“Dai-nos um pouco de óleo, porque nossas lâmpadas estão se apagando” (Mt 25,8)
As parábolas são relatos provocadores, que revelam o sentido da vida a partir de uma perspectiva diferente. Não são histórias edificantes, nem meditações piedosas, mas enigmas para pensar, decifrar e decidir o horizonte da vida. As parábolas não fecham a mensagem (não são dogmas, nem demonstrações), pois são sinais que cada um deve interpretar e resolver a partir de sua própria vida.
Frente às parábolas, uma pessoa pode rebelar-se, outra pode descobrir o lado oculto de sua vida... Por isso, são imagens interativas que não tem a solução dada de antemão. É surpreendente a insistência com que Jesus fala da vigilância; são numerosas as parábolas que nos convidam a adotar uma atitude desperta e atenta frente à existência, para que esta tenha um sentido.
Interpretar a parábola deste domingo no sentido de que devemos estar preparados para o dia da morte, é falsificar o evangelho. A parábola não está centrada no fim, mas na inutilidade de uma espera que não é acompanhada de uma atitude de amor e de serviço. As lâmpadas devem estar sempre acesas, para ajudar a acolher as gratas surpresas da vida e poder participar da festa d’Aquele que continuamente vem ao nosso encontro. Se não queremos ser insensatos (sem sentido, sem direção), precisamos estar alertas, para entrar em sintonia com a realidade e viver a vida como deve ser vivida.
Nossa maior insensatez seria viver “sem horizonte”, sem desejos e sonhos, sem uma causa mobilizadora... Submergimos no presente sem outra perspectiva mais ampla; e assim afogamos nossa vocação de infinitos na vulgaridade de uma vida superficial e satisfeita. Se estamos adormecidos, é preciso despertar, porque, do contrário, perderemos a oportunidade de entrar na festa das núpcias. Portanto, ser “imprudentes” significa viver “dispersos”, “distraídos”... deixando apagar a lâmpada de nossa fé e de nossa esperança, e sem o azeite de reposição.
A lamparina que arde é a prática da mensagem de Jesus; o azeite que alimenta a chama, é o amor manifestado. Assim entendemos porque as jovens prudentes não podem compartilhar o azeite com as imprudentes. Não se trata de egoísmo; é impossível amar em nome de outra pessoa ou considerar como própria a entrega que o outro realizou. A lamparina não pode queimar com o azeite de outro; a chama não pode ser acesa com azeite comprado ou emprestado.
A parábola do Evangelho nos fala daqueles que não cultivam sua esperança hoje e pretendem viver do azeite das lâmpadas dos outros. E ninguém pode viver da fé do outro, nem da esperança do outro. O sentido de toda uma vida não pode ser improvisado em um instante. Somente a partir da luz de Deus em nós, descoberta, reconhecida e ativada, poderemos viver antenados com o melhor que há em nosso interior (azeite) e com a realidade que nos envolve, cheia de surpresas.
Todos nós somos portadores de uma lâmpada e todos somos convidados à festa. Podemos inspirar-nos mutuamente a viver a partir de nossa verdade mais profunda, a partir da luz que nos habita; mas, no final, a falta ou não de azeite para a nossa lâmpada depende de cada um(a), de nossa responsabilidade, de nossa previsão, do cuidado delicado e agradecido diante de tudo o que foi recebido, da capacidade para sustentar a esperança nas noites escuras e, sobretudo, do amor e da alegria que alimentamos no desejo de nos encontrar, dia a dia, com o Noivo, seguros de que Ele sempre vem.
Só assim seremos luz verdadeira para os outros, iluminaremos – humildemente – as obscuridades que nos envolvem, e contagiaremos a alegria de sabermos que fomos convidados à festa. O que permanece em nosso interior é o fulgor (luz) que vivemos (que brilha) por dentro, ao fazer memória da nossa vida, esse “eu profundo” que é mais “eu” que eu mesmo: “eu” original, iluminado, santo, intocável, faísca de luz que se volta para Aquele que é Fonte de toda luz.
O “ego” é como um planeta do sistema solar; não tem luz própria. Adquire sua luz emprestada e, portanto, vive no engano de que pode continuar sempre assim, no tempo e no espaço. Por isso, o ego inflado com a luz que não é própria, busca, de maneira desenfreada, apoderar-se de tudo aquilo que lhe dá a ilusão de brilhar: poder, riqueza, vaidade... Falsas luzes que um dia se apagarão.
O “eu original”, no entanto, vai ao encontro da luz verdadeira, presente no próprio interior, e deixa-se iluminar por ela; é esta pequena chama que o conduz em direção Àquele que é a Luz, para entrar e participar do seu festim iluminado. Por isso, nós somos, ao mesmo tempo, a lâmpada, o azeite e a luz. Ninguém pode nos emprestá-los, porque é nossa própria vida. Toda vida se move a partir de dentro.
Dentro de nós devemos descobrir a luz que iluminará nossos passos; essa chama, se é autêntica, não pode se ocultar, pois iluminará também a todos os outros. Uma luz que acende outras luzes. Contemplai admirados essa luz que somos! E, mesmo nosso pequeno “ego” brilhará, atravessado por essa luz como o sereno pelo sol do amanhecer.
A parábola deste domingo, portanto, nos provoca a uma tomada de posição: “em qual dos dois grupos eu me encontro? Em qual deles desejo estar?” A narração usa as imagens das lâmpadas e do azeite como símbolos que marcam a diferença entre um grupo e outro.
Nossa vida, enraizada na Vida d’Aquele que é a Luz do mundo, é chamada a irradiar luz, a iluminar a realidade na qual habitamos, embora, muitas vezes, a noite escura nos envolve.
“Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14).
“Em que situação se encontra minha lâmpada? E minha reserva de azeite? De que modo colaboro para que o Noivo possa celebrar a festa? Como sou luz em meio a tantas noites de ódio e violência pelas quais nosso mundo atravessa?” Na realidade, de acordo com a parábola, todas as jovens carregavam suas lâmpadas; todas elas tinham sido convidadas à festa; todas alimentavam o mesmo desejo: aguardar a chegada do noivo. O fato de pertencer a um grupo ou a outro não se impõe a partir de fora. Cada uma das personagens da parábola, no fundo, foi livre e decidiu com sua atitude (previdente e sábia, ou imprudente e descuidada), em quê grupo situar-se.
Hoje em dia existem, nas igrejas e capelas, as velas para todos os gostos; existem aquelas eletrônicas, que são ativadas com uma moeda; e existem até aquelas que podem ser acesas a longa distância, pela internet. Mas, velas originais são aquelas que se consomem na nobre missão de iluminar. Simbolizam a travessia da própria existência: queima-se a cera como nós vamos nos queimando, diminuindo-nos com a passagem do tempo, as dificuldades e as alegrias de nossa travessia humana.
Quando acendemos a chama, é como se tomássemos consciência de que somos luz na medida em que vamos nos gastando em iluminar nosso entorno e chegar a ser cera derretida um dia, tarde ou cedo; passar de luz natural a reencontrar-nos com a Luz total da qual procedemos.
Texto bíblico: Mt 25,1-13
Na oração: A esperança mantém sempre acesa a faísca de luz que todos carregamos dentro. É ela que nos faz cair na conta que somos “luz do mundo”, uma chama que nunca se apaga; somos “sarça ardente” para os outros, consumindo-nos constantemente, através da vida doada; somos uma lamparina humilde, brilhando na janela da nossa pobre casa, indicando aos outros o caminho da segurança e do aconchego.
- Como você deixa transparecer a luz no seu agir cotidiano? Qual é o azeite que brota do seu coração e que alimenta a luz de sua humilde lamparina?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.11.2020
“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá” (Jo 11,25)
Ontem, celebramos “Todos os Santos e Santas”: santidade universal. Hoje, fazemos memória de todos os Defuntos: realidade universal. Neste dia, poderíamos projetar sobre a lembranças dos nossos mortos a luz de “Todos os Santos e Santas”, a festa da vitória de Deus sobre as forças da morte, a festa do destino final da humanidade e festa também da solidariedade.
As festas dos(as) Santos(as) e de Finados não são uma relíquia do passado, nem um negócio de floriculturas; é a oportunidade que temos de nos perguntar: quê significa a morte para nós?
É o momento propício para recordar, de forma agradecida, todos(as) que nos precederam e, ao mesmo tempo, de nos perguntar, pelo menos uma vez ao ano, como queremos viver.
Tendo presente as palavras de Jesus, nós recordamos todos os(as) falecidos(as), sobretudo aqueles(as) com quem convivemos e deixaram marcas evangélicas em nossas vidas; recordamos não só como ausentes, mas também como presentes. Estão presentes porque estão vivos “em-Deus”, que é Deus dos vivos; estão vivos em nosso coração pelo amor que lhes dedicamos; estão vivos nos frutos positivos que semearam em suas vidas e em nossas vidas; estão vivos porque continuam amando, e de uma maneira mais plena, em Deus.
Sabemos que o ser humano é o único animal que sabe que vai morrer. De fato, a morte é inevitável e costuma nos surpreender, às vezes de maneira muito violenta; ela é a única certeza absoluta que temos.
No entanto, apesar de ser algo tão certo e que todos os seres vivos compartilhamos dessa realidade, não é fácil falar da morte; no contexto atual, ela passou a ser um tabu; por isso, ela é escondida.
Hoje, evitamos falar da morte, mesmo estando continuamente presente na nossa vida familiar e em nosso círculo de relações. Acima de tudo, queremos evitar pensar sobre a nossa própria morte, o único evento certo que está diante de nós.
O ser humano pós-moderno, inventa toda sorte de artifícios para não encarar este destino que lhe é insuportável. Ele brinca, arrisca, ri, inventa mil coisas para adiar o prazo do fim. Lança-se no ativismo e na fuga para protelar esse inaceitável momento. É melhor o barulho, a sucessão de desafios e até mesmo o fracasso do que o mergulho no silêncio da morte. Mesmo estando frente à morte dos outros, pensa ainda poder escapar desta decisiva prova.
Esta é a constatação: a morte é afastada para lugares apropriados, tornando-se a única realidade "obscena" que não deve ser vista, contemplada, considerada.
Mas, a vida marcada pelo medo da morte é uma vida “em terra de sombras”, que contradiz nossa vocação de sermos filhos(as) do dia e da luz. Se a morte nos surpreende apegados apaixonadamente à vida, terminaremos humilhados e derrotados.
Para a fé cristã, a morte é passo para a comunhão plena. Último passo. Por isso, não pode ser escondida; antes, preparada. A fé revela-nos a morte como momento em que a pessoa se abre para dimensões nunca antes imaginadas.
Podemos “viver de modo eterno” vivendo as experiências que são eternas: amar, perdoar, ajudar, compreender, aceitar, consolar...
A fé nos diz que fomos feitos por mãos celestiais, chamados à vida, para a liberdade, para a bondade, para a amplidão dos céus. Confessamos que a vida é de Deus e, como Ele, é eterna.
Os(as) santos(as) e os(as) falecidos(as) que conhecemos pessoalmente, sobretudo nossos parentes e ances-trais, são as raízes das quais vivemos. Finados é uma ocasião privilegiada para aprofundar sobre a árvore que nós mesmos somos. Nossa árvore tem raízes profundas e ela abre uma copa no alto; somos seres da terra e do céu. Nossas raízes são nossos antepassados; por meio de rituais compartilhamos de seu vigor e de sua fé.
A morte não entende de títulos, de êxito ou fracasso. E de duração entende algo, mas não muito, porque ninguém tem uma idade garantida, salvo a que temos neste momento. Não é que devamos viver assustados, temerosos de um acidente ou ameaçados por uma doença que nos está esperando atrás de alguma esquina. Não é que a perspectiva de morrer, ou de perder a quem amamos, tenha de nos paralisar. Mas sim, deveria nos dar perspectivas para dedicar mais tempo àquilo que cremos ser importante.
De fato, se rezamos por e com nossos mortos não é para que Deus lhes conceda algo que não obteriam sem a nossa intervenção: o amor de Deus por eles(as) ultrapassa infinitamente o nosso. O que buscamos é tomar consciência da nossa comunhão com eles(as). Todas as suas falhas passadas são também falhas nossas, e todas as suas “virtudes” nos pertencem. Em Deus, a humanidade é, toda ela, una como o próprio Deus é Um. Enfim, a nossa oração com e pelos nossos falecidos deve nos transformar, para que façamos nosso o amor de Deus por eles(as).
Como cristãos, temos o privilégio de olhar a morte de frente. Por quê? Porque podemos olhá-la com esperança, com a certeza de que a morte não é o final do caminho senão a porta para a vida eterna. Jesus Cristo nos precedeu na morte, e ressuscitou para nos dizer que não tenhamos medo. O fato de assumir com inteireza que vamos morrer, pode nos ajudar a viver de uma maneira mais autêntica e inclusive mais alegre, pois nos conecta com nossa realidade de seres finitos.
A “reverência pela vida” exige que sejamos sábios o bastante para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Por isso não devemos nos preocupar com a morte, mas com a vida. A verdadeira pergunta não é: “existe vida após a morte?” O místico e o sábio se perguntam: “existe vida antes da morte?”
Perguntar-nos sobre o que o pós-morte tem a nos oferecer é uma desfeita à vida.
A vida é tanta surpresa, tanta novidade e riqueza que querer especular sobre o que acontece depois dela é grosseria. O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos “vivem”, porque incapazes de reinventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem morte perde-se, no final, na total irresponsabilidade.
Através do “viver para sempre” nos permitimos o prazer, a alegria, o desafio, a criatividade, a festa...
Através do “morrer amanhã” criamos em nós a responsabilidade para viver o hoje com mais intensidade.
Somos todos peregrinos e vivemos contínuas “travessias provisórias” até fazermos a grande travessia para Deus. Quando nascemos recebemos o sopro do Criador; quando morrermos seremos “aspirados” para dentro de Deus. Nosso destino é o Coração de Deus: “D’Ele viemos e para Ele retornamos”.
Por isso, somos eternos: já vivemos a eternidade nesta vida. Descobrimos no coração de nossa vida mortal a eternidade que vive em nós.
Na verdade, a morte nunca fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos fazendo com a própria vida, as perdas, os sonhos não realizados, os riscos que não tomamos por medo...
Nesse sentido, a morte não é o fim da vida, mas sua plenitude, quando esta é vivida com sentido.
A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão...
A existência histórica cresce no útero do tempo e a morte é o parto para a vida plena. A morte é este instante de ruptura, onde toda uma vida incubada, trabalhada no silêncio e no sofrimento, marcada de alegrias e tristezas, vitórias e fracassos, desponta luminosa para a vida eterna.
Texto bíblico: Jo 11,17-27
Na oração: No silêncio de seu coração, “faça memória” de seus entes queridos que já cumpriram sua missão.
Diga: “Eu continuo amando a todos(as) vós, mas já não sei como encontrar-me convosco, nem o que fazer por vós. Minha fé é frágil e carregada de medo. Mas, eu vos confio ao amor de Deus, vos deixo nas mãos d’Ele. Esse amor de Deus é hoje para vós um lugar mais seguro que tudo o que eu possa vos oferecer. Desfrutai da vida plena. Experimentai o calor da intimidade divina, em comunhão com todos aqueles(as) que retornaram ao ventre materno do Deus/Mãe. Um dia, voltaremos a nos encontrar. Será uma festa sem fim”. Amém.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.10.2020
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“Alegrai-vos e exultai, porque é grande a vossa recompensa nos céus” (Mt 5,12)
À luz do Evangelho, alegria e santidade, não se dissociam; ao contrário, implicam-se mutuamente.
A alegria é um sentimento central da santidade cristã. Nisto consiste a verdadeira alegria: sentir que um grande mistério, o mistério do amor de Deus, nos visita e plenifica nossa existência pessoal e comunitária.
Alegria que brota do interior e é um dom do Espírito. “O fruto do Espírito é: amor, alegria” (Gal 5,22). Este dom nos faz filhos(as) de Deus, capazes de viver e saborear sua santidade e bondade.
Não é correto que os cristãos associem, com tanta frequência, a fé à dor, à renúncia, à mortificação, mas à alegria, à vida em plenitude.
A vida cristã, por vocação e missão, deve ser alegre. Toda ela é profecia de alegria e esperança. A participação afetiva na alegria de Cristo é a forma de expressar o desejo da íntima comunhão no amor que reforça o seguimento. “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Com Jesus Cristo sempre nasce e renasce a alegria” (Papa Francisco).
A alegria na vida cristã aninha-se e cresce na vivência do mistério pascal. A ressurreição de Jesus causou uma imensa alegria na comunidade dos discípulos. Alegria que é contagiosa e tem uma dimensão social e comunitária. Nós não estamos alegres porque Jesus está vivo, mas porque nos fez partícipes de sua ressurreição, de sua nova vida. Assim nossa alegria é também a alegria de Jesus.
Os Santos e Santas, por viverem profundamente no amor de Deus, são testemunhas da alegria.
Este amor é o que nos faz sair de nós mesmos, reencontrar-nos e viver em sintonia com outros. E aqui está o “peso” do amor, o vigor da alegria. O amor que Deus nos tem desperta a alegria e esta motiva, dá energia, gera confiança. O amor é o princípio que ordena a vida e a alegria irradia harmonia e bem-estar àqueles que nos rodeiam. Quem vive a partir da alegria, vive a partir do essencial e sabe discernir o autêntico das aparências e o útil do supérfluo. A alegria mantém alta a utopia e não se cansa em sua irradiação. Seguimos o conselho agostiniano: “A felicidade consiste em tomar com alegria o que a vida nos dá, e deixar com a mesma alegria o que ela nos tira”.
Quem é transparente e coerente transmite alegria em seu falar e em seu agir. Costumamos dizer: “alegrar a casa”, “alegrar a cor”, “alegrar o fogo”... ou seja, dar-lhe vida.
Desse modo, alegria confunde-se com plenitude, com vida em cheio, com entusiasmo, com a sabedoria que permite harmonizar tudo isso com a nossa fragilidade, com as nossas feridas e dores, perdas e desencontros, erros e tristezas.
Ser testemunhas e profetas da alegria constitui a essência da santidade cristã.
O profeta da alegria, longe de fugir dos conflitos da vida, os enfrenta e os integra com sentido. Não tem fronteiras, não exclui gênero, classe social, cor, língua, religião, não descarta o aparentemente inútil. Por isso, sua vida e sua palavra querem ser anúncio e compromisso de concórdia e comunhão nos conflitos, unindo pontos, integrando diferenças, curando feridas. Sua presença alegre desmonta a hipocrisia, as ambições, a intolerância, o preconceito...
Quem vive a santidade na alegria se sente sereno, livre, pensa positivamente, está próximo dos pobres, acolhe as adversidades, integra suas contradições, ama sem pôr condições, louva, canta e bendiz sem cessar...
No pensamento hebraico, quando se diz que uma pessoa é santa não significa que ela seja apenas virtuosa, que tenha um comportamento ético impecável, mas, sim, que essa pessoa é diferente, é “outra”, que manifesta sua alteridade no mundo, revela uma maneira original de viver, uma outra maneira de amar.
Significa uma pessoa que introduz amor onde há ódio, que revela a paciência onde existe intransigência, que manifesta compreensão onde existe revolta, comunica paz onde existe a violência, deixa transparecer uma presença alegre onde impera a tristeza.
É assim que a santidade está ao alcance de todos aqueles e aquelas que reconhecem sua própria finitude e desejam ser transformados pelo amor que é maior e os faz plenamente humanos. Ser santo(a) não é para campeões de perfeição, mas para pecadores que se reconhecem como tais e se deixam conduzir pelas asas da Graça de Deus e pelo clamor que vem da alteridade desfigurada de todo aquele(a) que sofre e necessita cuidado e atenção.
“Ser santo(a)” é sermos dóceis para “nos deixar conduzir” pelos impulsos de Deus, por onde muitas vezes não sabemos e não entendemos. Seus caminhos não são os nossos caminhos. Ser santo(a) é “arriscar-nos” em Deus; é navegar no oceano da gratuidade, da compaixão, da solidariedade...
Nesta atitude de “deixar-nos conduzir” é que entramos no fluxo da Santidade de Deus, nos atrevendo a planar sobre ela para mobilizar todas as possibilidades da nossa existência.
Essa é a nossa essência: em Deus, somos todos(as) santos(as).
Nesse sentido, as bem-aventuranças desvelam o verdadeiro rosto do(a) santo(a). Quem é ditoso(a)? Quem é bem aventurado(a)? Quem é feliz? As bem-aventuranças são a exposição mais exigente e, ao mesmo tempo mais fascinante, da mensagem e da “intenção de Cristo”.
Não temos de pensar somente nos “santos e santas” canonizados(as), nem naqueles que viveram virtudes heróicas, mas em todos os homens e mulheres que descobriram a marca do divino neles(as) mesmos(as), e sentiram-se impulsionados(as) a viver com intensa humanidade. Ser santos(a) é ser humano por excelência.
Não se trata de nos fixar nos méritos de pessoas extraordinárias, mas de reconhecer a presença de Deus, que é o único Santo, em cada um de nós. Assim, no chamado à santidade, aspiramos somente a sermos cada dia mais humanos, ativando o amor que Deus derramou em nosso ser.
Para humanizar nosso tempo, os(as) santos(as) revelam atitudes e critérios que nos fazem mergulhar de cheio nos desafios e problemas que afligem grande parte da humanidade. Os(as) santos(as), de hoje e de sempre, não são encontrados nos pacíficos ambientes dos templos ou dentro dos limites da instituição eclesial, mas nas encruzilhadas da pobreza e da injustiça, nas “periferias existenciais”, em perigosa proximidade com o mundo da violência e da marginalidade, em situações de risco, onde a luz do amor brilhará mais do que nunca.
Quem são esses Santos e Santas que celebramos cada ano e que são multidões ao longo dos tempos?
Santas e Santos desconhecidos, mínimos, ocultos, simples, com biografia que não aparecem na Wikipédia. Pessoas anônimas que estão presentes em todos os lugares, como fermento na massa, despertando esperança em tempos difíceis.
Numa cultura de morte e de violência como a nossa, as Santas e os Santos são os anônimos que arriscam suas vidas na defesa daqueles que não tem voz, agindo como samaritanos em favor da vida. Sua presença faz toda a diferença. Santa diferença!
Texto bíblico: Mt 5,1-12
Na oração: O melhor modo de rezar as bem-aventuranças é seguir um dos“modos de orar” proposto por S. Inácio, ou seja: “Contemplar o significado de cada palavra da oração” (EE. 249).
* Rezar as dimensões da vida que estão paralisadas, impedindo-lhe viver a dinâmica das bem-aventuranças.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.10.2020
“Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração...”;
“amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,37-39)
Segundo o teólogo Yves Congar “a essência do farisaísmo é absolutizar coisas secundárias”. E disso todos temos experiências: muitas vezes, a nossa vivência cristã está mais focada nos ritos, nas doutrinas, nas normas morais..., e isso acaba atrofiando aquilo que é mais decisivo no seguimento de Jesus Cristo.
Quando nos afastamos do essencial, facilmente nos desviamos para os caminhos da mediocridade piedosa, do ritualismo estéril ou da casuística moral, que não só nos incapacitam para uma relação sadia com Deus, mas nos esvaziam dos sentimentos mais humanos, desfigurando-nos e nos fechando no intimismo que rompe toda proximidade e comunhão com os outros. Todos corremos este risco.
A cena relatada pelo evangelho deste domingo(30o Dom. Tempo comum) tem, como pano de fundo, uma atmosfera religiosa na qual os mestres e letrados classificam centenas de normas da Lei divina em “fáceis” e “difíceis”, “graves” e “leves”, “pequenas” e “grandes”. Impossível mover-se com um coração sadio nesta “teia” de leis.
Diante da pergunta dos fariseus pelo maior mandamento da Lei, Jesus rompe com aquilo que eles tão bem tinham aprendido. Ele acolhe a pergunta que lhe fora feita e aproveita para recuperar o essencial, descobrir o “espírito perdido”: qual é o mandamento principal? onde está o núcleo de tudo?
A resposta de Jesus parte da experiência básica de Israel, onde o coração da fé é o amor: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento”.
O primeiro mandamento do decálogo bíblico, confirmado por Jesus, antes que imperativo, é revelação; antes que uma ordem, é uma proclamação. Não impõe a obrigação de amar a um “deus” separado, ciumento de sua honra, que se assemelharia a um soberano narcisista e vaidoso. Uma tal caricatura de “deus”, fruto da projeção humana e condicionada por falsas imagens míticas, se torna claramente blasfema. É um dos “deuses” que precisamos “deletar”.
O “primeiro mandamento” revela algo fundamental, do qual a Bíblia irá tomando consciência progressivamente, até chegar a proclamar com intensidade: “Deus é Amor” (1Jo 4,8). Deus, na sua essência, é puro Amor. Daqui se derivam, como em cascata, toda uma torrente de consequências.
Crer é uma questão de amor, e isso significa que, antes de qualquer outra coisa, o fiel se percebe, em seu núcleo mais íntimo, ser e proceder do Amor. Aquele “em quem vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17,28) é Amor. A fé é, antes de mais nada, experiência de ser amado, que leva a deixar-se alcançar e impregnar mais e mais por esse dinamismo do amor, para descansar nele e possibilitar que ele flua e circule, compassiva e eficazmente, para os outros. Portanto, o essencial da vida é o amor.
O que define o cristão não é dizer “Senhor, Senhor”, mas viver a prática compassiva do “vá e faça o mesmo”. Essa é a razão, também, pela qual a vida e a mensagem de Jesus se condensam na prática do amor.
O amor (ágape) que Deus tem pelo ser humano é totalmente desinteressado, gratuito e livre. Deus envolve a vida de cada um, banhando-a toda de seu amor. O amor nasce em Deus como um rio imenso que envolve o ser humano, iluminando e transformando sua existência; este não se encontra submetido a uma espécie de exigência tirânica, obrigado a cumprir, no limite de suas forças, alguns mandatos alheios a seu ser. O que lhe é pedido consiste, justamente, no que previamente é oferecido a ele: ele é chamado a ser livre e capaz de corresponder ao amor.
Não é o ser humano que é amável; é Deus que é amor. Esse amor é absolutamente primeiro, ativo e criativo, absolutamente livre: não é determinado pelo valor de quem Ele ama. Todo ser humano encontra-se, assim, envolvido pelo amor criativo e providente de Deus.
Esse amor, ativo e primeiro, suscita na pessoa a gratidão, levando-a a corresponder com um amor-serviço. A paixão por Deus implica compaixão pelo ser humano.
Talvez, o que não tem sido totalmente compreendido é que não são dois mandamentos, mas um só: uma mesma realidade, um mesmo amor e um só mandamento. Aliás, se damos um passo mais além, não precisa existir mandamento algum quando há verdadeiro amor.
O amor é raiz e fruto do coração. S. Irineu convida a nos deixar fazer, a permitir que o amor brote do mais profundo de nós mesmos, a ser homens e mulheres unificados e centrados em Deus.
Característica desse amor: voltado para o serviço; o amor sempre se faz serviço, assim como todo serviço é inspirado e sustentado pelo amor. Trata-se da mística do “serviço por puro amor”.
Sabemos que o amor é uma das palavras mais desgastadas e, no entanto, continua sendo a palavra fundante e mais importante do vocabulário humano; mais importante que a palavra fé. Segundo Mateus, os que se salvam não são aqueles que creram, mas aqueles que amaram (Mt 25). “No entardecer da vida seremos examinados sobre o amor”, dizia S. João da Cruz.
Criados à imagem e semelhança do Deus Amor, trazemos este mesmo amor gravado nas profundezas do nosso ser. Podemos dizer que o selo mais profundo na pessoa é o “selo do amor”. Logo, o que precisamos é ativar esse selo interior do coração que carrega os estigmas do amor. O coração de toda pessoa traz esta tatuagem de amor nas profundezas de seu ser. Mas, é necessário reativá-lo, atualizá-lo... ajudar cada pessoa a configurar-se como tal, pois cada um chega à maturidade de si mesmo quando compreende que, vivendo esse amor, que leva gravado em seu coração, realiza o amor.
O amor evoca energia, atitude, sentimentos positivos, proximidade, solidariedade, compaixão, empatia, amizade, erotismo... O amor tem muitos registros e, por isso, também muitas linguagens que vão configurando atitudes, hábitos do coração: surpresa, louvor, respeito, ação de graças, união, serviço...
O amor não é algo abstrato, uma palavra oca, gasta de tanto ser usada, mas algo pertencente à atitude relacional, à experiência, à comunicação, às atitudes, aos gestos, aos atos e às palavras. Quando o experimentamos, sabemos de seu dinamismo em nossas vidas e direção em nossas condutas.
O amor em nossa vida, portanto, é um dom e uma missão. Como dom, é fruto da árvore que cresce em nossa natureza como possibilidade que quer ser atualizada (a maçã é a linguagem amorosa da macieira).
Como missão, o amor é aprendizagem, internalização, maturação e crescimento. A arte de amar é o cume de um processo que flui, dando à pessoa uma das características mais essenciais de sua maturidade.
O amor não é uma lei que se impõe de fora, mas uma resposta pessoal Àquele que é em nós. “Um amor que responde a seu amor”. O amor é “mandamento” porque “emana” de dentro, brota da dimensão mais profunda do nosso ser, morada do Deus Amor. Amar é deixar Deus amar em nós. Pois o Deus que vem ao nosso encontro é amor sem medida e não nosso rival; se o cristianismo tem um sentido – viver o amor - este consiste em tornar mais leve o peso da nossa existência.
Textos bíblicos: Mt. 22,34-40
Na oração: Faça uma leitura das “marcas” do Amor de Deus em sua vida; crie um clima de ação de graças.
- Peça a graça de descobrir profundamente o amor em sua vida. Imagine-se com um cantil ou uma lamparina de azeite percorrendo os caminhos de sua vida, de sua biografia. Ilumina-os, desvelando o amor plantado nos rincões de sua existência: no mais profundo e na superfície de sua história. Pessoas, experiências, circunstâncias, gestos ... Olhe o detalhe, mas também o conjunto de sua existência: você está vivo(a); foi e é amado(a), permanentemente.
- Tome consciência que o Senhor, ao lhe criar, colocou em seu peito um coração capaz de amar. Quê você faz com esse amor, semeado em seu interior?
Peça-lhe que sua presença e seu ser lhe permitam amar mais e melhor. Expanda seu coração: você foi feito para amar. Acolha o amor que recebe e no qual acredita, maior do que você possa pensar, e torne-se canal do amor para os outros, para você mesmo, para Deus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.10.2020
Imagem: pexels.com/ anna-shvets
“De quem é a imagem e a inscrição desta moeda?” (Mt 22,20)
Sempre é importante estar atento ao contexto em que se situa o evangelho de cada domingo. Hoje, os chefes religiosos compreenderam que as parábolas polêmicas (os dois irmãos convidados pelo pai a trabalhar na vinha, os vinhateiros homicidas, o banquete de casamento) se referiam a eles; por isso, contra-atacam a Jesus com três perguntas capciosas que são como que armadilhas para ter de quê acusá-lo (pagar ou não o imposto a César, a ressurreição dos mortos e qual é o primeiro mandamento).
Hoje, perguntam a Jesus sobre o imposto a ser pago aos romanos. Era um assunto polêmico que dividia a opinião pública. Os adversários de Jesus querem a todo custo acusá-lo e, assim, diminuir a sua influência junto do povo. Muitas vezes, pessoas ou grupos, inimigos entre si, se unem para defender seus privilégios contra aqueles que os incomodam com o anúncio da verdade e da justiça. As perguntas dirigidas a Jesus, mesmo aquelas que revelavam uma intenção de incriminá-lo, são para Ele ocasião privilegiada para ir além das mesmas perguntas e acabam gerando respostas surpreendentes, que ninguém esperava.
No evangelho deste domingo (29o Tempo Comum), Jesus responde ao que não lhe haviam perguntado, indicando uma atitude vital que vai além da alternativa que lhe foi proposta: a licitude de pagar ou não o imposto a César. Em primeiro lugar, Jesus denuncia a submissão dos fariseus e herodianos que carregavam consigo moedas com a imagem do imperador romano: viviam como escravos submissos a um poder que desumanizava e humilhava a todos com pesados impostos e com violência extrema. Na prática, eles já reconheciam a autoridade de César. Já estavam dando a César o que era de César, pois usavam as moedas dele para comprar e vender e até para pagar o imposto ao Templo!
Em segundo lugar, Jesus, ao perguntar – “de quem é essa imagem e essa inscrição” – está fazendo clara referência ao Gênesis, onde se diz que o ser humano foi criado à imagem de Deus. Se o ser humano é imagem de Deus, é preciso dar a Deus o que lhe fora tirado, ou seja, o próprio ser humano. O ser humano é “imagem” de Deus e só a Ele pertence. O único absoluto é Deus. Trata-se de uma “submissão amorosa” que não se impõe (imposto), pois o convida a entrar em sintonia com Ele, numa comunhão de vida e compromisso com os outros.
Alguns biblistas traduzem a expressão “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” por “retirai de César o que é de Deus”, ou “não dai a César o que é de Deus”, ou ainda, “dai a César o que é de César, mas não lhe deis o que é de Deus”. O que interessa a Jesus é que “deem a Deus o que é de Deus!”, isto é, pratiquem a justiça e a misericórdia, para entrar em sintonia com o coração do Pai, pois a hipocrisia dos fariseus e herodianos negava a Deus o que lhe era devido.
Em outras palavras: não entregueis a nenhum “césar” o que é de Deus: os pobres e os pequenos que são os prediletos do Pai; o Reino de Deus pertence aos últimos. Não se pode sacrificar a vida e a dignidade dos indefesos a nenhum poder político, financeiro, econômico ou religioso. Os humilhados pelos poderosos são de Deus e de ninguém mais. Que nenhum poder abuse deles; que nenhum “césar” se imponha sobre eles.
Com sua resposta, Jesus propõe um princípio de validade permanente: rejeitar, de maneira absoluta, qualquer tipo de poder. César se impõe (imposto) pelo poder, que oprime e exclui; Deus não se impõe (não é imposto); faz-se dom, esvazia-se de todo poder e se aproxima de cada um de nós, se faz comunhão.
O relacionamento entre o ser humano e Deus dá-se na esfera da mais pura liberdade, lá onde as decisões são ditadas pelo amor. O Deus que Jesus nos revelou é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como representantes do divino.
Esta identificação de Deus com cada ser humano não vai na linha do poder que se impõe, mas na direção do amor que se faz oferta. Deus revela sua transcendência não no poder que tanto buscamos, mas na humanidade da qual queremos constantemente escapar.
A afirmação lapidar de Jesus vai da imagem impressa na moeda à imagem que trazemos impressa em nossas vidas, ou seja, a imagem de Deus. O dinheiro traz impressa a imagem dos poderosos; o ser humano traz impressa a imagem de Deus; o dinheiro vale o que vale o poderoso que o imprimiu; o ser humano vale o que vale Aquele que o criou à sua própria imagem. O denário traz impressa a imagem de César; por isso, vale o que vale o César.
O ser humano traz impressa a imagem de Deus; por isso, tem valor absoluto. Com o denário, pode-se pagar os impostos, mas o ser humano não é moeda de circulação, que se compra ou se vende. O ser humano é a única “moeda” que vale a vida mesma de Deus. Por isso, o ser humano não pode ser “produto” que é vendido aos interesses humanos.
Jesus desencadeou um movimento de vida, centrada na comunhão de bens, sem um dinheiro divinizado em forma de capital autônomo, valioso em si mesmo. Estritamente falando, seu projeto se opunha (em um nível diferente) à ordem imperial de Roma, que mantinha seu poder, assentado sobre fundamentos de dinheiro.
Nesse contexto se situa e deve ser entendida esta passagem sobre o tributo a César, que os adversários apresentam a Jesus para pegá-lo em algum tipo de contradição e assim poder acusá-lo diante do povo (se defendesse o tributo) ou diante da administração romana (se rejeitasse o tributo).
A partir deste cenário de fundo as comunidades cristãs apresentam o tema da relação entre a “economia do Reino”, ou seja, a comunhão gratuita de bens, e a “economia de César”, que se fundamenta e se expressa nos tributos a serviço da administração militar do império e do sustento de um tipo de política, que se expressava em domínio dos poderosos.
Vivemos em um contexto social e econômico onde o “deus dinheiro” determina todas as relações humanas, inclusive no campo religioso. O neoliberalismo (“césar” pós moderno) endeusou o “poder monetário”, destruindo aquela “imagem” divina impressa no coração de cada um. E o ser humano passou a ter “valor de mercado”, e toda pessoa que não produz ou não é rentável (doentes, idosos, pobres...) é descartado.
São os “césares” que se infiltram nas profundezas de nosso ser, conduzindo-nos a um profundo processo de desumanização.
Texto bíblico: Mt 22,15-21
Na oração: Alimentamos diferentes “césares” em nosso coração, aos quais nos fazemos submissos: instinto de posse, busca de poder e prestígio, consumismo, obsessão por um bem-estar material sempre maior, o espírito de competição... Quando é “césar’ que determina nossa vida, sua influência envenena nossa relação com Deus, deforma nossa verdadeira identidade e rompe nossa comunhão com os outros e nos desumanizamos...
Como seguidores de Jesus, devemos buscar nele a inspiração e o alento para viver de maneira livre e solidária.
- Dar nomes aos “césares” que comandam seu coração e que exigem pesados impostos.
O evangelho de hoje faz emergir a seguinte pregunta: sinto-me “denário de césar”? sinto-me imagem de Deus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.10.2020
“Eles não tem mais vinho!” (Jo 2,3)
Neste dia em que, no Brasil, celebramos a memória de Maria, a mãe Aparecida, o evangelho indicado para esta festa nos coloca diante de um relato muito simbólico; alguns exegetas chegaram a afirmar que, antes de ser relato, foi simplesmente uma parábola, no qual cada elemento contém toda uma mensagem carregada de conteúdo. É um evangelho rico em motivos históricos, cristológicos, eclesiais e marianos.
A boda, as talhas de água, o vinho, a figura da mãe, as próprias expressões utilizadas..., tudo isso está falando da novidade que, segundo o autor do evangelho, Jesus traz: a passagem de uma religião ritual (a água da purificação) e vazia (“eles não tem vinho!”) à plenitude de uma vida transbordante de surpresa, alegria e assombro (o “vinho bom” que surpreende o mordomo).
O contexto é um casamento: isso supõe que há amor, vida, famílias, encontro, festa, sonhos, esperanças... É o que Deus sente e deseja para todos os seus filhos e filhas.
E o relato que escutamos é uma festa de casamento que pode desembocar na frustração, pois o vinho no fim. Ou seja, vai terminar a alegria, a convivência festiva, o amor...; aos convidados só lhes restará o mais puro legalismo da água, dos ritos de purificação, mas sem vida e sem amor.
Uma boa oportunidade não é buscada premeditadamente, senão que ela é aproveitada quando aparece. Ali, a perspicaz e atenta é Maria, a mãe de Jesus.
Precisamente, conforme o evangelho, Maria é aquela que se coloca a serviço do amor e da vida, do vinho e da festa. Por isso, critica as bodas antigas (de Israel e talvez de grande parte das bodas de nossas Igrejas, carregadas de leis e normas de pedra e água, com pouco vinho de vida).
Maria também está presente, intimamente unida à missão do seu Filho; presença com sabor do vinho especial, prolongando uma festa que corria o risco de acabar. João realça sua presença: o “vinho bom” da alegria que não termina nunca.
Porque estava presente a Deus, Maria fez-se presente nos momentos decisivos de seu Filho, bem como fez-se presente na vida das pessoas. Uma presença que fez a diferença: presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de uma mãe.
Sua presença não era presença anônima, mas comprometida; presença expansiva que mobilizou os outros, assim como mobilizou seu Filho a antecipar sua “hora”.
Nas bodas de Caná, a novidade está numa nova forma de presença de Maria, que não se encontra interessada, em princípio, por fazer coisas, por resolver problemas, senão para traçar uma presença. Ela não está aí para “arrumar” as coisas, mas para escutar e compartilhar um momento festivo. Ela se encontra presente, num gesto de solidariedade que transcende e supera toda atividade.
Há nela uma densidade existencial, um sabor de cotidianidade que perfuma a fé: o espaço é o doméstico da casa de família; a oportunidade é a de uma festa de casamento; o contexto é o das relações; o exercício é o do cuidado e da atenção. E há em Maria uma sensibilidade envolvente ao todo da vida, mesmo quando o vinho começa a se tornar escasso. Com sua atuação discreta, da escassez brota a surpresa.
Trata-se de uma presença que é “música calada” nos lugares cotidianos e escondidos, que sabe enternecer-se e escutar as inquietações que procedem desses lugares. Uma presença que descobre o próximo no próximo, que sabe resgatar a solidariedade na vida cotidiana. Uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.
Em definitiva, Maria descobre que é chamada a dar de graça o que de graça recebeu. Sabe entrar em sintonia com os sentimentos dos outros e construir vida festiva, e vida em abundância.
Sua presença revela um gesto profético de solidariedade e de anúncio: presença que aponta para uma outra presença, a de seu Filho. Sua presença dignifica e revela um novo sentido à presença de Jesus numa festa de casamento.
A presença silenciosa, original e mobilizadora de Maria desvela e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher na própria vida outras vidas; histórias que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.
Disto se trata: aprender dos outros; recarregar nossa própria história de um horizonte diferente, no qual cabem outras possibilidades e outras responsabilidades; descobrir uma perspectiva mais ampla que ajuda a formular melhor o sentido de nossa própria vida.
Jesus, mobilizado por Maria, ao transformar a água em vinho, o que faz é transformar a realidade, os afazeres duros em atividades prazerosas, a vida rotineira em alegria, a tristeza em bom humor, a água das purificações em vinho novo. Jesus se fez presente com o vinho da melhor qualidade. Que dure a festa!
Jesus não fez isso no Templo, nem na sinagoga, nem em uma reunião de grupo, mas em uma festa de casamento. E dentro dela, o convite à festa perene do Reino.
Habitualmente, em nossa existência parecem alternar-se a “água” e o “vinho”, a rotina e a novidade, os dissabores (sem sabor) e a sensação viva de plenitude. É importante sermos conscientes de que a causa de nos encontrar em uma ou outra dessas vivências não depende daquilo que acontece, mas do “lugar” a partir do qual nós estamos vivendo.
É penosa a quantidade de pessoas que encontramos na vida queixando-se, lamentando-se, sentindo-se mal. É preciso realizar o gesto de mudar a água da rotina em vinho de salvação; fazer da realidade uma oportunidade inspiradora. Um motivo para transformar a queixa – “não temos vinho” – no milagre. Uma maneira de sair de nossa estreita maneira de olhar e entrar na largueza do olhar de Deus.
E assim, tudo começou: os sinais, a glória e a fé.
Texto bíblico: Jo 2,1-11
Na oração: inspirado na presença original de Maria, ter presente os lugares onde você vive e transita; sua presença dá “sabor e calor” a esses ambientes? Você é capaz de sintonizar com as oportunidades únicas para multiplicar o “vinho” da boa palavra, do gesto solidário, da atenção descentrada?
Você vive na rotina da “queixa” ou no prazer da presença?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Ide às encruzilhadas dos caminhos e convidai para a festa todos os que encontrardes” (Mt 22,9)
Mais uma vez nos encontramos diante de outra parábola luminosa e inquietante. Há um banquete para todos, o banquete da fraternidade, da vida partilhada, do mundo convertido em Reino. Mas muitos querem sua própria refeição, seu lugar à parte, para não se misturar com os outros, para não se “contaminar”.
É uma parábola que desmascara nosso contexto atual, onde o mundo se divide em banquetes de alguns e misérias de outros, em luta por um pão que cria guerras em vez de alimentar abraços e mesas partilhadas.
É típico do Evangelho comparar o Reino de Deus com uma festa de casamento. Jesus nos revela a imagem de um Deus festeiro, que organiza um surpreendente banquete, convidando a todos “bons e maus”.
Não é um convite a uma vida sem alegria; não é um convite a uma vida amarga, a uma vida onde tudo está proibido. Deus convida sempre à festa; o Evangelho é convite à festa de Deus com a humanidade.
Diante da recusa de muitos em participar do banquete, Deus nunca fracassa; a festa de casamento será celebrada; Ele sabe que mesmo aqueles que não receberam o cartão de convite estão dispostos a participar do evento. E Deus não gosta de ver cadeiras vazias; Ele quer “ver sua casa cheia”.
E dá a impressão de que quanto mais a sala do banquete se enche de convidados, mais aumenta o espaço; porque “ainda havia lugares”. No coração do Pai cabem todos. Ainda há lugares para aqueles a quem ninguém convida; sobram lugares para os excluídos; sobram lugares para esses a quem nós marginalizamos; ainda há lugares para esses que nunca encheram seu estômago; ainda há lugar para esses que nós julgamos como maus; ainda há lugar para esses que nunca ouviram falar do Reino.
A sala do banquete estará cheia. Os empregados serão enviados para as encruzilhadas dos caminhos da vida para convidar a todos. E o curioso: “maus e bons”. Também os maus são convidados à festa de Deus.
Deus convida aqueles que ninguém convida; Deus convida não aqueles que tinham preferência; agora os convidados não têm nome, são todos, são todos os nomes.
Convite, casamento, festa, banquete... tudo está maravilhoso. Mas não se pode estar de qualquer maneira na festa; é preciso estar vestido festivamente, ou seja, estar vestidos do amor e da graça daquele que convidou. Trata-se do traje da alegria, do amor, da graça.
O Reino não é um lugar, mas um novo espaço de relações fundadas na gratuidade e na doação. Isto depende da nossa decisão pessoal de preferi-lo a outras coisas, de confiar na bondade em excesso que nos é revelada. Este salto no vazio não é fácil. Preferimos as seguranças daquilo que conquistamos com nosso próprio esforço. Não confiamos naquilo que não depende de nossos méritos, de nossa conta de crédito e débito. Por isso mesmo, muitos rejeitam o convite que aqui se desenha como uma festa de casamento.
Talvez o que mais impede nossa adesão ao Reino seja a perda da capacidade de surpresa diante do que nos é proposto. Parece que já temos tudo sabido, que conhecemos de antemão a vontade de Deus que pedimos todos os dias no Pai-Nosso. Por isso, o rei envia os empregados a que saiam pelos caminhos e convidem aqueles que não esperam o convite para a festa, aqueles que não se sentem dignos ou à altura de tal honra.
Talvez, agora seja o tempo propício para deixar as seguranças dos negócios, daquilo que trazemos nas mãos sem contar com Deus nem com os irmãos e sair pelos caminhos da surpresa, do inesperado, do presenteado. Só a partir daqui poderemos receber o convite ao banquete da abundância. Porque só aos buscadores do Reino e de sua justiça lhes é oferecido este dom precioso.
O centro da mensagem do Evangelho de hoje está em que o Pai convida a todos: “bons e maus”; o banquete é o mesmo para todos. A resposta é a que marca a diferença entre uns e outros; quem prefere as “terras” ou os “negócios”, indica o que de verdade lhe interessa.
Em torno da mesa comum, reúnem-se as pessoas que, de algum modo, se sentem convidadas ou convocadas. Esta convocação compromete o convidado, porque ele aceita e, aceitando o convite, aceita participar, e, aceitando a participação, aceita tomar parte ativa na vida daqueles com quem vai assentar-se à mesa. Entra, assim, na comunidade.
O apego aos bens e aos negócios podem nos impedir de escolher o caminho da vida expansiva; uma vida bem-sucedida é o maior inimigo da transformação. Quem se acomoda no sucesso não prosseguirá em sua caminhada interior e ficará parado em sua imaturidade humana. Quem confia demais em seus próprios negócios ou em seu sucesso pode romper o vínculo com o coração e renegar seu verdadeiro eu.
Os sentimentos de “apego” vão se avolumando e vão nos fixando “às margens da vida que flui”. As “coisas” nos fazem sentir em segurança, protegidos e importantes: nosso emprego, nossas posses, nossas ambições, ideias fixas, status...
O perigo está em ter ouvidos para os cantos das sereias, e não para o convite que vem do mais profundo de nosso ser, que nos chama a uma plenitude humana.
Esse mesmo chamado a uma vida festiva, que pede saída de si e abertura ao encontro, fica ofuscado pelo “ego” fechado em seus negócios e apegos aos bens. Aqui, as recusas bloqueiam o fluir da vida.
Nesse sentido, as encruzilhadas da vida se revelam como o lugar da gestação do novo.
Dizia o teólogo Karl Rahner que o melhor da vida sempre vem a nós como “presente”, como algo inesperado, surpreendente. Somos envolvidos permanentemente pela Graça..., e nem sempre estamos atentos. São as oportunidades vitais e únicas que aparecem de maneira inesperada. “Não peças a Deus maravilhas, mas a capacidade de maravilhar-te”.
É preciso estar em sintonia profunda com a vida. Quando menos esperamos, ela nos chega como oportunidade inédita, como possibilidade que excede a tudo o que imaginamos.
Em chave de interioridade, o evangelho deste domingo também nos ajuda a des-velar por onde flui a vida, onde é possível a celebração festiva do casamento. O convite à festa é dirigido a todas as dimensões do nosso ser. Causa-nos surpresa que é justamente nas encruzilhadas dos caminhos interiores onde o convite tão generoso do Senhor encontra ressonância. Geralmente são os aspectos de nossa vida que estão à margem, as nossas feridas e fragilidades, as nossas limitações..., que são mais sensíveis para escutar e acolher o chamado à mesa do Reino.
O ser humano é o único ser que, sendo limitado, é totalmente aberto ao infinito.
É da fragilidade e da limitação que nasce também a criatividade.
Podemos, então, afirmar que a vida está nas encruzilhadas de nossa existência; afirmando de outro modo: as encruzilhadas estão também carregadas de vida. É das encruzilhadas existências que pode nos surpreender com o surgimento do novo. É ali que o convite à plenitude de vida ressoa com mais intensidade.
Nossa razão, nosso “eu perfeccionista”, nosso “ego inflado”, nossas “afeições desordenadas”...não se deixam impactar pelo convite para a festa da vida. Estão seguros de si mesmos, atrofiados e petrificados em nossos mundos estreitos e estéreis.
Construímos ao nosso redor um micromundo que parece permanente e sólido.
Andamos enredados e sem tempo para o essencial e perdemos a conexão com o centro de nosso corpo, de nossa vida, e esse centro é o coração, ali onde está oculto o mistério de cada um. Cada um de nós tem suas próprias feridas e seus tesouros no mesmo lugar.
Texto bíblico: Mt 22,1-14
Na oração: Vida nova é aceitar o que é fragilidade e limite em nós mesmos (nossa encruzilhada). Não existe subida para a luz sem a aceitação e a travessia de nossa sombra.
- Dê nomes às suas “afeições desordenadas” (apegos) que o(a) tornam insensível à Voz d’Aquele que convida ao festim do Reino.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
08.10.2020
“... arrendará a vinha a outros lavradores, que lhe entregarão os frutos no tempo certo” (Mt 21,41)
Segundo o relato bíblico, o Criador, depois de plantado o jardim, parou o seu trabalho para descansar e contemplar: “E viu que tudo era muito bom”. Tudo o que Deus fez terminou num jardim. Mas o jardim já existia no coração e nos desejos do Criador. Por isso, o jardim é a revelação da bondade de Deus, a expressão nobre de suas entranhas. E Deus tem prazer em passear pelas alamedas desse imenso jardim; não é preciso templos e nem altares, pois tudo pode ser lugar de encontro com o Criador.
Mas, Deus quis compartilhar essa experiência indizível; criou o ser humano a partir da argila, ou seja, com os mesmos elementos da natureza, e o colocou no centro deste imenso jardim, para que, prolongando a ação criativa do Grande Artista, pudesse “guardar e cuidar” da Grande Casa Comum.
A literatura bíblica fala da Grande Vinha, lugar onde os homens, as mulheres e as crianças, em sintonia com todas as criaturas, convivem em harmonia e compartilham os frutos abundantes das videiras. Por isso, a primeira vocação do ser humano é a de ser jardineiro, pois recebeu do Criador a missão de cuidar e preservar a Sua “vinha”. Vinha é paraíso prometido; a vinha é realidade presente e é “terra prometida”.
Existimos para receber a vinha em herança, para prepará-la, para fertilizá-la, para cuidá-la, para torná-la bela. Mas, que coisas horríveis fizemos com a vinha que herdamos!
Por sua atitude de arrogância e de autosuficiência, o ser humano explorou exaustivamente a vinha herdada e a destruiu, depredou, aniquilou, tomou posse dela... Assim, não foi respeitoso para com o Criador que a ele reservou a missão de cuidar da sua vinha e de compartilhar os seus frutos. Conquistou demais e cuidou de menos. A ameaça provém da atividade humana altamente depredadora da obra da Criação a ele confiada; perdeu o sentido da corrente única da vida e de sua imensa bio-diversidade; esqueceu a teia das inter-dependências e da comunhão de todos com a Fonte originária de tudo.
A crise ecológica, pela qual estamos passando, é a crise do próprio ser humano. A “vinha” do Senhor está em ruínas, devido a maneira como o ser humano a tratou, arrancando dela pedaços para satisfazer seus interesses egoístas e não se dá conta que está destruindo seu próprio espaço vital. As conseqüências trágicas estão presentes por toda parte:
Buracos na camada de ozônio, mutações climáticas provocadas pelo efeito estufa, enchentes diluvianas, secas prolongadas e devastadoras, desertificação de imensas áreas, erosão de solos férteis, desaparecimento de florestas devido ao desmatamento e às chuvas ácidas, rios assoreados e poluídos devido ao esgoto doméstico e aos detritos industriais, ar irrespirável pela presença de monóxido de carbono e outros gases venenosos, poluição sonora e visual das grandes cidades, crescimento e acúmulo de lixo urbano e industrial, esgotamento das fontes de energia não renováveis e dos lençóis freáticos de água, extinção continuada e crescente de espécies vegetais e animais, pondo em risco a biodiversidade e o equilíbrio dos ecossistemas, escassez de alimento, proliferação de doenças, migrações forçadas... Enfim, o desequilíbrio dos ecossistemas pode comprometer, de forma irreversível, todas as formas de vida sobre a terra.
O drama do ser humano está em perder a memória de que é parte do todo: seu instinto de posse e domínio o leva a romper a relação cordial com todas as criaturas, caindo num devastador vazio existencial.
A “centração em si mesmo”, sem levar em conta a rede de relações que o envolve, provoca a quebra da “re-ligação” com tudo e com todos. Este é o veneno que corrói o ser humano por dentro: a petrificação de sua interioridade, o embrutecimento de sua sensibilidade, a perda do gosto pela verdade, pelo bem e pelo belo, o extravio da ternura e da transcendência, a atrofia da comunhão com o todo cósmico...
O ser humano se colocou num pedestal solitário a partir de onde pretende dominar a Terra e os céus; como consequência dessa atitude, temos a devastação da vinha.
Com isso ele rompeu com a solidariedade natural entre todos os seres; contradisse o desígnio do Criador que quis o ser humano como co-criador e que por sua colaboração conduzisse a Criação à sua plenitude. Mas este colocou-se no lugar de Deus. Sentiu-se, pela força da inteligência e da vontade, um pequeno “deus” que quer manipular e dominar tudo.
Do evangelho deste domingo (27o dom TC) podemos deduzir claramente que o ser humano não é senhor da vinha e não pode fazer com ela e com os outros seres aquilo que bem entender. A primeira relação do ser humano com a Vinha, portanto, não é a da posse, mas a da acolhida, por ela ser dada em herança. Todos os bens da Criação são recebidos por nós deste modo, ou seja, como dons.
A Vinha, como realidade doada, convida à compreensão de sua origem, não para ser dominada e manipulada, mas para se tornar dom e uma benção fecunda para todos.
Isso significa que a realização mais profunda das pessoas e da natureza está na gratuidade, não no seu aspecto utilitário. A vinha aparece sempre como aliada do ser humano; ela nos ensina a viver em harmonia com a água, com a terra e com todos os seres, uma relação de aliança, não de dominação arbitrária e exploradora.
Os profetas sempre insistiram neste ponto: quando o povo guarda a aliança com Deus e respeita a terra, esta fica fértil e generosa. Quando as pessoas rompem a aliança com Deus e se afastam d’Ele, a vinha fica estéril. (cf. Is. 5,1-7)
A vinha não é o lugar para a espoliação e a devastação, mas o lugar do louvor e do serviço a Deus.
A vinha não foi dada em herança para o consumismo, mas para a vida; não é para que uns poucos se apropriem dela como donos, mas para todos abrigar e alimentar; ela não é campo para a guerra, mas para a convivência fraterna, a solidariedade, a justiça e a paz. Somente a vivência dessa relação do ser humano com a vinha possibilitará novas relações sociais e ambientais, o novo tempo de paz e justiça.
Como seguidores(as) d’Aquele que veio “trazer Vida, e vida em plenitude”, somos convocados a despertar uma consciência criatural, em que a Criação deixa de ser vista como objeto de domínio. Ela é um dom de Deus que deve ser acolhido com reverência, respeito e louvor.
Quem crê, é convidado(a) a olhar a Terra, com tudo o que ela contém, como um grande corpo cósmico de Deus a nos abrigar e nos acolher em seu colo maternal.
Somos todos “lavradores”, encarregados de tornar a vinha fecunda. Quem sabe, um dia, ao contemplar a Vinha do Senhor com olhos encantados, sofreremos ao vê-la violentada pelos vândalos que a estupram em nome de um pretenso crescimento econômico, que só beneficia a uns poucos.
Somos a “Grande Vinha” do Senhor, uma rede de relações no qual vivem, convivem, muitas outras pessoas e criaturas, e muitas delas sobrevivendo em condições de grande penúria, escassez e violência. Cuidar da Vinha supõe, portanto, cuidar da maneira como somos “vinha” cada um de nós, como influímos nas vidas de outras pessoas, como contribuímos para que todos se sintam acolhidas e acompanhadas em seu meio. E descobrir aí um desafio que vai muito mais além do mero cuidado de algo externo: cuidamos de nós mesmos, de nossa humanidade e da rede de relações que nos mantém vivos.
Textos bíblicos: Mt. 21,33-43
Na oração: Estamos vivendo o “Tempo da Criação”:
- tempo para entoar um hino de louvor e gratidão a Deus pelos benefícios que recebe a cada dia da Criação;
- tempo para ter sempre presente que fomos criados para viver uma relação de amor e de solidariedade com tudo e com todos;
- tempo para assumir gestos de cuidado para com o meio ambiente: reduzir, reciclar, reutilizar, replantar...
* Você se sente afetado(a) por esta tragédia da destruição, contaminação, poluição... do meio ambiente?
Quê atitudes você pode assumida, no nível pessoal, familiar, social...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
01.10.2020
“João veio até vós, num caminho de justiça, e vós não acreditastes nele” (Mt 21,32)
É muito fácil ter fé em Jesus. Hitler se considerava católico e dizia que tinha fé em Jesus; são muitos os que fazem opção em favor da morte e se dizem cristãos. A questão não é ter fé em Jesus, é ter a fé de Jesus. E a fé de Jesus está intimamente vinculada à justiça do Reino, ou seja, comprometida com a vida.
Para Jesus, a fé não está vinculada a um catálogo de crenças, a uma doutrina, a uma religião, e sim, a um modo de viver e agir, profundamente sintonizado com o modo de ser e agir do Pai. Quê qualidade de fé nós temos? Desperta em nós ou não uma profunda indignação contra as injustiças, violências e misérias que ferem nosso mundo? Ou ela se reduz a algumas práticas piedosas alienadas, a certos ritos vazios, a doutrinas distantes da vida?...
A fé é muito mais que uma “crença”, que se restringe a uma formulação doutrinal; a fé é um modo de ver, um modo de viver, um modo de ser. Envolve a pessoa toda em todas as suas dimensões, de um modo integrado e configurador. Portanto, aquele que crê não é uma pessoa que “tem fé”, mas alguém tomado e configurado, cada vez mais plenamente, por uma experiência radical de amor que repercute e lhe faz vibrar em todo o seu ser.
Vibra também sua afetividade. Com efeito, na experiência de fé, a pessoa se percebe enraizada no Amor originário, incondicional e gratuito; um amor que não só a envolve, mas que a constitui. E, ao mesmo tempo, desperta e mobiliza nela toda sua capacidade de amar. Necessidade de ser amado e capacidade de amar: na fé, a afetividade encontra descanso, motor e canal por onde flui a vida.
Esta é a intuição que perpassa toda a Bíblia: o coração da fé é o amor e, com ele, o afeto, começando já pelo “primeiro mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus com todo teu coração, com toda tua alma e com todas as tuas forças” (Deut. 6,5). Portanto, crer é uma questão de amor. Isso significa que, antes de qualquer outra coisa, aquele que crê se percebe, em seu núcleo mais íntimo, ser e proceder do Amor. Aquele “em quem somos, nos movemos e existimos” (At 17,28) é Amor.
Não podemos confundir “crer” com “crença”. Nenhuma crença é essencial, nem necessária, pois todas dependem da visão que temos da realidade em geral, dos conceitos teológicos que conhecemos, dos ritos que praticamos, da língua que falamos... O essencial do “crer” não é a crença, mas a “entrega do coração”; assim sugere a própria etimologia do termo latino “credere”, que vem de “kerd” (coração) e “dheh” (entregar). Entregar o coração: tudo o mais é acréscimo.
Se é verdade que a palavra latina “credere” provém de uma contração de “cor-dare”, a fé seria o dom do coração. Não seria uma conquista do intelecto, senão um ato de confiança amorosa, uma entrega que envolve o ser em sua totalidade, não um ato de apropriação senão uma sublime nobreza...
A fé não é algo que se “tem” ou “não se tem”; a fé é um caminho, é uma viagem entre a luz e a treva. É um desejo eternamente insatisfeito. É uma confiança continuamente renovada, um compromisso sem final. Jesus fez a desconcertante afirmação de que prostitutas e cobradores de impostos terão precedência no Reino de Deus, e não os "exemplares" sacerdotes e anciãos do povo. Isso deixa claro quem Jesus reconhecia como pessoas de fé. Não propriamente quem aceita o que prega a religião, e sim quem age por amor, solidariedade e justiça, como o bom samaritano (Lucas 10, 29-37).
Os “sacerdotes e anciãos do povo” são os “profissionais” da religião: aqueles que disseram um grande “sim” ao Deus do templo, os especialistas do culto, os guardiães da lei. Não sentem a necessidade da conversão e não se abrem à novidade trazida por Jesus.
Os “publicanos e prostitutas” são aqueles que disseram um grande “não” ao Deus da religião, aqueles que se colocaram fora da lei e do culto. No entanto, seu coração se manteve aberto à conversão e acolheram a novidade de Jesus.
“Sacerdotes e anciãos do povo” x “publicanos e prostitutas”: revelam o lugar e o modo de viver de cada grupo na estrutura religiosa do tempo de Jesus. Mas podemos ir além: tais grupos estão presentes, e em constante conflito, em nossa própria interioridade.
Como integrá-los e como conviver com eles para que nossa vida seja criativa e expansiva? Nesse sentido, a pequena parábola deste domingo nos capacita a considerar nossa vida sob outra perspectiva.
Provavelmente, a parábola – em linha com a sabedoria de Jesus – está nos convidando a que sejamos capazes de reconhecer e abraçar o “publicano” e a “prostituta” que cada um de nós carrega em nosso interior. O sentido é o mesmo daquela outra parábola que fala do “fariseu” e do “publicano”: até que não reconheçamos o nosso publicano interno não poderemos estar reconciliados.
Simbolicamente, “publicano” e “prostituta” é aquela dimensão nossa que temos reprimida e escondida, nossa própria sombra. É claro que, enquanto não a reconhecermos, projetaremos nos outros o que em nós mesmos rejeitamos. Só quando abraçamos nossa “negatividade”, nos humanizamos, porque nos abrimos à humildade. E só então pode emergir a bondade e a compaixão para com os outros.
Os “sacerdotes” e os “anciãos” – escravos de sua própria imagem de “observantes religiosos” – eram incapazes de reconhecer e aceitar seu “publicano” e sua “prostituta” – presentes em todos nós. Isso os incapacitava para amar os outros – publicanos e prostitutas – e entrar no Reino.
Quanto mais nos reconciliamos com nossa debilidade e fragilidade, mais próximos estaremos da verdade. Uma coisa parece clara: abraçar nossos próprios “publicano” e “prostituta” nos permitirá abraçar qualquer pessoa que cruze nosso caminho, sem necessidade de impor-lhe nenhuma etiqueta prévia.
Dito de outro modo: ao reconhecer e aceitar nossa própria sombra (tudo aquilo que em algum momento tivemos que negar, ocultar, reprimir...) crescemos em unificação e harmonia interior, desaparecem os juízos e preconceitos e entramos em um caminho de humildade e graça.
A aceitação da sombra (“publicano-prostituta”) nos faz descer do falso pedestal, sobre o qual nos havia feito subir o “sacerdote que nos habita”, e nos permite crescer em humildade e em humanidade.
Para Jesus, a conversão significa mover-nos em direção à nossa fragilidade, aos limites, às sombras... Ao reconhecer-nos fracos e limitados, nós nos abrimos para Deus e para os outros; sentimo-nos necessitados de salvação. Só a aceitação de nossa verdade completa conduzir-nos-á no caminho da libertação.
E a verdade é que em cada um, jazem unidas, a luz e a sombra, o sacerdote e o publicano. Em cada santo dorme um pecador, e não reconhecer isso conduz ao farisaísmo e ao moralismo; mas em todo pecador dorme também um santo, e não percebê-lo supõe um empobrecimento humano, desesperança e vazio.
Somente quando integrarmos e nos reconciliarmos com os aspectos nossos que tínhamos negado ou até rejeitado, poderemos alcançar a paz e a harmonia estáveis. Portanto, nossa grande tarefa não consiste em sermos “perfeitos”, mas “completos”. Na medida em que somos mais “completos”, porque aceitamos de maneira integral nossa verdade, tornamo-nos mais compassivos e humanos.
Texto bíblico: Mt 21,28-32
Na oração: - Fazer memória de tantas pessoas que, mesmo no anonimato de suas vidas, foram referências na vivência de fé, integrando uma profunda adesão ao Deus da Vida e o compromisso em favor da vida.
- Sua vivência de fé faz diferença na realidade em que você se encontra? Ela inspira, move, provoca... a sair das suas “normoses religiosas” (normalidade doentia centrada no legalismo, no moralismo, no ritualismo...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Ou estás com inveja porque estou sendo bom?” (Mt 20,15)
Os textos evangélicos dos três últimos domingos desenvolveram o mesmo tema, numa progressão interessante: o 23º. domingo nos falava da correção fraterna, ou seja, a acolhida do irmão que errou. O 24º. domingo nos falou da necessidade do perdão contínuo como fundamento que sustenta uma comunidade. Hoje nos fala do chamado a trabalhar em favor do Reino, sem nos deixar determinar pelo sentido da justiça humana (pagar mais a quem trabalhou mais), mas a partir do amor (pura gratuidade). O critério único é deixar-nos inspirar pelo amor do Senhor da Vinha, que se manifesta em cada um de nós.
E Jesus revela isso através de mais uma parábola.
Como toda parábola, também o evangelho deste domingo é profundamente provocador, pois nos introduz em um mundo de contradição, nos confunde e nos faz clamar por um pagamento mais equitativo, mais “justo”. A maneira de proceder do proprietário da vinha transtorna os esquemas razoáveis do sistema econômica no qual nos movemos, centrado na competição e na produção. Contexto que acaba alimentando a comparação e fazendo emergir a inveja doentia que dá um sabor amargo às relações pessoais.
Feito para ser a sede da inteligência e da experiência gratificante e edificadora de amar, o coração do ser humano também é palco de dramas desafiadores. Entre esses dramas, lá está a inveja destruidora. Um dinamismo demolidor, que petrifica situações, enrijece posturas, com dificuldades em admitir o bem e a grandeza de Deus revelada no outro. Por isso, a inveja faz com que os sábios e experientes percam os rumos, obscurece o horizonte aberto dos jovens, joga por terra o que o adulto construiu.
As consequências são funestas: a inveja acirra os conflitos, envenena as relações pelo uso ferino da língua, compromete vidas, arrasa instituições. Uma sensação de inferioridade toma conta do coração dos invejosos, incapazes de compreender para além do horizonte dos seus interesses e de suas próprias justificativas.
No contexto atual, a inveja é um dos motores sociais mais importantes. Esta é considerada como alavanca para alimentar a competição, aumentar a produtividade e insuflar as pessoas na busca de metas ambiciosas, passando por cima dos outros.
Jesus conhece bem o coração do ser humano; Ele sabe que a força da inveja compromete a alegria dos seus(suas) seguidores(as), solapa tudo, desvia do seu rumo aquele(a) que foi chamado(a), e incrementa silenciosamente a incompetência para a fraternidade.
A inveja é a mãe de muitos filhos; sua fecundação é escondida, mas os seus lastros são bem visíveis. Ela tem um poder de ramificação incrível, entrelaçando corações como erva daninha, impedindo o encantamento pelo outro, retardando reconciliações, dando margem às intrigas em todos os ambientes.
A inveja é tão terrível que, diferentemente de outros pecados capitais, como a luxúria, a gula e a soberba, não proporciona prazer.
Suas raízes escondidas estão enterradas no mais profundo da identidade de cada um. Identidade que para crescer precisa de reconhecimento, de comparação... Quando essa necessidade torna-se patológica, como consequência de um olhar narcisista exagerado sobre si mesmo, sobre seus feitos, títulos, posses, etc... a identidade fica comprometida.
A pessoa não consegue se compreender a partir do dom da vida e dos seus dons recebidos de Deus; só se vê como alguém que está acima dos outros. O parâmetro da compreensão de si é o outro, considerado como menor e menos importante. Aqui se instala o desejo de demolição do outro. Vive-se à cata de razões, mesmo insignificantes, agigantadas pela mesquinhez da inveja, para destruir o outro e garantir só para si o lugar da consideração. Trata-se de um drama que tira o sabor de viver.
Na parábola deste domingo, Jesus não tem a intenção pedagógica de abordar a temática da justiça social que poderia aparecer na queixa daqueles que foram os primeiros contratados pelo dono da vinha. Estes, vendo o quanto tinham recebido aqueles que tinham sido contratados no fim do dia (uma moeda de prata), alimentaram desejos nos seus corações de receberem mais O incômodo nasceu da generosidade do dono da vinha. Seus critérios não comprometem a justiça, pois uma moeda era o justo para um dia de trabalho.
Quando a moeda é referência, símbolo do valor que se dá a si mesmo, fora de outros critérios e longe do horizonte do serviço a que se foi chamado, a inveja é a consequência inevitável e terrível. O peso maior recai sobre aquilo que foi feito, vale o reconhecimento ao que se fez. O trabalhador não é capaz de viver a alegria de ter sido chamado, mesmo na primeira hora e, sobretudo, a alegria de ter realizado o serviço e o cuidado que fizeram com que a vinha florescesse. A mesquinhez faz centrar o valor no próprio reconhecimento e no quanto acumula para si mesmo.
Jesus busca convencer os seus discípulos e a nós que esse caminho não leva a nada, cria aflições, multiplica os incômodos da competição; no final, só resta o gosto amargo da insatisfação, além do perigo de desvalorizar e destruir o serviço realizado, pela presença da força venenosa do egoísmo e do narcisismo que sustentam os invejosos.
O valor está no serviço, ensina o Mestre. O ganho é o serviço que se realiza. Importante é a vinha. Dignificante é ser contratado por seu proprietário para trabalhar nela. Relevante é quem chama e o empenho investido numa causa: a Vinha.
A grandeza de ser chamado e a nobreza do “sim”: eis o remédio contra o veneno da inveja.
Por isso, na vinha do Senhor, a lógica que preside é diferente: não é lógica capitalista, não é a contabilização dos feitos e das grandiosidades individuais. Na vinha do Senhor, a fecundidade é resultado da consciência da honra de ser chamado por Ele, não importando o tempo e menos ainda o valor monetário ou a busca de reconhecimento do serviço realizado. Gratuidade e generosidade são as atitudes do coração, marcas de quem trabalha nessa vinha do Reino.
Tais atitudes garantem a liberdade que o coração humano procura. Livra-o dos incômodos e mal-estar que a competição acirra no seu ser mais íntimo. Mais ainda, elas não deixam o coração embarcar na costumeira pretensão do seu próprio fazer, para encontrar gosto e alegria no bem feito junto com os outros, mesmo aqueles que foram chamados à tarde. O decisivo é a participação honesta e oblativa naquilo que realiza.
Trabalhar, servindo com a consciência despojada de simples servo, é a indicação que Jesus dá aos seus para encontrar o caminho da fecundidade, a superação das amargas queixas, o risco de afogar-se nas próprias inferioridades. Os olhos precisam estar sempre fitos no Senhor da vinha, fazendo o que Ele indicar, com alegria e investimento de todo o ser. Essa é a verdadeira recompensa, o “denário” do final do dia.
Hoje precisamos superar todo espírito de competição e cobiça; precisamos superar todo o “exclusivismo” que ainda pulsa no subconsciente cristão. É ainda latente uma atitude de complexo de superioridade que não tem nenhuma justificação.
Não resta dúvida que aceitar em profundidade a mensagem evangélica de hoje de que “os primeiros serão os últimos”, exige de nós uma mudança de mentalidade a fundo.
Trata-se de romper os esquemas nos quais está baseada a sociedade que se move unicamente pelo interesse. Como dirigida à comunidade cristã, a parábola pretende criar relações humanas que estejam mais além de todo interesse egoísta de indivíduo ou de grupo. Os atos dos Apóstolos nos dão a pista quando nos dizem: “possuíam tudo em comum, e repartiam os bens entre todos, segundo a necessidade de cada um”.
Texto bíblico: Mt 20,1-16
Na oração: - é na “queixa”, declarada ou não, que reconheço em mim a imagem dos “trabalhadores da primeira hora”. Quais são minhas queixas?
- não é fácil distinguir o meu ressentimento e administrá-lo de maneira sensata; esta é a realidade: onde quer que se encontre meu lado virtuoso, aí também existirá sempre um lado queixoso e ressentido;
- abrir espaço em meu interior para que a bondade e a gratuidade do Pai prevaleçam na minha relação com os outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.09.2020
Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim?” (Mt 18,21)
O Evangelho deste domingo também faz parte do chamado “discurso comunitário”, cap. 18 de Mateus.
Hoje, o tema principal é o do perdão. Mateus recolhe as instruções de Jesus sobre a maneira como os irmãos devem proceder dentro da comunidade cristã. Sem o perdão mútuo torna-se impossível qualquer tipo de comunidade. O perdão é a mais alta manifestação do amor; o perdão é superlativo do amor. Reinhold Niebuh descreveu o perdão como a “forma final do amor”.
Em outras palavras, é impensável um verdadeiro amor que não traga consigo o perdão.
Nesse sentido, o perdão deve ser, não um ato, mas uma atitude que se mantém durante toda a vida e diante de qualquer ofensa. Por isso, a expressão “setenta vezes sete” quer dizer que é preciso perdoar sempre. Os rabinos mais generosos do tempo de Jesus falavam em perdoar as ofensas até quatro vezes.
Pedro se sente muito mais generoso e acrescenta outras três. Sete, já era um número que indicava plenitude, mas Jesus quer deixar muito claro que não é suficiente, porque corre-se o risco de contabilizar o perdão. Ele se deixa guiar pela “lógica da superabundância” e não pela lei da reciprocidade, da equivalência...; revela também que o perdão é amor superando a justiça, a misericórdia divina superando a lei humana.
À vingança, Jesus opõe o perdão; à exigência do revide, Ele opõe a atitude de reconciliação além de qualquer fronteira. Assim, o perdão revela-se como uma experiência “subversiva”, pois subverte as tendências naturais do ser humano em revidar, vingar, “pagar com a mesma moeda”...
Jesus sabe que somos frágeis como o barro; sabe também que com o barro de nossas vidas é possível fazer obras de arte.
Contam que uma pessoa tinha um vaso de barro precioso e de grande valor. Alguém curioso o tomou em suas mãos e, por um descuido, escorregou de suas mãos e se fez pedaços ao cair no chão. Podemos imaginar a dor do dono do vaso. Mas ali havia um artista que prontamente se ofereceu para acalmar os ânimos e refazer o vaso quebrado. Levou-o para sua casa e foi unindo os pedaços com fios de ouro. Alguns dias depois, devolveu-o ao dono. Era uma preciosidade. Impossível imaginar aquela obra de arte. Aqueles que a contemplavam ficavam assombrados. E não faltaram entendidos de arte que começaram a elevar o preço da obra; um preço muito superior ao que tinha antes.
Este é o sentido e a missão do perdão. Com frequência, a comunidade cristã se faz pedaços com as ofensas fraternas. Pode dar a impressão que ela se quebrou para sempre. Mas, aparece a capacidade de tornar a soldar o que estava quebrado, com os fios de ouro do perdão. E a comunidade que se havia quebrado, agora volta a ser uma comunidade nova; uma comunidade de amor, de fraterna caridade, muito mais evangélica.
O amor que perdoa, é esse o fio de ouro capaz de reconstruir o vaso de nossa comunidade e torná-lo mais belo e formoso que antes. Porque o perdão recria e re-constrói vidas quebradas.
O perdão só pode nascer de um verdadeiro amor. Não é fácil perdoar, como não é fácil amar. Vai contra todos os nossos instintos egoístas. Por isso, a partir de nossa consciência de indivíduos fechados em nosso ego, é impossível entender o perdão do evangelho. O ego tem necessidade de enfrentar-se com o outro para sobreviver e potenciar-se, inclusive aproveitando-se do próprio perdão. Ser bom, sentir-se justo, fraterno, solidário, honesto, tudo isso - embora exija esforços - é relativamente fácil e, muitas vezes, alimenta o próprio ego. Difícil é perdoar o agressor, não apenas desculpando-o, mas sendo capaz de amá-lo na totalidade do seu ser. Esse é o traço característico da comunidade cristã.
Por isso, a originalidade do cristianismo está na descoberta da grandeza do ser humano, no exercício da única força capaz de mudar o mundo: o amor real. Não há revolução maior.
Embora não negue o que possa ter havido um comportamento maldoso, quem perdoa distingue entre ofensor e seu comportamento e considera o verdadeiro valor do outro como pessoa humana que, tal qual ele próprio, vive num mundo imperfeito, cheio de tensões e conflitos diversos. Apontando para o valor do outro, o perdão é uma “atitude revelatória”, de si mesmo e do outro
Perdoar supõe reconhecer a grandeza do ser humano; para além da fragilidade, a pessoa que perdoa ou acolhe o perdão encontra-se com o melhor de si mesma. Afirma que nela “há sempre mais coisas dignas de admiração e de respeito”.
A virtude cristã do perdão também traz consigo a dignificação da relação com o outro no mais elevado grau, a ponto de transformar ódio em amor e o inimigo em irmão.
Quando alguém perdoa, mobiliza a outra pessoa, suscitando nela um retorno à autenticidade no universo relacional consigo mesma, com os outros, com o mundo e com Deus.
Deixemos claro que o perdão não é negar, nem esquecer, nem forçar os sentimentos. Pelo contrário, o ponto de partida do perdão é o pleno reconhecimento da ofensa que rompeu a relação. Mas, quem perdoa, não se deixa conduzir pela “memória mórbida”, ou seja, não fica “remoendo” o que de mal aconteceu; pelo contrário, reconstrói, através de uma memória sadia, a identidade do outro, deixando de ver nele o mero causador da ofensa para captar sua dignidade mais profunda como ser humano valioso que é, apesar das fraquezas e limitações.
Do mesmo modo, quem perdoa ativa uma memória sadia na percepção de si mesmo, deixando de considerar-se vítima ou magoado e percebendo-se como pessoa capaz de elevar-se acima da mágoa ou da ofensa. Em última análise, o perdão é um ato de fé na bondade fundamental do ser humano.
No processo de reconstrução de si mesmo e dos outros, o perdão também proporciona, àquele que perdoa, uma ocasião para rever as ilusões, as idealizações infantis, a busca do perfeccionismo... que orientavam sua vida. Quem perdoa está diante de uma situação propícia para discernir como as falsas expectativas em relação ao comportamento dos outros podem ter preparado o terreno para uma frustração profunda.
É uma ocasião privilegiada para a pessoa defrontar-se com seus sentimentos agressivos, suas expectativas e a história passada. No encontro com a verdade, quem perdoa pode conquistar maior liberdade para relações pessoais mais profundas e duradouras. A vida de cada dia atesta que exatamente onde se vive o perdão abre-se um novo futuro de paz.
No gesto do perdão, a pessoa pode chegar a uma compreensão mais realista de si mesma.
Os recursos do verdadeiro perdão são infinitos. Eles jamais acabam. Uma pessoa que perdoa algumas vezes e se recusa a perdoar outras vezes, não conhece o significado do perdão.
O perdão não é uma operação do tipo “de vez em quando”. É um estilo de vida. É uma disposição permanente. Na verdade, no nível mais profundo, o “perdão não é algo que a pessoa faz, é algo que a pessoa é”. O perdão precisa ser um gesto repetido muitas vezes até se tornar um “hábito do coração”.
O Evangelho fala 77x7 vezes.
Texto bíblico: Mt 18,21-35
Na oração: Jesus colocou no perdão fraterno uma das características do ser cristão; ao perdoar-nos, Deus cria em nós um coração novo, feito de acordo com o Seu, capaz de perdoar à sua maneira; não pode dar o perdão quem não tem consciência de tê-lo recebido; a capacidade de perdoar é diretamente proporcional à experiência de ser perdoado.
- Re-visitar experiências de ter vivenciado o perdão de Deus; trazer à memória situações em que você “entrou no fluxo do perdão divino” e foi presença visível desse perdão nas relações com as pessoas.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.09.2020
“Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, a sós contigo!” (Mt 18,15)
Como pessoas, somos seres sociais, comunitários. Todas as dimensões de nossa existência são vividas socialmente: família, povo, Igreja, comunidades, associações, partidos políticos, etc... Desde o nascimento até à morte, somos para e com os demais.
Saber se relacionar com os outros é uma necessidade fundamental da pessoa humana; esta, revela sua matu-ridade e se realiza humanamente quando se abre às relações interpessoais e descobre o prazer de conviver.
Jesus veio restabelecer um novo tipo de relações, e nos motiva a colocá-las em prática e estendê-las em todos os nossos encontros.
A vida de relação também ocupa o centro da comunidade cristã, que é pensada e vivida como mistério de comunhão e de missão, fundada na relação com Deus, comunhão de Pessoas e fundamento de nossa fraternidade. Tal fundamento dá vida e equilíbrio às realidades comunitárias, onde a atenção recíproca ajuda a superar a solidão, a comunicação favorece a corresponsabilidade, o perdão cicatriza as feridas e cada pessoa é motivada a sair de si para viver o compromisso com o outro.
Cremos no “Deus dos laços”, das conexões e das relações criativas. Deus, já desde o princípio, faz resplandecer seu rosto trinitário na expressão “façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança”. Ele deixou sua pegada de amor recíproco e compartilhado em cada ser humano.
Por isso, para curar na raiz os males que provocam as falsas relações e as forças desagregadoras, temos de aprender do Deus trinitário o segredo de um amor oblativo, de um esvaziamento recíproco de nossos egos, a fim de que nossos laços fraternais também sejam alimentados por um amor expansivo.
O evangelho deste domingo é um texto significativamente comunitário. Mateus emprega, pela primeira vez aqui, o termo “irmão”, para fazer referência às pessoas que faziam parte da comunidade cristã, e mostra costumes que, seguramente, faziam parte da organização e do modo de vida das primeiras comunidades.
O relato reflete, a partir da memória destas comunidades mateanas, a importância que o cuidado das relações interpessoais tinha para aqueles(as) que professavam a fé em Jesus Cristo. Por isso, o evangelista põe na boca de Jesus o que conhecemos como correção fraterna, o perdão e a oração em comum.
O ponto central do relato (a correção fraterna) é “ganhar” o irmão. Jesus buscou salvar sempre o que estava perdido. A finalidade de sua vida não foi a de condenar ou castigar, mas “ganhar” o irmão, encontrar a ovelha perdida, acolher o filho perdido, receber no Reino o bom ladrão.
Isto nos recorda a necessidade do diálogo e da compaixão em nossas relações humanas. Relações que são, em definitiva, o eixo principal de nossa vida comunitária e eclesial. De nada servem as reuniões, celebrações ou projetos que realizamos se não cuidamos, concretamente, da relação com os outros, com as irmãs e irmãos que o Senhor nos presenteou como companheiros(as) de caminho.
Jesus, com suas palavras, mostra mais uma vez compreensão e firmeza, sensatez e liberdade. A correção fraterna, em qualquer grupo, se torna difícil. Talvez seja uma das atitudes que mais nos custa viver com maturidade. Mas, a correção se torna simples quando brota do carinho e da humildade, quando está permea-da pelo amor e pela misericórdia. Afinal, somos humanos e todos cometemos equívocos em algum momento da vida. Esta correção busca, a partir do coração, não humilhar, mas sustentar o(a) irmão(a) nas dificuldades.
E isto é assim porque lhe mostra o mal que fez para que possa crescer e ser melhor pessoa.
A “correção fraterna” é gesto humilde que não humilha, porque é discreto e silencioso. A correção fraterna “não faz ruído”; por isso Jesus convida a corrigir a sós com o ofensor e só em último caso, recorrer à comunidade.
Corrigir com amor não significa pôr o(a) outro(a) de joelhos para que reconheça as suas faltas; a correção nasce de um coração “educado” pela Misericórdia divina e se manifesta externamente com uma atitude mansa e condescendente. Esse Amor é uma força poderosa, não se rende diante do mal, porque é sempre capaz de redescobrir o bem ou de salvar a intenção do outro, de ativar novamente nele a esperança...
A correção fraterna é mais um estilo de vida que um ato ligado a uma transgressão. É um modo de pôr-se diante do outro e de sua fraqueza, mas que não se realiza exclusivamente depois da queda; antes, pode às vezes impedir essa queda porque é um estilo de bondade, compreensão, magnanimidade, estilo de quem não presta atenção ao que o outro merece nem se escandaliza com sua miséria. "Devemos corrigir como pecadores(as)”, não como “justos(as)”.
O cristianismo é tão revolucionário que exige do ser humano não apenas a grandeza de compreender e desculpar o ofensor, mas a capacidade de amá-lo.
Corrigir é ter esperança naquele que ofende, acreditar em sua humanidade, oculta sob a sua fragilidade.
O ser humano é muito mais que um ato falho ou uma decisão equivocada. É reconhecer sua liberdade de ser, de abrir uma nova possibilidade para sua vida e de reiniciar-se a si mesmo.
A pessoa misericordiosa salva e redime só enquanto ama: quer o bem do(a) outro(a) e se entristece com seu mal, sente o dever de fazer alguma coisa por ele(a). Trata-se da motivação mais nobre e verdadeira de sentir-se responsável pelo(a) outro(a).
Sua correção é fundamentalmente uma mensagem de estima e confiança no(a) outro(a), crer na sua amabilidade. Quem corrige está convencido de que o(a) irmão(ã) é melhor que aquilo que aparenta ser.
Por isso, a correção é aquela energia escondida nas palavras de Jesus: "Vai e não peques mais”. Força que realiza aquilo que diz.
No momento da correção fraterna, que é um momento de parto e de libertação, dá-se ao(à) outro(a) o direito de “ser um outro”, não o(a) aprisionando numa única possibilidade de ação e de decisão errada.
Tal correção é muito mais uma atitude de vida que pede um olhar mais amplo sobre o(a) outro(a), contem-plá-lo(a) a partir de outra perspectiva. É enxergar no(a) outro(a) não o mal que fez, mas sua verdadeira identidade de filho(a) de Deus.
Correção expansiva, que abre futuro; faz emergir outros recursos latentes na pessoa; é impulso de vida, pois destrava e coloca a pessoa em movimento, impulsionando-a a ir além de si mesma.
Na realidade, a correção fraterna deve fazer parte de nossa vida cotidiana, das relações familiares, de amizade, relações comunitárias... Ela não se restringe a um ato pontual mas deve se tornar um “modo de viver” no qual a outra pessoa é mais importante para nós que os atos equivocados que realiza. Por isso, buscamos seu bem, seu crescimento, seu desenvolvimento como pessoa, a partir do amor verdadeiro.
Bem vivida, a correção é das experiências mais enriquecedoras para ambas pessoas, porque o desafio não é só para aquele(a) que deve acolher a correção, mas também para aquele(a) que a realiza, pois, para este(a) implica maturidade, amor, bondade, liberdade e espírito de discernimento. Igualmente, este(a) deve ter consciência de que todos são “santos(as) e pecadores(as)” e, portanto, todos necessitam de pessoas amigas que as façam ver, com maior claridade, se desviaram do caminho por alguma causa.
Como costuma acontecer em tudo o que é humano, quem melhor sabe propor a correção fraterna é quem já a experimentou em sua própria pele e saboreou o bem que isso traz.
Podemos concluir afirmando: fazem parte da comunidade dos(das) seguidores(as) de Jesus, aqueles(as) que perdoam e se deixam perdoar, aqueles(as) que acolhem a mútua correção fraterna. Mas, aqueles(as) que negam o perdão (dar e receber), acabam se afastando da mesma comunidade.
Não é a comunidade em si que exclui o “irmão que pecou”, mas é este que se auto-exclui, porque não é capaz de entrar no fluxo do perdão.
Aqui aparece a grande novidade: a comunidade cristã é capaz de regular-se e criar comunhão a partir da autoridade do perdão do evangelho.
O centro é o perdão, sempre oferecido, acima da lei, como graça fundante.
Texto bíblico: Mt 18,15-20
Na oração:
Olhar cada uma das pessoas com quem convive.
Dar-se conta daquilo que sente para com cada uma delas, como as trata, como as acolhe...
Contemplar o outro respeitando-o em seu modo de ser, de agir, de pensar, de falar,
ajudando-o a ser mais humano no seu modo de ser, de pensar, de viver...
Observar e descobrir seus valores, suas riquezas, sua originalidade, sua profundidade; lentamente, mas com um olhar sereno e profundo... tentar descobrir “algo mais” presente em cada pessoa com quem convive (família, trabalho, comunidade); vê-la com os olhos do coração: imagem de Deus, amada por Deus, templo do Espírito, presença de Deus no mais profundo de seu ser.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O que poderá alguém dar em troca de sua vida?” (Mt 16,26)
O evangelho deste domingo é continuação daquele do domingo passado; também hoje, Jesus e seus discípulos se encontram em Cesaréia de Filipe, fora do território da Palestina. O que Mateus relata da boca de Jesus, nem sequer é aceitável para os seus seguidores. Jesus tinha acabado de felicitar a Pedro por expressar pensamentos divinos. Agora o critica duramente por pensar como os homens. A diferença é enorme e só umas linhas de distância, no mesmo evangelho.
Como Pedro, também nós, seguidores(as) de Jesus, ficamos escandalizados com a cruz. Nenhum de nós teria escolhido para Jesus esse caminho. Onde fica a imagem do Messias vitorioso, Senhor ou Filho de Deus?
Apesar das palavras de Pedro, no domingo passado, sua atitude diante do anúncio da paixão e morte de Jesus demonstra que, nem ele e nem os outros discípulos, entenderam o que significava a pessoa e a missão do Mestre de Nazaré. Queriam segui-lo, mas sem as consequências do seguimento.
Para compreender Jesus, é preciso deixar de pensar como os homens e começar a pensar como Deus; é deixar de ajustar-nos a este mundo e entrar em sintonia com o modo original de ser e de viver do próprio Jesus; é transformar-nos pela renovação da mente e abertura do coração. Para aceitar a mensagem de Jesus, temos de mudar radicalmente nossa imagem de Deus.
Quê significado tem para nós, hoje, a morte de Jesus na Cruz? Não é fácil entrar na dinâmica da Cruz. Mas, por outra parte, é impossível compreender a mensagem de Jesus sem compreender a Cruz. Ela é expressão de uma vida doada; por isso se converteu no “sinal chave de nosso seguimento”.
A vida é constantemente chamada a ser Páscoa. Porque, só na vitória da vida entregue, ela ganha sentido, avança, como uma torrente que rega terras secas, ávidas de água, como um fogo que, na noite mais escura, traz uma luz que permite vislumbrar a vida oculta.
A vida é movimento e, portanto, energia expansiva. Podemos consumi-la em benefício do ego (falso eu) e então vem o fracasso. Podemos re-orientá-la em benefício dos outros e da causa do Reino; e então, consumá-la, dando-lhe plenitude. Pois, só uma vida consumada faz fecunda a morte.
Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos sabem viver, porque incapazes de re-inventar a vida no seu cotidiano. Por isso, viver é uma arte; é necessário re-criar a vida no dia-a-dia, carregá-la de sentido.
A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira vida se libere. O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
De fato, aqueles que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança do conhecido e se dedicam apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros. Ter apego à própria vida é destruir-se; entregar a vida por amor não é frustrá-la, mas levá-la à sua completude. Aqui há uma inversão na lógica natural das coisas; ganha-se quando perde, vive-se quando morre, multiplica-se quando divide.
Estranhas atitudes estas que Jesus propõe, tão contrárias em uma cultura como a nossa que nos apresenta a apropriação e a acumulação como meta da existência. Ele, imperturbável, apresenta sua alternativa: perder, vender, dar, deixar, não armazenar, não reter avidamente, desapropriar-se, esvaziar-se, partilhar...
Perder-ganhar, morrer-viver, entregar-reter, doar-receber..., parecem dimensões ou realidades contraditórias, mas captar a profundidade da verdade contida nesta “contradição aparente” é descobrir o Evangelho.
“Morrer”, “perder”, “entregar”, “renunciar”... é este instante de ruptura, onde toda uma vida incubada, trabalhada no silêncio e no sofrimento, marcada de alegrias e tristezas, vitórias e fracassos, desponta luminosa para a vida eterna. Pois vida é um contínuo despedir-se e partir; ela nos desaloja de nossos “lugares estreitos” e nos faz caminhar em direção a novos horizontes.
A vida aumenta quando compartilha e se atrofia quando permanece no isolamento e na comodidade.
A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira Vida se liberte. É preciso passar pela morte do que é terreno, caduco, transitório (aderências afetivas, apegos desordenados...) para deixar emergir a vida interior, a vida divina, a vida de Deus em nós.
O essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”.
Como Jesus encarou a Cruz? Ele não buscou a cruz pela cruz. Buscou a fidelidade à sua missão que consistia em evitar a proliferação de cruzes, para si mesmo e para os outros. Pregou e viveu o amor e revelou as condições necessárias para que esse amor se tornasse realidade nas relações entre as pessoas.
Jesus anunciou a boa nova da Vida e do Amor e se entregou por ela. Quem ama e serve não cria cruzes para os outros; é o egocentrismo e a maldade que geram cruzes.
A realidade, dividida e conflituosa, se fechou à proposta de Vida apresentada por Jesus, impondo-lhe cruzes em seu caminho e finalmente O levantou no madeiro da Cruz.
Nela mesma, a cruz é aquilo que limita a vida (as cruzes da vida), que nos faz sofrer e dificulta nosso caminhar, por causa da má vontade humana (carregar a cruz de cada dia); ela é a corporificação do ódio, da violência e da exclusão humana. Mas Jesus continuou amando, apesar do ódio; continuou investindo sua vida a serviço da vida, apesar da cultura de morte na qual se encontrava. Assumiu a cruz em sinal de fidelidade para com o Pai e para com os seres humanos. Por isso, na vida de Jesus a Cruz é salvífica.
Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é conseqüência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai. que quer que todos vivam intensamente.
“Renunciar a si mesmo” e “carregar a sua cruz”, é entrar em sintonia e comunhão com Jesus, assumindo, com seu mesmo espírito, os sofrimentos que se seguem a uma adesão concreta e responsável à sua pessoa e à sua causa. É este seguimento fiel que nos introduz na cruz genuína d’Aquele que foi fiel até o fim.
A partir desta atitude de seguimento precisamos entender esse “renunciar a si mesmo” que Jesus pede ao discípulo. “Renunciar a si mesmo” não significa mortificar-se, castigar-se a si mesmo e, menos ainda, anular-se ou autodestruir-se. Nunca se deve confundir a cruz com atuações masoquistas, nunca alimentadas por Jesus. “Renunciar a si mesmo” é descentrar-se, sair de seus próprios interesses, para fixar a existência na pessoa de Jesus, a quem deseja seguir. É libertar-se de si mesmo para aderir radicalmente a Ele.
A mortificação tem um lugar importante na vida de quem segue a Jesus. Não qualquer mortificação, mas aquela que vai libertando a pessoa de seu egocentrismo, de sua comodidade ou de sua covardia para seguir mais fielmente a Ele. Buscar sofrimento para “agradar a Deus” não tem sentido; é tortura inútil, que alimenta nosso “ego” e nos afunda numa espiritualidade doentia.
A cruz tem sentido quando é consequência de uma opção autêntica de vida em favor da vida: por exemplo, quando sofremos por levar adiante uma causa justa, por defender as pessoas que são vítimas das estruturas sociais, políticas e econômicas injustas, por as-sumir a radicalidade na vivência do amor, lutando contra toda expressão de ódio, preconceito, intolerância..., por evitar o mal e denunciar uma injustiça, etc.
A cruz salva quando aponta para a vida.
Texto bíblico: Mt 16,21-27
Na oração: - “Fazer memória” de tantas mulheres e homens que se associaram à Cruz de Jesus, na solidariedade com os pobres, na fidelidade à vida evangélica, na descida aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos ter-renos contaminados e difíceis, às periferias insalubres, onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali se encontraram com o Crucificado, o “Justo e Santo”, identificado com os crucificados da história.
- Recordar as cruzes que apareceram na sua vida por causa da fidelidade ao Evangelho.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13)
Outra vez Jesus se retira com seus discípulos, agora para a região de Cesaréia de Filipe. Vão tratar assuntos que ultrapassam a problemática estritamente judaica; por isso, Mateus situa a cena em outro território, fora do espaço onde prevalece uma concepção do Messias estritamente nacionalista, para dar a entender que Jesus está aberto a outros povos.
De fato, Jesus entrou em conflito com a religião judaica e suas instituições (sinagoga, templo de Jerusalém). Ele não foi sacerdote, nem funcionário do Templo, nem ostentou cargo algum relacionado com a religião; não foi um mestre da Lei; Jesus foi um leigo. Fugiu de todo poder, e se preocupou especialmente em cuidar das pessoas mais pobres e marginalizadas. Não se preocupou em fundar estritamente uma religião.Cercou-se de pessoas, mulheres e homens, dispostos a continuar seu caminho, anunciando a mensagem do Reino de Deus, proclamando as bem-aventuranças como projeto humanizador, denunciando as opressões e injustiças e tornando realidade a salvação do Deus Pai e Mãe.
Este grupo de homens e mulheres acompanha Jesus em todas as partes, fazendo com Ele vida itinerante; mas também encontramos um grupo mais amplo de pessoas que, vivendo em suas casas e continuando em suas tarefas, são, no entanto, discípulos(as) de Jesus, apoiando-o, recebendo-o, seguindo-o. Todos eles formam o “movimento de Jesus”.
No evangelho deste domingo é a primeira vez que encontramos o termo “Igreja” para determinar a nova comunidade dos(as) seguidores(as) de Jesus. Mateus utiliza a palavra que na tradução dos setenta se emprega para designar a assembléia (“eklesia”). Evidentemente, Jesus não “instituiu” nenhuma “estrutura eclesial” propriamente dita: uma doutrina, uma liturgia, um governo... Jesus pôs em marcha um movimento de vida, que, através de muitas circunstâncias e vicissitude históricas, desembocará em comunidades organizadas e, muito mais tarde, em uma Igreja centralizada.
Jesus começou atuando sozinho, mas logo reuniu um grupo de discípulos em torno a si. Assim fizeram os grandes mestres na história da humanidade: Buda, Confúcio, Sócrates...
Professar nossa adesão à pessoa de Jesus de Nazaré, é entrar no movimento de vida iniciado por Ele, em torno à sua pessoa e à sua mensagem que cura e liberta de toda escravidão e dominação. Também nós nos sentimos e queremos ser discípulos(as) de Jesus. É o Reino de Deus que nos congrega, que reforça vínculos e nos faz comunidade. Seu movimento nos impulsiona e queremos impulsioná-lo. Move-nos a alegria, muitas vezes oculta, da mesma boa notícia e a esperança difícil do Reino de Deus.
Somos Igreja de Jesus. Mas, como é a “Igreja” que Jesus quis? É, antes de tudo, comunidade de pessoas, homens e mulheres que vão amadurecendo no seguimento d’Ele. E é comunidade totalmente aberta ao mundo, casa onde todos encontram lugar de acolhida e comunhão; uma “igreja em saída”. O que é radicalmente contrário ao Evangelho da fraternidade é o sectarismo, o fanatismo, o fechamento diante da realidade desafiante e a discriminação de toda e qualquer pessoa.
Também hoje, Jesus dirige a cada um de nós a mesma pregunta que um dia fez aos seus discípulos: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Ele não nos pergunta para saber nossa resposta teológica sobre a identidade d’Ele, mas para que revisemos nossa relação com Ele. Que podemos lhe responder a partir de nossas comunidades? Somos seguidores(as) da pessoa de Jesus ou só seguidores(as) de uma determinada religião, doutrinas, normas, leis? Conhecemos cada vez melhor a Jesus, ou O fechamos em nossos velhos esquemas doutrinários de sempre? Somos comunidades vivas, interessadas em colocar Jesus no centro de nossas vidas e de nossas atividades, ou vivemos estancados na rotina e na mediocridade?
Diante da pergunta de Jesus – “E vós, quem dizeis que eu sou?” – o Evangelho deste domingo realça a resposta de Pedro e a missão que Jesus lhe confere. Pedro é instigado a entrar no fluxo do amor-serviço do Mestre; e isso não pode ser confundido com “transferência de poder”. Pior ainda é quando confundimos o “poder das chaves” com a “chave do poder”. Quem tem a chave tem o poder.
Nenhum exercício do poder é evangélico; muito menos o “poder religioso”. Não há nada mais contrário à mensagem de Jesus que o poder. Jesus não transfere “poder” a Pedro; reforça nele a liderança para o cuidado e o serviço aos outros. Nenhum ser humano é mais que outro, nem está acima do outro. “Não chameis a ninguém de pai, não chameis a ninguém chefe, não chameis a ninguém senhor, porque todos vós sois irmãos”. A única autoridade que Jesus admite é o serviço.
Jesus não exerceu poder porque o poder nunca é mediação para a libertação do ser humano (seja poder político, religioso, ou qualquer outra expressão de poder). Jesus despoja-se do poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas”. Sua autoridade é caminho para o serviço e a promoção da vida. Por isso a autoridade de Jesus não tem nada a ver com o poder que domina ou a liderança que se impõe.
Jesus tem “autoridade” porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir. Jesus tem autoridade porque ativa a autoria e a autonomia no outro; sua autoridade desperta o melhor que há em cada pessoa; ela não cria dependência e nem tira do outro a capacidade de dar direção à sua própria vida. Quem tem “poder”, ao contrário, o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, impõe-se ao outro, decide por ele... O poder alimenta dependência e submissão.
O olhar profundo de Jesus levará Pedro também a se conectar com seu ser mais profundo (aquilo que é mais sólido), com sua realidade mais verdadeira, com os desejos de seu coração ainda não configurados pelo amor. Quando Jesus fixa o olhar em Simão, seus olhos descobrem no interior deste homem um nome escondido (Pedro), e ao pronunciá-lo, possibilita-lhe despertar essa vocação já inscrita no mais profundo de seu ser. Aqui começa para Pedro uma nova história, que já não será narrada por ele sozinho, mas em comunhão com Jesus, entre idas e vindas, fragilidades e fortalezas, tentativas no amor e fracassos...
Nas itinerâncias de Jesus, Pedro foi convidado a “fazer caminho com Ele”, começando pelo próprio interior; impactado pela ternura cuidadosa de Jesus em sua vida, Pedro irá sendo conduzido a descobrir-se, a ser cada vez mais consciente de si mesmo e adentrar-se por rotas novas de liberdade, de vida, de entrega...
Mateus faz um sugestivo jogo de palavras entre dois nomes gregos comuns: “petros” (pedra) e “petra” (rocha). “Petros” tem o significado de pedra comum, pedregulho, sem consistência; “petra”, por sua vez, significa rocha, pedra sólida sobre a qual se assenta um edifício. “Tu és petros e sobre esta petra...”
Aparece, então, a comparação-oposição entre a fragilidade e a pequenez da pedra frente à segurança e robustez da rocha. Pedro é “pedra” em sua fragilidade humana, mas é “rocha” em sua manifestação de fé. A rocha não é a pessoa de Pedro, mas a fé de Pedro. Sobre essa rocha-fé de Pedro Jesus deseja edificar sua comunidade de seguidores.
Nesse sentido, o Evangelho de hoje também nos ajuda a ler nossa vida. Ali afirma-se também a nossa identidade; e a nossa identidade se revela por aquilo que é sólido, consistente... no nosso interior, que não se desfaz com as adversidades do mundo no qual vivemos (crises, fracassos...).
Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal. Sobre essa “rocha” construímos nossa maneira de seguir a Jesus.
Texto bíblico: Mt 16,13-20
Na oração: Devemos aprender a olhar a vida e as pessoas como Jesus as olhava, ou seja, um olhar capaz de vislumbrar o mais humano e mais divino em cada um(a), um olhar que faz emergir a rocha consistente, sobre a qual construir um estilo de vida, à maneira de Jesus.
- Ao sentir-se olhado por Jesus, como Pedro, você é capaz de vislumbrar outros dons, recursos, capacidades... do seu próprio interior e que darão a solidez à sua própria vida? O que é “petra” no seu interior?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa” (Lc 1,56)
Descobrimos o sentido da Assunção de Maria não tanto contemplando o céu, mas a terra. Na terra não veneramos a tumba de Maria, nem celebramos funerais por ela, ou em sua memória. Embora possa parecer estranho, os santuários onde se venera a memória de Maria são, para nós, não lugares funerários, mas fontes de vida, espaços onde a sentimos vivente, mãe, mulher do serviço, cuidadora nossa.
Ascenção, Assunção são dois nomes que damos a esta experiência de presença transformadora. Em Jesus, e a partir de Jesus, Maria também “é assunta” e se faz presente junto a seus filhos e filhas. Sua bendita presença nos abençoa e nos enche de graça.
Maria “foi assumida por Deus” porque “desceu” ao mais profundo da vida, comprometendo-se e sendo presença solidária. Ela viveu a “assunção” em todos os momentos de sua vida, de maneira especial, quando se deslocou em direção aos outros. Por isso, o Evangelho, indicado para a festa de hoje, nos fala da “presença visitante” de Maria.
Maria fecha a porta de sua pequena casa em Nazaré e inicia, apressada, o caminho para a montanha, onde vivia Isabel. O impulso do seu coração movia velozmente seus pés. Este relato nos mostra o que é “visitar”.
Maria “saiu em visita” porque, antes, foi “visitada” pela presença surpreendente de Deus. Ela entrou no fluxo do “Deus visitador”, prolongando e visibilizando as visitas divinas. Ela foi “assunta” porque, nas suas “visitas”, ela “subiu e desceu” em direção aos outros, numa atitude de serviço gratuito.
Maria foi visitar; podia não ter ido. Isabel, com mais idade e grávida, seguramente estava bem atendida. Mas, Maria foi... para estar, escutar, partilhar, ajudar...
Visitar implica mover-se, para perto ou para longe, sair, pôr-se em marcha; abandonar o espaço de conforto, adentrar-se na realidade do(a) outro(a), na expectativa de que este(a) outro(a) abra a porta de seu espaço e de sua vida, entrando em profunda sintonia com quem o(a) visita.
É uma ação pessoal, uma atitude aberta, um estar atentos aos detalhes da vida próxima, do entorno. Visitar não conta nas estatísticas. É uma ação muito silenciosa que não requer estruturas organizativas, nem contratuais. Visitar exige irremediavelmente investir tempo, gratuitamente; quem tem tempo hoje para presenteá-lo desinteressadamente?
A pessoa visitada tem também sua vida “expandida”, pois, receber o(a) outro(a) implica mudar a rotina do seu cotidiano, acolher a nova presença que vem, dedicar atenção e escuta...
Se re-lemos com atenção o relato de Lucas, encontraremos Isabel, a prima de Maria, como protótipo de uma vida “visitada”, de uma existência que poderia fechar-se na pequena felicidade de sua fecundidade surpreendente; no entanto, ela abriu passagem a uma voz que vinha mais além dela mesma. Isabel escutou aquela voz e soube reconhecer Maria como a nova Arca da Aliança que carregava a salvação dentro dela. E Lucas realça o detalhe de que “a criança pulou de alegria no ventre de Isabel”.
Vamos nos deixar conduzir por Maria e vamos com ela “de visita” à casa de Isabel, para recuperar o sentido do “visitar” e “ser visitado” no nosso contexto atual.
Deus visita a nós e visita através de nós, assim como Ele nos visita por meio dos outros. Há uma infinidade de anjos mensageiros, cruzando nossos espaços cotidianos, inspirando-nos, ajudando-nos, movendo nossas vidas a saírem de seus lugares fechados, a romper muros, a ultrapassar fronteiras... A intolerância, o medo do diferente, a suspeita, o preconceito... são a morte de toda possibilidade de viver a “cultura da visita”.
Uma característica de nossa sociedade é o individualismo, o fechamento narcisista que nos centra e nos concentra em nosso “ego” como lugar preferencial de atenção, dedicação, cuidado e investimento de quase todas as nossas energias disponíveis. Neste contexto social em que vivemos, cada vez mais fragmentado e individualizado, as relações vão se tornando líquidas, restando as manifestações muito superficiais, reduzi-das, talvez, a um mero contato tecnológico através das redes sociais.
Temos a sensação de que, a partir de fora, tudo nos convida a viver auto-referenciados e surdos às vozes que nos vem do mais além de nós mesmos. Muitas forças externas a nós nos pressionam a reduzir nossa vida ao tamanho de um “bonsai”, a atrofiar os desejos até reduzi-los aos pequenos bens acessíveis e a conformar-nos com pequenas doses de prazer egoísta.
Mesmo numa vida fechada, também aí irrompem as “visitações”; Maria, a “visitante” e Isabel, a “visitada”, podem nos ensinar a reconhecer Aquele que nos visita e vem a nós escondido no humilde e insignificante. Aquelas duas mulheres grávidas, Maria e Isabel, cheias e fé e grandes expectativas, envolvidas no silêncio da promessa de Deus, se encontram e no mesmo instante do abraço, a palavra se faz presente com a intensidade da compreensão, da acolhida, da alegria e da intimidade partilhada.
A visita começa a dar fruto desde o primeiro instante se há uma boa predisposição. A atitude de quem vai ao encontro e quem acolhe é elemento primordial.
Elas estavam felizes. Isabel gritou de júbilo e “a criança saltou de alegria em seu ventre”. E Maria proclamou, exultante, a oração de louvor e agradecimento ao Deus da Vida. “O Magnificat recolhe a prece da orante que se descobre, desde a humildade, fecundada por seu Senhor dentro da História da Salvação” (Mari Paz Lopes).
O Magnificat é o grande resumo da experiência de Maria; Magnificat não é um parêntese: supõe tudo o que Maria viveu. É impossível conhecê-la sem saborear demoradamente estas palavras, que são a tradução dos seus sentimentos íntimos diante da nobre missão de ser a mãe do Salvador.
No Magnificat, Maria canta a sua própria história. E isso nos desafia a fazer o mesmo. Ninguém vive uma vida espiritual fecunda enquanto não for capaz de construir a relação com Deus como um diálogo vivo entre um “eu” e um “Tu”. A oração de Maria não é feita de fórmulas. Ela expõe a sua vida naquilo que diz.
Através do Magnificat Maria vai ter a oportunidade de prolongar o seu “sim”, revelando que conhece bem as suas implicações profundas. No Magnificat, Maria sai de seu silêncio e explica o que significa o seu consentimento a Deus. E faz isso da forma mais simples e verdadeira, interpretando primeiro a sua própria experiência de fé e ancorando-se, depois, naquilo que a História da Salvação lhe ensina sobre a ação de Deus e sobre a missão do Povo de Deus neste mundo.
Maria permaneceu em casa de Isabel “três meses e voltou para sua casa”. Moveu-se, investiu seu tempo e podemos imaginar quê maravilhosos três meses passaram juntas, vendo como a vida crescia dentro delas, cuidando-se, rindo, partilhando.... Deixemo-nos inspirar por este “ícone da Visitação”.
Texto bíblico: Lc 1,39-56
Na oração: Depois de empapar-se do evangelho deste dia é preciso perguntar-se: “o que me inspira o ‘movimento’ de Maria visitando Isabel? E se realmente, o fato de visitar, tem um significado em minha vida.
- Diante da situação pandêmica, quê outras formas de visita poderiam ser ativadas? São tantas as pessoas que estão esperando uma visita, mesmo virtualmente. Há muitas carências de abraços e de afeto.
- Recorde aqui as obras de misericórdia: duas delas se referem ao fato de “visitar” – “enfermos e presos”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.08.2020
“A barca, já longe da terra, era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário” (Mt 14,24)
Poderíamos dizer que o relato da “travessia tormentosa” é uma síntese da história de nossas vidas.
Seguramente as primeiras comunidades cristãs, como todos nós hoje, se identificaram facilmente com esse grupo de discípulos em meio a uma tormenta que sacode com força a barca em que estavam. Viver com Jesus ausente requer confiança absoluta, esperança firme e capacidade para descobri-Lo presente em sua aparente ausência. No envio que recebemos d’Ele para ir à outra margem é possível que nossa barca seja também sacudida pelos movimentos das ondas dos medos que nos fazem ver fantasmas, impedindo-nos reconhecer o Ressuscitado, caminhando ao nosso lado.
Todos compartilhamos, para além do tempo e do espaço no qual nos encontramos, a mesma bela e frágil natureza humana. Por isso, embora as circunstâncias que nos envolvem sejam diferentes, e certamente estas podem favorecer ou dificultar nosso seguimento de Jesus, reconhecemos que os verdadeiros obstáculos, para viver centrados n’Ele e comprometidos com seu Reino, não nos vem de fora, mas brotam de nosso próprio interior. E o maior deles é o medo.
Os medos acompanham nossa vida cotidiana. Quem se pergunta honestamente – o que eu temo? – re-conhecerá, sem dúvida, uma pequena ou grande lista de medos que o habitam, travando o fluir de sua vida.
Quando o ser humano quebrou sua aliança com Deus no Paraíso, o medo foi sua reação imediata. “Ouvi teus passos no jardim; fiquei com medo, porque estava nu, e me escondi” (Gen. 3,10).
O medo se instalou em seu coração. E o ser humano continua a temer através dos desertos e cidades, de dia e de noite, no coração e na sociedade..., onde quer que esteja; ele vive sob um medo constante, sentido com maior ou menor intensidade, mas sempre presente.
Medo dos passos de Deus e de seus próprios passos; medo de estranhos e de amigos; medo do futuro; medo do diferente; medo de seu corpo e da sua afetividade; medo de decidir; medo de se comprometer; medo de romper as amarras do passado; medo do novo; medo de viver e de morrer, medo de si mesmo. Uma longa cadeia de medos, da primeira à última respiração, nesta terra de sombras.
Todos os medos estão inter-relacionados e, qualquer que seja seu objeto imediato, todos têm em comum o sentimento sombrio do perigo ameaçador.
Sabemos que o medo deixa as pessoas vulneráveis à manipulação. Não existe depósito de munição mais potencialmente explosivo do que os estoques de medo nas escuras profundezas de suas vidas.
As pessoas ficam tensas e projetam estas tensões na realidade circundante. Encaram os outros como inimigos, e as oportunidades como ameaças. O trabalho é competição, e a vida, um campo de batalha.
O medo quebra o ritmo biológico e ataca os tecidos do corpo; ele nasce na mente, mas sua influência é sentida nos nervos, no pulso, nos músculos e na respiração.
As pessoas temem os perigos que conhecem e mais ainda os que não conhecem, mas os vislumbram presentes em cada esquina. Um medo que pode ser nomeado perde o terror e a capacidade de ferir; no entanto, um medo sem nome, um fantasma sem rosto, escuro como uma sombra e rápido como uma tempestade aumenta o pavor e paralisa a ação. Medo sem nome que assombra e queima as energias que poderiam ser canalizadas para algo criativo.
O medo distorce a percepção da realidade; ele gera muitos fantasmas e pré-juizos que, como conseqüência, maximizam os fatores objetivos causantes do perigo.
Sendo uma emoção primária, o medo, com freqüência, impede o discernimento e a busca da solução mais inteligente para os problemas; longe de resolvê-los, pode agravá-los a médio e longo prazo.
Quando o medo e a sensação de impotência impregnam nossa vida cotidiana, se aviva em nós a consciência permanente de “vulnerabilidade”. Não estamos preparados para acolher nossa fragilidade, nossa condição humana.
Enfim, o medo obscurece o sentido e a direção da vida, tira o brilho tão próprio do amor; ele nos acovarda e nos enterra na acomodação mesquinha.
É bom lembrar que o ser humano amadurece através do confronto entre desejo e medo. Não há medo sem um desejo escondido e não há desejo que não traga consigo um medo. O desejo e o medo estão ligados. Temos medo do que desejamos e desejamos o que nos faz medo.
DESEJO e MEDO: existe, na natureza humana, a tendência natural de ultrapassar o imediato, de caminhar para a “outra margem”... para arriscar novos horizontes; necessidade de afrontar o perigo, de tentar, de se aventurar... Mas existe também a tendência oposta de se poupar e de se acautelar, a necessidade inata de evitar o perigo, de se afastar dos obstáculos, de fugir das tempestades... O ser humano que confia é também o ser humano que teme; o ato de coragem carrega, também, o medo.
No nosso crescimento humano e espiritual, o medo não superado, ou desejo bloqueado, vão gerar tempestades. Ou, pelo contrário, o medo superado, o desejo desatado, vão permitir a maturação. E nossa vida evolui assim, através do nosso desejo de plenitude e o nosso medo de destruição (impulso de vida x impulso de morte).
Todos nós, no nível pessoal ou coletivo, vivemos experiências de tempestades; algumas como um “tsunami”, como este que vivemos no atual momento. Estamos diante de uma “onda nova” de risco e de vida, na madrugada de um dia que pode e deve ser de salvação: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!”
Uma coisa é sentir medo; outra, é permanecer paralisado com medo de arriscar e não aventurar por novas terras, na descoberta infindável que é a vida.
É preciso não ter medo do medo, e fazer dele uma mediação para o próprio crescimento, descobrindo o desejo de viver que se esconde atrás de cada medo. E que vai permitir ir mais longe.
As batalhas mais profundas do espírito (a quebra de limites da mente e do costume, o avanço sobre novos ideais e sonhos...) se conquistam com o atrevimento da coragem, com a força da fé, com a imaginação solta, com a criatividade livre e desimpedida.
Desafiando os medos aprende-se a ter coragem. Aceitar os medos é o caminho para tornar-se destemido. O conhecimento da própria fraqueza é a maior força.
Cada medo não resolvido é um peso na vida. É preciso descobri-los, identificá-los, nomeá-los e tomá-los como são até que se possa dissolvê-los em consciência e coragem.
Também a Igreja se mostra, muitas vezes, presa ao medo, matando seu espírito profético. Uma Igreja medrosa torna-se conivente com a cultura da violência e da morte. Enquanto mais teme, mais se fecha e se entrincheira atrás de normas, doutrinas, ritos...; e quanto mais se entrincheira, mais frágil se torna.
A grande comunidade dos seguidores de Jesus é chamada por Ele a viver contínuas travessias, a sair dos seus espaços estreitos e “normóticos” (normalidade doentia), a ser “provada” pelas tormentas e ventos contrários, a esvaziar sua barca de tantos pesos para poder fluir com mais leveza, levantando suas velas e aproveitando da força dos mesmos ventos.
É o mesmo Espírito de Jesus que sopra as vê-las da grande barca, conduzindo-a para a “outra margem”, a margem do compromisso em favor da vida.
Texto bíblico: Mt 14,22-33
Na oração: Entre na barca de sua vida, em companhia do Senhor; deixe que a presença d’Ele desmascare os medos que atrofiam sua identidade e originalidade.
- Dê nomes aos seus medos; nomeá-los, já é dar o primeiro passo para não se deixar determinar por eles.
- O que você faria, se não tivesse medo?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Os discípulos distribuíram os pães às multidões” (Mt 14,19)
Poderíamos dizer que o relato do Evangelho deste domingo é uma parábola em ação.
A cena acontece em um “lugar despovoado”, afastado da vida cotidiana organizada segundo o pensamento da sinagoga e a lógica dominadora do império. Sair do centro, ou ser deslocado do centro, pode ser uma vantagem à hora de perceber o que Deus realiza em nossas situações concretas.
Quando Jesus e seus discípulos vão pelo mar, a multidão sai caminhando ansiosamente por terra e os alcança. Jesus é ponto de confluência de todas aquelas fomes, dispersões e diferenças. É o povo pobre das pequenas aldeias que está sofrendo grandes injustiças e muita pobreza.
De alguma maneira, este “fora” evoca a saída do povo judeu do Egito ao deserto, onde se encontrou com Deus numa experiência que o fará passar de multidão dispersa de escravos a um povo unido e livre.
O povo tomou distância com relação ao seu mundo rotineiro e agora se encontra com Jesus, que encarna a novidade de Deus ao alcance da mão. Também pode ser o “fora” de todos os excluídos da história que se encontram com Jesus, tornando realidade o sonho do Reino: o mundo da igualdade e da comunhão.
Jesus, nos diz o relato, primeiro sente compaixão das multidões, e depois convida a partilhar.
Em contraste com atitude compassiva do Mestre, os discípulos, percebendo a hora avançada, pedem que as multidões sejam despedidas para que comprem pão e se alimentem. Esta é a lógica desumanizadora: devolver as pessoas às suas próprias possibilidades limitadas, à escassez e à privação que a sociedade as relegou. Os discípulos são sensíveis à fome do povo empobrecido, mas o deixam à mercê de seus próprios recursos. Não conhecem outra solução.
Jesus abre outra lógica: a da partilha, frente à lógica do mercado, da apropriação e da acumulação.
Os produtos da terra estão situados na lógica do amor, que é a única força transformadora da história. Esta é a utopia do Reino: um povo reunido harmoniosamente pela mesma busca faminta e pela mesma saciedade, onde os alimentos da terra, produzidos com esforço, são compartilhados com todos, sem que ninguém negocie ou acumule.
Tudo aparece reconciliado: o cosmos, com a natureza verde e em paz; os produtos do trabalho humano, da generosidade do mar e da terra; e as pessoas, em uma relação entre elas mesmas e com Deus sem exclusões, competições nem privilégios. Isto é possível porque todos se deixaram afetar pelo dom do mesmo Reino que cresce já no coração de todos.
Só será efetiva a nova comunidade quando pães e peixes entrarem na lógica do Reino. Sem oferecer o próprio pão, os próprios recursos, a própria pessoa, não há possibilidade de construção do Reino de Deus.
Jesus não pediu a Deus que solucionasse o problema da fome, e sim, mobilizou os seus discípulos para que encontrassem uma saída diante daquela penúria. E a saída está na capacidade de partilha de todos.
Também aqui é preciso “ouvidos” e “olhos” bem abertos para encontrar a chave de compreensão da cena. Há um risco de permanecermos na superfície do relato, assombrando-nos com o prodígio da “multiplicação dos pães”. Na realidade, não foram os pães que “se multiplicaram”, mas a generosidade da partilha do alimento.
O certo é que, tudo o que as pessoas tinham, foi colocado à disposição de todos. Esta atitude desencadeia o prodígio: a generosidade se contagia e realiza o “milagre”. Quando se deixa de monopolizar os bens, eles chegam a todos. Quando os bens imprescindíveis para a vida são monopolizados, provoca-se a miséria, a fome, e a morte. Na intenção do evangelista, Jesus demonstra, deste modo, que o problema não é a carência de recursos, mas a falta de solidariedade.
Realmente foi um verdadeiro “milagre” que um grupo tão numeroso de pessoas compartilhassem tudo o que tinham até conseguir que ninguém ficasse com fome. Porque o texto não fala de “multiplicar” o alimento, mas de “dividi-lo”: quando ele é partilhado, costuma sobrar. Que acontece com os pães e os peixes nas mãos de Jesus? Não os “multiplica”. Primeiro, bendiz a Deus e lhe dá graças: aqueles alimentos vem das mãos de Deus: são para todos.
A dinâmica normal da vida nos diz que o “pão”, indispensável para a vida, deve ser adquirido com dinheiro, porque alguém o monopoliza e não o deixa chegar ao seu destino, a não ser cumprindo algumas condições que, aquele que monopolizou, impõe: o “preço”.
O que Jesus faz é livrar o pão desse monopólio injusto. O olhar voltado para o céu e a benção são o reconhecimento de que Deus é o único dono do pão e que a Ele é preciso agradecer este dom. Liberado do monopólio, o pão, imprescindível para a vida, chega a todos sem ter que pagar um preço por ele. Em seguida, Jesus, com suas mãos solidárias, vai partindo os dons e entregando-os aos discípulos. Estes, por sua vez, prolongam as mãos de Jesus, e vão distribuindo os pães e peixes à multidão; estes alimentos vão passando de mãos e mãos, de uns aos outros. Assim, todos puderam saciar sua fome.
A multidão dispersa, transformada pelo encontro com Jesus, já é capaz de sentar-se em grupos ordenados sobre a relva, iguais, sem divisão em hierarquias, que costuma criar fissuras na comunhão. Jesus pede que todos se assentem sobre a relva para celebrar uma grande refeição. Rapidamente, tudo muda. Aqueles que estavam a ponto de se separar para saciar sua fome em sua própria aldeia, se assentam juntos em torno a Jesus, para partilhar o pouco que tem.
Os que tinham algo para comer também foram repartindo com os outros. Na realidade, o verdadeiro milagre foi o da partilha, onde as pessoas famintas não se lançam vorazmente sobre os pães numa luta para conseguir os alimentos escassos. Compartilhar gratuitamente com os outros, com desconhecidos, e não acumular o que sobra, isso sim é milagre.
Em cada migalha de pão, em cada pedaço de peixe, há uma história de amores e trabalhos que vão passando de mão em mão, sem cobiça devoradora. Os bens deste mundo, carregando dentro uma vocação fraterna e universal, são dons para todos.
Nesta refeição de todo o povo sobre o campo verde não se discrimina ninguém, não se pergunta a ninguém pelo seu passado, sua profissão ou sua situação moral. Todos são acolhidos como expressão das entranhas compassivas de Deus, que chama todos a compartilhar na Sua Grande Mesa festiva. Todos se sentem pessoas dignas e amadas. É a grande refeição da inclusão de todos.
Algo inaudito está começando nesse povo com a chegada de Jesus. No Reino de Deus só há uma Mesa, à qual todos são convidados, sem discriminação sem exclusão de nenhum tipo. É assim que Jesus quer ver a nova comunidade humana.
Temos nas mãos e no coração a opção de viver “em chave desumanizadora” (“despede as multidões!”) ou “em chave de benção” (“os discípulos distribuíram os pães às multidões”), descobrindo na vida, para além de sua fragilidade, a presença que fazia Jesus estremecer-se de compaixão quando sentia a dura situação dos prediletos do Pai.
Assim quis Deus que nossas mãos fossem a presença e o sinal de Suas mãos criadoras, que acolhem e cuidam da mãe Terra e da vida das pessoas. Somos as mãos de Deus, não só para alimentar, mas para acariciar e curar, para cuidar do planeta terra, nossa casa, para “multiplicar vida”...
Texto bíblico: Mt 14,13-21
Na oração: quais são as duras situações das pessoas do mundo atual que fazem emergir novamente o apelo de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer”.
Deus torna visível suas mãos através de nossas mãos abertas e que compartilham. Onde você percebe que pode ser a mão bendita de Deus que atua em favor da vida?
Quando ouvimos em nossas eucaristias o grito de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer”?
Nós, depois de anos seguindo a Jesus, o quê somos capazes de partilhar?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo” (Mt 13,44)
As parábolas são uma expressão de surpresa diante da vida, que nos ultrapassa sempre, fazendo-nos capazes de pensar de um modo diferente, captar o outro lado da realidade concreta e abrir-nos à dimensão da transcendência. Dessa forma, elas recolhem e desvelam a vida real dos homens e mulheres de cada tempo, movendo-os a assumir uma atitude mais aberta e mais comprometida com a situação onde estão envolvidos. Isso significa acolher o dom e a missão do Reino.
Em geral, as parábolas evocam experiências desconcertantes e em quase todas elas se revela um dinamismo que rompe os esquemas “normais” da vida, conduzindo o ouvinte (ou leitor) a um outro patamar, mais inspirador e desafiante. Elas removem a vida, arrancando-a da “normose” (normalidade doentia) e despertando outros recursos internos, que não foram ainda mobilizados. Assim, esta mesma vida, começa a adquirir um outro sabor e um outro sentido.
O Evangelho deste domingo recolhe duas pequenas parábolas fulgurantes de Jesus: uma do tesouro e outra da pérola. São relatos de uma enorme eficácia. Elas nos situam frente a uma experiência desencadeante de vida, frente à surpresa de Deus, e assim expõem e põem em marcha o caminho do Reino. Elas também nos situam diante da máxima riqueza e exigem, ao mesmo tempo, o maior desprendimento.
São imagens que pedem radicalidade, ou seja, “vender tudo” para adquirir o tesouro ou a pérola.
Mas, quase não percebemos que há um passo prévio: a descoberta, a iluminação interior, o ver clara-mente. Tanto o caminhante pelos campos como o comerciante de pérolas, vendem tudo porque se convenceram de que o investimento valia a pena.
Nestas duas pequenas parábolas, são apresentadas duas opções para que cada qual possa identificar-se: ou é aquele que encontra inesperadamente o tesouro e compra o campo, ou é aquele que tem a vocação de comerciante e percorre o mundo procurando pérolas preciosas.
Uns serão aqueles que vão passear, deixando-se surpreender pela vida e pelos acontecimentos, sem perder a capacidade de assombro, de entusiasmo, de admiração. A pessoa de nossa parábola, ao ser encontrada pelo tesouro, “sai” de si para vender quanto tem, procura o proprietário e compra aquele campo. Mas também percebemos que faz tudo isso a partir de dentro, como se houvesse conectado com algo pessoal e íntimo, que lhe permite “sair” do mais profundo de si mesmo. E esse duplo movimento é carregado de uma plenificante alegria.
Outros serão de mentalidade “comercial”: encantam-lhes a aventura, a busca, a estratégia. Não nasceram para estar quietos, nem para se conformar com boas e bonitas pérolas. O específico seu é continuar viajando e buscando sempre a pérola maior até encontrá-la. E quando a encontram, compram-na, e continuam buscando sempre. Porque isso é próprio de um comerciante: apostar, comprar, vender, às vezes ganhar, outras vezes perder... A pérola também sai ao encontro daquele que busca.
A decisão e o risco que assumiram, tanto o comerciante de pérolas quanto o nosso caminhante pelos campos, mudaram suas vidas. O tesouro e a pérola continuarão sendo valiosos, quer eles vivam com fidelidade e paixão ou não. O que os transforma não é o tesouro ou a pérola em si, mas a atitude e a decisão que tomam, atraídos por eles. É um tesouro e uma pérola que exigem uma transformação do antigo e conhecido passado para um novo e desconhecido futuro.
Quando a pessoa se fecha às surpresas da vida, ou quando deixa de esperar algo bom e precioso, ela se invalida para ser descobridora de tesouros ou buscadora de pérolas.
Para deixar-nos encontrar pelo tesouro e pela pérola é preciso deslumbrar-nos, fascinar-nos, encantar-nos, apaixonar-nos. Parece simples, mas é muito aberto e evocador. “Aquilo pelo qual nos encantamos mobiliza nossa imaginação e acaba por deixar sua marca em tudo”, dizia Pe. Pedro Arrupe.
E como encantar-nos? Não é só questão de vontade, mas de viver com os olhos abertos, atento à realidade, externa e interna, ser poroso para que nos deixemos encontrar pela pérola preciosa e pelo tesouro escondido; diante deste surpresa, não poderemos deixar de ficar fascinados.
E então, sim, estaremos dispostos a queimar barcos, vender tudo, dar o salto. Talvez nosso maior problema é que, na realidade, o que nos interessa são nossas posses, poder, objetos, apegos à auto-imagem e não descobrimos ainda o tesouro escondido e a pérola fina, que não estão distantes de nós; pelo contrário, encontram-se no mais profundo de nós mesmos.
“Descer” ao chão de nossa interioridade é a oportunidade para descobrir regiões novas e novos horizontes, para conhecer o reino interior, para encontrar a riqueza interior e assim experimentar a transformação. O caminho para uma nova qualidade de vida passa pela “descida” aos campos de nosso coração. Isso requer coragem para passar por todas as regiões, mesmo as sombrias, e chegar ao mais profundo. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido. Lá no fundo, encontra-se um bem precioso que podemos levar conosco, que nos ajuda em nosso caminho e que nos faz totalmente originais e criativos.
É preciso “descer” até o fundo para descobrirmos uma nova riqueza para a nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida.
Trata-se de despertarmos, de escavarmos, de avançarmos em direção ao “veio de ouro” e de sabermos que este não é nossa propriedade; ele nos é oferecido como dom. Não basta falar de “pedra preciosa”, é também necessário “escavar” nosso “chão interior”, alargar nosso coração, garimpar em direção às riquezas que estão no eu mais profundo, assim como o “fio de ouro” no meio dos cascalhos.
Cada um de nós possui uma fonte inesgotável de qualidades-habilidades; podemos dizer: “somos um presente”, um valor para os outros. A vida sempre está oculta nas profundezas. A pessoa superficial é aquela que se confunde com suas ideias, coisas... A pessoa do “eu profundo” é aquela que vive a partir da raiz, da fonte mesma da vida, e deixa vir à tona todas as suas riquezas, dons, capacidades...
É no coração que existem, em abundância, os aspectos positivos de nossa personalidade, os talentos naturais e as boas tendências. Aí se aninham imensas riquezas que se exprimem de maneira diferente, dando a cada um, uma fisionomia própria, um caráter único.
Esta região profunda coincide com o mundo das certezas, dos valores, das ideias-força... que formam o eixo da nossa existência, o melhor de nós, o lugar de nossa recuperação e de nossa realização, o positivo que nos solicita continuamente a nos tornar o que devemos ser.
A força da transformação, portanto, nós não a encontramos na superfície ou distante de nós, mas sim, nas profundezas. Para ter acesso à riqueza no interior de nós mesmos, podemos imitar, simbolicamente, os hábitos dos pescadores de certo atol do Pacífico. Eles vivem pauperrimamente sobre uma terra desprovida de vegetação e açoitada pelos ventos; mas o fundo do seu mar é muito rico em pérolas.
Desenvolveram aí aptidões excepcionais para o mergulho; descem sem qualquer aparelho, ao fundo do mar, localizam as pérolas, arrancam-nas, trazem-nas para a superfície, atiram-nas no barco, para depois mergulharem de novo.
Este é o caminho da verdadeira espiritualidade: “descer” até o fundo, mergulhar no oceano interior onde estão escondidas as pérolas que dão significado e sentido às nossas vidas.
Encantados com a descoberta, trazê-las à tona e colocá-las a serviço dos outros, multiplicando-as.
Textos bíblicos: Mt. 13,44-52
Na oração: Para realizar-te e desenvolver toda a tua potencialidade, busca, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de teu ser, o núcleo original de tua personalidade.
- Olha no profundo de teu coração, olha no íntimo de ti mesmo, e pergunta: “tenho um coração que deseja o maior (“magis”) ou um coração adormecido pelas coisas? Meu coração conserva a inquietude da busca ou deixa-se sufocar pelos apegos, que acabam por atrofiar-me?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Deixai crescer um e outro até a colheita!” (Mt 13,30)
Jesus costumava contar parábolas com frequência e as pessoas gostavam de ouvi-lo; suas parábolas, brotavam do chão da vida, estavam carregadas de vida e comprometiam as pessoas a viverem de um modo diferente, deixando-se inspirar por Aquele que é Fonte da Vida. Como relatos instigantes, as parábolas faziam emergir uma nova imagem de Deus e uma nova imagem do ser humano.
Sabemos que as imagens, que cada um guarda em seu interior, tem um peso e marcam a vida: elas podem fazer adoecer ou ativar uma vida sadia, podem alimentar medos ou despertar coragem, podem estreitar a vida ou expandi-la.... Todos temos experiências das funestas consequências das falsas imagens de Deus, que acabam alimentando, em cada um, uma auto-imagem atrofiada e paralisante. Jesus, com suas parábolas provocativas, desejava quebrar tais imagens nocivas e substitui-las por outras saudáveis.
Para isso, Ele usa uma pedagogia para nos provocar e dirigir nossa atenção para algo específico, que nos inquieta: quando nos sentimos incomodados com Suas imagens, isso significa que estamos sendo confronta-dos com imagens falsas de Deus e de nós mesmos, petrificadas em nosso interior. Algum aspecto nosso, que até então havia permanecido na sombra, é iluminado; agora somos capazes de nos ver de modo diferente. Essa transformação interior, de nossa visão e de nossos sentimentos, não pode ser alcançada por meio de meras palavras de ensinamento. Para isso, precisamos da arte das parábolas, pois elas desvelam, põem às claras, situações e modos fechados de viver, visões distorcidas, falsas verdades, ideias atrofiadas, crenças vazias..., que nos dão uma sensação de segurança e temos resistências em abrir mão de tudo isso.
Como muitas outras parábolas, também a do “joio e do trigo” é um relato provocativo. Não só porque parece ir contra o “senso comum”, que aconselha arrancar o joio que impede o crescimento do trigo, mas porque é também uma resposta às críticas que o próprio Jesus recebia por sua atitude com relação àqueles que a religião tinha excluído. Não em vão Ele foi acusado de ser “amigo de publicanos e pecadores”.
Por outro lado, a parábola pode deixar transparecer as inquietações da comunidade de Mateus, preocupada por separar com clareza os “bons discípulos” daqueles que não eram. Como tantos grupos humanos, a tentação é marcar uma linha divisória, entre o “trigo” e o “joio”. Essa separação, no interior da comunidade cristã, acaba se projetando nas relações sociais, políticas, econômicas, culturais..., criando “muros” e “fronteiras” que esvaziam o processo de humanização.
Pois bem, seja porque se refira à vida histórica de Jesus, seja porque se tenha adaptado para responder a alguma polêmica comunitária posterior, o certo é que a mensagem da parábola não deixa lugar a dúvidas: “deixai crescer um e outro até a colheita!”. Por isso, a atitude sábia de deixar o “trigo e o joio crescerem juntos”, nos remete precisamente ao que temos de fazer com o nosso próprio “joio”: aceitá-lo, acolhê-lo, integrá-lo, reconhecê-lo como nosso, sem reduzir-nos a ele e sem nos deixar determinar por ele. Tal atitude implica um crescimento em integração e em humildade. Por mais estranho que pareça, a aceitação do “joio” nos humaniza, pois nos faz descer de nosso pedestal egóico – feito de exigência, perfeccionismo e de complexo de superioridade – e aproximar-nos de nosso ser verdadeiro.
Quanto mais nós nos conhecemos e conhecemos o Sol que nos habita (Deus), mais nos integramos e mais nos humanizamos.
Humanizar-se, não no sentido de ser mais virtuoso, brilhante, bem-sucedido, perfeccionista... Humanizar-se é também a capacidade de acolher-se frágil, vulnerável e, ao mesmo tempo, ativar o vigor, ser criativo, resistir, poder traçar caminhos... Fazer a síntese entre ternura e vigor.
Não pretendamos, pois, arrancar o joio; demonstremos com nossa vida que, ser trigo, é mais humano.
Nossa vida está repleta da graça divina. Vivemos mergulhados na Graça que nos santifica.
Ser santo(a) é viver em plenitude nossa humanidade. É aprender a descobrir e a redescobrir a “presença de Deus em tudo e tudo em Deus” (S. Inácio).
Já foi dito que o ser humano nunca é tão grande como quando sabe reconhecer e aceitar sua fragilidade, sua limitação... Reconhecer e aceitar sua própria “humanidade”, diante de Deus e dos outros, significa percorrer um caminho em direção a uma visão positiva, madura e profunda de si mesmo.
Com isso, já não desperdiçamos as nossas energias para tentar, inutilmente, afastar de nós algo que faz parte de nossa vida e que devemos aprender a integrar, a preencher de sentido, a transformar...
Às vezes, no mal que queremos extirpar, há um bem que não sabemos descobrir.
Com efeito, temos sempre a tentação de querer extirpar logo e totalmente o “joio” do nosso coração, arriscando-nos a arrancar com ele, pela raiz, os germes do bem que estão crescendo com dificuldade e que exigem uma atitude muito diferente, isto é, paciência e delicadeza, capacidade de intuição e clarividência, disponibilidade para alimentar uma sadia tolerância para conosco.
Todo este processo de integração interior se faz visível na integração com os outros com quem convivemos.
Parece claro que, nós seres humanos, ficamos incomodados com o “diferente”, com aquele que sente, pensa e crê de outra maneira. Se a isso agregamos a necessidade de “ter razão”, característica do ego, pode-ríamos explicar a origem de tantas intolerâncias, fanatismos, juízos, processos inquisitoriais e condenações... Tanto as religiões, como os grupos sociais, insistem em ter tudo bem clarificado e estabelecido, para evitar sobressaltos. Detrás de tudo isso, o que se busca é assegurar a sobrevivência e defender-se da ameaça da insegurança ou da necessidade de mudanças. Sair das próprias posições e convicções, no campo religioso, social, político, cultural...é, para muitos, um processo doloroso.
A parábola que estamos comentando (joio e trigo) é um chamado à tolerância e à paciência. A virtude da tolerância não é sinônimo de “bonzinho amorfo”, nem constitui um relativismo suicida. Tolerância é respeito e valorização da pessoa, acima das diferenças, acima das atitudes contrárias e inclusive, segundo Jesus, frente às agressões recebidas: “Amai vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem”.
A personalidade fanática tende a ver a realidade dividida completamente em duas: tudo é branco ou preto, verdadeiro ou falso, bom ou mau, “trigo e joio”; para ela, não existem outras tonalidades. Por isso, ela se converte em juiz implacável que “salva” ou “condena”, assume atitudes fascistas ou nazistas, com a ilusão da raça pura, da ideologia pura, da religião pura...
Niels Bohr, um dos grandes iniciadores da física quântica, afirmou que “o oposto de uma verdade profunda pode ser também outra verdade profunda”. E para ele não se tratava de uma crença ou de uma opinião pessoal, mas de uma constatação, fruto de seus experimentos com partículas sub-atômicas.
Há um fato inegável: ninguém é igual a outro, todos temos algo que nos diferencia. Por isso existe a biodiversidade, milhões de formas de vida. O mesmo e mais profundamente vale para o nível humano. Aqui as diferenças mostram a riqueza da única e mesma humanidade. Podemos ser humanos de muitas formas e devemos ser tolerantes, como toda a realidade é tolerante. A intolerância será sempre um desvio e uma patologia e assim deve ser considerada.
Texto bíblico: Mt 13,24-43
Na oração: O rigorismo não faz parte do caminho da Graça; o caminho da graça se chama compreensão e tolerância. A melhor resposta é dar a oportunidade para que o trigo amadureça; a melhor solução é abrir possibilidade para que o joio seja transformado. É questão de saber esperar. E disso, o amor é especialista.
- Frente ao “joio” presente em seu interior, que atitudes assume: auto-julgamento? moralismo? intransigência?
- E frente ao “outro”, que “pensa, sente e ama de maneira diferente”, como você se situa?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Mas, quando o sol apareceu as plantas, ficaram queimadas e secaram, porque não, não tinham raiz,” (Mt 13,6)
As parábolas são um relato provocativo e aberto, que envolvem o ouvinte ou o leitor; elas não exigem explicações, mas uma resposta pessoal, vital; move a assumir uma atitude frente a alternativa de vida que propõem. Se não toma uma decisão, é sinal que a pessoa já definiu sua postura: continuar com a própria maneira de ver e viver a realidade.
O objetivo das parábolas é substituir uma maneira de ver o mundo, míope e limitado, por outra, aberta a uma nova realidade, cheia de sentido e de esperança.
As imagens de sementes, árvores, terreno..., dão o que pensar; questionam nossa maneira de ser, nos convidam a descer ao nosso chão existencial, a olhar o mais profundo de nós mesmos e da realidade que nos cerca, e descobrir ali ricas possibilidades.
Cada planta procura seu chão. Não se desenvolve em qualquer lugar. Exige nossa atenção: é preciso conhecer o chão onde ela é plantada, observá-la, cuidá-la...
Cada chão tem uma palavra a nos dizer; o novo vem das raízes, vem de baixo, da base, do chão. Na experiência espiritual, somos motivados a mergulhar no terreno da interioridade, como as raízes na obscuridade da terra, na presença do silêncio.
Aqui o caminho para Deus é “descer” ao nosso próprio chão e viver a comunhão universal. Subimos rumo ao Transcendente quando descemos ao nosso chão da vida. O movimento de enterrar profunda-mente as raízes possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio.
Faz-se necessário, portanto, lançar raízes no mais profundo de nós mesmos e despertar todas as energias criativas, todas as grandes motivações adormecidas, toda bondade aí presente, toda decisão de assumir como cooperadores e artífices de um novo tempo.
Temos uma identidade que funda suas raízes na família, no povo, na cultura de origem. Outra, que provém das opções de nossa liberdade, de nossas decisões. E um terceiro nível de identidade que nos vem da fé quando, progressivamente, como uma árvore, vamos “subindo” em direção a um novo sentido para nossa própria existência, deixando-nos conduzir pela força do Espírito presente no chão de nosso eu profundo. Desse enraizamento é que surgem os frutos surpreendentes, “à base de cem, de sessenta e de trinta por semente”.
Somos, portanto, seres de enraizamento e de abertura. “O ser humano é criado para...”, afirma S. Inácio. A raiz que nos limita é nossa encarnação na realidade. A abertura que nos faz romper barreiras e ultrapassar os limites, impulsionando-nos à busca permanente por novos mundos, é nossa transcendência. Ninguém segura os pensamentos, ninguém amarra as emoções, ninguém detém os sonhos... O desafio consiste, então, em manter juntos o enraizamento e a abertura. Encarnados, mas abertos à transcendência.
Nesse sentido, transcender não significa fugir da própria realidade, mas mergulhar na própria condição humana; “transcender é humanizar-se”.
A tradição judeu-cristã fala em “trans-descendência”. Somos convidados não apenas a superar e a voar para cima, mas, fundamentalmente, a descer e a buscar o chão. É a experiência da Encarnação: o Deus que envolve toda a realidade, emergiu do chão da realidade e da história. É o Amor que desce.
Ao entrar no “fluxo da descida” de Deus, somos desafiados a deixar a superfície banal e descer às dimensões profundas da nossa existência humana. Nessas águas, não nos afogamos; respiramos fundo e revitalizamo-nos. Por isso, somos chamados a superar ambiguidades, a escolher rumo construtivo, a definir nossa identidade pessoal e a optar por causas humanas que nos fazem transcender.
Somos impulsionados a mergulhar na própria existência humana “misteriosa”, e contar com a inteligência criadora, com a liberdade fecunda, com o coração ardente e com mãos mobilizadas para o serviço.
Na “parábola do semeador”, Jesus compara nosso interior com um campo dotado de diferentes “espécies” de terra, mas habitado por uma semente de vida. A semente é poderosa e eficaz. Mas estão em jogo nossa acolhida e nossa receptividade: podemos permanecer no nível da superfície; podemos nos deixar prender por outros interesses ou prioridades sensíveis; ou podemos nos abrir às dimensões mais profundas de nós mesmos, à nossa “terra boa”, ao nosso “bom lugar”. Lida dessa perspectiva, a parábola não nos deixa indiferentes; motiva a nos questionar sobre a partir de onde nós estamos vivendo e, para chegar à resposta adequada, convida a nos fixar nos frutos que saem de nós.
A experiência espiritual cristã implica, portanto, “mergulhar os pés no chão da vida”.
É na obscuridade da terra que a planta vai buscar a força que a manterá viva, que lhe dará condição de expandir sua copa em direção à imensidão do céu. As raízes mergulham na terra de modo profundo, silencioso e lento. Expressões do nosso cotidiano como “pôr os pés no chão”, “estar com os pés na terra”, significam enraizar-nos e comprometer-nos com a realidade que nos afeta.
No “chão”, à primeira vista, estão todas as sujeiras, os detritos e as coisas em decomposição. Mas, para as raízes, tudo isso significa o alimento da vida.
Um “chão” é sempre mais do que um simples chão: cada “chão” revela lembranças, referências, ansiedades, medos, saudades...; cada “chão” guarda histórias, presenças e tem força de memória. Há vidas, pessoas, caminhos, acontecimentos, experiências...
Chão amplo é convite a sonhar alto, a pensar grande, a aventurar-se...; ousar ir além, lançar por terra o modo arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos.
“Chão humano e humanizante”, porque carregado da presença divina.
É o ser humano mesmo o verdadeiro chão a partir do qual Deus se deixa encontrar e se dá a conhecer; cada pessoa é o autêntico chão da eterna presença de Deus.
Geralmente caímos na armadilha de acreditar que dar fruto é fazer obras grandes. A tarefa fundamental do ser humano não é fazer coisas, mas “fazer-se”. “Dar fruto” seria dar sentido à nossa existência de modo que, ao final dela, a criação inteira possa estar um pouco mais perto da meta, graças à nossa presença nela. Não se trata simplesmente de ativismo, mas de engendrar, de gestar algo novo, viver o Evangelho como novidade. Uma coisa é ter êxito e outra é ser fecundos, gerar vida.
Este é o desafio: gerar o novo a partir de dentro de nós mesmos, como se o sugássemos da terra com nossas raízes, para que nossas palavras e nossas ações sejam originais e criativas, e revelem uma força transformadora, com impacto na realidade onde nos encontramos.
Na fecundidade há espaço para o “mistério”. A fecundidade tem lugar no oculto, nas entranhas da terra. A fecundidade supõe confiança e abandono, uma atitude aberta e serena, sem ansiedade nem tensão, sem deixar-se desanimar pela insignificância dos primeiros resultados.
Viver em chave de fecundidade supõe aceitar ritmos, tempos longos como se dão na natureza. As plantas necessitam tempo para florescer e meses para crescer. Isto supõe excluir toda impaciência.
A fecundidade perdura e aumenta com os anos, embora as forças físicas se debilitem.
Texto bíblico: Mt. 13,1-23
Na oração: “Pensamos e sentimos a partir do lugar onde nossos pés estão plantados”. Onde seus pés estão plantados? O seu “ter-reno cotidiano” tem facilitado ou dificultado o surgimento de novos frutos?
- Vivemos em um contexto marcado pela cultura da superficialidade, da aparência... Onde está enraizada sua vida? Ela tem se revelado como “terra boa”, verdadeira e fecunda, de onde brotam novidades surpreendentes?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vós” (Mt 11,29)
Inútil discutir e dar voltas: o distanciamento social veio e começou a fazer parte do nosso ritmo cotidiano; não nos resta outro remédio a não ser tomar medidas para aprender a manejá-lo e a incorporá-lo em nossa vida da maneira menos danosa possível.
De fato, seus perigos são evidentes: o distanciamento físico (“que só se aproximem até um metro”), pode gerar o distanciamento social (“que não me venham com mais problemas, porque já tenho os meus”) e desembocar no distanciamento emocional (“olho ao meu redor e sinto as pessoas como uma ameaça”).
O evangelho deste domingo pode nos oferecer uma inspiração neste momento dramático que vivemos.
Jesus nos revela que toda manifestação de distanciamento (sanitário, físico, social, religioso, cultural, político...) pode ser quebrado a partir do coração. Toda proximidade com o outro começa pelo coração. Nesse sentido, encontramos uma pérola de grande valor naquilo que o evangelista Mateus nos des-vela: “Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” .
Ao se apresentar como referência para os seus discípulos - “aprendam de mim!”- , Jesus frisou duas atitudes pelas quais pautava a sua vida: a mansidão e a humildade. Elas são o reflexo das bem-aventuranças que Ele sempre deixou transparecer no encontro com os outros.
É do coração que brotam a mansidão e a humildade, únicos remédios que substituem a expressão do afeto e a cordialidade manifestada por via táctil (dar as mãos, abraçar...). Mesmo quando a situação impede que mãos e braços se encontrem, os corações se abraçam.
Este “tempo de confinamento” está nos fazendo tomar consciência de nossas debilidades, quebrando toda pretensão de auto-suficiência e de soberba; ao mesmo tempo, está nos fazendo experimentar que não somos donos de nossos estados de ânimo e que precisamos dedicar tempos ao descanso e à gratuidade.
Vivemos em meio à cultura da produtividade, da competição, da eficiência, e isso nos deixa cansados, raivosos, angustiados e tristes, sem um motivo aparente e sem poder encontrar uma solução para isso. Constatamos que nossa fragilidade carrega em si a necessidade de sair, de passar tempos distendidos, de reaprender a estar com os outros, de oxigenar nossa vida em meio a tantos venenos que nos asfixiam...
A humildade e a mansidão do coração nos trazem para o chão da vida e nos possibilitam viver com mais humanidade. E estas duas virtudes estão disponíveis, em abundância, no nosso interior. Basta abrir espaços para elas e o nosso cotidiano adquirirá novo sabor e calor.
É suave a condição humana quando, em vez de ocultar nossa debilidade, descobrimos com assombro que é ela que nos conduz pela mão a nos aproximar calorosamente dos demais. Quando vivemos a debilidade de forma agradecida, é mais fácil perdoar que condenar, compreender que murmurar, aceitar que julgar.
A debilidade humana descansa nas mãos de Deus. Talvez seja esta a aprendizagem principal de nossa vida, pois a temos saboreado internamente. Só assim poderemos oferecer, também nós, um lugar acessível de repouso para os cansaços e fragilidades dos outros.
“Descansar” não é a outra face da ação de trabalhar; é participar, ter parte, na vida mesma de Deus, onde ação e repouso coincidem numa única pulsação, num único movimento de segurança e de felicidade, de consentimento e de abandono, nessa Presença Humilde que flui dentro de nós, nos atrai e nos conduz com suavidade. O decisivo é ir ao seu encontro e deixar-nos aliviar, para aprender d’Ele a sermos mais humanos.
Se vivemos só em chave de mandamentos, de doutrinas, de normas..., comeremos pão de fadigas e sentimentos de culpa; se vivemos em chave de bem-aventuranças, certamente poderemos caminhar aliviados, porque o peso e a fecundidade da vida estão apoiados em Outro e não dependem só de nós.
Nesse sentido, as bem-aventuranças da humildade e a mansidão são o terreno sólido sobre o qual podemos assentar nossa vida e ativar todas as potencialidades humanas que nos habitam.
“Humildade” vem de húmus, chão, barro. Ela está vinculada ao amor à verdade e a ele se submete. Ser humilde é amar a verdade mais que a si mesmo. “Humildade é andar na verdade” (S. Teresa).
“Onde está a humildade, está também a caridade” (S. Agostinho). É que a humildade leva ao amor, e todo amor verdadeiro a supõe; sem a humildade, o ego ocupa o espaço disponível, e só vê o outro como objeto ou como inimigo. A humildade nos conduz à pura gratuidade do amor desinteressado.
Por outro lado, aqueles que vivem sob o impulso da mansidão, não rejeitam nada, não exigem nada. Estão abertos às surpresas da vida, vão interiorizando as contrariedades de cada dia e ampliando um espaço no próprio interior, onde acolher a realidade e reafirmá-la; revelam um coração que cria e alimenta proximidades
com todos, porque pulsa no ritmo do coração do outro, fisicamente presente ou distante.
A mansidão se assemelha a um sentimento de não-violência ativa, a “essa capacidade passiva de recepção que se encontra no fundo da estrutura da pessoa” (Edith Stein).
Mansidão não é debilidade, mas força suavizada; ela não é a atitude medíocre daqueles que se sentem anulados pela presença violenta do outro. É força que não provém da violência externa, mas de uma transformação interna. Por isso, o manso pode realizar ações impossíveis a quem é violento e sentir-se bem-aventurado e feliz, uma vez que tem esperança de conquistar o coração dos outros e se encontra entre os que herdarão a “terra prometida” do coração de Deus.
A mansidão cristã, reflexo daquela de Jesus, é plena de força. Suavidade e força que recorda o modo “suave-forte” divino de agir. Trata-se daquela harmonia conquistada pelo ser humano que alcançou seu centro mais profundo e ali encontra o dom da liberdade. A mansidão é o estado interior a ser alcançado pelos corações dos homens e mulheres livres.
Nessa ótica, de fato, quando perdemos a mansidão, vemos nossa liberdade diminuída. Entramos na lógica do revide e a emoção indomada preside nossas ações.
Vivemos em um mundo onde imperam a prepotência, a agressividade, a vingança, o ataque e o desafio preventivo, o amedrontamento, a extorsão e a imposição violenta como meios habituais para conseguir os fins que se pretendem. Esta mesma estratégia de morte é utilizada em diferentes ambientes, tanto civis como religiosos, políticos como econômicos, entre pessoas e entre grupos ou nações.
Com isso, a vida e as relações se convertem num campo de batalha contínua, como se fosse uma manada de lobos disputando o cordeiro.
Como seguidores(as) d’Aquele que é o humilde artífice da paz, testemunhamos e profetizamos que a mansidão é o verdadeiro rosto da Igreja.
Não é por acaso que muitas pessoas que lutaram em favor da justiça, pagando com a própria vida, tenham essa característica comum: a mansidão (Gandhi, Luther King, Dom Romero...). São descritos como indivíduos mansos e humildes, amáveis e de agir discreto, abertos ao diálogo e à acolhida do outro, pacientes e simples. E, exatamente por isso, dotados de uma força diferente e, sobretudo, muito eficaz.
Bem-aventurados os humildes e os mansos! Graças a eles o mal, na terra, pode se transformar em bem!.
Texto bíblico: Mt 11,25-30
Na oração: De onde brotam a mansidão e a humildade? Como ativá-las e fazê-las crescer? Ninguém pode improvisá-las. A raiz última da mansidão-humildade é contemplativa. Nasce em um clima de oração, numa proximidade íntima que faz o nosso coração pulsar no mesmo movimento do Coração com-passivo de Deus. Desse encontro, de coração a Coração, emergem das profundezas de nosso ser estes dinamismos mais humanos e mais divinos. A partir da fonte original, a mansidão e a humildade vão se expandindo na direção dos outros, alimentando novas relações, acolhendo o diferente, vibrando com o bem presente no outro...
- No ritmo de sua vida, o que mais se faz visível: mansidão e humildade? Ego inflado e soberba? Agradecimento assombrado ou ingratidão venenosa? Suavidade divina ou prepotência que petrifica?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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