda do sentido, do caminho, é viver na escuridão. A verdadeira luz está mais presente na gruta despojada que nos palácios e templos de Jerusalém.
Epifania, portanto, é abrir caminhos; Epifania é buscar e caminhar para a luz.
Mateus termina seu relato notando que, uma vez que os magos se encontraram com o Menino Jesus, “regressaram por outro caminho”. E não mudam de caminho para evitar Herodes, mas porque encontraram o Caminho: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. Deus, a Luz, não está presente nos caminhos e pretensões de Herodes (e existem muitos Herodes e faraós soltos pela história), mas naquele que é frágil e está deitado em um presépio.
Como os Magos, levantemos e voltemos à casa por outro caminho!
Quem se encontra com Jesus voltará à sua casa, ao seu trabalho, às suas ocupações, mas já não será o mesmo. Voltará de outra maneira, por outro caminho, com um coração dilatado e um espírito renovado. Quem se encontra com a Criança de Belém, dá-se conta de que os caminhos de Herodes, do poder, do prestígio, da riqueza, são caminhos que levam à morte. E Epifania é o caminho da vida, da acolhida e do encontro. O itinerário espiritual, portanto, pode ser descrito como uma viagem da cabeça ao coração; é uma viagem longa, difícil, mas apaixonante.
Por diferentes motivos, também hoje vivemos uma grande mobilidade; precisamos ser espertos em mover-nos entre o diferente, o que nos confunde, o mistério, o que nos questiona... Sempre caminhando. Esta é a atitude daquele que segue um Deus sempre maior, sempre surpreendente, que está sempre mais além de onde estamos. Então, que sigamos, sempre adiante... mas façamos isso juntos, sem deixar ninguém fora!
Este e o dinamismo que deve perpassar nossa vida: da instalação ao crescimento, da acomodação ao deslocamento contínuo. Partimos da realidade de que a tendência natural é amparar-nos nas “zonas de conforto”; elas nos dão mais segurança; é mais cômodo; requer menos energias.
A inércia leva a viver o ordinário, o repetitivo; custa-nos admitir e saborear o excepcional, o extraordinário; muitas vezes nos movemos em meio a um certo ceticismo vital, sem paixão pela vida e pela missão. Mas o caminho da fé nos leva de assombro em assombro, de graça em graça, de alegria em alegria.
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos” (Fernando Pessoa).
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: Esse “outro caminho” é o caminho que deve direcionar para Deus nossa vida.
O que importa é pôr-se a caminho nas pegadas dos Magos, fazer escolhas e recusar desvios.
- Há alguma “estrela” abrindo horizontes para você?
- O que há de “herodiano” em sua realidade e em seu mundo interior? quais são as causas, as manifestações e os efeitos das suas inseguranças, do fixismo em torno do próprio eu, dos seus medos?
- conserve-se em movimento interior, sempre; nada de roteiros rígidos que sufocam o Espírito, matam a criatividade, prendem à rotina e empobrecem o dinamismo de uma vida em transformação.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria, José e o recém-nascido deitado na manjedoura” (Lc 2,16)
1º. de janeiro é uma data carregada de conotações profundamente humanas: início de um novo ano, o encontro dos pastores com o Menino Jesus, a maternidade divina de Maria, dia Mundial da Paz...
Ao começar o novo ano, a primeira atitude que devemos alimentar é a da gratidão: dar graças a Deus pelo dom do tempo, que é o dom da vida, o dom fundamental. O tempo é graça e tudo depende do que fazemos com ele: podemos fazer dele um tempo morto ou um tempo vivo (carregado de possibilidades, recursos, criatividade, tempo oblativo, aberto ao novo, tempo inspirado…).
O começo do ano nos convida a pensar sobre nossa forma de ativar este “grande tesouro” que é o tempo; Deus nos concede este ano para que multipliquemos a vida, enriquecendo-a de sentido, qualidade e calor humano; é uma nova oportunidade que Ele nos concede para crescer e ajudar a crescer, para alcançar uma experiência nova da vida, de encontro com Ele, com os outros, conosco mesmos.
A festa da travessia para um Novo Ano é uma ocasião privilegiada para descobrir o quê estamos fazendo com nosso tempo. Podemos estar desperdiçando ou perdendo aquilo que nos foi dado para que vivamos com mais intensidade. Vão passando os anos e com eles as oportunidades de dar verdadeiro sentido às nossas vidas. É o momento por excelência da potencialidade de vida, tempo mágico onde as promessas começam seu caminho de realização.
Quem contempla a realidade com os olhos simples dos pastores, não faltarão ocasiões de reconhecer a criatividade de Deus em ação, a inovação do Espírito movendo corações, criando cenários novos, mais humanos, com mais profundidade, mais do Reino...
Talvez muitos se perguntam para onde vai nosso mundo, surpreendidos e preocupados pelo crescimento de fenômenos desconcertantes. Em muitos países triunfam líderes populistas, manejados por forças ocultas sem escrúpulos e marcados por discursos intolerantes, preconceituosos e julgamentos moralistas; a corrupção vai lançando raízes em todos os ambientes; os conflitos e as rupturas se acentuam; a Igreja católica é sacudida por uma grande crise de credibilidade; o sistema de valores e conhecimentos está mudando profundamente. Vivemos um momento de transição ou um colapso de uma civilização: uma metamorfose da sociedade que afeta todos os aspectos da vida, pessoal e coletiva, de toda a humanidade. Trata-se, pois, de uma crise global, embora às vezes possa parecer local ou inclusive pessoal.
Como nos tempos bíblicos, também estamos vivendo um “exílio”. Tanto naquele como neste contexto atual é que se revela a missão original e inspiradora dos profetas. Como ser presença diferenciada em meio a muita gente desconcertada e desesperançada? Como alimentar esperança? Como ativar uma imaginação criativa?
Esta deve ser a marca característica dos(as) seguidores(as) de Jesus: o otimismo frente à realidade e a esperança diante daquilo que vem. Crer em um Deus que se encarna no simples e que realiza suas promessas, permite começar o ano como quem estreia todas as possibilidades, inclusive abertura às possibilidades antes inexistentes. Isto é o que ocorre em nosso tempo natalino: a irrupção de Deus no pequeno e a partir de baixo, modifica radicalmente nossa visão atrofiada da realidade e nos capacita a vislumbrar o broto germinal de uma nova história. Por isso, somos gente carregada de esperança, pois somos n’Aquele que faz tudo novo.
Para muitos pode lhes causar estranheza que a Igreja faça coincidir o primeiro dia do novo ano civil com a festa de Santa Maria, Mãe de Deus. E, no entanto, é significativo que, desde o século IV, a Igreja, depois de celebrar solenemente o Nascimento do Salvador, nos motiva a começar o ano novo sob a proteção maternal de Maria, Mãe do Salvador e Mãe nossa.
É bom que, diante do Novo Tempo que se inicia, elevemos nossos olhos para Maria. Ela nos acompanhará ao longo dos dias com cuidado e ternura de mãe. Ela inspirará nossa fé e nossa esperança.
Dia Mundial da Paz. Talvez seja uma das carências que mais afeta o ser humano de hoje, porque a ausência de paz é a prova palpável de uma falta de humanidade em todos os níveis. Não podemos descobrir o que significa paz quando nos vemos cercados de violências e conflitos; não podemos experimentar a paz alimentando uma “cultura da indiferença” e da suspeita.
Não são as contendas internacionais, por muito danosas que sejam, que impedem os seres humanos alcançar sua plenitude. Os grandes conflitos têm sua origem em nossos próprios conflitos internos; nossos corações estão carregados de maledicências, julgamentos, legalismos, moralismos e imposições sobre os outros... O medo daquele que pensa, crê, sente e ama de maneira diferente aumenta as distâncias, cria muros e bolhas de proteção que dão uma falsa sensação de segurança e paz. Nunca se investiu tanto em segurança e, no entanto, a cultura da paz está cada vez mais esvaziada.
A paz não é uma realidade que possamos buscar com um cantil. A paz será sempre a consequência de relações verdadeiramente humanas, entre nós. Se não existe uma autêntica qualidade humana não pode haver uma verdadeira paz, nem entre as pessoas nem entre as nações.
O primeiro passo na busca da paz deve ser dado por cada um de nós, caminhando em direção ao nosso próprio interior. Se não conseguimos uma harmonia interior, se não descobrimos nosso verdadeiro ser e o assumimos como a realidade fundamental em nós, nem teremos paz nem a podemos levar aos outros. Este processo de maturação pessoal é o fundamento de toda verdadeira paz. Uma autêntica paz interior se reflete em todas as nossas relações humanas, começando pelos mais próximos.
Quando perdemos o caminho da interioridade, permanecemos na superficialidade de nós mesmos; ali não há húmus onde enraizar a paz; é da superficialidade de nós mesmos que brotam os julgamentos, a indiferença, a atrofia da comunhão, o extravio da ternura, a segregação..., constituindo o ambiente favorável para todo tipo de rupturas, conflitos, frieza nos relacionamentos...
É preciso, como os pastores, entrar na Gruta interior para encontrar Aquele que é o Príncipe da Paz; aproximar desta Criança significa ativar todos os recursos pacíficos que carregamos dentro de nós.
Ah se recuperássemos o sentido do “shalom” judaico! Nessa palavra se encontra condensado todo o significado verdadeiro da paz. Nossa palavra “paz” tem conotações exclusivamente negativas: ausência de guerra, ausência de conflitos, de intrigas, etc... Mas, a expressão “shalom” se refere às realidades positivas; dizer “Shalom” significa manifestar um desejo de que Deus conceda a cada um tudo o que necessita para ser autenticamente humano, incluída a presença mesma de Deus no interior de cada um. Na raiz bíblica do termo “shalon” está a ideia de “algo completo, inteiro”. A paz pertence à plenitude, à completude, enquanto a violência está do lado da falta, da carência, do incompleto. Paz reflete harmonia consigo, boas relações com os outros, aliança com Deus, enquanto a violência infecciona os relacionamentos, contamina a convivência, quebra as relações, exclui os mais fracos...
Este é o desafio diante do Novo Ano que se inicia: devemos primar por construir “ambientes de paz”: paz que vem do alto, que brota do interior e aquece nossos corações, plenifica nossas relações e se expande, tal como perfume, em todas as direções.
Paz é aspiração congênita do ser humano. Nosso coração humano foi feito para a paz e anseia a convivência harmoniosa com Deus, com o cosmos, com os nossos semelhantes. É processo interminável.
Aprender a amar, preocupar-se com os outros, vibrar com a diferença, entrar em harmonia não só com as outras pessoas, mas com toda a criação é a autêntica preparação para a paz. Quem ama não cria conflitos e fica encantado quando todos tenham acesso aos melhores recursos na própria interioridade.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: A partir do “olhar” admirado dos pastores, alimentar, ao longo deste ano, um processo minucioso de extirpação das “cataratas” do seu olhar interior: o olhar das lembranças negativas, das suspeitas, dos julgamentos, das comparações... e reacender o olhar contemplativo capaz de expressar a benevolência, a delicadeza, a acolhida, a cortesia, a serenidade, a modéstia, a afabilidade, a alegria simples de estar juntos...
- Recordar todos os “olhares amorosos” que Deus foi depositando sobre você ao longo da vida.
Feliz Ano cheio de Deus!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus desceu então com seus pais para Nazaré...” (Lc 2,51).
Nazaré é a escola do Filho de Maria, rodeado de gente comum, com sua paisagem natal, sua linguagem, seu modo pessoal de ser e viver, sua conduta, sua fé...
Na “vida oculta em Nazaré” encontramos os “nomes” e “verbos” nos quais Deus falou em Jesus e onde continua nos falando hoje. Ali Ele se faz “um entre tantos”, vizinho com os vizinhos, trabalhando com os que trabalhavam, acolhendo a vida cotidiana em toda sua riqueza e limitação. Ele é “o filho do carpinteiro”. Para Jesus, Nazaré é um tempo de aprendizagem: olha, escuta, observa tudo o que acontece nesta escola do cotidiano. Exercício de preparação diante das urgências do Reino. “Tempo de enraizamento...”.
Jesus conheceu a dor real do povo, na escola do Pai, que é a escola da vida humana, em contato com as necessidades dos mais pobres e excluídos, em solidariedade laboral. Assim aprendeu a ser humano, ouvindo os gritos dos homens e mulheres de seu entorno, expulsos, oprimidos, como ovelhas sem pastor. Não teve que entrar no lugar da exclusão a partir de fora: cresceu ali dentro.
Na escola da vida, comum e cotidiana, Jesus também foi aprendiz. O artesão de Nazaré nos ensina o valor das coisas cotidianas quando são feitas com dedicação e carinho. Nesta “ocultação”, estava assumindo a condição da imensa maioria dos mortais deste mundo, dos homens e mulheres “comuns”, daqueles que vão trabalhar ou estão sem emprego, daqueles que precisam “ganhar a vida”, porque na vida não encontram seu lar, daqueles que são pura estatística...
Aprender é consequência básica da dinâmica da Encarnação. Lucas confirma: “Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens” (Lc. 2,52). Portanto, Jesus viveu a vida como um processo lento e progressivo, a partir da própria condição humana no meio do povo e em vista do Reino de Deus, graças a uma criatividade transformadora.
Foi no cotidiano familiar que Ele aprendeu, aos poucos, a ampliar seus horizontes, seus interlocutores e o sentido de sua missão. É a vida cotidiana que nos revela que Jesus foi uma pessoa nitidamente humana e humanizante, que vivenciou um processo de maturação, de releitura de suas tradições e assimilação do novo, até chegar à proposta original da Boa-Nova. Foi no cotidiano que Jesus viveu a “mística do encontro”: viveu intensamente, em primeiro lugar, o encontro com o Pai, conhecendo e realizando Sua Vontade; foi em Nazaré que aprendeu a valorizar e a saborear o encontro com todas as pessoas. Encontros humanizadores que O humanizaram.
Na sua vida em Nazaré Jesus nos convida a entrar na sua casa para aprender d’Ele e com Ele os valores próprios de uma família. É difícil compreender a “normalidade” da vida de Jesus; parece até que o Reino não tinha exigências sobre a sua vida. Identificando-se com a vida de todo mundo mostrava que a salvação não consistia em coisas extraordinárias e em gestos fantásticos, mas na “adoração do Pai em espírito e verdade”. Jesus passou praticamente toda sua Vida nesta humilde condição; viveu desapercebido como Messias. Pois o Reino se revela no pequeno, no anônimo e não no espetacular, no grandioso. Ele está misteriosamente se realizando entre nós.
Nazaré é o sinal da “epifania” de Deus nas pequenas coisas, é o sinal da palavra divina escondida nas vestes humildes da vida simples, é o sinal do sorriso de Deus que se faz visível nos espaços comunitários.
Tanto em Nazaré quanto na vida pública, Jesus nos comunica uma profunda união com o Pai, vivendo uma oração confiante e de entrega. Jesus sente quando o Pai o chama a mudar o estilo de vida escondido. Ele está atento aos “sinais dos tempos” e saberá discernir, nesses sinais, a Vontade do Pai que o chama a mudar de caminho, a deixar sua terra, a lançar-se numa aventura. Começará, então, uma vida itinerante, missionária, despojado de tudo.
No espaço familiar, em Nazaré, Jesus se revela, para todos nós, como presença inspiradora neste momento em que as transformações são rápidas e exigem de nós maturidade, aprendizado, diálogo, novas expressões de fé... Um dos desafios da espiritualidade atual é motivar a viver a vida em profundidade, apesar da aridez do deserto do cotidiano. O ritmo da sociedade atual e, sobretudo, o culto à novidade, ao efêmero, ao superficial, ao consumismo, pede de nós recuperar a dimensão de profundidade em nossa vida cotidiana.
O chamado universal à santidade nos faz confiar profundamente na vida cotidiana, ou seja, no dia-a-dia da vida familiar, no exercício da profissão, nas relações da vida social, nas decisões éticas, na ação cidadã, no campo dos direitos humanos, da economia, na presença ativa da política, no mundo da cultura, no cuidado e preservação da vida, no diálogo com os meios de comunicação..., como “lugares agraciados” de encontro com Deus e manifestações explícitas de compromisso cristão.
Custa-nos muito descobrir a “espiritualidade da vida familiar cotidiana”, a vida de cada dia nos parece sem sentido, sem muito destaque e sem muitos fatos extraordinários; temos ainda muito que aprender da vida cotidiana do artesão de Nazaré. Precisamente a vida cotidiana é o lugar privilegiado para descobrir Deus (“por onde passa meu Senhor”), sentir o sabor da Sua presença que permanece. Os lugares cotidianos são “lugares sagrados” de encontro com o Senhor da Vida.
Encontrar a Deus no cotidiano significa que é preciso viver em um contexto vital no qual cada um se sinta estimulado a tomar decisões, a assumir responsabilidades, grandes e pequenas, a cuidar pessoalmente dos processos concretos da vida de cada dia. É vital descobrir se nossa vida cotidiana é egocêntrica ou excêntrica, se tem a marca da “cultura do encontro” ou da “cultura da indiferença”, se a missão de nossa vida nos projeta para o compromisso com o outro, se temos paixão pelo Evangelho encarnado nos ambientes onde nos fazemos presentes cotidianamente.
A realidade cotidiana da nossa Nazaré é o lugar onde somos chamados a viver a espiritualidade cristã e a deixar-nos conduzir pelo mesmo Espírito que animou Jesus e o levou a inserir-se na trama humana e a assumir o risco da história. Ser seguidor(a) de Jesus, inserido(a) no mundo, em meio às agitações cotidianas, é acima de tudo tê-Lo como inspiração de vida: suas palavras, suas ações, sua relação com o Pai e com os outros...
A espiritualidade cristã é a espiritualidade do cotidiano, que conserva sua força transformadora, que é capaz de despertar o espanto e a admiração, apontando sempre para um horizonte mais amplo e mais rico;
é a espiritualidade que reacende desejos e sonhos novos, que suscita energias em direção ao mais;
é a espiritualidade que faz descobrir, escondida no cotidiano, uma Presença absoluta que nos envolve;
é a espiritualidade que faz saborear o eterno e o Absoluto no ritmo doméstico e cotidiano da vida...;
é a espiritualidade que projeta a vida a cada instante; abre espaço à ação do Espírito para que Ele nos expanda, nos alargue e nos impulsione em direção a uma nova humanização.
Textos bíblicos: Lc 2,41-52
Na oração: A vida cotidiana exige não apenas fidelidade, mas também amor, gratuidade. É o lugar que inspira a viver encontros com a marca da surpresa, da acolhida do diferente, do respeito ao outro...
- Como é o seu cotidiano? rotina e repetição ou desafio e criação? Espaço de encontros inspiradores ou alimentador da indiferença? Nele há lugar para a esperança e para o novo?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7)
No Natal celebramos esta realidade: Deus “se fez diferente” e é na “diferença” que Ele vem ao encontro do ser humano como chance de enriquecimento vital e de intercâmbio criativo. Deixemo-nos surpreender pelo Deus da vida que rompe esquemas, crenças, legalismos, bolhas...; ou nossa vivência de fé se reduzirá a um ritualismo fechado, impedindo sair de nós mesmos.
Se Deus correu o risco de encarnar-se, de nascer pobremente e crescer como salvação a partir da exclusão deste mundo, já não há excluídos para Ele, ninguém fica fora d’Ele. E o lugar principal para a festa é ali onde Ele aparece: nos “aforas”, onde não há lugar, onde tudo parece esgotar-se e é condenado a crescer em meio às ameaças e às intempéries das situações humanas.
Jesus, em Belém, encontrou o seu lugar: nas periferias. A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
Jesus se fez presente no lugar onde se encontravam aqueles que não tinham “lugar”, os “deslocados”, os socialmente rejeitados e que foram a razão de seu amor e do seu cuidado; fez-se solidário com os “sem lugares” e os convidou a caminhar para um novo lugar. Na Gruta, Jesus teve sua preferência e escolheu o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles que se fazem donos dos lugares.
Um “lugar” é sempre mais do que um simples lugar. A geografia de cada “lugar” revela lembranças, referências, ansiedades, medos, saudades...; cada “lugar” guarda histórias, presenças e tem força de memória. Há vidas, pessoas, caminhos, acontecimentos, experiências... Na verdade, o “lugar geográfico” se confunde com o “lugar interior”. É no lugar geográfico que o lugar do coração encontra seu suporte e seu repouso. Quando dizemos: “não tenho lugar”, “estou sem lugar”, “tenho medo deste lugar”... queremos significar que o coração não encontrou no lugar geográfico o seu lugar próprio.
O Natal nos convida a imaginar lugares em movimento, lugares de encontro, de desafio, lugares provocativos e criativos..., enfim, lugares carregados de presença. Celebrar o Natal implica um contínuo êxodo do “lugar estreito e dispersivo” ao “lugar expansivo e unificador”; ali vivemos uma permanente travessia dos “nossos lugares rotineiros e auto-referenciais” para os “amplos lugares cristificados”.
A travessia para a Gruta é um risco, é um salto para um outro “lugar”, é deixar-se afetar por este “outro lugar”: lugar iluminado por uma Presença despojada de poder, de riqueza, de prestígio... O mistério do Nascimento é profundamente “espacial”: um lugar vital, dramático, que questiona, ilumina, vitaliza e carrega de sentido os lugares cotidianos. Ele nos ajuda a ter acesso a um “lugar inspirador”, um polo de referência e de atração, onde nos sentimos acolhidos, integrados e pacificados na “presença” d’Aquele que, na Gruta, assume e ilumina todos os lugares, sobretudo dos mais excluídos.
A Gruta de Belém é o espelho dessa experiência originária que transforma o “caos” cotidiano em “cosmos” e que, somando-se a outras experiências semelhantes, ativa o modo original de ser e de estar no mundo. Entrar no espaço do Nascimento de Jesus configura e ordena, de modo novo e diferente, os lugares por onde transitamos. Sabemos que o espaço faz parte do ar que respiramos em nível fisiológico e biológico, como faz parte das nossas experiências interiores. No entanto, vivemos um tempo de confusão de “lugares”, conseqüência de uma confusão interior. Nossa sociedade parece estar indo à deriva porque não sabe mais reconhecer “espaços diferentes e vitais”, porque tudo se torna igual e os lugares não falam mais, pois carecem de sentido e se revelam como lugares vazios. Os espaços são violados, os “lugares sagrados” são profanados, os “ambientes” carregados de sentido e de história já não revelam mais nada...
Esse é o primeiro sintoma de uma visão humana desastrosa e desastrada. Na insignificância e no achatamento dos espaços está o primeiro e mais grave esmagamento do pensamento e da consciência, a ruptura das relações sociais, a indiferença para com o lugar do outro que é diferente, frieza ecológica e o definhamento das experiências religiosas.
Descer ao lugar da Gruta para encontrar uma Criança desperta em nós um novo “olhar” para perceber, com mais nitidez e intensidade, os lugares por onde transitamos, uma nova disposição para dar sentido e valor aos lugares cotidianos, um olhar solidário para perceber o lugar do outro, uma nova sensibilidade para “ver” a Presença d’Aquele que ocupa todos os lugares.
Não é comum prestar atenção ao lugar ocupado pelo outro, sobretudo o outro que pensa e sente diferente; é normal perceber, delimitar, defender e fechar-se no próprio lugar. Isso se faz de maneira tão zelosa que nem se vê aquilo que está para além do próprio lugar. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.
O profeta Isaías nos recomenda ampliar o “lugar interior”: “Alarga o espaço de tua tenda, estende sem medo tuas lonas, alonga tuas cordas, finca bem tuas estacas” (Is. 54,2). Um “lugar sagrado” que nasce do coração, carregado de afeto, de inspiração, de vitalidade...
Ampliar os espaços do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade, solidariedade e abertura às mudanças e às novas descobertas. Algumas fortalezas e seguranças pessoais caem quando os “espaços interiores”, abrasados e iluminados pelo Nascimento de Jesus, começam a romper as paredes e se encarnam em “lugares exteriores”, marcados pela beleza e encantamento: lugar familiar, lugar celebrativo, lugar social, lugar de convivência, lugar de trabalho... um lugar nobre que só tem sentido quando carregado de presenças.
Só quem transita com liberdade pelos “lugares interiores” será capaz de ir ao encontro dos outros e entrar em sintonia com eles. O “lugar externo” é o prolongamento do lugar percorrido e saboreado internamente. Não tem sentido ampliar os lugares externos se nossa mente permanece estreita, se nosso coração continua insensível, se nossas mãos estão atrofiadas, se nossa criatividade sente-se bloqueada...
Lugar amplo é convite a sonhar alto, a pensar grande, a aventurar-se, ousar ir além, lançar por terra nosso modo arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos para ir ao encontro dos “novos lugares” dos excluídos e marginalizados. Precisamos levantar-nos cotidianamente de nossos “lugares”: há sempre um “lugar ferido” que nos espera, um “ambiente atrofiado” a ser curado, um “espaço” excluído a ser visitado...
Texto bíblico: Lc 2,1-14
Na oração: É o ser humano mesmo o verdadeiro lugar a partir do qual Deus se encontra e se dá a conhecer; cada pessoa é o autêntico lugar da eterna presença de Deus.
O melhor presente: uma “uma cesta natalina” repleta de sensibilidade, tolerância, compreensão, alegria, acolhida, proximidade, generosidade, solidariedade...
Este é o verdadeiro Natal: que, em Jesus, nossos espaços cotidianos sejam incubadores de encontros humanizadores, foco de reconhecimento da dignidade de todas as pessoas.
Um Santo Natal a todos!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre...” (Lc 1,41)
Os sinais da quarta Semana do Advento nos devolvem à beleza do pequeno, à humildade do cotidiano, à simplicidade dos encontros. No mistério da Visitação, uma simples saudação, essa experiência universal de acolhida do outro, desencadeia uma torrente de comunicação entre duas mulheres grávidas que se enchem de júbilo, bendizem e se alegram juntas enquanto a vida cresce em suas entranhas.
No encontro entre Maria e Isabel a comunicação abarca, com igual intensidade, tanto a dimensão corporal como a que se expressa em palavras. Nesse clima de confiança total acontece o diálogo entre elas. Duas mulheres que compartilham um segredo que não são capazes de entrever em toda sua imensidade, carregada de transcendentais consequências. E nessa efusão de duas pessoas simples, unidas pelo sangue e sobretudo pela fé, se reconhecem partícipes de uma história que as ultrapassa. Encantadas, agradecidas, maravilhadas, expressam os sentimentos de seu coração no louvor a Deus. “Minh’alma engrandece o Senhor” é a primeira mensagem do Magnificat com que nos evangeliza aquela jovem simples de Nazaré que guardava em seu coração todas as coisas que iam acontecendo.
O evangelho da Visitação nos convida a contemplar como Maria saiu de sua casa e empreendeu apressadamente uma viagem; viagem que é metáfora de todas as viagens da existência humana. Maria disse “fiat” a Deus, pôs-se a caminho e foi renovando cada dia de sua vida esse arriscado e confiado “sim”. Advento, tempo de espera no qual Maria é protagonista, guardando um segredo que afetará a todos nós. O que a move a sair é um grande projeto que vem do alto. Assim ela nos revela que não se pode viver sem mistério, sem paixão; que o mistério nos deslumbra, nos supera e nos dinamiza.
Em Isabel, podemos admirar como se une o assombro por uma maternidade inesperada com a ação do Espírito atuando sobre sua esterilidade. Seu assombro e exaltação ecoam com a alegria e a dança da criança que carrega em suas entranhas. Isabel, a mais velha, se inclina diante de Maria, a mais jovem, num abraço e num beijo acolhedor. As duas são portadoras de mistério; estão profundamente marcadas pela comoção. Nelas tudo é surpresa, vibração e alegria.
Isabel e Maria não só se acolhem e se animam, mas se acompanham e se ajudam. O acompanhamento entre ambas se converte em fonte de bençãos. Maria descobre que não se encontra sozinha; há uma mulher que lhe acompanha. Ela quer compartilhar sua experiência de mulher (e futura mãe) com outra mulher, sua “prima” Isabel, a mãe do Batista. Maria vai ao encontro de Isabel para sentir o apoio na figura de uma mulher madura, mas cheia de vida e de futuro. Não se dirige ao Templo nem ao sacerdote... Os homens de então não são capazes de entender o que está acontecendo nestas duas mulheres, pois estão preocupados com outras coisas. Maria precisa dizer para outra mulher, para celebrar com ela “a maravilha que Deus estava realizando nela”. Toda a história da esperança humana, a humanidade inteira se condensa em duas mulheres.
Ambas, tocadas pelo Espírito, seguem sua própria evolução: cada uma tem sua gravidez, e isto requer cuidado, proteção, equilíbrio...Assim, as duas unidas caminharão em direção a um maravilhoso futuro desconhecido. O novo precisa companhia, unir mãos e corações, mentes, forças e pés. Cada uma com seu segredo dentro de si, presente em suas entranhas. As duas com uma forte convicção: foram visitadas pela misericórdia de Deus.
Em nome do filho que dança no seu ventre e tomando a palavra dos grandes sábios da Antiga Aliança, como encarnação da esperança do povo israelita que aguardou este momento durante séculos, Isabel canta a grandeza da mãe do Messias: “Bendita tu entre as mulheres e bendito é o fruto de teu ventre!” “Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o senhor lhe prometeu”.
Esta é voz de benção, ou seja, de graça criadora e abundância. Esta é a benção e a bem-aventurança que dirigem a Maria todos os “esperantes” do Antigo Testamento. Esperaram longos séculos, dirigidos, animados, pela voz dos profetas. Agora podem sentir-se satisfeitos. Chegou o cumprimento e assim o confirma, em nome de todos, Isabel, mulher israelita, mãe profética.
É verdade que as bênçãos eram comunicadas pelos sacerdotes. No entanto, Isabel bendiz Maria em sua plena juventude e grávida de Deus. Bendiz o fruto de suas entranhas. Só esta mulher que engendrou em sua velhice, assumindo a voz do profeta que carrega em sua entranha, pode entender e receber a mãe messiânica, proclamando sobre ela a grande voz do cumprimento dos tempos. Estamos no centro da oração mais querida dos cristãos católicos (depois do Pai-Nosso), que é a Ave Maria. Maria recebe agradecida as palavras de benção e lhe responde dando graças a Deus com o Magnificat.
Advento é o tempo das mulheres, ou seja, daquelas que tem uma surpresa a oferecer, pondo-se a serviço do amor de Deus que levam em seus ventres, amor que as envolve e as transcende, fazendo-as servidoras da vida.
A cena da Visitação nos situa em um espaço intenso de mulheres. É como se, ao chegar o momento culminante da revelação, os varões passassem a segundo plano. Certamente, realizaram e em algum sentido continuam realizando funções socialmente importantes: fazem negócios, servem como sacerdotes no templo, estudam e explicam o sentido da lei como escribas, definem e encarnam a pureza do povo eleito como os fariseus...
Esses e outros ofícios de varões foram e são valiosos; mas ao chegar a plenitude dos tempos acabam se tornando secundários, pois Deus não precisa de sacerdotes, nem de fariseus, nem escribas, como os antigos. O cuidado da vida e a vida mesma do Messias de Deus, como futuro salvador da humanidade, está em mãos de mulheres.
Também a Igreja hoje deve viver “em tempo de “parto”, pois carrega em seu ventre Alguém maior que ela mesma; ela só poderá “dar à luz” a Deus na história da humanidade se renunciar às suas grandezas externas, feitas de riquezas e privilégios, de honras e poderes... e revestir-se da simplicidade, da ternura e da acolhida amorosa. Para isso, ela precisa pôr-se a caminho, para visitar e dialogar com Isabel e com outras mulheres, e aprender com elas o que significa estar a serviço da vida, que a ultrapassa sempre.
Este ícone da Visitação desvela o modo original de ser e de agir de toda a comunidade eclesial; há diversidades de serviços que a caracterizam, mas todos são convidados a reconhecer, a servir, a celebrar as maravilhas que Deus continuamente realiza em tudo e em todo.
É um ícone dinâmico que nos lança a “sair apressadamente” ao encontro do outro, com quem temos um parentesco, na consciência de que fazemos parte de uma mesma humanidade. A vida cristã de nossos dias precisa voltar à Visitação, reviver a “cultura do encontro” e buscar inspiração nas protagonistas no evangelho deste domingo. A vida cristã necessita Visitação para ser mais vida e mais cristã, para deixar seguranças, cuidar e acompanhar a vida que há nela e nas “periferias existenciais”, ali onde o novo está germinando, para espanto e surpresa de todos.
Com a Visitação nos chega memória agradecida, paixão comprometida e esperança dinamizadora de um possível presente fecundo. A Visitação é um foco criativo de espiritualidade.
Texto bíblico: Lc 1,39-45
Na oração: Advento nos inunda da alegria da Visitação e nos move a ser portadores e portadoras da Vida de Deus para o nosso hoje.
- Você visita ou se deixa visitar por quem é diferente? ou assume posturas de preconceito e intolerância?
- Através das “redes sociais” visitamos tantas pessoas:
suas visitas virtuais são cheias de graça e alegria ou carregadas de julgamento, de mensagens pessimistas...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Mosteiro de Itaici-SP
“Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem” (Lc 3,11)
Em meio às sombras, perplexidades, contradições, provocações e intolerâncias, que constituem o atual momento histórico, queremos, neste Advento, dar vez a um brado de esperança e expressar a fé no futuro da nossa vida. A esperança tem raízes na eternidade, mas ela se alimenta de pequenas coisas; nos despojados gestos ela floresce e aponta para um sentido novo. É preciso um coração contemplativo para captar o “mistério” que nos envolve.
A esperança, como força transformadora da realidade, inclui uma clara tomada de decisões de dirigir as energias vitais para ir ao encontro daquilo que é imprescindível para a vida. Por isso, em um mundo de muita injustiça social, onde milhões de pessoas vivem em condições de pobreza extrema e submergidos em círculos de violência, a esperança se apresenta a nós como uma força capaz de despertar nossa consciência adormecida e assumir nossa responsabilidade. A esperança é sempre inquieta e mobilizadora, é impulso que nos faz desejar e buscar uma mudança decisiva que favoreça instaurar um mundo mais humanizador, abrindo-nos a um “mais além” que já está próximo. Mesmo diante dos profundos dilemas internos e sociais, achamos possível ser e viver de outro modo, inventamos e reinventamos opções, criamos novas saídas... e, sem cessar, sonhamos com o “mais” e o “melhor”. Afinal, somos seres de “travessia”...
Essa “travessia” não é apenas geográfica; trata-se de uma experiência que requer a atitude de “saída de si” para ir ao outro como diferente; e isso implica “passar” para o seu lugar, aprender a ver o mundo a partir de sua perspectiva, deixar-nos questionar e desinstalar-nos por ele, tão despojado da condição de pessoa. Ir ao encontro do outro só é possível a partir do cultivo da sensibilidade, entendida como o movimento afetivo necessário para olhar e sentir a verdade na realidade de quem sofre. Não se trata de “dar coisas”, mas deixar-nos “afetar cordialmente” pela dor do outro.
Neste 3º. domingo do Advento, o apelo à mudança, na voz de João Batista, se torna mais concreto. “Quê devemos fazer”? Tal pergunta é uma prova da sinceridade daqueles que se aproximavam de João. Com três pinceladas o Batista enfatiza a necessidade de mudar a maneira de pensar e de agir: é preciso abrir-se à alteridade até chegar a partilhar com outros, é preciso sair do estreito círculo do “meu” para que a escravidão do possuir abra passagem à liberdade de preferir o bem maior da relação; ativar a alegria de saber que uma túnica sobrante abriga agora o corpo de um irmão; a economia deve estar a serviço da vida e de todas as pessoas; reacender o impulso a ser “pacifistas ativos”, defendendo e protegendo os pobres e indefesos.
Encontramo-nos aqui diante da razão ética originária que não se baseia tanto numa compreensão da realidade, mas na compaixão com a pessoa do “outro”, excluído, pobre, dominado, marginalizado... Lucas apresenta a mensagem de João Batista a partir de uma perspectiva ética, que pode e deve aplicar-se a todos os povos. Deixa de lado os aspectos exclusivamente religiosos (confessionais) de sua mensagem e o condensa em um programa ético de deveres sociais, que se aplicam primeiramente a todos os homens e mulheres e logo a dois grupos especiais: os publicanos e os soldados.
Esta é uma mensagem muito simples. Não precisa reuniões episcopais, nem conselhos de países, nem comissões internacionais. É uma mensagem imediata e próxima, de comunhão humana, pacífica, generosa. É uma mensagem que crê no ser humano. Não se trata de “matar” os publicanos e os soldados, mas de descobrir que também eles são humanos, iniciando a grande revolução da igualdade e partilha de bens.
Esta é a moral natural de João Batista. Este é para Lucas o ponto de partida para chegar ao evangelho. Jesus vai além (é gratuidade). Mas, para chegar a Jesus é preciso passar por João Batista. A resposta de João Batista não é teoria vazia. É através de gestos e ações concretas de justiça, respeito, solidariedade, partilha e coerência cristã que se vai construindo um tecido social mais digno de filhos(as) de Deus, realizando as transformações radicais e profundas que as pessoas e a sociedade tanto necessitam. Frente a diferentes públicos, João não faz alusão nenhuma à religião; o que ele pede a todos é melhorar a convivência humana. O envolvimento com o “outro” nos conduz à autenticidade, à libertação de apegos e avareza, à liberdade para partilhar e receber e a uma imensa felicidade.
A “sensibilidade solidária” suscita em nós um desejo novo que articula um novo horizonte de sentido às nossas vidas e gera um horizonte de utopia e de esperança por um mundo justo e fraterno. A solidariedade é a não-violência em ação; é a fonte de todas as qualidades espirituais: a capacidade de perdão, a acolhida compassiva, a tolerância e todas as demais virtudes. Além disso, é a que de fato dá sentido às nossas atividades cotidianas e as torna construtivas.
A solidariedade permeia e ressignifica, assim, toda a nossa existência. Não é um evento, um ato isolado. Ela torna oblativa a vida em suas diferentes expressões, fermenta o cotidiano de nossas existências, infunde sentido e razão de ser àquilo que somos e fazemos.
Nas experiências de “convivência” com os pobres adquirimos os valores evangélicos da capacidade de celebrar, da simplicidade, da hospitalidade... Eles tem um jeito de nos trazer de volta para o essencial da vida. Eles são uma fonte de esperança, uma fonte de autenticidade. Eles se tornam nossos amigos.
Importa, portanto, “re-inventar” com urgência a solidariedade como valor ético e como atitude permanente de vida; não uma solidariedade ocasional, mas uma solidariedade cotidiana que se encarna nos pequenos gestos de inclusão do dia-a-dia. Na criação da “nova comunidade” dos(as) seguidores(as) de Jesus, a partilha substitui a acumulação e a abertura aos outros se apresenta como alternativa às relações interpessoais de opressão e exclusão; aqui está configurada uma das propostas mestras na proclamação do Reino de Deus.
Com nossos gestos solidários nos mobilizamos e nos aproximamos do Senhor que chega. Neste dia Deus discernirá entre o trigo e a palha que existem em nossa conduta. Vivemos a cultura da “palha”, que nos força permanecer na superficialidade, na aparência, na exterioridade da vida, impedindo-nos perceber o trigo presente em nossa interioridade.
Vivemos, muitas vezes, imersos em meio a tanta palha que nos afoga e nos incapacita viver a cultura do encontro solidário. De fato, a cultura da superficialidade, da aparência, da vaidade... são as marcas de nossa sociedade atual; marcas que nos desfiguram e nos desumanizam. Só quem sai de si em direção ao outro, através de gestos solidários, é capaz de peneirar a palha para deixar emergir o trigo de vida que carrega dentro.
Somente a “sensibilidade solidária” será capaz de fazer a pessoa retornar à sua casa, ao centro, ao seu eu profundo; só ela ativará os recursos consistentes, os pontos de luz, o trigo que carrega dentro. O ego não ama ninguém além de si mesmo, atendendo apenas às suas próprias necessidades e à sua própria gratificação. Sofrendo de uma falta total de compaixão ou empatia, ele pode ser extraordinariamente cruel para com os outros. Ele não se dá conta de que vive fechado em si mesmo, prisioneiro de uma lógica que o desumaniza, esvaziando-se de todo dignidade. Aumenta seus celeiros, mas não sabe ampliar o horizonte de sua vida. Aumenta sua riqueza, mas diminui e empobrece sua vida. Acumula bens, mas não conhece a amizade, o amor generoso, a alegria e a solidariedade. Não sabe compartilhar, só monopolizar.
Finalmente, acaba-se por criar uma dura cortiça que defende e isola a pessoa do entorno e que a aliena numa insensibilidade para com tudo aquilo que não seja sua própria realidade. É uma espécie de "embriaguez" na qual a alteridade desaparece.
A verdadeira riqueza é investir numa única fortuna: a do amor, do favorecimento da vida, a do descentramento de si, o do encontro solidário em favor dos mais pobres e desfavorecidos.
Texto bíblico: Lc 3,10-18
Na Oração: Segundo o Batista, a conversão exige “saber peneirar” (saber selecionar ou eleger), “recolher o trigo” (ir ao essencial e não ficar na superfície) e “queimar a palha” (eliminar o que não serve ou o que imobiliza); acolher a Boa Nova da vinda do Senhor requer essa conversão.
- Se sua vida “passar pela peneira”, o quanto de trigo permanecerá? O quanto de palha deve ser lançado fora?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Esta é a voz daquele que grita no deserto” (Lc 3,4)
Em um mundo no qual há tanto ruído não é fácil prestar atenção às vozes carregadas de vida e que movem à vida. Talvez porque entre tanto palavreado crônico a melhor solução é desconectar-nos, ou por preguiça, ou por impotência, ou pela tentação de querer falar, sem parar. Quem sabe, o excesso de problemas, inquietações, projetos e ideias confusas que se movem por dentro, petrificam nossa própria interioridade. Ou ainda, porque no mundo há tantos discursos vazios, violentos e preconceituosos que, ao nos causarem asco, alimentam em nós uma inércia ou uma atitude cética.
Diante dessa realidade, o tempo do Advento nos apresenta como referência e estímulo a voz de João Batista. Ele não quis renunciar sua voz, apesar das incompreensões e das resistências; sua voz se converteu no apelo a modificar a ordem das prioridades, na voz das minorias, na voz que movia a assumir um outro estilo de vida, na voz que ajudava a descobrir que a pessoa está acima de tudo, na voz que sempre deve estar a favor da vida.
Essa foi a missão de João: ele aparece no deserto não como um sacerdote que convida ao culto, mas como um profeta que proclama a mudança, a conversão, a abertura à novidade d’Aquele que está chegando. É uma voz que clama, mas João é muito mais que uma palavra; João é toda uma vida que se faz palavra. Ou melhor, é a palavra feita vida, revestida de vida. Nos profetas fala a voz mas, sobretudo, fala a vida.
No Advento, a voz de João, que grita no deserto, ressoa em nosso próprio interior, destravando nossa voz, tantas vezes silenciada por uma cultura que impõe sua voz interesseira. Cada um de nós tem, todo dia, a oportunidade de fazer escutar a própria voz. É necessário levantar nossa voz para despertar e ver as coisas a partir de outro ponto de vista, para transgredir esses discursos de morte e preconceito que o contexto, no qual vivemos, quer nos transmitir e que tanto nos desumaniza.
É necessário tomar consciência que, se renunciamos nossa voz, renunciamos defender nossa maneira original de nos fazer presentes numa realidade de exclusão e de propor outra maneira de viver, mais livre, aberta e expansiva. Por tudo isso, como João Batista, expressemos nossa voz sem complexos, mas com o máximo respeito, cheia de ternura e não entrar no barco das vozes furiosas, carregadas de linchamento, de revanches e incompreensões para com quem pensa diferente, crê diferente, ama diferente. Por tudo isso, não renunciemos nossa voz, não renunciemos enriquecer nosso entorno com nossa voz original, porque vozes inspiradoras, em momentos especiais, farão a diferença.
Em segundo lugar, “ouvir a voz de João” nos sensibiliza a escutar outras vozes, carregadas de vida e mobilizadoras de vida. Os personagens do Advento nos tornam sensíveis às verdadeiras vozes que tem a magia de nos tocar a fundo e despertar o impulso para entrar em sintonia com elas.
O fato é que, às vezes, nos acomodamos a viver em bolhas, onde, raras vezes, entram vozes que nos comovem de verdade. E, no entanto, debaixo da parafernália de gritos, ruídos, anúncios, apelos publicitários e frases feitas de mau gosto, continua brotando vozes cheias de verdade, vozes que vale a pena serem escutadas.
Estamos rodeados de diferentes vozes; quem sabe, por detrás de muitos gestos, palavras, gritos... não estarão vozes que pedem ajuda, ou que simplesmente expressam dor, insegurança, medo, clamando por uma presença acolhedora. É claro que não vamos estar o dia todo falando com o coração na mão e os olhos úmidos de lágrimas, desnudando nossa intimidade. É possível que na vida cotidiana continuaremos falando com nossa gente das coisas mais cotidianas. O verdadeiro desafio é aprender a escutar, por debaixo de diferentes vozes, a palavra profunda, o canto tranquilo ou o pranto escondido.
Há outros lamentos, não tão escondidos, que deixamos de escutar, talvez porque se chegássemos a ouvi-las, nos deixariam profundamente impactados, pois, poderiam provocar-nos uma sensação de impotência e de fracasso enorme. São vozes que não tem nada que decifrar, claras, rotundas, honestas. São as vozes dos excluídos de todo o tipo: pobres, famintos, vítimas de preconceito, aqueles homens e mulheres que sofrem a intolerância e a indiferença.
Às vezes, essas vozes nos conduzem a um dilema: para quê escutá-las, se não podemos fazer nada? Para tornar a vida mais amarga? Para sentir uma culpa que não é nossa? Aqui não se trata de fazer discursos voluntaristas ou demagógicos acerca do mal no mundo. O verdadeiro desafio é ampliar dentro de nós um espaço no qual outras vozes possam ressoar, recordando-nos que ainda há muito por fazer para continuar construindo o Reino de Deus, onde todo ser humano possa viver com sua dignidade assegurada; para fazer-nos conscientes do quanto nossa vida tem de benção, e, ao mesmo tempo, o quanto somos responsáveis por todo bem recebido...
Na vida cristã entende-se o viver como uma arte que é preciso praticar. A vida não é um azar, nem um destino, nem um enigma a resolver. A fraternidade evangélica é uma escola da vida e interação, onde cada pessoa inter-atua com os demais e encontra liberdade para expressar sua voz e acolher a voz do outro. Frente ao diferente, o tempo do Advento contém muitas possibilidades: pode gerar variadas combinações e sinergias. Advento é como um calidoscópio que combina uma infinidade de vozes e cores. As vozes dos diferentes encontram seu espaço, se identificam e potenciam a relação mútua. Todos, tendo um só coração e uma só voz, alimentam a unidade na diversidade.
A condição para descobri-las é “levantar os olhos”, ir mais além do imediato que nos cega e nos prende em redes de desejos insatisfeitos, em obsessões por conservar modos de vida que consideramos definitivos, em temores que embotam nosso coração impedindo o fluir da vida.
“Preparai o caminho do Senhor”. Como abrir caminhos para que os homens e mulheres de nosso tempo possam encontrar-se com Aquele que vem? Deus chegará por outros caminhos, totalmente diferentes dos caminhos que estamos construindo habitualmente. Deus não pode vir ao nosso mundo de hoje enquanto não construirmos caminhos mais planos de acolhida, solidariedade e partilha. Deus não pode vir nem entrar pelos caminhos diante dos quais foram construídos muros e valas, impedindo o acesso dos excluídos e perseguidos. Deus não pode entrar na história através de caminhos que desembocam nos corações carregados de ódio, de indiferença, de fanatismo e de preconceito para com tantas vítimas de poderes que desumanizam. Os personagens políticos e religiosos nomeados (Pilatos, Herodes, Anás, Caifás...), apesar de seus poderes e intrigas, não conseguiram extinguir a esperança que a voz profética de João convocava, a partir da periferia. Advento, é tempo de resistência.
Texto bíblico: Lc 3,1-6
Na oração: Pense em tantas vozes rompidas que às vezes ficam silenciadas pelo contexto social onde você vive. Peça a Deus que lhe ajude a ouvir e não perder nunca a capacidade de comover-se diante das:
- vozes daqueles que estão privados do mais necessário;
- vozes que são caladas por todo tipo de discriminação;
- vozes daqueles que são vítimas de intolerância e preconceito;
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis...” (Lc 21,34)
Com o Advento, começamos um novo ano litúrgico, um tempo que sempre nos fascina. O ser humano, ferido pela estreiteza da vida, imposta pelo seu ego, descobre a fragilidade, o medo, a dor, o sem-sentido, pelo qual volta a gritar a seu Criador, buscando, suplicando de novo que lhe envie um raio de luz. Desolado pela experiência do sofrimento, da violência, da intolerância, da solidão e do medo, dirige novamente seus olhos para “Aquele que está à vista”. O Advento é o tempo mais adequado à nossa existência atual. Queremos intuir algo novo, reacender nossa esperança, alimentar uma presença inspiradora nesse contexto social no qual vivemos, carregado de trevas e abalos sísmicos.
O Tempo do Advento tem algo de belo e atraente que mobiliza o nosso coração a entrar em outra sintonia; tal qual um sedutor, ele revela sua capacidade para debulhar dias até completar um tempo que vai nos guiando em direção ao Natal. Um tempo tão tranquilo, tão sussurrante, como um manancial que, em silêncio, vai espalhando vida em todo seu entorno. Tempo que nos convida a sonhar e a viver despertos.
Vários personagens que emergem no Advento, com sua maneira original de ser e de viver, vão se tornando familiares; eles nos acompanham neste tempo inspirador, ativando em nós uma ousada esperança e um outro modo criativo de nos fazer presentes no contexto social, tão carente de esperanças.
Isaías nos ensina como viver o sempre jovem Advento; ele nos ensina a gritar esperança no sofrimento, a confiar em tempos melhores, a provocá-los. Este homem tão sensível nos diz que somos nós que devemos dar um colorido especial à vida e que Deus é como um tição fumegante que abrasa a nossa vida. Poeta do futuro, Isaías nos ensina a viver carregados de entusiasmo, gestando a paz.
João Batista, aquele do dedo que aponta o caminho novo e o Novo. Sim, João, o parente austero, impaciente, metódico, que pergunta sem rodeios: “és tu Aquele que há de vir ou devemos esperar outro?”
João também se revela como um bom mestre porque nos recorda que, com muito pouco se pode viver, e que a qualidade de vida é dada pela relação com Deus, que sempre nos surpreende. Ele nos anima a viver com simplicidade e a gritar sempre que o Reino de Deus está próximo, tão próximo, que o temos colado em nosso interior.
Maria, a mulher bendita e abençoada de Nazaré, a do anúncio original, a filha de Sião que recebeu de novo a Ruah Santa, a que interpelou o anjo até que ambos se puseram de acordo no “sim”. Diante dela, nos inclinamos admirados, porque ela, que pronunciou poucas palavras, no entanto, gestou a Palavra em seu ventre. Maria nos diz agora, no Advento, que o coração deve ser grande para poder guardar nele todas as coisas em silêncio.
Tudo é permanente Advento, transformação, movimento. Espaço em expansão, interioridade que se abre, braços que se unem. Seu ardor nos inspira, sua esperança nos alenta. Há uma eternidade que devemos inaugurar cada dia, em cada instante: a eternidade da vida expansiva, justa e ditosa. Esperar é transformar este mundo em outro mundo humano, fraterno, e muito mais feliz. Esperar é derrubar o que impede viver. Se esperamos, podemos.
Não encontramos melhor maneira de traduzir a linguagem apocalíptica de Lucas a não ser fazendo referência ao mundo da construção. O toque de atenção que ressoa no evangelho deste domingo nos chama a derrubar e a construir. Lucas nos fala de sinais cósmicos, de sismos e desmoronamentos. Justamente ali onde algo se desmorona, é onde aparece espaço livre para uma nova construção.
Há um mundo que deve acabar: este mundo contaminado pelo “deus dinheiro” e pelo mercado; este mundo que gera exclusão e violência; este mundo que abafa a “cultura do encontro” para alimentar a “cultura da indiferença e do preconceito”; este mundo que faz opção em favor da morte...
Nada nosso é tão caduco que não permita um projeto novo. Nada é tão antigo que não tenha algo aproveitável. As calçadas velhas das cidades, os antigos casarões, o centro histórico, se remodelam conjugando o velho e o novo. O resultado costuma ser uma nova obra de arte. Cada um de nós é convidado, no início deste Advento, a uma “reabilitação ou remodelação” de todo nosso ser. Entrar no fluxo inspirador deste tempo nos leva, cada dia, a desfazer e refazer. Uma fé que se paralisa e não avança é como um edifício que se faz velho.
O Advento nos mantém erguidos e com dignidade, afugentando o medo, denunciando a injustiça que provoca exclusões e sofrimentos, aplicando o antídoto do amor contra a imbecilidade do ódio, da intolerância e da manipulação. Por isso, as expressões do evangelho: “tomai cuidado”, “ficai atentos”, “orai a todo momento”, são gritos de ânimo e gritos de construção de futuro. Talvez, para alguns, a única coisa que precisa fazer seja pintar a casa, ou mudar algum cômodo. Para outros, a obra será de maior envergadura. E, quem sabe, para outros ainda, o futuro depende de uma reestruturação mais a fundo da vida: esvaziá-la e reconstruí-la.
A obra de Deus em nós consiste em que derrubemos o que construímos, segundo nossos gostos e egoísmos, e não segundo o querer d’Ele. A Deus lhe agrada um coração com estâncias cheias de luz e de sol, liberadas de apoios inúteis, capazes de acolher a todos. Como estar atentos(as) ao Deus que em cada Advento quer dar à luz algo novo em nossas vidas, em nosso contexto, em nosso mundo, embora pareça que não temos mais idade, como aconteceu com Isabel, a mãe de João Batista e continue rompendo nossas lógicas, como aconteceu com Maria de Nazaré?
O que realmente mata o ser humano é a rotina sem sentido; o que lhe salva é a criatividade, a capacidade para vislumbrar e resgatar a novidade. Se contemplarmos a realidade em profundidade, tudo é sempre novo, diferente e em constante mudança. Participar desse movimento de mudança que chamamos vida é a única promessa sensata de felicidade.
O Advento nos provoca a perfurar a realidade para nela ler a vida, os acontecimentos, mais além da superficialidade e da banalização que se impõe a todos nós. Perfurar a realidade é buscar, na densidade dos acontecimentos e do próprio coração, os respiradouros de Evangelho, por onde o mistério de Amor e Vida Plena revelam sua face e nos urgem a impulsionar seu dinamismo na história. Por isso, é preciso focalizar nosso olhar, pôr lupa, afinar a sensibilidade para detectar as pegadas da misericórdia criativa, resiliente e fecunda de Deus em nosso mundo e no nosso próprio coração.
Que é Deus senão este Advento e Presença que é e que vem, Calma vivente, Coração latente no qual somos e respiramos?
Texto bíblico: Lc 21,25-28.34-36
Na oração: Os caminhos de Deus têm desertos difíceis, mas sempre anunciam a “terra prometida”.
Os caminhos de Deus têm momentos de tremores e abalos sísmicos, mas nunca falta a Boa Notícia de uma vida nova. Desparecerá a obscuridade, porque sempre há um amanhecer.
Deus não anuncia finais; Deus sempre anuncia começos; Deus não anuncia entardeceres, mas amanheceres.
O importante é que nossas vidas não estejam embotadas e incapacitadas de ver a nova luz.
- Fazer memória dos abalos em sua vida que foram ocasião privilegiada para expandi-la em novas direções.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18,37)
É muito importante que tenhamos uma pequena ideia sobre o momento e o motivo que levou o Papa Pio XI, em 1925, a instituir a festa de Cristo Rei. A Igreja estava perdendo seu poder e seu prestígio, acossada pela modernidade. Com esta festa, tentou-se recuperar o terreno perdido frente a um mundo secular, laicista e descrente. Na encíclica o papa dava as razões para instituir a festa: “recuperar o reinado de Cristo e de sua Igreja”.
Ao confessar Cristo como Rei universal queria-se, com isso, veicular o desejo de que também a Igreja fosse testemunha e participante já aqui na terra dessa realeza; em outras palavras, uma realeza de Cristo reconhecida, redundava inevitavelmente em uma igreja respeitada, favorecida pelo Estado, com alto status na sociedade, forte e organizada, que, embora já não podendo mais revestir-se de poder político temporal, pelo menos pudesse participar dele através de uma relação estreita e harmoniosa.
A intenção da festa pode ser boa, mas o título atribuído a Jesus não poderia ser de seu agrado. Embora muitos estejam ainda centrados na visão de uma Igreja que busca poder, prestígio, riqueza... a partir da imagem do Cristo Rei, na realidade, o que celebramos é uma radical mudança de linguagem: Jesus rei servidor, que se coloca a serviço dos mais desfavorecidos, sem poder, sem glória, sem pompas... Podemos conservar o título, mas mudar a maneira de entendê-lo; Jesus é “Rei do Universo” quando a paz, o amor e a justiça reinarem em todos os rincões da terra, quando todos forem testemunhas da verdade, quando em todos os ambientes a mesa do Reino se tornar mesa de inclusão e de acolhida...
Portanto, qualquer conotação que o título tenha com o poder e com as pompas, esvazia a mensagem de Jesus. Uma coroa de ouro na cabeça, um cetro brilhante nas mãos, um manto tecido de brocados e pedras preciosas, são muito mais degradantes que a coroa de espinhos e a cana que os soldados colocaram em suas mãos no momento do seu julgamento. Ali, diante do poder violento e corrupto de Pilatos, Jesus, açoitado e coroado de espinhos, se mostra sereno e revela a plena humanidade de um Rei sem reino; um rei das nações de exilados, do povo sem lar, dos desamparados..., que prefere o poder do amor ao poder da força e da violência.
Há uns domingos atrás, Jesus nos dizia que aquele que queria ser o primeiro, deveria ser o último, e aquele que queria ser grande deveria ser o servidor de todos. Esse afã de identificar Jesus com o poder e a glória, não será acaso uma maneira de justificar nosso afã de poder, de prestígio, de nos impor sobre outros? Não será porque nós cristãos temos projetado n’Ele nossa necessidade de grandeza?
Reinar e ter poder é objeto de desejo de extraordinária magnitude e fascínio para o ser humano. Seu brilho encanta e seduz; sua proposta é extremamente atraente; para muitos, é a suprema ambição. Não há ser humano que não tenha sido tentado pelo canto desta sereia.
“Reinar”. Em nosso mundo reina o terror, reina a miséria, reina a exploração, reina a vingança, reina o negócio sujo, reina a violência, a intolerância, o preconceito... Quando em nosso mundo reinar a confiança mútua, quando todos viverem a cultura do encontro, quando não houver excluídos nem sofredores, quando os negócios forem honrados, quando formos capazes de compartilhar e de acolher o diferente..., então poderemos começar a atribuir o título de Rei a Jesus e proclamar que Ele reina.
Jesus acreditou na força da semente, no poder do fermento, na criatividade dos pobres, no dinamismo incomparável do Espírito, mas a partir de dentro, a partir da humanização dos corações. Por isso, Jesus é Rei porque deixou transparecer sua “realeza interior”: o que n’Ele era mais humano e divino, a sua verdade, seu ser verdadeiro..., no mais profundo de si mesmo. Realeza que se visibilizava no encontro com o outro. Jesus destravava e ativava a realeza escondida em cada um, desvelava a verdade mais nobre presente nas profundezas de cada pessoa.
Dentro do processo de Jesus frente a Pilatos, segundo o quarto Evangelho, ocupa um lugar destacado a questão sobre a verdade; ali o título de “rei” é identificado com ser “testemunha da verdade”. Jesus é consciente, como os grandes sábios, de viver na verdade de si mesmo, porque se adentrou no “território” de sua verdadeira identidade. A Verdade estava na sua atitude de vida. Esta era a Verdade. O convite de Jesus é, portanto, absolutamente inclusiva: toda pessoa que, a partir de uma atitude de busca sincera e humilde, se “adentre” na experiência de sua própria verdade, sentirá necessariamente a “sintonia” com Ele, assim como com todos aqueles(as) que o seguem e vivem de maneira verdadeira e transparente. Portanto, o verdadeiro sentido do seguimento de Jesus e a fé madura em Deus não se reduzem à segurança e firmeza em umas determinadas verdades; mais importante que as verdades de nosso saber é a humanização de nossas atitudes.
“Vim ao mundo para dar testemunho da verdade”. Jesus não se refere a verdades doutrinais ou científicas; Ele está falando da autenticidade de seu Ser; Ele está falando da verdade de seu Ser e da verdade de todo ser humano. Jesus é rei porque vive na verdade, vive na transparência; Ele é verdadeiro porque revela o que é mais nobre em seu coração e no coração de todos os seguidores(as); não usa máscara, é pura transparência do rosto do Pai.
Jesus é o Homem autêntico, a referência de ser humano, o ser humano verdade. Jesus é a última referência para todo aquele que queira deixar transparecer em sua vida a verdadeira qualidade humana. Em certo sentido, poder-se-ia dizer que a verdade não passa pela mente, mas pela vida; nem pelo pensar de uma determinada maneira, mas por ser e viver de um modo humano e inspirador. Por isso, frente ao fanatismo e intolerância que denota fechamento e estreiteza de vida, a verdade requer abertura humilde, questionamento e flexibilidade.
O importante não é ter a verdade, mas ser verdadeiro. A pessoa verdadeira pode entrar em ressonância e em sintonia com a verdade do outro. O intolerante, o preconceituoso julga ser dono da verdade e quer impô-la sobre os outros. A verdade não é um dogma e sim um caminho. Quanto mais verdades absolutas, mais estreito vai ficando o nosso mundo. A humanidade busca a verdade, mas também pode asfixiá-la. Costuma-se calar a verdade que incomoda. Também existe sempre a tendência de querer impor, pela força, pelo medo, aquilo que se acredita ser verdadeiro. “A verdade também pode ter suas vítimas”.
Texto bíblico: Jo 18,33-37
Na oração: precisamos dar passos em direção a maiores níveis de verdade humana e evangélica em nossas vidas, nossas relações, nossas instituições...
* o que há de verdade e o que há de mentira em nosso seguimento de Jesus? Onde há verdade que nos humaniza e onde há mentira que nos atrofia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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