“Junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas,
e Maria Madalena” (Jo 19,25)
A vida humana é fecunda, é potencialidade, é explosão de criatividade... Assim como na semente há vida latente esperando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano encontram-se ricas possibilida-des, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se plenificarem. A maior perda da vida é aquilo que “resseca” dentro de nós enquanto vivemos: sonhos, criatividade, intuição. A vida é fecunda, é um turbilhão energético, é explosão de criatividade, é potencialidade.
“A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter).
Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora... Jesus foi Aquele que não ficou indiferente diante da fome, da doença, da violência, da exclusão..., enfim, diante de tudo o que atenta contra a vida. Seu modo de ser, suas opções, sua liberdade diante da lei, da religião, do templo, seus encontros escandalosos com os pobres e excluídos..., desestabilizou tudo, pôs em crise as instituições e as pessoas encarregadas da religião. Tornou-se um perigo a ser eliminado.
Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.
Existem cruzes que são vazias, sem sentido, insensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida. São cruzes que nós impusemos sobre nossos ombros ou que os outros nos impuseram. São cruzes que nascem dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de vida; elas se fixam no passado, na morte... e nos deixam no túmulo. Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus que leva a Cruz da fidelidade nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no desespero.
A Cruz assumida por Jesus é “expansiva” porque é expressão de uma vida entregue; ao mesmo tempo, ela O projeta para a “margem” onde Ele revela uma presença despojada, vulnerável, que se identifica com a dor do mundo, com a marginalização dos excluídos e com a desgraça de todos os miseráveis da terra. Sua Cruz manifesta que Deus é Compaixão porque continua do lado do inocente sofredor; Deus não apenas se solidariza, mas sofre “em sua pele”.
Acompanhando Jesus na paixão, também “vamos sendo talhados” pelas cenas que contemplamos, com o coração aberto à dor e à aflição. É o seguimento levado às últimas consequências. Participando da morte de Jesus, podemos também fazer de nossas cotidianas mortes um ato de decisão, de entrega, de oblação. A certeza de nossa fé em Cristo, morto e ressuscitado, nos ajuda a tirar do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança e proteção, e encontrar uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita em favor da vida dos outros.
É gratificante trazer à memória tantos homens e mulheres que são presença compassiva e, à maneira de Jesus, arriscam suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua presença ajudam os outros a viver; pessoas que revelam a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregam suas vidas no escondimento, sem vozes que as exaltem; elas são como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.
Nos evangelhos, a Paixão de Jesus não é uma simples sequência de fatos, mas um confronto entre pessoas. Os diversos personagens entram em contato direto com Jesus, reagindo cada um a seu modo, vivendo cada qual o mistério do próprio chamado e da própria tomada de posição frente a proposta de Jesus.
Contemplar toda a galeria de pessoas que se encontra com Jesus. Cada qual com uma resposta diferente, diante de Jesus sempre igual em sua atitude de disponibilidade e de entrega.
Os evangelistas dão um destaque especial à presença das mulheres no caminho da Cruz, solidárias com Aquele que era vítima da indiferença cruel.
Estão ali, precedendo-nos no caminho, e não dizem nada. É seu corpo, são seus gestos, suas mãos, seus olhos, seu silêncio... que falam por elas. A linguagem delas é a linguagem do encontro solidário. Se elas podem permanecer nessas circunstâncias, é porque amaram muito. Elas nos falam de resistência e de fidelidade, de uma presença comovedora. Estão juntas, expostas a outros olhares, como comunidade de discípulas em torno a seu Mestre, que lhes ensina, agora sem palavras, uma sabedoria muito maior.
Em meio à impotência, não se afastam da dor experimentada ao ver sofrer a quem mais se ama, senão que se expõem ao olhar d’Aquele cujo rosto foi desfigurado. Sobem com Ele ao lugar do abandono e da ingratidão, levantando uma ponte de proximidade e de solidariedade que cruza a totalidade da vida de Jesus. Nem um só instante afastaram seus olhares d’Ele. E o que para uns é escândalo e para outros é loucura, para estas mulheres é uma força de Deus impressionante. Elas acompanharam a vida de Jesus muito de perto, “à sombra”, e agora, a morte d’Ele lança uma forte luz sobre elas, tornando-as visíveis para que todos saibam quem são elas.
Elas tem a coragem de permanecer ali, acolhendo o acontecimento em toda sua crueldade e profundidade; elas estão de pé, enquanto outros desistiram ou se afastaram assustados.
Olhando de longe, estavam junto a Ele, deixando-se imantar por Ele, vivendo privilegiadamente um mistério que se oferece a todos. A partir deste momento elas vão aprendendo a conviver com a morte, com a d’Ele, com a sua e com a dos outros. Vão aprendendo, precisamente em meio à morte, a “celebrar a vida”, mesmo intuindo que uma lança também as atravessará.
Daqui para a frente elas se tornarão pedagogas de um encontro que gera humanidade; elas estenderão suas mãos sobre os necessitados, com o mesmo desejo com que Jesus as estendeu, para tocar voluntariamente as pessoas enfermas, selando uma aliança, um “pacto de ternura”, com todos os desprezados e excluídos.
Diante da Cruz “descemos” com Jesus até à cruz da humanidade.
A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, nos fazem descer aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o Crucificado, o “Justo e Santo”, identificado com os crucificados da história.
Como diz o teólogo Jon Sobrino, não podemos crer no Crucificado de um modo coerente se não estamos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela.
Entende-se, assim, o grande “grito” que brotou das profundezas da dor de Jesus na Cruz e que continua ecoando como clamor angustiado. Não são poucos os gritos dos mais pobres, excluídos, doentes...
O grande grito de Jesus é a certeza de tudo o que sustenta o seu coração; ao ecoar junto aos crucificados, provocará grandes novidades. Um grito que não fica no vazio mas aponta para a Vida.
Texto bíblico: Jo 12,20-30; Jo 18 e 19
Na oração: Somos grãos de trigo na grande seara do mundo; e o grão de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com mais sentido e intensidade.
Aprendamos a morrer para nossos interesses mesquinhos; só assim nossa vida terá a dimensão da eternidade.
- “Se a semente do trigo sou eu, a quê devo morrer, para que a vida interior possa se expandir?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Derramou água numa bacia, pôs-se a lavar os pés dos discípulos e enxugava-os com a toalha que trazia à cintura” (Jo 13,5)
No Evangelho desta Quinta-feira Santa, Jesus, com sua original sabedoria, nos oferece uma outra perspectiva de vida. Sem dúvida alguma, Jesus era um provocador, no sentido etimológico da palavra, (pro-vocar: chamar para frente, desinstalar), que motivava as pessoas a verem as coisas a partir de uma perspectiva diferente da que era habitual.
Mas, custa-nos muito modificar nossa perspectiva; estamos acostumados a um modo fechado de viver, com umas viseiras que não nos permitem captar a vida em sua plenitude e riqueza; com isso nos instalamos no já adquirido e conhecido e atrofiamos em nós o dinamismo que busca abrir a mente e alargar o coração à realidade que nos cerca.
Ver as coisas “por uma outra perspectiva” é muito mais instigante.
Um ponto de vista novo, limpo e original é uma grande ajuda para uma vida sadia.
O que Jesus pretende, no gesto do “lava-pés”, é nos oferecer um novo ponto de vista, um novo ângulo, uma nova perspectiva, fazendo-nos ver a realidade do outro como se fosse pela primeira vez, com um olhar límpido e uma atitude compassiva.
Na noite em que ia ser entregue, Jesus realizou um gesto provocativo: levantou-se da mesa, distanciando-se do lugar reservado àqueles que a presidem e se situou no lugar daqueles que pertencem à categoria dos “servidores”. Jesus sabia que o lugar em que estamos situados condiciona nosso olhar e nossa atitude; por isso, tomou distância e adotou a perspectiva que lhe permitia perceber outras dimensões da vida.
A partir desse lugar tocou de perto o barro, o pó, o mal odor, a sujeira..., tudo isso que aqueles que estão sentados à mesa acreditam estar a salvo ou simplesmente ignoram e desprezam. Rente ao chão e em contato com os pés dos outros, Jesus realizou uma mudança e uma amplitude de visão que lhe fazia perceber tanto as riquezas e dons de cada um como captar a desnudez, a fragilidade e as limitações da corporalidade das pessoas. E, olhadas a partir daí, Ele deixa transparecer que qualquer pretensão de superioridade ou domínio se revela como ridícula e falsa.
Nesse deslocamento a um “lugar entre tantos outros”, Jesus viu de perto e por dentro àqueles que os outros consideravam distante e fora. Porque para Ele, os maiores e os mais importantes são aqueles que, segundo nossos critérios, não são contados. O lugar em que Jesus decidiu se situar deu origem a “revolução nas relações pessoais”, que tanto nos sobressalta e ao qual tanto nos resistimos. Só o fato da possibilidade desse deslocamento se revela ameaçadora porque nos tira do terreno do conhecido e nos convida a descobrir novos significados que não coincidem com os que consideramos evidentes.
Com o gesto do lava-pés e ao deslocar-se para o lugar do servo, Jesus rompe a verticalidade e a relação senhor-escravo, os de cima e os de baixo, os de dentro e os de fora, inaugurando, assim, a nova ordem circular do Reino, onde ninguém é descartável.
Ali também Ele nos revela-nos um rosto novo de Deus: o Deus cuidadoso e compassivo, identificado com os últimos e que a partir do último, serve, sustenta, universaliza, iguala, inaugurando deste modo a horizontalidade do Reino e denunciando toda hierarquia e pretensão de poder-dominação.
“Eu estou entre vós como aquele que serve”. Jesus não renuncia a nenhuma grandeza humana, mas denuncia a falsidade da grandeza do ser humano que quer se apoiar no poder ou no domínio sobre os outros. A verdadeira grandeza humana está na identificação com Jesus que se doa, sem por condições nem reservas. Como aconteceu com Pedro, o gesto de Jesus no Lava-pés continua nos provocando, porque se há algo que incomoda é deslocar-se até os últimos e colocar-se no lugar deles.
Não é comum prestar atenção ao lugar ocupado pelo outro, sobretudo o outro que pensa e sente diferente; é normal perceber, delimitar, defender e fechar-se no próprio lugar. Isso se faz de maneira tão zelosa que nem se vê aquilo que está para além do próprio lugar. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.
Compreende-se claramente que o que ali estava em jogo não era a humildade – nem a de Pedro, nem a do próprio Jesus -, nem sequer uma boa exortação para praticar a caridade. Porém, a intenção de Jesus ia muito mais longe, tão longe que Ele mesmo teve de perguntar aos discípulos aturdidos: “Compreendeis o que vos fiz?” Efetivamente, o que Jesus estava dizendo a seus apóstolos era o seguinte: “Eu, que sou o Mestre que ensina o que é preciso saber, e que sou o Senhor-Deus que dispõe o que se há de fazer, não me relaciono convosco com base no poder, mas na exemplaridade”.
Daí Jesus termina dizendo: “Pois é um exemplo que eu vos dei: o que eu fiz por vós, fazei-o vós também”. Com isso, Jesus estava afirmando que eles, os apóstolos, não podem compreender sua missão com base no poder que se impõe, mas sim na exemplaridade que convence. E Ele exigirá isso a todo aquele(a) que queira segui-lo: terá que estar disposto, o mesmo que Ele, a “não ter onde reclinar a cabeça”, a ir mais além de tudo aquilo que a nossa cabeça se inclina, descansando naquilo que acredita saber, controlar ou dominar.
A reação de Pedro expressa bem o escândalo que este gesto produz, porque Jesus revela que a autoridade - ser Senhor – é um serviço, não uma dominação.
Pedro fica desconcertado e em dilema. Sua imagem do Messias seguro e vencedor não combina com a vulnerabilidade de um servo; ele comungava com a mentalidade hierarquizada da época, a qual determinava a cada um o seu devido lugar. A relação entre mestre e discípulo era regulada pela superioridade, sapiência, respeitabilidade de um, e pela inferioridade, ignorância e submissão do outro. O gesto de Jesus pareceu inaceitável para Pedro, pois rompia a hierarquia, podendo gerar indisciplina. A mentalidade de Pedro era perigosa. Agindo assim, corria o risco de introduzir na comunidade dos seguidores de Jesus o esquema senhor-escravo que Ele viera abolir.
Em muitas culturas e tradições espirituais (como no Evangelho), o Mestre lava os pés dos seus discípulos. De um ponto de vista simbólico, “lavar os pés” de alguém é devolver-lhe a capacidade de sentir-se enraizado, é reco-locá-lo de pé, ativar nele a autonomia para que possa dar direção à sua vida.
A palavra “pé”, “podos” em grego, está estreitamente relacionada à pala-vra “paidos”, usada para significar criança. Assim, um “pedagogo” é um especialista que cuida dos pés do ser humano, desde que cuidar dos pés de alguém significa cuidar da criança que está nele.
Eis a missão do(a) seguidor(a): ajudar as pessoas a se colocarem de pé, resgatando-as em sua dignidade para serem capazes de andar pelos seus próprios pés.
Não cabe ao cristão carregar as pessoas com seu paternalismo. Antes, sua missão é vê-las maduras, entrando por seus próprios pés na presença de Deus e assumindo o compromisso com a vida.
Texto bíblico: Jo 13,1-5
Na oração: “Levantar-nos da mesa” – “sentar-nos à mesa”: movimento de partida e de chegada; prolongamento do gesto provocativo e escandaloso de Jesus. Isso é viver a Eucaristia no cotidiano da vida.
- como você pode prolongar nos seus ambientes cotidianos o gesto de Jesus no “lava-pés”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
+ Prepare-se para viver este momento denso da Última Ceia; por isso, disponibilize todo seu ser (sentidos, razão, afetividade, coração) para “sentir e saborear” este Mistério.
+ Suplique a Deus a graça da fidelidade a seu Projeto de vida, mesmo nas dificuldades e na falta de apoio dos outros.
+ Leia os “pontos para a oração”: isso pode ajudar a aquecer o coração para viver mais intimamente o encontro com o Senhor que está às portas de sua Paixão.
+ Deixe que as considerações abaixo façam-lhe sentir solidário(a) com Jesus que, apesar das traições, mantém sua fidelidade ao sonho do Reino.
Mais uma vez a liturgia nos convida a “fazer memória” desta Ceia tão especial. Jesus havia transitado por muitas refeições, participado de muitas mesas (especialmente com os pobres e pecadores) e agora Ele nos deixa uma “mesa” como marca dos seus seguidores. Mesa da partilha e da inclusão, mesa da festa e da comunhão.
É em torno a esta mesa que os(as) seguidores(as) de Jesus se constituem como verdadeira comunidade. Ao recordar a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus, os cristãos se comprometem a prolongar os Seus gestos, atitudes, valores, compromissos... “Fazer memória” de Jesus junto à mesa é comprometer-se com a vida; é colocar a própria vida a serviço da vida.
Jesus quer cear com os seus amigos e por isso precisam encontrar uma sala na qual haja espaço para estar juntos. O ritual pascal dá lugar aos gestos simples que se fazem entre amigos: partilhar o pão, beber da mesma taça, desfrutar da mútua intimidade, entrar no clima das confidências...
Jesus sempre buscou companhia; havia nele uma necessidade irresistível de contar com os seus como amigos e confidentes. Sua relação com eles vinha de longe: levavam longo tempo caminhando, descansando e tomando refeições juntos, partilhando alegrias e rejeições, falando das coisas do Reino.
E continuará considerando-os como amigos, mesmo quando um deles irá traí-lo e os outros fugirão.
Nos evangelhos, nós encontramos pessoas que não faziam parte do grupo dos Doze e que revelaram uma presença que fez toda a diferença junto a Jesus. Viviam o verdadeiro sentido do seguimento, sem buscar prestígio, vaidade, poder, competição... Pessoas que se revelaram muito mais em sintonia com Jesus e sua proposta de vida do que os Doze. Uma delas foi a do homem do Evangelho de hoje: anônimo, mas deu sua contribuição decisiva e que ficou registrada na história; sua casa foi o lugar onde aconteceu a última Ceia.
Chama-nos a atenção, no Evangelho proposto para hoje, a maneira como Jesus indicou aos discípulos o local onde queria que a Ceia fosse celebrada. Jesus mandou-os seguir um homem que encontrariam à entrada da cidade. Junto a personagens conhecidos nos Evangelhos, outros, sem rosto, nem identidade, nem prota-gonismo, surgem inesperadamente, deixando sua “marca”, como o desconhecido homem que emprestou sua casa para que Jesus e seus discípulos pudessem celebrar a Páscoa.
Anônimo perante a posteridade, sem rosto, porque era seguido pelos que vinham atrás dele, este homem, de certo modo e do modo certo, serviu a Jesus como a Igreja deve serví-Lo, sem perguntar qual seria seu lugar à mesa.
O que teve lugar dentro de sua casa, transformada no mais importante templo material da história humana, seria mais do que suficiente para arrancar dele alguma expressão de vaidade capturada pelo evangelista. Mas não. Não é isso que acontece na História da Salvação.
Oferece a casa sem perguntar quem viria celebrar a Páscoa, sem pedir garantias, sem cobrar aluguel pelo espaço; enquanto os sacerdotes e Judas pechinchavam o valor da vida de Jesus, este desconhecido, por pura gratuidade, oferece sua casa ao mesmo Jesus. Certamente, ele e sua família foram testemunhas desta ceia única e especial, e que será a marca de todo(a) seguidor(a) de Jesus.
Jesus era da Galileia. Não tinha casa em Jerusalém. Nos dias da festa de Páscoa, a população de Jerusalém triplicava. Não era fácil para Jesus encontrar uma sala ampla para poder celebrar a Páscoa junto com os seus mais íntimos. Ele pede para os discípulos encontrarem uma pessoa em cuja casa decidiu celebrar a Páscoa. O Evangelho não oferece mais informações e deixa que a imaginação complete o que falta nas informações. Era um conhecido de Jesus? Um parente? Um discípulo?
Aquele homem desconhecido que abriu sua casa para Jesus representa todos nós; cabe a nós mostrar o caminho do local da Ceia, cabe a nós preparar a mesa da partilha, abrir espaço interior para acolhida, indicar o rumo que leva à casa do Pai. Orientadores(as) do povo de Deus, abrimos as portas da grande sala e a confiamos ao Mestre para que realize, ali, o imenso dom da Eucaristia, “como aquele que serve”.
Ontem o Evangelho falou da traição de Judas e da negação de Pedro. Hoje, fala novamente da traição de Judas. Apesar da convivência de quase três anos, nenhum dos discípulos ficou para tomar a defesa de Jesus. Judas traiu, Pedro negou, todos fugiram. Mateus, no Evangelho de hoje, quer ressaltar que o acolhimento e o amor de Jesus superam a derrota e o fracasso dos discípulos. Ele deixa entender que nós podemos romper com Jesus, mas Jesus nunca rompe conosco. O seu amor é maior do que a nossa infidelidade.
Estando todos reunidos pela última vez, Jesus anuncia quem é o traidor. É "aquele que põe a mão no prato comigo". Para os judeus, a comunhão de mesa, colocar juntos a mão no mesmo prato, era a expressão máxi-
ma da amizade, da intimidade e da confiança. Mateus nos indica que, apesar da traição ser feita por alguém muito amigo, o amor de Jesus é maior que a traição.
Poucas experiências destroem alguém por dentro como a traição.
A traição que, à primeira vista, pode parecer ser prejudicial apenas ao outro, de maneira geral, vem acompanhada de um forte sentimento de culpa para o traidor. E ao sentir a culpa pela traição, a pessoa entra em conflito emocional; algumas caem até no desespero.
Aquele que traiu sofre, pois este não confia em si mesmo, não consegue acreditar que mereça confiança. O traidor condena-se à solidão e à culpa existencial, destrói-se e destrói todos ao seu redor, culpando o mundo por seu sofrimento; trai-se a si mesmo, torna-se, aos seus próprios olhos, um monstro, não merecedor de amor, o que o leva a trair mais ainda.
Se a pessoa trai a si mesma, ela fracassa em sua busca, frustrando-se na tentativa de realizar-se enquanto ser humano. E, na ausência de respostas, angustia-se mais, trai mais, atropela os outros que a amam, machuca a todos ao seu redor, procurando justificativas para seus atos e destruindo-se a si mesma em cada nova tentativa de ser amada.
+ Leia atentamente o relato do Evangelho indicado para hoje: Mt 26,14-25
+ Prepare-se para uma contemplação. Com a imaginação, faça-se presente à cena, indo com os discípulos para preparar o ambiente da Última Ceia.
+ Procure ativar todos os sentidos: olhe as pessoas da cena, escute o que elas dizem, observe o que elas fazem, saboreie o pão e o vinho dados a você por Jesus...
+ Participe, com alegria, deste evento único; deixe-se afetar por tudo o que acontece durante a refeição. Reserve um momento de colóquio com Jesus, expressando a Ele seus sentimentos.
+ Faça um colóquio ao Senhor: converse com Ele sobre os sentimentos contraditórios que nascem da fidelidade d’Ele e da traição de Judas.
+ Termine a oração, dando graças a Deus por este momento tão intenso; se possível, registre os apelos, luzes, inspirações, que brotaram da oração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Um de vós me entregará”
- Busque criar um ambiente propício para a oração deste dia: espaço externo, atitude interna, silêncio... para viver mais intensamente os “momentos finais” da vida de Jesus.
+ Peça a Deus a graça de participar dos sentimentos de Jesus, às vésperas de sua morte.
- Leia as “indicações” abaixo como ajuda para “entrar em contemplação”:
Como ontem, você é convidado(a) a participar de outra ceia de despedida. A ceia de Betânia foi rica em símbolos de amor, de amizade, de festa, um esbanjamento de humanidade. A ceia de hoje (em Jerusalém) é marcada por uma comoção profunda, onde Jesus vê-se traído, vendido, enganado e abandonado por aqueles que Lhe juravam fidelidade e amizade profunda. Esta noite, Jesus começou a sentir que estava sozinho. É o sentimento mais duro e doído que alguém pode passar.
Jesus está celebrando a última ceia com os seus discípulos; tinha acabado de lavar os pés deles e de ter falado do dever que temos de lavar os pés uns dos outros. Judas já tomou a trágica decisão, e depois de tomar o último pedaço de pão das mãos de Jesus, saiu para cumprir sua traição.
Sabemos que as palavras pronunciadas nos momentos de despedida são diferentes de todas as outras. Nessas horas, só se dizem palavras essenciais, as mais íntimas, as que estão no fundo do coração e que se deseja que sejam lembradas para sempre.
Suas palavras são carregadas de emoção e dor e causam-nos maior impacto.
Durante as contemplações dos mistérios da Paixão e Morte de Jesus, um personagem vem sempre à nossa lembrança: Judas Iscariotes. Reagimos negativamente frente sua traição a Jesus, mas no fundo ele nos causa repulsa porque é projeção das nossas infidelidades e traições. Ele é o espelho no qual nos vemos.
Certamente o maior sofrimento de Jesus partiu do grupo mais íntimo; da perseguição externa já era esperada, mas do grupo de convivência dos discípulos, foi muito duro para Jesus. E Judas era considerado “um dos Doze”.
Podemos destacar duas dimensões na Paixão: uma acontece no grupo interno (traição, negação, busca de poder, incompreensão da missão...); isso provoca profundo sofrimento em Jesus. A outra paixão é provocada pela oposição, perseguição externa... Geralmente ficamos impactados com os sofrimentos físicos cometidos pelos opositores. O sofrimento interno não é visível, mas é maior.
Mas... o que vem a ser a traição? Como ela se manifesta na nossa vida? Por que traímos a confiança do outro?
O ato de trair implica romper uma aliança que uma pessoa fez com outra. Trair é uma ação que revela sérias conseqüências, e, quando se fala de relacionamento humano, envolve sofrimento e sensação de abandono, gerando um estado de desconfiança generalizada naquele que foi traído.
Traição dói na proporção inversa da distância. Quanto mais próxima a pessoa traidora, tanto maior a dor do traído. A traição se situa no mundo das amizades, das vinculações afetivas intensas, das ligações íntimas, das proximidades de vida.
Judas se tornou o símbolo da traição porque fazia parte do grupo íntimo dos apóstolos. Foram anos de convivência nas mesmas caminhadas, nas noites ao relento, nas pregações, nas refeições simples do dia-a-dia e nas festas. Jesus e Judas viviam elos de amizade, de confiança, de esperança entre si.
De repente, rompe-se tal aliança e Judas entrega Jesus aos adversários.
Com a traição, Judas passou da amizade para a decepção, para a desilusão, para a perda de vinculação até a entrega. Processo lento que foi minando o seu coração, até que ele se corrompeu, a ponto de renegar a amizade e trair.
Quando Jesus anuncia que um deles vai lhe entregar, todos ficam “assustados”, “olham-se mutuamente”, mas não conseguem identificar o traidor.
Os traidores não têm um rosto especial; qualquer rosto vale para dissimular a traição do coração; qualquer rosto vale para esconder um coração traidor.
Judas, em nada dava sinais de ser diferente do restante dos discípulos. Por isso ninguém se atreveu a acusá-lo de traidor. Parecia tão normal como qualquer outro do grupo.
É que as traições são alimentadas e escondidas no coração; as traições não têm rosto, não são visíveis. Por isso mesmo, os traidores, são tão difíceis de serem reconhecidos. Caminham como todos. Comem como todos. Sorriem como todos. Tem cara de amigo, e por dentro carregam um coração vendedor de vidas, de dignidades.
Quê aconteceu no coração de Judas nessa noite da Última Ceia? Rodeado de um mundo de mistério, rodeado de um clima de bondade, de amor e salvação, e, no entanto, o coração de Judas está em outro lugar. Está impermeável à verdade que se celebra; está seco em seu interior, fechado ao mistério da graça.
Poucas experiências destroem tanto alguém por dentro como a traição.
Quem traiu e quem foi traído assume reações semelhantes, como esvaziamento da afetividade, sensação de inutilidade vital, desorientação, perda do sentido da própria existência, angústia, pânico, fobias e medos generalizados diante das pessoas e do mundo. A traição desmonta a esperança no outro ser humano e leva
à descrença na existência do amor. A traição tira do ser humano sua capacidade de dar respostas à vida, de envolver-se num projeto e num ideal maior, que ultrapasse o valor de sua própria vida.
- Leia atentamente o Evangelho da liturgia de hoje: Jo 13,21-33.36-38
- Com a imaginação, ative todos os seus sentidos, para poder participar intensamente da cena.
- Faça-se e sinta-se presente na sala da Última Ceia, como um(a) “humilde servidor(a)”: observe o ambiente preparado, a disposição da mesa, o jarro e a bacia para o lava-pés, os pães ázimos, ervas amargas, vinho...
- Centre sua atenção na chegada de Jesus e seus discípulos; observe as feições de cada um deles, tomando lugar à mesa... Procure escutar o que estão dizendo...
- À meia-distância, observe a seriedade do momento, escute as palavras de Jesus ao tomar o pão e o vinho... Sinta-se desconcertado quando Jesus anuncia que um do grupo vai ser o traidor. Veja as reações dos discípulos, a tristeza de Jesus...
+ Escute Jesus, que diz em voz alta o que todos estão sentindo: “Filhinhos, por pouco tempo ainda estou convosco”. Fala com ternura. Quer que suas últimas palavras e gestos fiquem gravados nos corações de todos nós.
+ Converse com o Senhor: uma conversa feita mais de presença que de palavras.
Diante de “Jesus traído”, recorde experiências pessoais de traição: quando foi traído? Quando traiu? Como se sentui?
+ Passe um bom tempo nesta sala, onde está acontecendo um evento histórico e essencial para os seguidores de Jesus: a instituição da Eucaristia. Participe também você da refeição.
+ Termine a oração fazendo uma revisão e anotando as moções que brotaram do encontro com Jesus na Última Ceia.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“A casa inteira encheu-se do aroma do perfume”
+ Prepare-se para a oração, criando um clima de silêncio e escuta amorosa.
+ Concentre a atenção no seu interior: sinta o pulsar do coração e o ritmo da respiração.
+ Permaneça, por uns instantes, saboreando o silêncio do seu coração, pois onde há silêncio, aí está Deus presente.
+ Peça a Deus a graça de poder transformar a sua casa em nova Betânia: casa da acolhida, da amizade, da partilha solidária, da convivência sadia...
+ Antes de “entrar em contemplação”, leia os “pontos” abaixo:
Neste início de Semana Santa, o Espírito nos leva a viver Betânia, a ser Betânia, a assumir Betânia:
- casa de hospitalidade e de escuta, onde todos somos irmãos sentados à mesma mesa, junto ao Mestre, o único Senhor, em quem se centra nossa hospitalidade e nossa escuta;
- lugar de descanso, como foi para Jesus, onde encontra humanidade, calor humano, compreensão, alívio;
- lugar de passagem, onde se recupera forças para viver situações de Páscoa;
- “casa dos pobres” (Beth-anawim): nela, em primeiro lugar, habitam nossas pobrezas pessoais e comunitárias, nossa pequenez e nossa fragilidade; mas, também, onde a dor de nosso mundo, da humanidade, têm lugar e tocam nosso estilo de viver, de nos relacionar, de nos confrontar em nosso seguimento de Jesus;
Jesus, perseguido pelos poderes civil e religioso, vai a Betânia, na casa das suas amigas Marta e Maria e de Lázaro. Mesmo sabendo que a polícia estava atrás de Jesus, os três irmãos receberam-no em casa e ofereceram-lhe um jantar. Acolher em casa uma pessoa perseguida e oferecer-lhe um jantar era perigoso. Mas o amor faz superar o medo.
Betânia é, para Jesus, o lugar da acolhida, da hospitalidade, da escuta, da amizade e do serviço. Ali, Ele expressa as atitudes humanas presentes na cotidianidade de uma família que Ele amava e que O amava. Betânia é, para Jesus, um prolongamento de Nazaré, o lugar do cotidiano, do pequeno, do simples: o lugar da revelação.
Neste ambiente, já não há mais rivalidade entre as duas irmãs, Marta e Maria, mas colaboração e complementariedade. Juntas se fazem transparentes para algo maior que elas mesmas. Certamente Jesus deixou “refletir” em sua vida o que viu fazer estas duas mulheres.
Os discípulos levavam muito tempo com Jesus e nenhum tinha feito com Ele o que estas duas mulheres fizeram. Ninguém lhe havia manifestado gestos de tanto amor. Elas estão totalmente presentes à Jesus; aceitam o que vai acontecer e o acompanham. Marta servindo a mesa e as mãos de Maria acariciando e ungindo os pés de Jesus. E Ele deixando que elas o façam. Um gesto que Judas julgou e a Pedro lhe custou receber.
Marta e Maria expressam sua amizade e fazem com Jesus o que Ele logo fará com seus discípulos no momento de sua despedida: os serve à mesa e lava seus pés. Jesus se deixou fazer, para poder fazer isso com outros e quis tomar para si os gestos destas mulheres para fazer memória de sua vida. Impressiona-nos que neste relato elas não falam, e expressam todo seu amor “mais em obras que em palavras” (S. Inácio).
Em lugar do cheiro da morte, a casa inteira enche-se do aroma do perfume. O perfume de Maria é o símbolo da vida e do amor de cada um. É um amor que não tem preço e está sempre voltado para os pobres. Aqui, no centro do Evangelho de João, a comunidade, reconstruída no amor, exala o bom perfume que enche toda a casa.
“À luz de Betânia e de nossa realidade quais perfumes derramar para superar o mal odor dos nossos ambientes?” O que cheira mal entre nós, seguidores(as) de Jesus: medo do risco e do novo, medo de perder seguranças; medo de equivocar-nos, de experimentar outras maneiras de viver; medo de enfrentar situações desafiantes na sociedade, medo da dor e da morte...
Cheira mal as seguranças petrificadas, o imobilismo. Cheira mal a indiferença e a acomodação, sobretudo diante das necessidades de nosso mundo. Cheira mal a desesperança frente a um futuro incerto.
Há um forte mal odor dentro de nossas “bolhas mofadas”; custa-nos reforçar laços, alimentar solidariedade, entrar em sintonia com a paixão da humanidade. Preferimos conservar a arriscar; percebemos a inércia e a falta de renovação séria e profunda, uma falta de abertura frente ao diferente, uma perda de tempo gasto em estéreis conflitos entre pessoas, grupos, gerações, dentro de nossas famílias e comunidades.
Detrás destes maus odores, vamos tomando consciência do que os causa, isto é, uma série de atitudes, que necessitariam ser trabalhadas com o aroma de Cristo, fonte de vida nova, de libertação e de transformação. Algumas destas atitudes são: individualismo, ativismo, indiferença, preconceito, consumismo, intolerância...
A casa de Betânia se enche do “esbanjamento” do amor, da ternura, da misericórdia frente ao mal odor da violência, da exclusão, do orgulho autossuficiente. Junto a Jesus, somos desafiados a esbanjar a vida com Ele, isto é, viver em e a partir da comunhão com o Deus da vida. Viver, em definitiva, como Jesus viveu, ou seja, Ele “derramou”, doou toda sua vida através de um compromisso real para fazer visível o amor de Deus. Assim na experiência cristã, a vida se “derrama” para tornar visível o amor de Jesus a toda pessoa humana. Um “esbanjamento”, muitas vezes, incompreensível para tantos contemporâneos nossos. Eles nos lançam um duro questionamento: não seria a vivência cristã uma espécie de desperdício de energias humanas, um desperdício de talentos?
+ Leia, com calma, a cena do Evangelho indicado para este dia: Jo 12,1-11
+ Com sua imaginação “faça-se presente” na casa em Betânia: veja as pessoas, escute o elas dizem, observe o que elas fazem. Deixe-se “afetar” pelo ambiente simples e acolhedor desta casa.
+ Procure identificar-se com os personagens desta cena:
- Com Jesus Mestre, queira fazer-se mais humano e próximo;
- Com Marta, queira professar a fé e servir na gratuidade;
- Com Lázaro, queira passar da morte à vida e caminhar na liberdade do Espírito;
- Com Maria, queira quebrar os frascos e derramar o perfume da escuta e do amor.
+ Enfim, inspirando-se na casa de Betânia, desejar fazer de sua casa: espaço da mesa compartilhada, lugar da unção e do cuidado, ambiente que exala perfume da amizade, da gratidão, do amor...
+ Faça a revisão da oração e anote os sentimentos mais profundos que brotaram na sua visita à Betânia
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia” (Mt 21,11)
A vida de Jesus é uma grande subida a Jerusalém; e nesta subida, segundo os relatos evangélicos, Ele desconcertou a todos. Evidentemente, desconcertou as pessoas mais religiosas e observantes da religião judaica: fariseus, escribas, sacerdotes, anciãos... Não só Jesus foi a pessoa mais desconcertante de toda a história, mas nele aconteceu algo também desconcertante. Ele desencadeou na história da humanidade um “modo de viver” que quebrou toda estrutura petrificada, sobretudo religiosa, constituindo um “movimento” ousado, que colocava o ser humano no centro.
Um movimento alternativo às instituições romanas e à organização sacerdotal do judaísmo; um movimento “marginal” que dava prioridade aos pobres, aos deslocados, aos doentes e excluídos, aos perdedores... e que não tinha nada a ver com uma organização fundada no poder, no prestígio, na riqueza...
Este movimento, desencadeado na Galileia, chega agora às portas da “cidade santa”, Jerusalém.
Aquele homem que movia multidões por todo o país, por sua pregação e milagres, não é um revolucionário violento. E, no entanto, nem por isso deixa de ser inquietante, transgressor e perigoso.
Jesus foi assim e assim Ele viveu; todo o resto lhe sobrava (leis, culto, templo, estrutura religiosa...).
Em nome de um Deus que a todos acolhe e chama, que é Pai-Mãe de todos, Jesus transgrediu a estrutura que sustentava uma sociedade fechada, fundada na lei do mais forte e na violência de quem detém o poder.
Jesus foi um transgressor porque rompeu as fronteiras que foram traçadas pelos poderosos, abrindo um caminho de humanidade a partir de baixo, do lado dos excluídos... Ele não veio para sancionar uma ordem existente, deixando cada um com sua exclusão, senão para oferecer a todos um caminho de humanidade.
Um transgressor consequente, a serviço da vida e dos últimos.
Como transgressor subiu a Jerusalém; e por isso sua morte será tramada por aqueles que se sentiam ameaçados e sua vida acabará destroçada pelas mãos dos profissionais da morte.
Em Jesus acontece algo totalmente novo; Ele desencadeou um “movimento de vida”; Ele trouxe uma nova maneira de viver e de comunicar vida que não cabia nos esquemas daqueles que estavam petrificados em suas posições e visões.
A novidade de Jesus consistia, justamente, em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo, pela pompa dos ritos e pela observância estrita das leis. Desse modo, reconhece-se a vida como lugar privilegiado da Sua Presença.
Quem entra em comunhão de vida com Ele, conhece uma vida diferente, de qualidade nova, expansiva...
Isso implica: acolher outras vidas na nossa própria vida, abrir espaços para que as histórias dos excluídos e diferentes encontrem morada nas nossas entranhas, na nossa memória e no nosso coração; descer de nossa montaria, como bons samaritanos, para nos aproximar e cuidar das vidas feridas...
A entrada de Jesus em Jerusalém é um chamado à vida. Ele é a Vida que abre caminho por aqueles espaços urbanos, carregados de poder e morte. Vida despojada de vaidade e prestígio, conduzida por um jumentinho.
Jesus se apresenta sem coroa e sem ornamentos; não tem outra coisa a compartilhar a não ser o amor e o serviço; não vem para governar e impor sua vontade, mas fazer-se irmão de todos. Jesus não busca grandes aclamações, nem aplausos, mas tão somente busca o sentido e a razão de viver.
“Quando Jesus entrou em Jerusalém, a cidade inteira ficou agitada” (v.10).
“Agitar”: este verbo não traduz bem a realidade: na verdade, a cidade ficou abalada, como se fosse um tremor de terra. Quando Jesus entrou, como Rei messiânico em Jerusalém, a cidade tremeu, como aconteceu com o anúncio do seu nascimento (Mt 2,3) e como será na hora da sua morte (Mt 27,51).
Jesus, com sua presença surpreendente, sacudiu a cidade de sua “normalidade doentia”, de sua letargia, de seu ritualismo comandado por aqueles que eram os poderosos traficantes da dor e da morte.
Jesus é a Vida verdadeira, a Vida que deseja despertar vida nos outros, para romper com tudo aquilo que a limita. Por isso, o relato deste Domingo de Ramos quer expressar o encontro de uma cidade com Aquele que é Vida e que é fonte de vida em crescente amplitude. Jesus, o “biófilo”, também sonhava com uma Jerusalém acolhedora, espaço da convivência e da paz.
Quando Jesus quer entrar no coração humano, não busca fazer espetáculos. Busca a simplicidade.
O povo lançava ao solo seus mantos. O que deveríamos pôr como tapete para que Jesus venha até nós caminhando sobre ele? Em vez de mantos, talvez pudéssemos cobrir o solo com tudo aquilo que nos sobra
e outros necessitam; também deveríamos forrar o chão com nossas debilidades, com nossas resistências, com nossas carências... Porque também nossas pobrezas podem cobrir de festa o caminho. O caminho de Jesus que vem a nós é também caminho de libertação e cura.
A liturgia deste dia também nos recorda que o “espaço urbano” é, certamente, área de missão da Igreja e dos cristãos. Sua principal preocupação deve ser a defesa integral da vida e de seu sentido último, o mundo dos valores éticos que iluminam o homem e a mulher na sua ação no mundo.
Como seguidores(as) de Jesus, é preciso voltar a pôr o coração de Deus no coração da grande cidade, para renová-la a partir de dentro.
Faz-se necessário uma opção por adentrar e viver imersos, com todas as consequências, no interior dos grandes centros urbanos, em seu coração, para aí descobrir o verdadeiro coração de Deus que pulsa ao ritmo dos despossuídos, dos excluídos, dos sofredores e dos sedentos por uma vida mais digna.
No meio das cidades encontramos homens e mulheres “especiais” que carregam alegremente, e muitas vezes com um profundo sentido crítico e político, a dor da humanidade, e se convertem assim em fator essencial de esperança para um futuro humanizador; são pessoas que prestam sua vida, sua acolhida e seus cuidados aos doentes, aos moradores de rua, aos deficientes, aos anciãos e solitários...
Neste tempo de pandemia do “coronavírus”, devemos expressar nossa especial gratidão aos “profissionais da saúde” que arriscam suas vidas para que outros possam fazer a “travessia” sem piores consequências.
Somos convidados a viver a mística dos profetas nas grandes cidades. O místico não se cansa de ser sinal de esperança e testemunha do Deus da Vida no meio das contradições da cidade. Na cidade somos chamados a abrir nossas casas e estarmos sempre prontos para receber os desafios que vem da rua.
A ação profética é sempre a busca permanente do outro, além das paredes da própria casa.
Texto bíblico: Mt 21,1-11
Na oração: preparar-se para fazer o “caminho da fidelidade” de Jesus, vivendo intensamente os mistérios da Semana Santa, através das celebrações, do silêncio solidário e do compromisso com aqueles que, na Jerusalém de hoje, prolongam a Paixão de Jesus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá” (Jo 11,25)
O quinto domingo da Quaresma é como uma espécie de Monte da visão, de onde podemos contemplar as primeiras luzes da Páscoa e da Vida. Ela ainda não é realidade, mas já podemos ver seus primeiros sinais. O importante é nos perguntar se, de verdade, estamos nos aproximando deste Monte da visão ou, simplesmente, ficamos no caminho, cansados, fatigados ou indiferentes.
A Páscoa é a nossa verdadeira meta? É o nosso verdadeiro horizonte?
É preciso tomar consciência de onde saímos: lugares estreitos, visões atrofiadas, atitudes conservadoras, ideias enfaixadas, sentimentos carregados de ego, coração petrificado... Ou será que vamos chegar à Pascoa tão escravos como quando partíamos, no início da Quaresma? Quanta liberdade temos hoje que não tínhamos no começo?
A CF deste ano nos apresenta como tema: “Vida: dom e missão”. Sabemos que este caminho em favor da vida é belo, instigante, mas muito arriscado. Aqueles que trabalham em favor da vida, aqueles que tiram homens e mulheres de seus túmulos, são frequentemente perseguidos, porque há interesses em jogo e muitos preferem que as coisas continuem do mesmo modo. Assim diz o Evangelho: “Que morra um (Jesus) para que o “bom” sistema prossiga...” Que morram muitos, milhões, para que o sistema neoliberal continue sobrevivendo.
É perigoso optar pela vida e testemunhar a ressurreição neste mundo de morte. Há muitos (pessoas e instituições) que preferem manter as coisas assim, traficando com a morte (vendedores de armas, promotores de uma economia que mata, etc). O evangelho revela que os primeiros traficantes da morte (“que Lázaro apodreça!”) são os dirigentes religiosos e políticos que controlam o poder a partir da mesma morte.
A única verdade é a que abre espaço de vida para todos, em justiça e paz. O único valor é a vida, cada vida, acima da “santa nação” à qual apelava Caifás, compactuando com o Sacro Império de Roma.
No processo do seguimento de Jesus, ao longo da Quaresma, somos tomados por uma “moção à vida” que nos impulsiona a uma “missão em defesa da vida”. Da moção à missão: este é o dinamismo original deste tempo litúrgico.
Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos “vivem”, porque incapazes de reinventar a vida no seu dia-a-dia; marcados pelo medo, permanecem atados, debaixo de uma fria lápide, sem nunca poder entrar em contato com a vida que flui dentro de si e ao seu redor. Na maioria dos casos, as pessoas passam sobre a vida como sobre brasas: de uma maneira superficial, fugindo do grande sentido da própria existência. Diante do impulso por viver em plenitude, contentam-se em mal-viver ou sobreviver. Trata-se de pessoas mortas diante do sentido da vida, ou seja, pessoas alienadas, desconectadas de si mesmas, sem experiência pessoal profunda e sem ter dentro de si a fonte da confiança e do entusiasmo. Criam sepulturas e se enterram.
Quem não sabe por quê vive e para quê vive, não pode eleger o como quer viver. O apelo de Jesus – “Lázaro, vem para fora!” - é um princípio de esperança, mas também de compromisso em favor da justiça neste mundo.
“Lázaro, vem para fora!” Hoje, com muito mais intensidade, é preciso deixar ressoar este grito. Venhamos todos para fora, de maneira que não vivamos mais de mortes, que não vivamos mais na indiferença e na letargia, envolvidos em sudários e vendas, compactuando com a violência e com a injustiça, dando cobertura aos que matam! Esta expressão – “vem para fora!”- é para todos; temos de sair de um mundo em que, de um modo ou de outro, nos acostumamos com as mortes, defendendo mediações e estruturas que atrofiam a vida.
Sair do túmulo significa viver para a vida, na justiça e na solidariedade; que todos possamos viver para a acolhida e a concórdia, condenando a violência de um modo radical. O caminho da vida começa ali onde tomamos consciência que não se pode matar ninguém para “manter a própria segurança”; que ninguém se aproveite da injustiça para justificar algum tipo de ação opressora.
“Jesus era muito amigo de Marta, de sua irmã Maria e de Lázaro”, e é nessa corrente de vida e amor onde aprendemos a força sanadora que as relações tem. Os três irmãos representam a nova comunidade dos seguidores de Jesus; e Jesus está totalmente integrado no grupo por seu amor a cada um(a). Cada membro da comunidade se preocupa pela saúde do outro.
A morte de Lázaro se converteu em uma benção para suas irmãs e seus amigos. Depois de atravessarem juntos a experiência dos limites, de reconhecerem-se feridos e de abraçarem a dor, fortaleceram-se os vínculos entre eles, e a amizade pode se expandir.
O amor e a amizade devolveram a vida a Lázaro, recriando esse “tecido de relações” que Jesus estabeleceu com esta família de amigos, em Betânia. Vivemos, também nós, um tempo de decomposição social e de relações superficiais. Talvez, quem sabe, muitos acontecimentos que nos custam viver escondem também uma benção.
As perdas, a dor, a doença..., nos aproximam dos outros, nos fazem mais solidários. Humaniza-nos também a ternura, a bondade, o tratar mutuamente com cordialidade... O sofrimento e a perda podem nos despertar para a dimensão de profundidade da realidade e de nós mesmos. Mas precisamos passar por um processo de transformação para que o sofrimento e a dor nos abram ao Mistério e não nos afundem no desespero. Jesus vai ajudar Marta e Maria a passar por este processo.
Em chave da interioridade, no relato evangélico deste domingo, “Lázaro” pode significar também aquilo que rejeitamos em nós mesmos, aquilo que deixamos enterrado sob uma lápide porque não nos agrada; o que ocorre é que tudo o que enterramos e reprimimos começa a exalar mau cheiro. Para começar a viver, é preciso, antes de mais nada, reconhecer o que já está morto em nós (falta de sentido, ego inflado, preconceito, frieza nas relações); reconhecer nosso Lázaro interior naquilo que há de positivo e que ainda não foi ativado, porque preferimos nos fechar em mecanismos egocêntricos; reconhecer nosso Lázaro naquilo que nos pesa e que é reprimido, ameaçando-nos continuamente como uma sombra.
Mas não é suficiente reconhecê-lo. Exige-se também crer na força da vida e no dinamismo do próprio ser habitado por Deus, que nos cria constantemente. A partir daí, podemos escutar a palavra de Jesus que chama à vida e ressuscita o Lázaro que ainda vive em nós. O que mais precisamos é reagir à apatia e à acomodação, a partir da confiança na vida e na palavra de Jesus.
O “ego” é nosso principal sepulcro: tudo o que significa culto ao “eu”, todo tipo de egoísmo, narcisismo e individualismo. É a incapacidade para a relação aberta e generosa; é o coração solitário; é aquele que se fecha em si mesmo, se asfixia, morre. No fundo, é o sepulcro do não-amor.
Sabemos disso: “todo aquele que não ama está morto”.
Texto bíblico: Jo 11,1-45
Na oração: deter-se para contemplar o coração de Jesus comovido, sacudido, diante da dor e da morte; assim é o seu coração: feito com as fibras da fortaleza e da coragem, entrelaçadas com as fibras da compaixão e da ternura.
- Para captar a presença de Deus em sua vida, fique atento(a), desperto(a), não perdido(a) em tantas coisas que o(a) levem a viver afastado(a) de si mesmo(a).
- Deus é presença calada e respeitosa. No silêncio e no olhar profundo pode-se captar os vestígios de sua presença. No amor aos outros, cada um(a) se abre à densidade de Seu amor.
- No assombro diante da vida, sentida em seu interior, perceba-se mergulhado(a) no Mistério.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Vai lavar-te na piscina de Siloé” (Jo 9,6)
Tem-se dito, e com razão, que a espiritualidade cristã é uma “espiritualidade de olhos abertos”.
Na realidade, isso vale para toda espiritualidade genuína, ou, em outras palavras, não seria verdadeira aquela espiritualidade que nos alienasse ou nos isolasse da realidade, em particular da realidade mais dolorida e sofredora. Há motivos para suspeitar de uma espiritualidade que não desemboca na compaixão, entendida esta como a capacidade de entrar em sintonia com o outro que sofre, e que se traduz numa ação eficaz a seu favor.
A CF deste ano nos apresenta o samaritano como personagem inspirador na nossa vivência da espiritualidade cristã: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”.
Todos nós, de uma maneira ou de outra, somos cegos de nascimento, porque nascemos e crescemos em meio a sistemas sociais e religiosos que domesticaram nosso olhar, nos educaram a ter um olhar avesso e atrofiado. A cura do cego de nascimento, apresentado pelo evangelista João, é o sinal que nos fala daquilo que o Senhor nos oferece: caminhar na claridade do dia.
Este homem está cego, já que nasceu no mundo fechado e ao longo de toda a sua vida aprendeu a ver com o olho cego da sinagoga. Jesus vai curá-lo através de um gesto de íntima proximidade; não realiza um espetáculo para provocar espanto, nem diz palavras ininteligíveis. Simplesmente agachou-se, cuspiu no chão e com sua própria saliva fez um pouco de barro; com a gema de seus dedos tocou com ternura os olhos do cego e o enviou a lavar-se na piscina de Siloé. É uma cena de reconstrução de uma pessoa quebrada e que nos recorda o primeiro barro com que Deus oleiro criou o primeiro ser humano.
No cego curado se revela a ação permanente de Deus: despertar a luz escondida em nosso interior, ativar a vida para dar-lhe amplitude maior.
Com o relato do cego de nascença, o evangelista João está propondo um processo catecumenal que com-duz o ser humano das trevas à luz, da opressão à liberdade, da identidade ferida à identidade reconstruída, da exclusão à participação. Mas, para isso, é preciso deslocar-se, fazer a travessia e descer em direção a Siloé, lugar das águas recriadoras. Este texto remete à experiência fundante da vida.
O caminho de “descida” é o caminho da vida. Siloé está situada na parte baixa da cidade, afastada daqueles que, na parte alta, controlam e manipulam religião e as pessoas, através da centralidade da lei, do culto, da tradição... Ali não há possibilidade da vida se expandir e se expressar em todas as suas potencialidades.
O reservatório de Siloé estava situado fora das muralhas, na parte baixa de Jerusalém e recolhia a água da fonte de Guijón e que chegava até ele conduzida por um canal-túnel (daí o nome aramaico de “siloah”= emissão-envio, água emitida-enviada). Era uma maravilha de engenharia, mandado construir pelo rei Ezequias no ano 700 ac, para fazer a água chegar à cidade.
No final daquele túnel o cego se faz presente, lava-se, assume sua vida, torna-se independente: um novo nascimento. Agora ele começa a acreditar em si mesmo, em seu valor como ser humano, em sua capacidade de ver e de dar direção à sua vida; assume sua condição humana e deixa de se sentir escravo dos outros, controlado por pais e mestres, como um mendigo inútil; na sua liberdade, ele agora pode assumir sua vida, decidir, dizer, afirmar-se...
Inspirados no evangelista João poderíamos dizer: a doença é a manifestação da perda do contato do ser humano com sua fonte divina. As duas narrativas de cura mais importantes no 4º. evangelho, ocorrem no tanque de Betesda e no reservatório de Siloé. Quando o ser humano é separado de sua fonte divina, ele adoece, e a cura acontece, quando esse contato com a fonte interior é reestabelecido. Para que isso aconteça, Jesus não precisa levar o doente até a piscina de Siloé; bastam o encontro com Ele e a força de Sua palavra para reconectar o enfermo com sua fonte profunda, da qual estivera separado.
Jesus reconstrói o cego quebrado em sua dignidade, mas motiva-o a assumir sua responsabilidade, deslocando-se ao reservatório de água de Siloé e rompendo sua dependência para com os fariseus e sacerdotes que o oprimiam, mantendo-o preso à sua situação de cegueira existencial. O apelo de Jesus é para que o cego seja ele mesmo, em liberdade; com seus gestos e com a força de sua palavra, Jesus despertou no cego a mobilidade e independência.
Nesse sentido, caminhar em direção a Siloé é descer em direção à própria humanidade, ao mais profundo de si mesmo, para lavar-se no manancial das águas puras. O cego seguiu as instruções, recuperou a vista e atingiu a integridade humana: passou da morte à vida, da opressão à liberdade.
Todos sabemos que o ser humano é dotado de recursos internos inesgotáveis. Cada um possui dentro de si uma fonte de forças reconstrutoras, renováveis, resilientes. Mas, muitas vezes, é preciso de um estímulo externo para reconectar-se com essa fonte.
Sabemos e sentimos, no mais profundo, o que é mais saudável e vital para nós, porém precisamos do encorajamento externo para voltar a confiar em nossas próprias potencialidades. O evangelho deste domingo nos ensina o caminho através do qual descemos a uma dimensão mais profunda e assim chegamos à corrente subterrânea; aqui experimentamos a unidade de nosso ser; aqui é o lugar da transcendência, onde nossa transformação realmente acontece.
Tal experiência significa abertura, dilatação do coração, expansão da consciência ao ver que tudo parte de Deus (Fonte do rio da vida) e tudo volta para Deus (rio que mergulha no Mar). A experiência de oração, junto à Piscina de Siloé, nos conduzirá à outra fonte, aquela que brota do coração, e que estava ressequida, impedindo-nos de reconhecer o murmúrio da água viva.
Sentados à beira da fonte silenciosa, poderemos, também nós, atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que dão sentido e consistência ao nosso viver.
O manancial de nosso ser essencial constitui nossa autêntica vida. Descobri-lo, abrir-nos a ele, fazer-nos transparentes a ele e vivê-lo cada dia..., constituem a plenitude de nossa realização. A “descida” até o mais profundo de nós mesmos, requer que deixemos para trás um contexto de competição, de rivalidade e vazio, de fechamento e rigidez, de superficialidade e isolamento...
O encontro com a “água viva” abre futuro novo, motivando-nos à tomada de decisões, a assumir um estilo de vida coerente com aquilo que encontramos no fundo do nosso próprio coração.
Texto bíblico: Jo 9,1-38
Na oração: sente-se junto à sua Siloé interior; mergulhe na “fonte” que corre, desça às “águas” do amor do Pai, deixe-se molhar pelas Palavras do Filho e receba a força e a luz do Espírito.
- Na sua vida, o que está bloqueando, impedindo a manifestação das melhores forças, inspirações, criatividade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Todo aquele que bebe desta água terá sede de novo” (Jo 4,13)
Diante da imagem do deserto, muito presente durante o tempo quaresmal, a sensação é de sede.
O deserto evoca nossa sede de água e de plenitude. Onde encontrar a água? Como saciar nossa sede?
É cada vez maior o número de restaurantes que dispõem de “menu de águas”. Águas dos mananciais mais puros, dos aquíferos mais profundos, das nascentes mais cristalinas... Água abundante e ao alcance daqueles que podem pagar por ela. Uma água para cada sede e uma sede para cada água.
No entanto, no mais profundo de nosso ser, somos habitados por uma sede que nenhuma água pode saciar: sede de sentido, de plenitude, de vida inspirada e criativa...
Bendita sede que nos mantém abertos a Deus e aos outros! As pessoas que fizeram diferença e mudaram o mundo foram aquelas profundamente sedentas. Amaram essa sede de que fala Jesus: “Se tu conhecesses o dom de Deus...” Pessoas que ativaram a sede de justiça, no deserto de uma injustiça asfixiante; pessoas que suportaram a sede de paz sob forte pressão das fábricas de armas; pessoas que viveram a fundo sua fé em uma Igreja que, com frequência, as deixava sedentas e as colocava à margem. Pessoas que se encheram de Deus porque renunciaram saciar aquela sede com qualquer água. Precisamos de pessoas, como a samaritana, que nos deem as coordenadas d’Aquele que pode despertar nossa sede, antes de nos dar água.
Jesus, junto ao poço de Jacó, é a viva imagem de um “Deus sedento”, que ama a humanidade até morrer de sede por ela, e que uma esponja molhada em vinagre não conseguirá apagá-la. Junto ao poço, nossa pequena sede e a sede de Deus se encontram. Sua sede de justiça confrontada com nossa sede de harmonia; sua sede de misericórdia confrontada com nossa sede de reconhecimento; sua sede de compaixão confrontada com nossa sede de segurança. Não para diminuir nossa sede, mas para ampliá-la; não para menosprezá-la, mas para dignificá-la.
A vida, carregada de obrigações, compromissos, preocupações, rotinas..., onde investimos tanta atenção e energia, pode maquiar ou bloquear as sensações profundas, fazendo-nos perder o contato com nossa sede original e criando um deserto existencial. Jesus assume nosso deserto; acolhe-o, fazendo-se presente em seus recantos de dúvida, de medo, de solidão. “Dá-me de beber”, ressoará no nosso eu mais profundo. E poderíamos lhe dizer: com a sede que temos, nos pedes que sacie a tua sede? A resposta não se faz esperar: é Deus quem tem sede de nós, é Jesus que nos convida a partilhar de nossa água com Ele.
Jesus cansado e sedento, sentado à beira do poço; uma mulher com sede que acode com seu balde para tirar água. Dois sedentos e com a água no poço. Sedentos os dois de água, mas, possivelmente, os dois também sedentos de algo mais que água. Jesus sedento quer encher de água viva aquele coração cheio de “maridos”; uma mulher sedenta de algo mais que pudesse apagar a sede que seus maridos não conseguiam.
A samaritana chega ao poço, alheia ao que ali lhe esperava e que, na trivialidade de sua vida cotidiana, tudo fazia-se previsível: vai somente buscar água com o cântaro vazio para retornar à sua casa com ele cheio. Não há mais expectativas, nem outros planos, nem mais desejos. Mas o imprevisível está esperando por ela, na pessoa daquele galileu sentado na beira do poço, que inicia uma conversação sobre coisas banais, talvez para não assustá-la: falam de água e de sede, de poços e de velhas desavenças entre povos vizinhos, coisas de todos os dias.
Jesus começa como o frágil sedento que se atreve a pedir água. A mulher, muito segura de si, sente-se dona do poço, da água e do balde. Subitamente, irrompe a linguagem das “coisas do alto”: o dom, uma água que se converte em manancial vivo, a promessa de uma sede saciada para sempre, um Deus que nos busca, fora dos espaços estreitos de templos e santuários.
A samaritana se defende e procura manter a conversa em um nível de trivial superficialidade, fugindo da irrupção do “novo” em sua vida. Mas, no final da cena, o cântaro que era símbolo da pequena capacidade que está disposta a oferecer, permanece esquecido junto ao poço, já inútil à hora de conter uma água viva. E os dois, Jesus e a mulher, terminam esquecendo-se da sede, da água, do poço e do balde. Duas vidas que se encontram e se comprometem: Jesus, que vai abrindo caminho para chegar ao profundo daquele coração feminino; a mulher que resiste, mas, aos poucos, se abre às palavras daquele homem imprevisível; Jesus, que vai desvelando a mulher por dentro, fazendo emergir seus profundos vazios; a mulher que co-meça a sentir o borbulhar do manancial em seu coração, encontrando-se com a verdade de si mesma; Jesus que vai se esquecendo do poço de Jacó e vai abrindo uma nova fonte naquele coração de mulher; a mulher que se esquece da água e do cântaro e regressa ao seu povoado gritando o que seu coração encontrara.
O encontro com a mulher samaritana é um belo ícone para descobrir o Mestre da Galileia que, como um grande mistagogo, vai conduzindo-a ao centro de si mesma, à profundidade de seu mistério pessoal e à consciência de ser uma “mulher habitada”.
“Descer” ao fundo do poço é a oportunidade para descobrir regiões novas e novos horizontes, para conhecer o reino interior, para encontrar a riqueza profunda e assim experimentar a transformação.
O caminho para uma nova qualidade de vida passa pela descida ao mais profundo do nosso próprio poço. Isso requer coragem para passar por todas as regiões sombrias e chegar ao fundo. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido. Lá no fundo, encontra-se um bem precioso que podemos levar conosco, que nos ajuda em nosso caminho e que nos faz totalmente íntegros e sãos.
A CF deste ano, com o tema “Vida, dom e missão”, nos motiva a despertar as potencialidades de vida que ainda permanecem adormecidas. É preciso “descer” até às profundezas para descobrirmos uma nova riqueza que plenificará nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida. É preciso despertar, escavar, avançar em direção ao “manancial” e saber que este não é nossa propriedade; ele nos é oferecido. Não basta falar de “água viva”, é também necessário “escavar” nosso “chão interior”, desbloquear e ampliar o espaço do coração para que o manancial ali presente, encontre chance de emergir e dar um novo sabor à nossa vida.
A vida sempre está oculta nas profundezas. A pessoa superficial é aquela que se confunde com suas ideias, seus apegos, suas falsas seguranças.... A pessoa do “eu profundo” é aquela que vive a partir da raiz, da fonte mesma da vida, e deixa vir à tona todas as suas riquezas, dons, capacidades...
O percurso quaresmal “des-vela” nosso “eu profundo”, o lugar onde habitam os aspectos benéficos da nossa personalidade, as boas tendências, as qualidades positivas, os dons naturais, as riquezas do ser, as beatitudes originais, as aspirações de grande fôlego, as idéias-força, os dinamismos da vida..., que formam o eixo de nossa existência, o melhor de nós mesmos, o fundamento de nossa verdadeira identidade.
O “tesouro do ser” (certezas, intuições, projetos, valores...), ainda que pareça esquecido, permanece armazenado em sua mensagem essencial, e pode se tornar a força que orienta toda a vida, a sabedoria da própria vida, um lugar de fecundidade, de criatividade, fonte de renovação...
Texto bíblico: Jo 4,5-42
Na oração: para realizar-se e desenvolver toda a sua potencialidade, busque, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de seu ser, o núcleo original de sua personalidade.
- Diante da presença de Deus, esteja aberto(a) ao contato com a própria realidade interior, para que venha à superfície aquilo que sustenta e dignifica o seu viver.
- Dirija seu olhar para o mais íntimo de si mesmo(a), onde nascem sentimentos e valores, decisões e gestos..., onde você é convidado(a) a se alegrar com os rastros da Graça.
- Deixe-se conduzir pela “sede” de Deus que está enraizada em seu coração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O seu rosto brilhou como o sol e as suas vestes ficaram brancas como a luz” (Mt 17,2)
“Saí de vossas trevas! Deixai para trás a segurança do vale e empreendei, sem medo, a subida ao monte, porque lá no alto a luz vos espera!”. Este poderia ser o apelo do evangelho da Transfiguração, que pede de nós mobilidade para sair das falsas seguranças de uma vida sem horizontes. De fato, há em nós uma força atrofiadora que nos faz preferir a acomodação, permanecendo tranquilos, perdidos no imediato e alheios à capacidade de transfiguração que se esconde por detrás da aparente normalidade das pessoas e das coisas.
“O mundo está cheio de esplendor espiritual e de segredos maravilhosos, mas basta um pequeno cisco sobre nossos olhos para que tudo fique escondido”(Baal Sem Tov). Por isso, no Evangelho de hoje, e com diferentes graus de intensidade, o evangelista sai da esfera plana das descrições precisas e exatas e se expressa na linguagem do excessivo, do simbólico, do totalizante: “seu rosto brilhou como o sol”, “suas roupas ficaram brilhantes como a luz”, “uma nuvem luminosa os cobriu”... E como contraste escuro frente a tanta luz, três pobres homens assustados que balbuciam disparates, que preferiam permanecer junto a esta situação tão surpreendente.
A Transfiguração está nos dizendo quem era realmente Jesus e quem somos realmente cada um de nós. Essa cena que Mateus relata é um símbolo das muitas “experiências de transfiguração” que todos experimentamos. A vida diária tende a fazer-se cinza, monótona, cansada, e a deixar-nos desanimados, sem forças para caminhar. Mas, eis que surgem momentos especiais, com frequência inesperados, em que uma luz atravessa nosso coração, e os olhos de nossa interioridade nos permitem ver muito mais longe e muito mais fundo daquilo que estávamos acostumados a olhar até esse momento.
A realidade é a mesma, mas nos aparece transfigurada, com outra figura, revelando sua dimensão interior, essa na qual tínhamos acreditado, mas que com o cansaço do caminhar tínhamos esquecido. Essas experiências, verdadeiramente espirituais, nos permitem renovar nossas energias e, inclusive, entusiasmar-nos para continuar caminhando, com o sentimento de “como se víssemos o Invisível”.
Aquele Monte (Tabor) foi um espaço instigante para Jesus, lugar alto de sua experiência radical, de onde Ele podia ver os problemas da humanidade, para senti-los, para assumi-los e mudar... O mesmo Jesus nos faz subir à grande montanha para que vejamos as coisas de outra forma, de outra perspectiva...
É preciso, de vez em quando, tomar distância e nos afastar do cotidiano rotineiro e atrofiado, para ampliar nossa visão e contemplar o drama humano; é decisivo nos situar diante do calor de Deus (sarça ardente) para desvelar nossa verdadeira identidade. Somente assim a Montanha nos transfigurará para que nos empenhemos no serviço em favor dos “desfigurados” do mundo.
Todos nós aspiramos por experiências como a dos discípulos de Jesus no alto do Tabor. Mas nós não podemos nos encontrar com Jesus no Tabor da Galileia. Necessitamos buscar nosso Tabor particular, os rincões de nossa morada interior, onde estão as fontes que mais forças nos dão, as luzes com as quais nos sintonizamos para iluminar e dar um novo significado ao nosso compromisso primeiro. Todos nós somos portadores de uma luz que procede de dentro, uma iluminação interior, que só aquele que vive a partir de sua própria interioridade consegue ter acesso a ela.
Ao relatar suas experiências espirituais, muitos místicos fazem referência a uma luz que ilumina com força seu interior. É uma graça que não se revela rara, pois temos consciência que “Deus é luz” e que o mesmo Jesus se definiu como a “Luz do mundo”. Somos envolvidos providencialmente por esta expansiva Luz. Todas as pessoas que fizeram esta experiência de encontro com o “Deus da Luz”, puseram os meios para fazer a viagem interior e ativar a “faísca da luz divina” ali presente. Na medida em que se deixaram invadir por essa Luz, aproximaram-se cada vez mais dela para vivê-la com mais intensidade e para deixá-la refletir em seus rostos e ações. Por isso, foram pessoas de presenças originais e iluminantes em seu meio.
No ritmo do cotidiano, o dom imenso da luz passa desapercebido. Que o digam aqueles que não podem ver; que o digam aqueles que nunca puderam estremecer-se diante de um pôr-do-sol ou diante das cores vivas de uma pintura; que o digam aqueles que nunca puderam ver o brilho de uns olhos cheios de amor... Na costumeira cotidianidade, o perigo de não valorizar a luz é evidente; no entanto, para quem contempla sua cotidianidade, a formosura da luz que se derrama sobre nós que vivemos neste planeta sem luz própria é a prova da generosidade de Deus para conosco.
Por isso mesmo, há vidas luminosas e vidas obscuras. Há pessoas cuja luz interior transfigura suas vidas: vivem na transparência da luz, seus gestos e atos são luminosos, admiram-se com o brilho da vida e desejam que tudo tenha esse brilho, iluminam com sensata positividade tudo o que acontece ao seu redor, colocam-se sempre na perspectiva de quem desfruta da cor e do amor no encontro com os outros...
O resplendor da Transfiguração brilha no interior de cada um de nós; não nos vemos vazios por dentro porque no mais profundo de nós, na morada mais interior, está o “sol de onde procede uma grande luz” (Santa Teresa de Jesus). Deixar-nos transfigurar. Somos seres de luz e nossa verdadeira transformação nasce de nosso interior.
Na Transfiguração, Jesus nos faz descobrir nosso verdadeiro ser, que vemos refletido n’Ele. A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Deixar-se transfigurar é descentrar-se e expandir sua luz, para realizar aquele chamado único de Jesus dirigido a todos: “Vós sois a luz do mundo”.
Transfiguração é festa da luz: Jesus é a Luz e no encontro com Sua Luz podemos ativar a tímida luz presente no nosso interior. Só assim podemos ampliar os espaços de luz em nossas vidas, para contagiar-nos de luz e para comunicar uma mística de luz em nosso entorno. Não se trata de falsas iluminações, mas de alcançar outra perspectiva de vida, mais luminosa, mais positiva, mais esperançada.
Para transitar na noite de nosso tempo precisamos buscar, na Transfiguração, a Luz que a ilumine e nos indique a direção e o sentido de nossa existência. A “noite de nosso mundo”- carregada de tanta corrupção, violência, preconceito e intolerância - pede pessoas marcadas pela experiência da Transfiguração, capazes de ver a presença d’Aquele que é a Luz no meio das realidades simples e cotidianas, no profundo do coração de cada ser humano, de cada realidade vivente, de cada palmo de nossa terra, no mistério insondável do universo grávido de graça.
Precisamos cultivar não só olhos que vejam a realidade, senão que sejam capazes de contemplar, no meio da noite, a presença da Luz: uma luz que brota das profundezas da realidade, do profundo do ser, onde o Deus, Fonte de vida, sustenta tudo; uma Luz que nos faz descobrir nosso ser essencial: filhos e filhas amados(as) e irmanados(as) com todos e com tudo.
Texto bíblico: Mt. 17, 1-9
Na oração: Na nossa vida cristã, não faltam momentos de claridade e certeza, de alegria de luz.
E tudo depende de nossa visão, ou seja, se nosso olhar só capta o imediato e rasteiro que nos rodeia, ou se é capaz de descobrir o profundo e o luminoso em tudo...
- Como é seu olhar? Você é capaz de transfigurar o olhar para captar a presença da Luz, da profundidade de sentido, da presença de Deus... que há por detrás de cada circunstância?
- Sua presença cotidiana, é oportunidade para deixar transfigurar sua luz interior, que se visibiliza na bondade, na compaixão, no compromisso com a vida...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O Espírito conduziu Jesus ao deserto...” (Mt 4,1)
Na experiência do batismo, Jesus escutou a voz do Pai. Trata-se do principal momento teofânico de sua vida, juntamente com a transfiguração. Mateus se serve deles para proclamar que a identidade de Jesus consiste em ser o Filho amado do Pai. Essa é sua identidade e nela se revela que seu “código genético” consiste em ser o Filho, o Amado, o Predileto..., sobre quem se visibiliza a complacência do Pai.
Agora podemos compreender sua ida ao deserto, movido pelo Espírito, como uma necessidade imperiosa de “processar”, no silêncio e na solidão, essa revelação, de alargar espaço, em sua interioridade, para o deslumbramento e o assombro.
O significado do deserto não é prioritariamente o penitencial. “Levá-lo-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração”, tinha dito Oséias (2,16), convertendo o deserto em um lugar privilegiado de encontro pessoal e de escuta da Palavra. Jesus é conduzido ao deserto para acolher a Palavra escutada em seu coração no momento de seu batismo. Ele precisava de tempo para assentar no mais profundo de seu ser uma Palavra que o descentrasse para sempre de si mesmo e o situasse à sombra da ternura incondicional de Alguém maior.
O evangelista Mateus apresenta a estadia de Jesus no deserto como um tempo de lucidez, fazendo-nos perceber que a relação filial da qual Ele tinha tomado consciência, iluminou de tal maneira sua visão, que se tornara impossível confundir a Deus com os falsos ídolos que o tentador lhe apresenta: um deus em busca de um mágico e não de um Filho; um “deus” contaminado das vazias pretensões do pior da condição humana: ter, brilhar, ostentar poder, exercer domínio...
O que parece claro é que Jesus buscou o deserto para um tempo de discernimento, em oração e em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho; Ele teve de refletir e discernir sobre o modo como assumiria sua missão em sua vida pública.
Ora, essa missão comportava, de fato, não só um fim que havia de realizar (a salvação e a libertação total da humanidade) senão, também, um meio, ou seja, um caminho e uma maneira de proceder, tendo em vista alcançar aquele fim. E esse meio ou esse procedimento era, essencialmente, a solidariedade com todos os pecadores e excluídos da terra, a ponto de morrer com eles e por eles.
Não podemos esquecer que o tentador não propõe a Jesus que se afastasse de seu fim, ou seja, de seu projeto messiânico de salvação (“Se és o Filho de Deus...”), senão que, na realidade, o que ele faz é oferecer a Jesus alguns meios determinados para realizar a implantação do Reino do Pai.
Como viver sua missão e a partir de quê lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente a Palavra do Pai? Como deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? Buscando sua própria glória ou a vontade de Deus? Centrando sua vida na busca de poder e riqueza ou assumindo uma vida pobre, como expressão de solidariedade com os mais excluídos?
Na cena das tentações, vemos Jesus reagindo do mesmo modo como fez ao longo de toda sua vida: centrado e em sintonia afetiva com tudo aquilo que Ele vai descobrindo como o querer de seu Pai: a vida abundante daqueles que veio buscar e salvar. Ele não veio para preocupar-se de seu próprio pão, mas de preparar uma mesa na qual todos pudessem se sentar para comer; Ele não veio para que os anjos o carregassem sobre as asas, para angariar fama e “ter um nome”, mas para dar a conhecer o nome do Pai e carregar sobre seus ombros todos os perdidos, como um pastor carrega a ovelha extraviada. Não veio para possuir, dominar ou ser o centro, mas para servir e dar a vida.
O que livra Jesus de cair nos enganos do tentador é sua excentricidade, sua referência ao Pai e à sua Palavra, e, a partir desse Centro, receberá o impulso para abandonar o deserto e se deixar conduzir pela corrente de Vida, alimentada pelo Espírito. A partir desse momento, vê-lo-emos caminhando pela Galileia, entrando em relação com o mundo dos pobres e excluídos, anunciando o Reino, criando uma nova comunidade de vida, buscando colaboradores, aproximando-se das pessoas, entrando nas casas, acolhendo, curando, ensinando, abrindo um horizonte de sentido para a vida das pessoas...
A passagem evangélica das tentações também nos inspira a encontrar com o mesmo Deus a quem Jesus conheceu no deserto: um Deus que não exige de nós proezas nem gestos espetaculares, mas somente alimentar nossa confiança n’Ele e nosso agradecimento; um Deus que nos dirige sua Palavra, não para nos impor obrigações ou para apontar nossas fragilidades, mas para nos alimentar e nos fazer crescer; um Deus que não é encontrado nos lugares carregados de prepotência, de poder, de vaidade e consumismo, mas nos lugares do despojamento e da simplicidade de vida, nos lugares dos “descartados” e excluídos.
Muitas vezes pensamos que Deus é um “estraga-prazeres”, ou um Deus triste que não quer que vivamos prazerosamente. E, então, temos a sensação que as tentações são essas coisas fascinantes que nos seduzem, mas que temos de renunciá-las em nome de uma suposta “perfeição”. Porém, Deus não é Aquele que complica nossa vida com leis, sacrifícios, renúncias... Ele quer que vivamos e, de maneira intensa.
Para cruzar os desertos da vida é preciso ativar uma atitude de esvaziamento de tudo aquilo que é “peso morto” para chegar ao mais profundo e verdadeiro de nosso ser. O deserto nos revela de onde viemos e para onde vamos; ele nos remete inteiramente ao Doador da vida e desperta outros recursos vitais, aninhados em nosso interior.
Tudo o mais é pouco para a sede do coração. “Só Deus basta”, nos sussurra o deserto.
Desde sempre, a humanidade inteira e cada um de nós, estamos expostos à tentação. Faz parte de nossa condição humana. Trata-se de um conflito permanente que pode travar nossa existência por dentro.
Por um lado, sentimos o apelo e o impulso para o bem, para a liberdade, para o compromisso e a fraternidade. Mas por outro, sentimos também a sedução e a tendência para o egocentrismo, o prestígio e os instintos de poder e posse. Sentimo-nos simultaneamente santos e pecadores, oprimidos e libertados.
As tentações sempre estão diante de nós, como pedras que se convertem em pães, como aplauso buscado a partir dos critérios do mundo, ou como joelhos que se dobram frente às promessas de um ídolo com pés de barro. São dinamismos que bloqueiam o fluxo da vida, impedindo-a de se expandir e de se colocar a serviço de outras vidas.
Ser tentado é próprio do humano, mas o que é divino pode também ser encontrado em nosso interior.
Quem é conduzido pelo Espírito, é capaz de acessar à própria interioridade e não se deixa enredar pelos estímulos externos nem pelos impulsos egóicos.
Diante das tentações do poder, do ter e do prestígio, o(a) seguidor(a) de Jesus responde com a partilha, o serviço, a comunhão, a solidariedade... O tempo quaresmal vem ativar esse dinamismo expansivo. E a Campanha da Fraternidade nos motiva a fazer da vida um grande dom e um profundo compromisso.
Só quem se deixa conduzir pelo Espírito, como Jesus, consegue romper com tudo aquilo que atrofia a vida; só assim consegue fazer o salto libertador
Trata-se de ser dócil para deixar-se conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entende e não sabe. É Ele que ativa o que há de melhor em si mesmo, expandindo sua vida em direção aos valores do Reino: desapego, serviço, esvaziamento do ego...
Na realidade, só existe uma “grande tentação” para os cristãos: a tentação radical da infidelidade a Cristo e a seu Reino. É a tentação de traçar para si mesmo um caminho, isto é, de projetar uma vida para si, dando uma direção diferente daquela que lhe deu o próprio Deus. Esta é a maneira de trair o melhor de si mesmo, de renunciar ao que há de melhor em si mesmo. Tentação essa que significa o fracasso da própria vida.
Texto bíblico: Mt 4,1-11
Na oração: Diante de “Jesus tentado”, recorde experiências pessoais de tentação: quais são aquelas que mais lhe afetam e lhe seduzem? Como você procede para não se deixar conduzir e nem se determinar por elas?
- Recorde dimensões da vida que precisam ser ampliadas a partir da experiência do deserto.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E o teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa” (Mt 6,4)
Com a cerimônia da “imposição das Cinzas”, toda a Igreja dá início ao percurso Quaresmal. Neste tempo litúrgico, inspirados pelo tema da CF2020, teremos a oportunidade de experimentar um modo diferente de viver, onde a verdadeira liberdade terá a chance de se expressar.
Quaresma pode ser escola de vida para o restante do ano; é tempo favorável para “ordenar a própria vida” na direção do sonho de Deus para toda a humanidade. Para que este processo de “ordenamento” aconteça, o tempo litúrgico quaresmal nos convida a “considerar” as nossas relações vitais: com Deus, conosco, com os outros e com o mundo.
Nem sempre sabemos viver de maneira intensa: conformamo-nos com uma vida estreita, estéril, fechada ao novo, carregada de “murmurações”... O dinamismo do Seguimento de Jesus, no entanto, é gerar vida, possibilitar que o(a) discípulo(a) viva a partir da verdade mais profunda de si mesmo(a); ou seja, viver a partir do coração. O seguimento proporciona vigor inesgotável, a vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no Deus de Jesus está na vida que leva; ou seja, está na experiência de viver como viveu Jesus de Nazaré.Distanciar-se da vida superficial-consumista e eleger a vida plena, profunda, comprometida: aqui está o sentido do “percurso quaresmal”
Em sintonia com toda as comunidades cristãs somos chamados a viver o “tempo quaresmal” sempre de ma-neira nova e inspiradora. O centro de nossa vida é Jesus Cristo, sua pessoa, sua mensagem, o mistério de sua morte e de sua ressurreição. O caminho do seu seguimento é sempre rico e surpreendente. Muitas vezes, corremos o risco de viver o tempo litúrgico da Quaresma como uma celebração rotineira, algo já conhecido.
Contemplando Jesus Cristo, descobrimos também quem somos nós. Ele nos interpela: que queremos fazer de nossa vida? Como queremos viver? Para quê e para quem vivemos?...
Nesse sentido, através da Campanha da Fraternidade, a Igreja no Brasil nos motiva a viver a Quaresma como um tempo privilegiado para dar um novo sentido à nossa vida. Através do tema “Vida, dom e Missão” e do lema “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”, somos movidos a desatar todas as ricas possibilidades e recursos que querem se expressar e que se encontram no mais profundo de nossa interioridade.
A imagem de Jesus, presente junto às vidas feridas e bloqueadas, nos ajuda a conhecer nossa própria interioridade e desperta nossa vida, arrancando-a de seu fatal “ponto morto”, de seus limites estreitos e constituindo-a como vida expansiva em direção a novos horizontes. Nesse sentido, nossa quaresma torna-se um “estar com Jesus” para, como Ele, dar a Deus o lugar central de nossa vida. A quaresma é um tempo em que damos maior liberdade a Deus para agir em nós; é abrir espaço, alargar o coração para a ação de Deus. É tempo de reconstrução de nós mesmos (conversão), de retomada da opção fundamental por Deus e pelo seu Reino (maior serviço, mais compaixão, mais partilha, mais solidariedade...).
O Evangelho da 4ª. feira de Cinzas fala das “práticas quaresmais” da oração, esmola e jejum, onde nossas relações são iluminadas e questionadas pelo modo de viver e de proceder de Jesus. São três gestos que nos humanizam e tornam a vida mais leve e com sentido; eles condensam o sentido da vida cristã e apresentam-se como uma alternativa privilegiada para viver com mais intensidade. A vida é um abrir-se aos demais (esmola), sintonizar-se com o coração de Deus (oração) e colocar ordem na própria existência (jejum).
É preciso criar espaço novo no coração e na mente, para que coisas novas aconteçam. Sintonizados com o lema da CF – “viu, sentiu compaixão e cuidou dele” – a Quaresma é também um tempo privilegiado para reeducar a olhar: superar o olhar possessivo, interesseiro, frio... e entrar em sintonia com o modo de olhar de Jesus, ou seja, olhar carregado de admiração, compaixão, calor humano... Este tempo litúrgico nos move a fixar o olhar naquilo que vivemos, a contemplar tudo o que compõe nossa existência, para dar um novo sentido e significado.
Como o bom samaritano, precisamos re-aprender a olhar, para nos deixar impactar pela situação dos outros, sobretudo dos mais carentes e excluídos. Nesse sentido, as três práticas quaresmais – “jejum, oração e esmola” – implicam também uma conversão do olhar, para captar o mistério da vida que nos envolve e nos aproximar d’Aquele que é Fonte da Vida.
A liturgia quaresmal nos propõe o jejum; aqui, a novidade não está tanto em reduzir o que comemos, o que ingerimos de uma maneira quase mecânica. O jejum também tem a ver com o sentido da visão: olhar a nós mesmos, fixar a atenção naquilo que nos alimenta, ativar a prática de nos olharmos com mais compaixão; talvez, afastar de nós aquele olhar que nos destrói por dentro, que nos causa dano, que bloqueia a expressão de nossa verdadeira identidade. O olhar é o reflexo de nossa interioridade; ele tem um grande poder porque deixa transparecer o que acontece e o que sentimos por dentro.
A outra prática quaresmal proposta é a esmola; dar o que temos, não o que nos sobra; aqui significa compartilhar um olhar novo, que eleva o outro, que consegue perceber nele um tesouro escondido, olhar humanizante e humanizador; tem a ver com o presentear ao outro um olhar de consolo, de acolhida, de cuidado, de sorriso...; acostumamos a “ver” as coisas, as pessoas e, de tanto ver, banalizamos o olhar, perdendo a capacidade de despertar assombro e encantamento. Vemos e não olhamos. O que está próximo de nós, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual vai se estreitando e tudo se torna rotina.
É salvífico ativar o olhar mais expansivo e contemplativo, um olhar que nos faz sair de nós mesmos, conduzindo-nos à admiração e ao encantamento diante do dom maravilhoso da vida, em suas múltiplas expressões. Olhar que desperta a gratidão e o louvor. Um olhar que deixa transparecer, neste tempo propício, que a Vida com maiúscula é possível.
E, finalmente, a prática quaresmal por excelência: a oração. Deixemos retumbar dentro de nós a pergunta: “a partir de onde você olha?” A liturgia nos pede, neste tempo litúrgico, que sejamos capazes de olhar a partir de Deus; que fixando nosso olhar no Senhor Jesus, sejamos capazes de olhar-nos com mais bondade, de olhar os outros com mais carinho, de olhar a criação com mais admiração. Só assim teremos olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo.
Quaresma é um tempo para nos deixar olhar por Deus, para descobrir o olhar em cada irmão e aprender a olhar como Deus olha, porque um olhar Seu, bastará para nos fazer “converter e crer no evangelho”.
“Um olhar contemplativo percebe sinais de evangelho nos acontecimentos mais simples” (Ir. Roger).
Quaresma é um convite a começar outra vida, a concentrar nossas energias e a nos deslocar em outra direção. Nesse sentido, a vivência quaresmal é uma verdadeira “escola de vida”, cujo aprendizado nos leva ao centro do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração da Trindade, dele haurir a seiva da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus.
Nada mais contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa, é convocação...
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração:
- torne o seu coração vulnerável ao olhar do Pai, receptivo a todo apelo que vem d’Ele, deixando-se tocar pelo inesperado, pela novidade, pela iniciativa amorosa de Deus.
- evangelizar o olhar: aprender a olhar como Jesus, ultrapassando as aparências.
- como você “olha” as pessoas, as coisas, os fatos, o mundo...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48)
O evangelho deste domingo é continuação do discurso de Jesus sobre o Monte, onde apresenta o modo original de ser e de viver dos seus seguidores; trata-se da nova justiça do Reino, onde Jesus vai até às raízes mais profundas de nosso ser para ativar o amor ali presente; este amor, aberto, oblativo, gratuito..., é capaz de uma nova relação até com os inimigos, em profunda sintonia com o modo de agir do Pai, que ama a todos, bons e maus, pois todos são seus filhos e filhas.
Mas, quando Jesus fala em amar os inimigos, não se refere somente àqueles inimigos externos. Suas palavras se referem também a um acontecimento interior. Quando o inimigo é uma força externa nem sempre há motivos para assumirmos a culpa. Mas quando o inimigo se encontra no nosso interior e nós não conseguimos entrar em acordo com ele, os responsáveis somos nós mesmos; precisamos saber lidar com nossas sombras e fragilidades e, assim, reconciliar-nos com o inimigo interno que rejeitamos.
Reconciliar-nos com nossas fraquezas e nossos lados sombrios é um processo doloroso, mas, quando tentamos evitar essa dor e ignoramos o nosso adversário interior, acabamos gastando muita energia na ilusão de mantê-lo afastado. Se não chegarmos a um acordo com o inimigo em nosso interior, ele se transformará em um tirano que nos dominará; aquilo que rejeitamos em nós se transforma em juiz interior e esse nos manterá confinados na prisão do nosso próprio medo e da auto-rejeição.
A cura significa também reconciliação; nosso inimigo interior só se transformará em nosso amigo e ajudante no nosso caminho de vida se nos reconciliarmos com ele. Ao oferecer-nos um gesto de perdão em vez de um gesto de repulsão ou de condenação, tornamo-nos mais humanos. Demonstramo-nos humanos com quem mais precisa de humanidade: nós mesmos.
É o momento da compaixão para conosco mesmo.
Diante da necessidade de reconciliação com nossas sombras, limites, fragilidades e fracassos..., pode parecer estranho a afirmação final, no evangelho de hoje: “Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”. Lucas, no entanto, modifica as palavras de Jesus para escrever: “Sede misericordiosos, como vosso Pai é misericordioso”. Sem dúvida, esta expressão parece mais ajustada, inclusive por todo o contexto. E tem razão, porque não se pode exigir que o ser humano seja “perfeito”; não só não está ao seu alcance, mas essa demanda pode conduzi-lo a um perfeccionismo estéril e esgotador.
Foi assim que, ao longo da história, surgiu uma cultura da perfeição; por séculos, a perfeição seduziu, modelou, dominou e controlou a existência de comunidades e sociedades inteiras. A nossa cultura é controlada pela ideia de que o ser humano pode e deve ser “perfeito”. Desde a nossa infância fomos impelidos a procurar a perfeição.
Anos e anos, essa ideia de “perfeição” foi modelando nossa mente e petrificando nosso coração. Também na vida cristã, inúmeras pessoas e grupos religiosos nasceram e cresceram seguindo as pautas de formação do chamado “ideal de perfeição”, gerando muita rigidez, moralismos, culpabilidades, escrúpulos... e farisaísmo. O seguimento da pessoa de Jesus foi se esvaziando, dando lugar a um voluntarismo centrado na prática minuciosa de leis e normas (legalismo).
Esse conceito assumiu um valor central na compreensão e na orientação da nossa vida espiritual, reforçando-se a ideia de que tudo aquilo que diz respeito a Deus deve ser perfeito. E a santidade passou a ser considerada como sinônimo de perfeição. No entanto, transitar pelo labirinto da perfeição é desumano. Caminhar por ele é uma luta árdua e solitária, pois torna-se difícil pedir ajuda e arriscar-se a que as próprias imperfeições sejam expostas aos outros.
A expressão “atingir a perfeição” revela-se uma imprudência. A procura da perfeição não ajuda a pessoa a viver, a amar, a sonhar, a sorrir, a perdoar, a ser feliz... Nas suas formas mais graves, a busca da perfeição é estressante, conduz ao desprezo de si mesmo, torna insuportável a relação com os outros e pode conduzir à automutilação.
Quem tem sua vida centrada na busca da perfeição, aceitar o erro é uma tarefa muito humilhante e dificultosa. Longe de ser uma oportunidade, o fato de equivocar-se representa uma ameaça à sua dignidade. Para ele não basta ser bom, é preciso ser perfeito. E, embora, no segredo mais íntimo aceita que jamais será perfeito, pelo menos tenta aparentar isso diante dos outros. Este modo de proceder tem um nome – perfeccionismo – e são muitos os que caminham por seu labirinto.
Isso não é vida. Queremos habitar e transitar por lugares onde a compaixão e o cuidado possam abraçar nossas fragilidades e limites. Devemos passar de um humanismo da “auto-exaltação” para um humanismo da “auto-acolhida”.
A compaixão afirma o “eu real” contra as pretensões do “eu ideal”.
A compaixão orienta-nos para a realidade profunda da nossa fragilidade; na compaixão alcançamos a nós mesmos; a compaixão nos leva de volta à casa, revestindo-nos de uma atitude amorosa para conosco.
O tecido da vida cotidiana nos oferece muitas ocasiões para esta prática de bondade para conosco. E a compaixão faz parte da essência de nosso ser. É a mais humana de todas as virtudes humanas. É ela que nos oferece inúmeras ocasiões para tratar-nos como amigos, em vez de nos tratar como estranhos.
Graças à compaixão, podemos nos levantar depois de cada queda, abrir-nos novamente à presença da Graça de Deus, continuar a amar tudo aquilo que dentro e fora do nosso ser se apresenta sob as vestes do humano. Deste modo, realizamos uma orientação sadia no fundo do nosso ser. Assim, o discípulo de Jesus deve ser perfeito no Amor como o Pai celestial é perfeito no Amor. Ele ama a todos sem distinção, “fazendo nascer o sol e cair a chuva sobre maus e bons, justos e injustos”.
Neste sentido, o chamado do Evangelho a ser “perfeitos como o Pai” está em um contexto do amor incondicional e envolvente de Deus, um amor que faz com que o sol se levante para as pessoas más e boas, e que permite que a chuva caia sobre justos e pecadores. Em outras palavras, a perfeição cristã é o convite a um amor que nunca se esgota; é o convite para aprender a perdoar como Deus perdoa e a amar como Deus ama.
Alguns exegetas interpretam que, em hebraico, a expressão “perfeito” faz alusão a algo “completo”. Nesse sentido, o apelo a ser “perfeitos” deve ser entendido como um chamado a aceitar-se em toda a sua verdade. Este sentido seria totalmente aceito a partir de uma antropologia humanista, como um princípio básico de unificação e crescimento: “aceita-te com toda tua verdade, com tua luz e tua sombra, teus acertos e erros, tuas qualidades e defeitos...!”
Somos chamados a ser “completos”, aceitando nossa verdade e abrindo-nos à nossa verdadeira identidade que transcende nosso ego; só assim poderemos viver a misericórdia ou compaixão.
Textos bíblicos: Mt 5,38-48
Na oração: A aceitação do limite nos ajuda a celebrar a vida em todas as circunstâncias e a saborear a realidade, cheia de riscos, incerta e insegura para todos, mas, ao mesmo tempo, única e irrepetível para sempre.
Longe da tirania do perfeccionismo, saberemos conviver com a rica pobreza de nossa condição humana; é a calma e o silêncio da oração que irão nos libertar da banalidade e do perfeccionismo, fazendo-nos reconciliar com as fragilidades, próprias e alheias.
- Sua vida é regida pela “pauta da perfeição” ou da “misericórdia”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus...” (Mt 5,20)
Na Bíblia, a justiça é um dos conceitos centrais, com uma diversidade de sentidos e, por isso mesmo, difícil de ser definido. Em todo caso, trata-se de um conceito que inclui “relação”. Nas “antíteses” – “ouvistes o que foi dito..., eu, porém, vos digo” – do Sermão da Montanha, somos colocados diante de cinco casos concretos que tem a ver com a vida relacional e comunitária: a reconciliação, o olhar puro que não se apossa de outra pessoa, a veracidade e transparência no falar, a não violência (ou mansidão bíblica) e o amor gratuito que inclui o “inimigo”. Em todos eles, podemos crescer sempre mais, graças à compreensão de quem somos no nível mais profundo; o “eu, porém, vos digo” de Jesus nos inspira a descer até às raízes de nosso ser, esvaziando-nos progressivamente de nosso ego e ativando todos os recursos humanizadores aí presentes.
Na perspectiva bíblica, “justo” é aquele que, perante Deus e os homens, se “ajusta” ao modo de agir do mesmo Deus, vivendo e agindo com a marca da bondade. Visto que justiça designa o comportamento do ser humano em conformidade com a Vontade de Deus, pode-se falar de “praticar a justiça”; ou de “cumprir toda a justiça”. Portanto, a expressão “justiça de Deus” não tem nenhuma relação com o julgamento de Deus; ela é, antes de tudo, misericórdia e fidelidade a uma vontade de salvação. O conceito descreve uma maneira de ser ou de agir de Deus. Deus é justo porque é bondade e misericórdia. Por isso, também do lado humano a justiça deve significar uma maneira de prolongar o ser e o agir de Deus.
O problema da relação entre misericórdia e justiça está em considerar como rivais ou como incompatíveis esses dois atributos de Deus. É preciso afirmar os dois ao mesmo tempo e procurar compreender como ambos estão em Deus, sem que um anule o outro, mas reforçando-se mutuamente. Poderíamos formular assim: Deus é justo em sua misericórdia e misericordioso em sua justiça. Segundo o Papa Francisco, “a misericórdia não exclui a justiça e a verdade, mas, antes de tudo, temos que dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação mais luminosa da verdade de Deus”.
Já no Primeiro Testamento encontramos afirmações deste tipo: a justiça de Deus é sua misericórdia. A justiça de Deus coincide com sua misericórdia, sua bondade, sua santidade. São Paulo, em sua carta aos romanos, afirma que a justiça de Deus se manifesta na justificação do pecador, de modo que o Deus justo é justificador. Podemos concluir, pois, que Deus é justo porque quer que todos se salvem. É de esperar, portanto, que esta vontade de Deus se cumpra. É claro que, diante do dom da salvação intervém a liberdade humana, porque salvação é acolhida do Deus que é Amor, e não há amor sem recíproca acolhida.
Jesus veio expandir o horizonte do comportamento humano; veio nos libertar dos perigos do moralismo e do legalismo. À luz da justiça de Deus (“força que salva”), Jesus nos apresenta um modo de proceder mais radical, relendo os mandamentos.
A justiça de Deus não é poder que se impõe, mas amor aberto e libertador, a partir dos últimos e dos excluídos da humanidade. A liberdade criadora de Deus, que é amor aos pobres, se torna princípio de justiça, pois o evangelho chama “justos” precisamente aqueles que acolhem os exilados, visitam os encarcerados, dá pão a quem tem fome..., ou seja, àqueles que colocam suas vidas a serviço dos excluídos e vítimas das instituições sociais e econômicas injustas.
O único fundamento de qualquer justiça é Cristo. N’Ele nós nos tornamos justiça de Deus (2Cor 5,21). A partir desta perspectiva, podemos entender o que Jesus fez em seu tempo com a Lei de Moisés. Disse que não vinha abolir a lei, mas plenificá-la, porque foi acusado pelas autoridades religiosas de ser um transgressor das leis. Jesus não foi contra a Lei, senão que foi mais além da Lei. Quis dizer que toda lei é sempre limitada, que sempre podemos ir mais além da letra da lei, da pura formulação, até descobrir o espírito que a inspira. A vontade de Deus está mais além de qualquer formulação, por isso, não podemos nos limitar ao que está escrito, mas precisamos sempre dar um passo a mais. Na vivência do amor, que emana do nosso eu mais profundo, devemos ser sempre mais radicais, não cedendo diante da mínima manifestação do nosso autocentramento. Na realidade, quem ama, não precisa de leis. Segundo S. Paulo, “quem ama, cumpre toda lei”.
Jesus passou de um cumprimento externo de leis a uma descoberta das exigências de seu próprio ser. Esta revolução que Ele iniciou, ainda está por ser realizada. Avançamos muito pouco nessa direção. Todas as indicações do evangelho no sentido de viver no espírito e não na letra, parece que estão sendo ignoradas. Caímos facilmente no legalismo, no farisaísmo que se perde em meio a um emaranhado de leis, desviando-se do essencial, que é a vivência do amor oblativo, gratuito, expansivo...
“Ouvistes o que foi dito: não matarás, não cometerás adultério, não jurarás falso; eu, porém, vos digo...” Não fica abolido o mandamento antigo, mas elevado a níveis incrivelmente mais profundos. Jesus nos revela que uma atitude interna negativa é já uma falha contra nosso próprio ser, ainda que não se manifeste numa ação concreta contra o outro. Por isso, segundo Jesus, não basta cumprir a Lei, que ordena “não matarás”. É necessário, além disso, arrancar de nossa vida a agressividade, o desprezo ao outro, os insultos ou as vinganças. Aquele que não mata cumpre a Lei, mas, se em seu coração há resquícios de violências, ali não reina o Deus que busca construir conosco uma vida mais humana.
Estamos percebendo que está se estendendo cada vez mais, na sociedade atual, uma linguagem que reflete o crescimento da agressividade, do preconceito, da intolerância, do fechamento diante de quem pensa e sente de maneira diferente... Cada vez são mais frequentes os insultos ofensivos, proferidos só para humilhar, desprezar e ferir. Palavras nascida da rejeição, do ressentimento, do ódio ou da vingança... Por outra parte, as conversações (sobretudo nas redes sociais) estão tecidas de palavras injustas que espalham condenações e semeiam suspeitas (fake-news). Palavras ditas sem amor e sem respeito que envenenam a convivência, causam danos e rompem as relações entre as pessoas.
Portanto, os mandamentos continuam tendo sentido. São um mapa de rota, uma proposta, um chamado para entender a vida. A chave é compreendê-los e vivê-los, não a partir do medo ao fracasso e ao castigo, mas a partir da disposição de crescer humanamente na relação com os outros. Quê nos ensinam eles sobre o ser humano, sobre as relações sociais e sobre nós mesmos? Quê caminho nos propõem para a vida? Quê horizonte nos mostram?
É necessário dirigir nosso olhar a Jesus para que, na comunidade cristã, a instituição não seja mais importante que o Evangelho, nem que a Lei seja mais importante que a misericórdia. O Plano de Deus e a fé cristã são muito mais que uma adesão doutrinal, é humanizar-se para amar. “O cristianismo não é uma ética de mínimos de justiça, mas uma religião de máximos de felicidade. Os mínimos de justiça lhe parecem irrenunciáveis, mas tais mínimos não esgotam o conteúdo da religião cristã. Suas propostas não competem com a ética cívica, senão que a complementam. Enquanto que a universalidade dos mínimos de justiça é uma universalidade exigível, a dos máximos de felicidade é uma universalidade ofertável” (Adelia Cortina). A justiça do Evangelho, centrado no amor, é um plus sobre a justiça humana, centrada na lei.
Texto bíblico: Mt 5,17-37
Na oração: O empenho em favor da justiça não terá fim. Numa releitura da 4ª bem-aventurança podemos afirmar:
“Felizes os famintos de justiça, que nunca serão saciados”.
- Frente às pessoas que pensam e sentem de maneira diferente, o que prevalece em você, o peso da lei ou a força da misericórdia?
- Como você vive o quinto mandamento -“não matar” - no uso das redes sociais?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14)
O evangelho deste domingo é continuação das bem-aventuranças; estamos no início do primeiro discurso de Jesus, conhecido como “Sermão da Montanha”. É, portanto, um texto ao qual Mateus quer dar suma importância. As duas imagens, luz e sal, tem forte impacto na vida do(a) seguidor(a) de Jesus, pois sua presença no mundo deveria fazer a diferença: iluminar e dar sabor.
A mensagem de hoje é muito simples e de grande valor; efetivamente, todo(a) aquele(a) que alcançou a iluminação, ilumina. Se uma vela está acesa, necessariamente tem de iluminar. Se colocamos sal no alimento, este necessariamente ficará temperado. O encontro com Aquele que é a Luz ativa a luz, talvez atrofiada, em nosso interior.
Quanto mais luz emergir de dentro, mais brilhante será o mundo em que vivemos. Sabemos que a luz, por si mesma, é contagiosa e expansiva; em oposição às trevas, a luz exalta o que belo e bom, na realidade e nas pessoas. Pelo fato de ser benfazeja e criadora, ela nos permite dizer com o poeta Thiago de Mello, no meio de impasses, ameaças e conflitos que pesam sobre nossa vida: “Faz escuro, mas eu canto”.
Mas, quê queremos dizer quando aplicamos a uma pessoa humana o conceito de iluminada? Todos os grandes líderes espirituais falam de iluminação. Não é fácil entender o que isso significa. Na realidade, só pode compreender isso quem faz a experiência de estar iluminado. Quando as tradições religiosas falam de iluminação, elas se referem a uma pessoa que despertou, ou seja, que ativou todas as suas possibilidades de ser humano. Estamos, então, falando de uma pessoa plenamente humana: aquela que vive uma interioridade iluminada.
Isto é precisamente o que está nos dizendo o evangelho de hoje. Dá por suposto que o caminho do seguimento de Jesus é um “caminho de humanização”, é uma experiência de iluminação; os discípulos, na convivência com o Iluminado, são despertados, mobilizam seus recursos iluminantes e tornam-se também iluminados; como consequência, são capazes de expandir suas luzes e mobilizar a luz escondida nos outros. É inútil tentar iluminar os outros, estando apagados, adormecidos, paralisados em sua obscura vida.
Devemos ter cuidado de iluminar, não deslumbrar. Como é sedutor estar no candeeiro! Há muitos que anseiam estar no candeeiro, mas não tem luz. Não se trata de “subir” ao candeeiro, mas possibilitar que a luz interior ilumine a partir dele.
O candeeiro não é para que os outros nos vejam; é para que a luz de nossas vidas ilumine melhor. O candeeiro não é para que estejamos mais alto, e sim, para que a luz interior se espalhe mais e desperte a “faísca de luz”, presente no coração dos outros. “Estar no candeeiro” significa estar a serviço do outro, pensando no bem dele e não em nossa vaidade; devemos oferecer o que o outro espera e necessita, não o que nós queremos lhe oferecer.
Muitas vezes, nós cristãos somos mais afeiçoados a deslumbrar que a iluminar; temos a tendência a ser presença iluminante desde que com isso se potencie nosso “ego”. Porque o ego necessita fazer-se notar e brilhar; não está disposto a consumir-se nem a passar desapercebido. Cegamos as pessoas com imposições excessivas e tornamos inútil a mensagem de Jesus para iluminar a vida real de cada dia. Quando tiramos alguém de sua obscuridade, devemos dosificar a luz para não causar dano a seus olhos.
O sal é um dos minerais mais simples (cloreto de sódio), mas também é um dos mais imprescindíveis para nossa alimentação. Mas tem muitas outras virtudes que podem nos ajudar a entender o relato deste domingo. No tempo de Jesus, eram usados blocos de sal para revestir por dentro os fornos de pão. Com isso, conseguia-se conservar o calor para o cozimento do pão. Este sal, com o tempo, perdia sua capacidade térmica e devia ser substituído. Os restos das placas retiradas eram utilizadas para compactar a terra dos caminhos.
Agora podemos compreender a frase do evangelho: “se o sal se tornar insosso, com que salgaremos? Ele não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e ser pisado pelos homens”. O sal não se torna insosso; o sal dos fornos sim, pode perder a qualidade de conservar o calor. A expressão latina “evanuerit” significa desvirtuar-se, desvanecer-se. A tradução melhor seria assim: se o sal perde sua qualidade, como poderá recuperar-se. Esse sal “queimado” só serve para ser jogado nos caminhos e ser pisado pelas pessoas.
Há um aspecto no qual sal e luz coincidem: não tem utilidade por si mesmos. Se o sal permanece isolado em um recipiente, não serve para nada; só quando entra em contato e se dissolve nos alimentos pode dar sabor ao que comemos; para salgar, o sal precisa desfazer-se, deixar de ser o que era. Segundo os entendidos na arte culinária, não é o sal de “dá sabor”; ele realça o sabor de cada alimento. O humilde sal é feito para os outros, para que os outros sejam eles mesmos. O mesmo acontece com a luz; se ela permanece fechada e oculta, não pode iluminar ninguém. Só quando está em meio às trevas pode iluminar e orientar. A luz não é para ser vista, caso contrário, cega. A lâmpada ou a vela produz luz, mas o azeite ou a cera se consomem. Imagens que revelam que nossa existência só terá sentido na medido em que nos consumimos em benefício dos outros. Uma comunidade cristã isolada do mundo não pode ser sal e nem luz.
Ser sal e luz do mundo nos move a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações…; escutar outros relatos que trazem muita luz para a nossa própria vida. Olhar a partir de um horizonte mais amplo, ajuda a relativizar nossos próprios absolutos e deixar-nos impactar pelos valores presentes no outro. Escutar de tal maneira que o que ouvimos penetra na nossa própria vida; isso significa implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas. Acolher na nossa própria vida outras vidas; abrir espaços para que as histórias dos excluídos e diferentes encontrem morada nas nossas entranhas, na nossa memória e no nosso coração.
Ser sal e luz é dizer sim à vida. Experimentamos isso quando nos submergimos na vida, quando crescemos nela, buscando, saboreando até o final o que ela nos oferece em cada circunstância. Nunca alheios à vida, nada desprezando, nada lamentando.
Ser sal e luz não é um programa. É uma experiência de vida, um modo de estar no mundo a partir da confiança numa promessa. Enraizados na pessoa e promessa de Jesus, o chamado a ser sal e luz nos propõe um estilo próprio de vida aberto e expansivo: uma maneira alegre, pacífica, compassiva, responsável e generosa de se fazer presente neste mundo onde são centrais o cuidado de todo o vivente e o trabalho em favor da justiça. O apelo de Jesus nos move a transformar o que, com frequência, é terra insípida ou deserto inóspito em um mundo mais humano, com sabor de lar humanizador.
Texto bíblico: Mt 5,13-16
Na oração: “Deus é Luz, e n’Ele não há treva alguma” (1Jo 1,5). É preciso buscar esta faísca de luz dentro de nós, no nosso eu mais profundo. Talvez por isto alguém escreveu: no ser humano há mais coisas dignas de admiração que de desprezo.
- Sua relação com os outros: deixa transparecer a luz da compaixão, da acolhida ao diferente, do cuidado...?
- Qual é o sabor que sua presença revela na realidade onde você vive? Faz diferença? Inspira?...
Pe. Adroaldo Palaroro sj
“Simeão tomou o menino nos braços e bendisse a Deus” (Lc 2,28)
Neste ano, o 4º. dom. do Tempo Comum coincide com 02 de fevereiro, um dia de festa de Jesus e de sua mãe Maria; festa que é conhecida com vários nomes:
- Apresentação de Jesus no Templo, para ser oferecido a seu Deus; a humanidade, representada por Maria e José, “presenteiam” a Deus o maior dom que possuem, seu filho primogênito, a Luz das Nações;
- Purificação da mãe Maria, a quem Simeão revela seu destino sofredor e ativo de Mãe. Esta é a festa das sete dores que purificam e iluminam, quando são assumidas a serviço dos outros;
- Festa da Luz, dia das Candeias. Quarenta dias depois do nascimento de Jesus (fechando o ciclo do Natal), os cristãos (especialmente as mulheres) iam às igrejas com velas/candeias, dando graças pela vida.
Todos nós sabemos e experimentamos que o modo de agir Deus é discreto, silencioso. Ele se deixa encontrar no cotidiano e nas histórias simples. O mundo está cheio de mistérios grandiosos que cobrimos com a rotina e as pressas. Falta-nos capacidade de assombro e pureza no olhar para captar o mistério do simples. Quando a realidade é vista tão somente com os olhos estreitos e interessados, perdemos a oportunidade de contemplar o rosto d’Aquele que se deixa encontrar em tudo e em todos.
Todo o relato da Apresentação de Jesus no Templo está atravessado de cotidianidade, com a marca da simplicidade e dos olhares contemplativos. Aqui se faz visível uma festa de promessas cumpridas. Simeão e Ana tiveram o privilégio de contemplar o Salvador, porque souberam esperar e permanecer. E porque souberam contemplar, viram na vulnerabilidade de um menino, o esperado de Israel. Podemos imaginar os rostos irradiantes e os olhos cheios de luz destes dois anciãos diante do Menino que lhes abre o futuro e alarga os seus sonhos!...
O Nascimento de Jesus parece despertar os anciãos: Zacarias, o idoso que põe em dúvida a promessa de Deus; Isabel, aquela que concebe na velhice; José, aquele que não compreende o que está acontecendo, mas confia na palavra de Deus; Simeão, o homem que envelhece com a esperança de ver o Messias antes que a morte feche seus olhos; Ana, a profetisa, aquela que dá graças ao Senhor e proclama a todos o nascimento do Messias.
Nos relatos de Lucas, não são os sacerdotes do templo, nem os mestres da lei, nem os legitimados pela religião ou pelo poder social que falam ou reconhecem. Falam os pequenos, os pobres e os simples. Aqueles que não costumam ter palavra – pastores, ilegais, pagãos – são os que veem mais além, maravilham-se, reconhecem e confessam o Menino de Belém. É com eles que devemos estar, se queremos também reconhecer Jesus.
Alguém poderia perguntar: por que tantos idosos(as) no Nascimento de Jesus? Infelizmente, não vivemos tempos favoráveis aos idosos; considerados “improdutivos” são “descartados”; para muitos, são só um estorvo.
E, no entanto, são eles(as) as testemunhas da esperança messiânica, as testemunhas das promessas do Espírito Santo, as testemunhas do futuro e do novo, as testemunhas da fé, as testemunhas de um caloroso entardecer da vida. Os anciãos e anciãs são aqueles(as) que mantém viva a memória de seu povo, mantém viva a continuidade da história; são eles e elas que sustentam em seus braços o novo que começa; são eles e elas que esquecem a nostalgia do passado, sorriem e cantam o nascimento do novo. Mesmo com sua visão limitada, são capazes de ver e reconhecer as surpresas e as maravilhas de Deus.
Simeão é o ancião que soube esperar. Recebeu a promessa de não morrer sem ver o Messias. E hoje o vemos com o Menino Jesus em seus braços; ele sente sua vida realizada, reconhece o sentido de tudo o que viveu e agora pode soltar-se e abandonar-se em paz; a promessa foi realizada: “viu o Senhor”.
Numa sociedade como a nossa, em constante tensão pelo “conflito de gerações”, a figura de Simeão torna-se curiosa e até simpática. Seus braços unem e abraçam o velho e o novo; seus braços apertam o passado e o presente; seus braços são o encontro entre o ontem e o hoje; seus braços, estreitando o menino, são a harmonia entre o que se vai e o que vem.
Simeão não tem nada e, ao mesmo tempo, tem tudo: tem a promessa que alimentou sua vida de esperança até o final; tem os braços calorosos para acolher Deus neles e embalá-lo; e tem a alegria e o prazer de uma ancianidade feliz, realizada e cumprida.
Ao ler-escutar o Evangelho deste domingo, também somos convidados a nos fixar em uma pessoa que passa quase desapercebida: Ana, a profetisa. Ela pode nos ensinar a ser profetas e profetisas dos buscadores da Vida em um mundo tão desafiante como o nosso, onde, muitas vezes, nos sentimos pequenos, incapazes, pobres..., mas também afortunados, livres, discípulos e discípulas d’Aquele que sabe quem somos e por isso nos elege, nos chama, nos convoca a fazer caminho com Ele.
Ana revela uma presença muito discreta, no templo; mas está atenta a tudo o que ali acontece. Ela não faz ruído, passa longas horas em silêncio, sua vida não tem maior relevância social e religiosa... Lucas só dedica três versículos para revelar o perfil de Ana, e neles somos informados que era “profetisa”, “anciã” e possuidora de um nome significativo: “Ana” vem do verbo “hanan” que em hebraico significa “agraciar”, “favorecer”, e aparece vinculada a um passado marcado por nomes benditos: “Fanuel” significa “rosto de Deus” e “Aser” significa “feliz” ou “afortunado”; mas, o fato de ser viúva desde jovem a associa irremediavelmente a uma situação de perda, vazio e carência. E aqui, aparece vinculada ao templo e dedicada assiduamente ao serviço de Deus.
Mas, de uma maneira imprevista, sua vida deu um grande salto ao aproximar-se de outro ancião, Simeão, precisamente no momento em que este tinha tomado nos braços um menino, filho de uns pobres e desconhecidos galileus, chamando-o salvador, luz e glória. Junto aos pastores de Belém, Ana recebe as primícias da presença de Jesus, e seu nome de “Agraciada”, que possuía só como promessa, se faz realidade nela; e a partir desse momento, com todo seu ser reverdecido e os olhos cheios de luzes (candeias), dava “graças a Deus e falava do menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém”.
A liturgia deste domingo apresenta-se como ocasião privilegiada para nos recordar que a velhice é uma etapa da vida, com suas limitações e problemas, mas também com suas grandes possibilidades. Não podemos negar o desgaste e os problemas que o passar dos anos traz consigo, mas, ao mesmo tempo, inspirados nos idosos Simeão e Ana, somos motivados a não esquecer que a velhice é a etapa que nos oferece a possibilidade de coroar nossa vida.
O decisivo é adotar uma postura aberta e positiva diante da última etapa da vida. “Vivê-la positivamente como a culminação da vida, como a etapa sem a qual a vida ficaria inacabada, inconclusa” (L. Diez). Segundo o Papa Francisco, a pessoa idosa pode viver com mais sabedoria e sensatez, para relativizar, inclusive com humor, muitas coisas que antes dava tanta importância; a ancianidade é tempo para recordar (visitar de novo com o coração) o essencial; o tempo para a quietude e a contemplação; é o tempo para viver mais devagar, sem pressas, encontrando-se consigo mesmo com mais profundidade; é o tempo de desfrutar de maneira mais sossegada cada experiência, cada pessoa, cada encontro.
Frente a uma vida fragmentada e dispersa, o ancião e a anciã estão em melhores condições de unificar e integrar sua existência. Esta última etapa da vida se converte em tempo de graça e salvação pois pode contar sempre com a presença e o auxílio amoroso d’Aquele que é o Senhor dos tempos.
Texto bíblico: Lc 2,22-40
Na oração: Precisamos de homens como Simeão e mulheres como Ana, da tribo dos que estão reconciliados com sua própria vida; pessoas com uma presença benevolente e carinhosa para tudo o que lhes rodeia. Com olhos expandidos por dentro, eles puderam perceber a salvação de um modo muito diferente do que haviam imaginado.
- O gesto de Simeão nos é proposto a todos, e todos os dias: bendizer a vida nova nos outros.
- Seu cotidiano, no Templo da vida, tem a marca do bem-dizer ou do mal-dizer, da gratidão ou da queixa...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Jesus deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galileia” (Mt 4,13)
Galileia foi a primeira decisão importante que Jesus tomou no início de sua vida pública. Ele começa sua atividade longe da Judeia, de Jerusalém, do templo, das autoridades religiosas. Jesus, na Galileia, encontrou o seu lugar: junto ao mar, nas estradas poeirentas, nas margens... Um “lugar sagrado” que nasceu do seu coração, carregado de afeto, de inspiração, de vitalidade...
Ali, Ele teve suas preferências e elegeu o seu “lugar” entre os mais pobres e excluídos, vítimas daqueles que se faziam donos dos lugares; ali revelou a presença d’Aquele que se faz presente e santifica todos os lugares: o Pai.
Jesus se fez presente nos lugares onde se encontravam aqueles que não tinham “lugar”, os “deslocados”, os socialmente rejeitados e que eram a razão de seu amor e do seu cuidado; fez-se solidário com os “sem lugares” e os convidou a caminhar para um novo lugar: lugar de vida, de comunhão... Sua missão foi a de reconstruir a identidade das pessoas, devolvendo a elas o seu “lugar”.
Seu ensinamento, cheio de “autoridade”, introduziu uma perspectiva nunca ouvida antes; apresentou uma alternativa que as pessoas mais simples do povo entendiam como revelação do Pai aos pequeninos. A partir das periferias do mundo, surgiu um canto de vida nova, a sabedoria oculta a muitos sábios e expertos; uma sabedoria que vinha de Deus, desconcertando a sabedoria exibida a partir do centro. Jesus desconcertou a “sabedoria” do centro a partir da “loucura” da periferia.
Podemos, então, afirmar que Jesus descentralizou o mundo a partir da periferia. O fato surpreendente é que, em Jesus, Deus não só se fez homem, mas também se fez “margem”. O próprio Jesus foi “margem”. Belém e Calvário são os dois extremos periféricos – início e fim – de toda uma vida, despojada e pobre.
Todos tinham os olhos voltados para o centro. No templo de Jerusalém era elaborado o saber que ia se expandindo até chegar à menor das sinagogas. No entanto, em Jesus, o Reino de Deus anunciado movimentou-se em direção contrária: subiu, a partir da mais baixa periferia, para o centro. Ele começou a falar a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e econômica.
Nesse sentido, a vida de Jesus foi “excêntrica”, porque não combinava nem se ajustava com a construção social de todos aqueles que controlavam o mundo a partir do centro. No entanto, Jesus fez o “centro” da história. Nele, o Pai “nos escolheu antes da criação do mundo”. Isto quer dizer que o “centro” da história teve seu aparecimento na “periferia”. Portanto, Jesus descentralizou a história para sempre e situou o surgimento da salvação nas terras excluídas. A ação de Jesus provocou um deslocamento geográfico-social-religioso.
O centro da história já não se encontra mais em Roma, nem em Jerusalém, e sim na “margem”. Todo aquele que, a partir de então, pretende encontrar-se com Jesus terá de voltar a cabeça e peregrinar em direção às margens, onde estão os prediletos do Pai.
Tendo Jesus se encarnado para sempre nas “periferias” do mundo, porque desejou assumir toda a história a partir daí, também nós, seguidores(as), temos de dirigir constantemente o olhar para as “novas periferias”, a partir de onde Ele continua nos questionando.
“Êxodo para as periferias”: terra privilegiada, de onde podemos contemplar a história e a própria humanidade. A razão mais importante de todo este caminho é a união ao movimento de encarnação de Jesus, decidido pelo Pai como caminho privilegiado para a realização de seu Projeto.
Cada passo na direção das periferias do mundo também é um passo contemplativo em busca do encontro com o Senhor da História, que nos chama de “baixo” e de “fora”. “O discípulo-missionário é um descentrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais. A posição do discípulo-missionário não é a de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias” (Papa Francisco)
Quê significa “fronteiras geográficas e existenciais”? É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para assumir o novo... É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer...
A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples... A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
Jesus começou sua vida pública com um novo ensinamento, rompendo esquemas e modos de viver ditados pelo Templo. Diariamente ouvimos, lemos e nos deparamos com esta palavra que está tão em moda: inovação; expressão presente em todas as instâncias humanas: empresarial, educativo, social...
Partindo do evangelho deste domingo, podemos também fazer esta pergunta: qual é a “inovação do Evangelho”? Que há de inovador, na vida de Jesus, que pode nos inspirar? Com certeza, há uma inovação acima de todas: a paixão de Jesus pela vida, pelo Reino, pelas pessoas, de maneira especial pelas mais excluídas e feridas. Por isso, Jesus inicia sua missão fora dos “espaços sagrados” do Templo; é nas “margens” que Ele, com sua presença inspiradora, ativa um movimento inovador e, ao mesmo tempo, humanizador.
Essa paixão de Jesus se revela em cada passagem do Evangelho, em cada palavra que sai de sua boca, em cada gesto que faz tremer todas as instituições, em cada ação que visa levantar, curar e devolver a dignidade a todo ser humano com quem se encontra. Não há um indício sequer de dogma, de doutrina, de regras, de leis..., a não ser isso: tudo o que façamos, vivamos e desejemos, seja em prol das pessoas, para seu bem e sua felicidade.
A inovação de Jesus está em eliminar da vida todo o peso do legalismo, do moralismo, da culpa..., para fazer emergir o que há de mais humano e divino presente em cada pessoa. A expressão “pescador do humano” deixa transparecer essa inovação mobilizada por Jesus, a partir do mais profundo de cada um. Seguindo Jesus e deixando-nos impactar por sua inovação em favor da vida, estaremos, também nós, inovando, quando deixaremos transparecer uma paixão pelas pessoas, que se manifesta em nossa acolhida, em nossos gestos, no nosso olhar contemplativo, nas nossas palavras mobilizadoras...; trata-se de investir a vida em favor da vida e fazendo os outros se sentirem mais irmãos e mais filhos de um mesmo Pai.
Nesse sentido, Mateus também situa, no início da vida pública de Jesus, o chamado dos quatro primeiros discípulos. Detrás disso, há uma intencionalidade teológica, que busca mostrar Jesus e seus discípulos compartilhando a mesma missão: aliviar o sofrimento humano, com a certeza de que o Reino de Deus tinha chegado. Assim, inicia-se um grande “movimento humanizador”, a partir de baixo, das margens...
Nesse entorno da Galileia está o futuro do Evangelho; Galileia é a terra do chamado e, a partir desse lugar, inicia-se também novo caminho do seguimento. Por isso, os(as) discípulos(as) devem entrar em sintonia com o modo original de ser e de viver de Jesus na Galileia. É ali que se devem encontrar todos os seus(suas) seguidores(as), para também ali prolongar o movimento iniciado pelo Mestre de Nazaré.
Texto bíblico: Mt 4,12-23
Na oração: Aquele Desconhecido se aproxima, ainda hoje, do nosso mar da Galileia, que representa os lugares, os afetos, os segredos, os costumes da nossa vida cotidiana... ; Ele fixa seu olhar em cada um de nós e, com sua Palavra inspiradora, nos desafia a transgredir os nossos lugares estreitos e entrar em outro mar.
O Evangelho deste domingo faz emergir algumas perguntas que são significativas para a vida cristã:
- você vive em processo de mudanças ou continua sempre igual? Seu modo de viver o seguimento de Jesus é sempre criativo ou continua “normótico” (norma-lidade doentia, sem inspiração, sem afeto...)?
- você é um peregrino ou está ancorado no de sempre? Você está se convertendo constantemente para uma vida nova e melhor, ou se contenta com uma mera repetição?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29)
Estamos no início de um novo ciclo litúrgico, o “Tempo Comum”, centrado no Evangelho de Mateus; mas, o relato deste domingo é tirado do evangelho de João, que começa com uma imagem forte de João Batista, retomando o motivo do domingo anterior (batismo de Jesus), que hoje é revelado como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
Começamos, então, o novo ano afirmando que o sinal de Deus é um Cordeiro; não é a Águia destruidora, nem o Leão furioso que se impõe na selva do mundo, nem o pesado Elefante... O sinal é um Cordeiro que nos conduz ao campo da vida, desde o princípio dos tempos. Jesus, o Cordeiro que se faz presente entre os pequenos, os fracos, excluídos..., e abre caminhos de vida para todos.
Segundo os evangelhos, já não há mais necessidade de sacrifícios de animais, realizados por grandes sacerdotes, porque Deus se fez Cordeiro entre os cordeiros, porque é Graça que perdoa e que ama, e porque os seres humanos podem corresponder, entrando em sintonia com seu amor.
Esta é a experiência fontal: frente a uma religião centrada nos pecados e sacrifícios, o Jesus do 4º. Evangelho abre um caminho de graça aos homens e mulheres de todos os tempos; assim, rompe a escravidão religiosa, centrada nas culpas e expiações, e oferece o dom da salvação a todos, sem exceção: judeus e pagãos, cristãos e não cristãos.
No evangelho deste domingo, João Batista não só aponta para quem é Jesus, mas também indica sua missão: “tirar o pecado do mundo”. Tanto no texto grego como latino, “pecado” está no singular. Não se refere aos “pecados” individuais, tais como os entendemos hoje. No evangelho de João, “pecado do mundo” tem um significado muito preciso: é o mundo fechado que rejeita Deus, é o mundo que quer dominar pela força e sacrificar os outros para se impor, é a injustiça e a violência que se expressam nas diferentes formas de intolerâncias e preconceitos, é a humilhação que desumaniza a todos...
Trata-se do “pecado de raiz”, a opressão que, enraizada nas estruturas sociais-política-econômicas-religiosas, atrofia o ser humano, impedindo-o desenvolver-se como pessoa e como ser de relações. Todos os demais pecados se reduzem a este.
O dinamismo do mal está entranhado no nosso mundo exterior e interior, nos nossos projetos, desejos e ações. A experiência do pecado é de desvio de rota, de frustração da nossa vocação, experiência que nos desumaniza e nos faz viver uma existência vazia; com isso passamos a viver exilados, desterrados...
O modo de “tirar” este pecado não é através de uma morte expiatória. Jesus tira o pecado do mundo destruindo a opressão, ativa e passiva, não pagando a Deus uma dívida que nós tínhamos contraído. Aqui não estamos diante de um Deus ofendido que exige a morte do Filho para satisfazer suas ânsias de justiça. Nada a ver com a experiência do Abbá que Jesus viveu.
O “pecado do mundo” não tem que ser expiado, mas arrancado, eliminado, destruído. Jesus “tira” o pecado do mundo inteiro, reconstruindo as relações quebradas; não aniquila alguns pecados concretos, algumas faltas particulares, mas o “pecado cósmico”, ou seja, tudo o que trava o fluir da vida.
Para o evangelista João, portanto, há um só pecado (a opressão, a injustiça) e um só mandamento (o serviço, o amor). Jesus tirou o pecado do mundo escolhendo o caminho do serviço, da humildade, da pobreza, amando a todos indistintamente até à entrega radical. Esta atitude destrói toda forma de domínio, de injustiça e violência, revelando que a salvação de Deus chegou para todos. Ao abrir o caminho da verdadeira vida, Jesus rompe todas as cadeias que mantinham oprimidas todas as pessoas.
Na perspectiva bíblica, o pecado aparece em primeiro lugar como a ruptura de uma aliança com o Criador, com os outros e com as criaturas. Não se trata de uma mera infração, uma quebra de lei, nem mesmo de uma falta contra nós mesmos, mas sim de quebra de uma relação de amor e de amizade.
Em uma palavra, trata-se de uma recusa a viver e a amar. Os horrores do sofrimento que o ódio, a violência, o terrorismo, a injustiça, a exclusão... apresentam aos nossos olhos, descrevem, em imagens bem vivas, a “experiência infernal” que a humanidade vive. Elas estão aí, onipresentes, como pesadelo assustador diante de nossa vista, veiculadas diariamente pelos meios de comunicação. São a consequência da resistência do nosso mundo em deixar-se transformar pelo amor redentor do Senhor; são expressões do fechamento da humanidade à proposta de vida do Criador, alimentando o dinamismo de morte, presente em seu interior.
É a partir daqui que o relato evangélico deste domingo desperta em nós a tomada de consciência de uma “história de pecado”: história de desintegração, de divisão, de desumanização... Nosso drama é perder a memória de que somos parte do todo: ao distanciar-nos do Deus Criador, rompemos a relação cordial com todos e caímos num devastador vazio existencial. O “auto-centramento”, sem levar em conta a rede de vida que nos envolve, provoca a quebra da “re-ligação” com tudo e com todos.
São as “amarras sociais” que nos prendem, atrofiam nossa liberdade, bloqueiam o fluxo da vida divina e matam o impulso de “expandir-nos” em direção aos outros e à realidade que nos cerca. Este é o veneno que nos corrói por dentro: petrificação de nossa interioridade, a perda do gosto pela verdade, pelo belo e pelo bem, o extravio da ternura e da transcendência, a atrofia da comunhão com o todo cósmico, o esvaziamento dos encontros...
O pecado – enquanto ruptura de relações - nos faz cegos e surdos diante do mundo da exclusão e da violência. E se há fome e sofrimento ao nosso redor, isso já não nos impacta. A maldade, a mentira, o preconceito, a intolerância..., não nos afetam mais. Não choramos mais as dores do mundo que construímos e ao qual pertencemos; anestesiamos nossa sensibilidade e entramos num estado de apatia e indiferença para com o mundo, as coisas e as pessoas. A compaixão está cada vez mais ausente da esfera pública e de nossas relações com o outro diferente e com o outro distante que sofre.
Aqui está a chave da incapacidade de nossa sociedade para responder aos desafios atuais.
O que buscamos, ao considerar o “pecado da humanidade”, é alimentar o desejo e o compromisso de que o mundo seja novamente o sonho de Deus: lugar onde todas as expressões de vida se encontram, em profunda sintonia. Está em nossas mãos construir outro mundo.
Nossa vocação, como seguidores(as) do Cordeiro é a de construir pontes e ser presença reconciliadora em situações de fronteira, colocando nossas energias, nossa formação, nossa vida a serviço, para criar, alimentar e sustentar os laços humanos, as relações sociais, as estruturas políticas e econômicas que tornem possível a solidariedade entre todos os seres humanos e aponte para um mundo fraterno e justo.
É aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o seu Reinado, trabalhando cada dia como amigos de Jesus que passam, se compadecem, curam, ajudam, transformam, multiplicam os esforços humanos.
Apaixonados por Deus, nos apaixonamos pelo mundo que, em sua diversidade, riqueza, profundidade, fragilidade, sabedoria... nos fala e nos revela o rosto misericordioso do Deus que se humanizou para humanizar nossa vida.
Nós só poderemos chegar a ser pontes, em meio às divisões de um mundo fragmentado, se tivermos feito a experiência do encontro com a Misericórdia reconstrutora do Deus Pai-Mãe.
Desse modo, frente a uma “cultura da morte”, cooperaremos com o Senhor na construção de um mundo novo, para uma “globalização na solidariedade”.
A conversão significa, portanto, reorientar a cabeça e o coração para as “margens”, ativar o dinamismo da compaixão, desenvolver uma sensibilidade solidária e assumir lutas em defesa da vida e da dignidade das pessoas: “um outro mundo é possível”
Texto bíblico: Jo 1,29-34
Na oração: contemple a realidade com os olhos misericordiosos do Pai e com os olhos dos excluídos deste mundo; sinta a dor do Pai e a dor dos excluídos; olhe o rosto dos feridos deste mundo; olhe o rosto do Crucificado.
- Faça memória do mundo fragmentado, dividido, desumanizador... que clama por reconciliação.
- Sua presença, neste mundo, faz diferença? Você deixa fluir, através de todo o seu ser, a vida do Cordeiro?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Este é o meu Filho amado, no qual eu pus o meu agrado” (Mt 3,17)
Começamos o “Tempo Comum” do novo ano litúrgico (Ano A: evangelista Mateus); ao longo deste ano vamos realizar um percurso contemplativo, deixando-nos impactar pelos mais importantes acontecimentos da vida pública de Jesus. É natural que comecemos com o primeiro relato deste percurso, o batismo.
Sem dúvida, foi a experiência decisiva na vida de Jesus. Ali, Ele tem clareza de ser o Messias, enviado pelo Pai, a serviço do Reino. Jesus mergulha no rio Jordão e, ao sair das águas, experimenta uma “teofania” (manifestação) que revela seu mistério mais profundo e que antecipa sua Páscoa. Jesus é proclamado oficialmente o “Filho amado do Pai” e sobre Ele desce o Espírito.
Jesus se sente verdadeiramente o Filho amado do “Abbá”, e o batismo deixa claro que o motor de toda sua trajetória humana é obra do Espírito. Nesse sentido, o Batismo revela-se como um momento chave no percurso de Jesus, marcando-o para toda sua vida; marcou sua experiência de Deus; marcou a experiência de si mesmo e marcou o caminho que tinha adiante.
Em Jesus, essa tomada de consciência de quem é Deus n’Ele, foi um processo que não terminou nunca. O relato do batismo está nos falando de um passo a mais, embora decisivo, nessa tomada de consciência. O que a cena do Batismo nos relata é uma autêntica conversão de Jesus, o que não quer dizer que vivia uma situação de pecado, mas um profundo despertar de sua missão, em seu caminhar para a plenitude.
Pela primeira vez, em sua condição humana, Jesus sente a confissão do Pai sobre Ele; confessa-o como Filho. E lhe marca com os sinais do amor: “Este é meu Filho o amado, no qual eu pus o meu agrado”. É a experiência messiânica fundante que marcará para sempre: júbilo, confiança, disponibilidade, fé profunda, fidelidade total, docilidade incondicional ao Pai e a seu desígnio de salvação.
Em seu batismo, Jesus ficou como que “tatuado” pelo amor do Pai. E por isso viveu numa total liberdade de espírito. Não importava se o rejeitavam, pois Ele se sentia profundamente unido ao Pai. Não importava se o criticavam, pois Ele se sentia marcado pelo amor do Pai. Não importava se os seus lhe abandonavam, pois Ele se sentia “tatuado” pelo amor do Pai.
Jesus quer viver sempre sendo Filho amado, que ama a seu Pai e, portanto, que ama o que seu Pai ama. Quer deixar-se apaixonar por aquilo que seduzia o coração do Pai: a vida da criação, a vida digna dos seus filhos e filhas, a quem também deixa transparecer um amor de predileção.
Essa experiência de ser “o Filho amado” será sua força vital durante toda a vida de Jesus. E essa também deveria ser a experiência do(a) seguidor(a) d’Ele: ser alguém “marcado como o(a) amado(a) de Deus”. Quando descobre este sinal e esta “tatuagem” de ser também ele(ela) “o(a) amado(a), o(a) predileto(a) de Deus”, então descobrirá o que é ser cristão(â), compreenderá sua fé, entenderá as exigências do Evangelho, acolherá o grande mandamento do Amor: “Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado”.
Para amar como Ele amou, antes é preciso fazer a experiência de sentir-se amado(a) pelo Pai.
Deixando-se conduzir pelo Espírito, Jesus se encaminha para a plenitude humana, marcando-nos o caminho de nossa plenitude. Mas, é preciso ser muito consciente de que só nascendo de novo, nascendo da água e do Espírito, poderemos ativar todas as nossas possibilidades humanas. Não seguimos de Jesus a partir de fora, como se tratasse de um líder, mas entrando, como Ele, na dinâmica da vivência interior, onde o Espírito atua com liberdade. Daí em diante, tudo o que dissermos e fazermos será a manifestação continuada do Reinado de Deus, que experimentamos em nós mesmos.
Deus chega sempre a partir de dentro, não de fora. Nossa mensagem “cristã” de doutrinas, normas e ritos, está muito distante daquilo que Jesus viveu e pregou. O centro de sua mensagem consiste em convidar todos os homens e mulheres a ter a mesma experiência de Deus que Ele teve. Depois dessa experiência, Jesus vê com toda claridade que essa é a meta de todo ser humano e pode dizer como disse a Nicodemos: “é preciso nascer de novo”. Porque Ele já havia nascido da água e do Espírito.
Deus quer suscitar vibrações novas em nossas vidas e sua Presença instigante desperta em nós o grande desejo de entrar em sintonia com Seu coração. Abrir os olhos e os ouvidos à Presença e à ação de Deus nos faz ficar atônitos, fascinados e sensíveis à voz divina que cada dia ressoa em nosso interior.
Talvez Ele precise colocar outro ritmo em nossa existência, que nos permita estar atentos e à escuta das surpresas que a vida des-vela. A nós corresponde nos mobilizar e estar atentos aos movimentos do Seu Espírito e dos acontecimentos.
A experiência do batismo de Jesus também é importante para todos nós, seus(suas) seguidores(as), para compreender o verdadeiro sentido de nossas vidas. As raízes de nossas histórias podem estar marcadas pelo amor ou pelo desamor. Quando estas raízes estão marcadas pelo amor, crescemos em harmonia conosco mesmo, em harmonia com os outros e em harmonia com o mundo. Quando nossas raízes estão regadas pelo amor crescemos com segurança em nós mesmos, com confiança nos outros e nossas vidas passam a adquirir o sentido da unidade interior.
Somente aqueles(as) que mergulham nas águas do perdão, da compaixão, do amor solidário..., saem marcados pelo Espírito e confirmados na filiação. O mundo seria diferente se as pessoas, rompendo o medo e a insegurança, se atrevessem a sair dos seus moldes, dos seus hábitos arcaicos, das suas maneiras atrofiadas de pensar, sentir, amar...
Recordando os inícios do cristianismo, com João Batista submergindo as pessoas no rio Jordão, não podemos deixar de dar um destaque especial que também Jesus se submergiu. Jesus se submerge e experimenta, escuta, sente, adquire lucidez... Essa passagem de Jesus é determinante para nos abrirmos a uma experiência nova na vivência do seu seguimento. Ele nos aproxima ao abraço refrescante de Deus, recebido nas águas. O que para os outros foi purificação, perdão..., para Jesus é de um dinamismo incomparável. Essa experiência O transforma, O faz ir além de si mesmo, rompendo visões estreitas de Deus, quebrando conceitos antigos de religião...
Submergir-nos é sinônimo de deixar Deus, a Vida, trabalhar em nós. A água, com sua força misteriosa, com sua capacidade de gestar vida, é também um símbolo que nos move a abandonar o que é arcaico para deixar-nos submergir no que é de Deus, nunca antigo, nunca ultrapassado. A água que corre, que flui, sempre é nova. Deus Fonte inesgotável: Ruah, ar, alento, espírito, dinamismo, puro fluir.
Encharcados de água, entramos no fluir daquele maravilhoso início, quando a Ruah fluía e enchia nossa vida de alento e inspiração. Precisamos nos atrever a submergir de novo, adentrando-nos por caminhos desconhecidos, para descobrir nosso mapa interior e nossa verdadeira identidade: “Filhos e filhas, amados(as) do Pai”.
Texto bíblico: Mt 3,13-17
Na oração: Na musicalidade da vida sinta a regência, suave e delicada, do Grande Compositor, arrancando notas divinas da dispersão caótica do seu cotidiano. Sinta a cadência da música divina que vibra, conduz e vivifica. Receba, com gratidão, o mais leve toque das mãos providentes e ternas do Grande Maestro.
Aguce seus ouvidos e escute até com os olhos a sinfonia que brota do mais profundo de seu ser.
- Faça memória de sua experiência batismal; renove, junto ao Jordão interior, seu compromisso batismal.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Ao verem de novo a estrela, os magos sentiram uma alegria muito grande” (Mt 2,10)
O relato evangélico deste domingo é desconcertante: o Deus, escondido na fragilidade humana, não é encontrado pelos que vivem instalados no poder ou fechados na segurança religiosa. Ele se deixa revelar àqueles que, guiados por pequenas luzes, buscam incansavelmente uma esperança para o ser humano, na ternura e na pobreza da vida.
Para além da intencionalidade do evangelista Mateus, o texto contém um profundo simbolismo, carregado de sabedoria. Tudo começa com uma “estrela”. É a luz interior (intuição, insight) que desencadeia o processo de busca e nos põe a caminho. Pode aparecer de maneira inesperada, em qualquer momento e, com frequência, costuma surgir numa situação de crise que, ao remover nossos hábitos, faz com que nos abramos a uma dimensão mais profunda.
Estar a caminho de Belém é fazer a travessia em direção a nós mesmos. Ao buscar uma Criança na Gruta, buscamos nossa verdade mais profunda e original, a verdade interna da alegria e do amor, do sentida da vida, em meio a um mundo no qual a maioria só parece buscar coisas externas, afastando-se de si mesmos. A luz que aqui importa é a tua, a nossa, a minha, ou seja, a de Deus que ilumina o caminho da vida, que nos leva até Jesus e com Jesus nos leva ao Reinado do Pai, que é a plenitude de nossa própria vida.
Peregrinos somos todos, mas não em guerra de estrelas (star-wars) e sim em um caminho messiânico que leva ao ouro, incenso e mirra de Belém, que é o sinal da verdade da vida. Trata-se sempre da voz do desejo que nos habita, e que não é outra coisa que expressão de nossa verdadeira identidade que nos chama para “voltar à casa”. Com efeito, o caminho no qual o desejo nos introduz é o caminho da verdade; a estrela sempre conduz à verdade. E sabemos ou intuímos que a verdade vai nos desnudar de tudo aquilo que havíamos absolutizado. Por esse motivo, é importante que nos perguntemos se realmente buscamos a verdade..., ou nos conformamos com qualquer coisa que a substitua.
A estrela não tem outra finalidade que a de conduzir-nos à “casa”, nossa gruta interior. Mas, apenas iniciamos o caminho, aparecem as dificuldades: os apegos que não estamos dispostos a soltar, as formas de viver que se fizeram habituais, o medo do incômodo que toda mudança supõe, o susto diante do desconhecido... e, em último termo, a ignorância básica que nos faz acreditar naquilo que não somos e nos mantém acomodados na noite da insatisfação existencial.
Os Magos (sábios) do Oriente são símbolo do ser humano em sua busca de Deus, em seu desejo de infinito e plenitude. Esta é a “impressão digital” de artista que Deus deixou em todos nós: a saudade do divino, do sublime, do infinito, do pleno, do Outro.
A estrela simboliza a força dos desejos mais profundos do ser humano (no latim, a palavra desejo “de-sid-erium”, contém a raiz “sid”: sideral, firmamento, horizonte). Portanto, quem deseja transgride as estreitas fronteiras da vida e se deixa conduzir para além de si mesmo; quem não ativa os desejos profundos, limita-se a vegetar, a cercar-se de proteção, a buscar segurança... atrofiando a própria existência. Só os nobres desejos, presentes em nosso interior, alimentam o espírito de busca, acendem a criatividade e nos movem ao encontro do novo e do diferente.
Se levássemos a sério o movimento de “saída” dos Magos, muitas coisas poderiam mudar: o interior de nós mesmos, nosso entorno mais próximo, a estrutura social, as igrejas, as religiões, a ecologia... O “quê” da questão não está nos verbos senão no sujeito ativo que gera o ato de sair, buscar e encontrar.
Como os Magos, precisamos ativar a capacidade de abrir a janela que nos conecta com a vida dos outros e nos permite continuar interessados, com paixão e com lucidez (para ter boas fontes de informação), por tudo aquilo que está ocorrendo em nosso convulsionado mundo. Visitar ambientes que talvez nunca tivemos ocasião de conhecer, sair de nossos espaços rotineiros e conhecidos, abrir-nos às surpresas da vida...
Os Magos perguntam àqueles que podem ajudá-los. Hoje precisamos dialogar com mais profundidade.
Todo ser humano é aventureiro por essência; com ardor, ele anseia por uma causa última pela qual viver, um valor supremo que unifique a multiplicidade caótica de suas vivências e experiências, um projeto que mereça sua entrega radical. Para dar sentido à sua vida e realizar-se como pessoa, o ser humano necessita da autotranscedência, isto é, viver para além de si mesmo, de seus impulsos, caprichos, interesses.
Ele carrega dentro de si a sede do infinito, a criatividade, a capacidade de romper fronteiras, os sonhos, a luz... Portador de uma força que o arrasta para algo maior que ele, não se limita ao próprio mundo; traz uma aspiração profunda de ser pleno, de realização, de busca do “mais”...
O desejo do encontro é força determinante para se manter acesa a chama da dinâmica da busca. É uma chama que se mantém acesa em proporção ao sentido e à grande importância de quem ou do que se busca. Vale a pena buscar o que é importante e encontrar Aquele que responde às razões mais profundas da busca.
Os Magos ensinam como devemos nos mobilizar para viver esse deslocamento (geográfico, interno, social...) para acolher intensamente a surpresa do encontro: caminham em busca, observam os sinais com atenção, desfrutam o trajeto com alegria, porque a alegria consiste em caminhar para o outro, entram no lugar onde Maria já oferece o ambiente aberto... É interessante notar este detalhe do texto do evangelho: “viram o menino com Maria, sua mãe” (v. 11); tudo indica que o tinham em frente, no centro, como o mais importante. Maria põe o Filho fácil de ser encontrado. Nem sequer perguntam por Ele, já o descobrem imediatamente. Não estabelecem diálogo com a mãe. Vão mudos e diretos ao objetivo. Podemos aqui intuir o regozijo de Maria, pois sua felicidade é que a humanidade descubra seu Filho como ela o descobriu.
Uma vez dentro, os visitantes se prostram, se abaixam, reconhecem, identificam, adoram. Em seguida abrem seus cofres e oferecem seus presentes. O relato diz que os magos levaram ouro, incenso e mirra. A meta, para a qual aponta a voz do desejo, requer desapego e desprendimento de nossos “tesouros”. E isso só é possível quando compreendemos que aquilo à qual nos havíamos apegado se esvazia diante da verdade d’Aquele diante de quem estamos.
Procuremos, neste dia festivo, seguir os passos do processo de busca-encontro-manifestação que os Magos experimentaram. Eles buscavam o Rei dos judeus porque “viram sua estrela”, e o encontram em um menino, em casa, com sua mãe, Maria. Descobrem o divino no humano mais frágil. Este é o núcleo da mensagem do relato da Adoração dos Magos. O divino está no humano. Quanto mais humano mais divino.
Como os Magos, também nós somos buscadores de Deus. E, como eles, devemos nos perguntar: a quê Deus buscamos? Onde o encontraremos? Como é possível saber que de fato o encontramos?
A Epifania consiste no encontro com Recém-nascido em Belém; o reconhecimento recíproco transforma os Magos em testemunhas vivas da Boa-Nova. Transformados, eles mesmos se tornam Boa-Nova e assim anunciam, em diálogo vivo, a Luz das nações.
Epifania é deter-nos a contemplar aquela Criança, o Mistério de Deus que se faz homem na humildade e na pobreza; mas é, sobretudo, acolher de novo em nós mesmos aquele Menino, que é Cristo Senhor, para viver de sua mesma vida, para fazer que seus sentimentos, seus pensamentos, suas ações, sejam nossos sentimentos, nossos pensamentos, nossas ações. Celebrar a Epifania é, portanto, manifestar a alegria, a novidade, a luz que o Nascimento de Jesus trouxe e que afeta toda a nossa existência, para sermos, também nós, portadores da alegria, da autêntica novidade, da luz de Deus aos outros.
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: Em sua aparente simplicidade, o relato dos Magos nos apresenta perguntas decisivas: diante de quem nos ajoelhamos? Como se chama o “deus” que adoramos no fundo de nosso ser? Como cristãos, adoramos o Menino de Belém? Colocamos a seus pés nossas riquezas? Estamos dispostos a escutar seu chamado para entrar na lógica do Reinado de Deus e sua justiça?
- O que os Magos despertam em nós, hoje?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Paz na terra aos homens que o Senhor ama!” (Lc 2,14)
Novamente nos encontramos abrindo um Ano Novo: desejado, esperado, buscado...; estreamos e recomeçamos um novo tempo; ocasião privilegiada para aprofundar o sentido do tempo, no qual se desenrola nossa existência. Não podemos fazer a “travessia” em direção ao Novo Ano sem fazer uma reflexão sobre nós mesmos e examinar como estamos fazendo uso de algo tão importante e tão passageiro como o tempo.
No texto bíblico, encontramos duas palavras gregas que traduzimos por “tempo”, mas que tem um significado muito diferenciado.
“Chronos” é o tempo astronômico que se refere à passagem das horas, dias e anos. Em princípio, é o que estamos celebrando hoje. Trata-se de um tempo que absorve, devora, desgasta, esgota...; ele se torna cada vez mais veloz, fugaz, estressante... Tempo de excessos, com a marca da ansiedade e do estres; por isso mesmo, gerador de conflitos e tensões.
Com isso, a existência inteira faz-se maquinal e rotineira: é a soma das horas, dos dias, dos anos. Marcados por tradições e hábitos, dialogamos com o possível, o já esperado, o já testado, o “sempre fizemos assim”...
Corremos o risco de sermos apenas imitadores ou repetidores, pois tememos nos perder na busca do novo; as respostas são confirmadas, mesmo que estas estejam velhas e desfocadas e as perguntas são silenciadas. Vivemos restritos ao cotidiano com o anonimato que ele envolve. Um tempo assim só é habitado pelo “ego”, não há lugar para o outro. Também Deus não consegue entrar nesses “tempos apertados”.
Aqui, a paz tão desejada, não encontra terreno propício para se tornar realidade.
Outro termo grego referente ao tempo é “Kairós”: este é o tempo humano; é o tempo oportuno, carregado da presença d’Aquele que é o “Senhor dos tempos”.
Trata-se do tempo que nos é dado como dom e como oportunidade para ativar todos os nossos recursos internos. É o tempo da interioridade, de crescimento no ser. Viver o “kairós” significa sentir o desejo do retorno à espontaneidade, alimentar a aventura na descoberta de um mundo diferente, ativar o impulso à transcendência, proporcionar um clima favorável à paz como dimensão plenificante da existência humana.
Viver o “kairós” nos faz tomar consciência de que nos encontramos diante de uma grande carência existencial e que os anjos, na noite do Natal, souberam proclamar aos pastores e à toda humanidade: a presença da Paz. Eles revelaram o significado daquela Noite Santa: o céu e a terra se reconciliam, porque Deus faz chegar a paz e a salvação a todos os seres humanos. A Criação inteira celebra a soberana Bondade e o amoroso Coração do Criador, sendo, portanto, uma celebração da alegria e da paz.
Felizes aqueles(as) que, na Gruta de Belém, se mostram sedentos de paz e justiça, e despertam dentro de si uma fome crescente para tornar realidade a igualdade e dignidade de todo ser humano!
Cremos na paz do coração e no empenho por deixá-la transparecer no mundo em que vivemos, tão carente de pacificadores.
Paz, um bem escasso, mas tão precioso que é sempre desejado e buscado, para que a vida se torne um pouco mais plena e com sentido: paz interior, paz na família, paz nas relações de trabalho, paz na ação política e paz entre os povos.
Muitos se perguntam para onde vai nosso mundo, surpreendidos e preocupados pelo crescimento de uma violência desconcertante. Em muitos países triunfam líderes populistas, manejados por forças ocultas sem escrúpulos e marcados por discursos intolerantes, preconceituosos e julgamentos moralistas; a corrupção vai lançando raízes em todos os ambientes; os conflitos e as rupturas se acentuam; a Igreja católica é sacudida por uma grande crise de credibilidade; o sistema de valores e conhecimentos está mudando profundamente. Vivemos um momento de um grande colapso civilizatório: uma metamorfose da sociedade que afeta todos os aspectos da vida, pessoal e coletiva, de toda a humanidade. Trata-se, pois, de uma crise global, embora às vezes possa parecer local ou inclusive pessoal. Tudo isso nos inquieta, nos tira a paz.
Em virtude dessa brutal situação de violência, observa-se em toda parte um grande clamor social pela paz. Esse clamor das multidões está nas ruas, nas grandes passeatas pela paz, nas redes sociais e está no desejo mais profundo de cada um de nós.
Infelizmente, todos os dias aparecem, nos meios de comunicação, mais motivações para a violência do que razões para a paz. Entretanto, precisamos afirmar: “não fomos feitos para a violência”; a humanidade não é naturalmente inclinada à violência. Nosso coração é habitado por um desejo profundo de paz: “Felizes os que promovem a paz!” (Mt 5,9)
Na raiz bíblica do termo “shalom” (paz) está a ideia de “algo completo, inteiro”, “estar terminado”.
Paz significa o que é integral, o que plenifica a vida. Shalom é vida em expansão, na presença de Deus.
Portanto, quem vive no “Shalom” está com saúde, sente-se bem, encontra-se em um estado de plenitude.
Quando alguém deseja “Shalom” a outro é como se dissesse: “Que Deus te conceda todo o necessário para viver em amizade com Ele, em fraternidade com o próximo e calma dentro de ti mesmo”.
A paz pertence à plenitude, à completude, enquanto a violência está do lado da falta, da carência, do incompleto. Paz reflete harmonia consigo, boas relações com os outros, aliança com Deus, enquanto a violência infecciona os relacionamentos, contamina a convivência, quebra as relações, exclui os mais fracos...; há uma paz falsa que é a injustiça estabelecida, porque a verdadeira paz está ligada à justiça. Não há paz sem liberdade, não há paz sem verdade.
Em Belém, somos pacificados de nossas ansiedades e pressas, de nossa sede de poder e de acumular mais; e, se permanecemos em silêncio ali, diante do menino deitado no presépio, brotará em nós um desejo profundo de sermos mais humanos, de sermos aquilo que já somos no rosto aberto daquela Criança; ao mesmo tempo, brotará também um desejo de venerar cada ser humano, de contemplá-lo em seu interior, esse lugar ainda não profanado em cada pessoa, o lugar de sua infância e de sua paz.
Ao nos reconhecermos nessa morada interior, podemos receber a paz cantada pelos anjos diante dos pastores; não só isso: descobrimos que, na essência, “somos paz”. Não é a “paz do mundo”, que sempre é oscilante e inconstante, senão a Paz que abraça todas as situações da vida, porque estamos enraizados naquilo que realmente somos.
A paz natalina é a paz que somos, no nosso “eu” mais profundo.
A paz não é “algo”, nem vem “de fora”, nem é condicionada. A Paz da qual os anjos proclamam é a unidade com nossa interioridade: é outro nome de nossa verdadeira identidade.
E diante dessa manifestação, o que nos resta? A atitude de Maria: acolher todas as coisas, “guardá-las”, “meditando-as no coração”. Ir mais além dos conceitos e das palavras e, desse modo, descansar – admirados, agradecidos, irmanados – no Mistério e deixar-nos conduzir por Ele.
“Meditar as coisas no coração” significa ativar o “olhar contemplativo”, presente em todos nós e que se manifesta quando cessamos nosso palavreado crônico. Serenados(as) interiormente, seremos presenteados com o dom de permanecer no presente, onde tudo está bem, onde tudo flui mansamente e na santa paz.
Texto bíblico: Lc. 2,16-21
Na oração: Que a “entrada” neste Novo Ano nos faça descer em direção à nossa humanidade.
Ali, nas grutas de nosso interior, recanto de paz, uma infância divina nos espera... e nos enche de alegria. Ditosos somos nós se podemos saborear e abraçar a paz do coração que o Menino Jesus traz e oferecê-la largamente para que outros possam também receber seu dom: sem defesas, sem preços, sem temores.
Que nosso coração, apesar de tudo, continue pulsando em paz, na Paz que tudo cria e transforma!
- Como seguidores(as) do Menino Deus, devemos criar politicamente outro tipo de sociedade fundada nas relações justas entre todos, com a natureza, com a Mãe Terra e com o Todo que nos sustenta. Então florescerá a paz que a tradição ética definiu como “a obra de justiça”.
- Que 2020 seja, para todos, um Kairós carregado daquela Paz que brota da Gruta de Belém.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Página 15 de 38