“Se o grão de trigo morre, então produz muito fruto” (Jo 12,24)
Caminhamos para o final da Quaresma, e o evangelho deste domingo nos situa diante de uma experiência radical de morte por amor, como o grão de trigo. Esta é uma experiência universal: só o trigo que “entrega” sua vida é fecundo: multiplica-se em sementes na espiga, transforma-se em alimento (pão compartilhado), alimenta vidas.
Estamos no cap. 12 de S. João; depois da unção em Betânia e da entrada triunfal em Jerusalém, e como resposta aos gregos que queriam vê-lo, João põe na boca de Jesus um pequeno discurso sobre a Vida. Vida maiúscula que só pode ser alcançada quando se entrega em favor de tantas vidas feridas e excluídas.
O evangelho deste domingo nos situa diante da lógica inexplicável do Amor: “perder” a vida por amor é a certeza de “ganhá-la”; morrer a si mesmo é a verdadeira maneira de viver, entregar a vida é a melhor forma de recebê-la... Perder-ganhar, morrer-viver, entregar-reter, doar-receber..., parecem dimensões ou realidades contraditórias, mas captar a profundidade da verdade contida nesta “contradição aparente” é descobrir o Evangelho.
A vida é constantemente chamada a ser Páscoa. Porque na vitória da Vida entregue, ela ganha sentido, avança, como uma torrente que rega terras secas, ávidas de água, como um fogo que, na noite mais escura, traz uma luz que permite vislumbrar a vida oculta.
A vida não se conta pelas respirações, mas pelos momentos de assombro, de alegria e encantamento. Ela tem a dimensão do milagre e carrega no seu interior o destino da ressurreição. A vida, desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude. Ela é fruto do amor, mas o egoísmo é a casca que impede o germinar dessa vida, embora ela esteja presente dentro de cada um de nós. Amar é romper a casca para que a vida se expanda na doação. A morte do falso eu é a condição para que a vida se liberte.
Participando da morte de Jesus, podemos também fazer de nossas cotidianas mortes um ato de decisão, de entrega, de oblação. A certeza de nossa fé em Cristo, morto e ressuscitado, nos ajuda a tirar do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança e proteção, e encontrar uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita em favor da vida dos outros.
Por si mesma, toda vida humana é fecunda, é potencialidade, é explosão de criatividade... Assim como na semente do trigo há vida latente esperando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano encontram-se ricas possibilidades, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se plenificarem.
A condição da fecundidade é saber morrer a muitas coisas: auto-centramento, busca de poder, vaidade... E esse processo de mortes de tudo aquilo que limita, que atrofia e isola..., não é o fim da vida, mas sua plenitude; esse caminho permanente de esvaziamento do ego, para viver a entrega aos outros, não significa a anulação da “pessoa”, mas sua potenciação; pois a vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão... Desperdiçar a vida é travar a existência; é trágico que alguém viva na superficialidade sem ter acesso à sua riqueza interior. Quem conhece o valor da vida não se limita a viver de maneira “normótica” (normalidade doentia).
Precisamos abandonar nossas medidas de segurança, ser liberados do domínio cego do ego, para que possa emergir e brilhar o que realmente somos, nossa dignidade mais profunda. “Não é o centrar-se em si mesmo que confere dignidade à existência, mas o descentrar-se, o reestruturá-la em favor dos outros” (L. Boff). “Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2,20).
O essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”. A vida aumenta quando compartilha e se atrofia quando permanece no isolamento e na comodidade. De fato, aqueles que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança do conhecido e se dedicam apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros.
O Evangelho de hoje(5º dom Quaresma) nos ajuda a descobrir que a preocupação doentia para com a própria vida atenta contra a qualidade humana e cristã dessa mesma vida. Aqui descobrimos outra lei profunda da realidade: alcança-se a maturidade da vida à medida que ela é entregue para possibilitar vida a outros.
“Morre e transforma-te” (Goethe) Somos seres que passamos por contínuas transformações. Tudo muda. Muda o nosso coração, nossa mente se abre ao novo, nossos sentidos se expandem, nossos encontros com os outros revelam-se criativos e inspirados... Reagimos como aquelas pessoas que tiveram uma experiência limite da morte (por enfermidade, acidente ou por ter superado uma morte certa); elas experimentam uma mudança radical em suas vidas. Sua atitude diante da vida é totalmente diferente; vêem-na com olhos novos: captam muitos detalhes que antes escapavam de sua atenção, vivem intensamente, amam com mais paixão, prestam atenção a muitas coisas que lhes passavam desapercebidas; tem um comportamento diferente para com os outros; há, nestas pessoas, mais ternura, são mais sensíveis à dor e à injustiça.
Ao apreciar o presente da vida, vivem como se fossem ressuscitadas; crêem que, amando mais a vida, se afastarão mais da morte e resistirão às hostilidades do mundo presente. E, no entanto, continuam vivendo na mesma casa, fazendo as mesmas coisas..., mas, com outra sensibilidade, com mais criatividade e doação.
Para quem se deixa afetar profundamente pela experiência quaresmal, é impossível não ser movido(a) a viver bem a vida, a valorizá-la e a coloca-la a serviço. O convite de Jesus é para “perder” nossa vida, não afeiçoarmos egoicamente a ela e abrir-nos para receber uma Vida maior, nossa verdadeira vida, a Vida de Deus em nós. Precisamos nos destravar, deixar de apegar-nos a nós mesmos, abrir as mãos, abandonar nossa autoafirmação... para que Deus possa entrar e atuar em nós.
Aquele que “quer salvar sua vida”, ou seja, aquele que quer estar bem, não quer ter compromissos, não quer se envolver com as situações exigentes, quer estar à margem da realidade que pede uma presença diferente..., esse “perderá sua vida”. Quê vida mais atrofiada quando se vive bem comodamente, bem tranquilo, bem instalado, bem relacionado politicamente, economicamente, socialmente...!
Mas aquele que por amor ao Reino se desinstala, acompanha o povo, se solidariza com o sofrimento do pobre, encarna-se e faz sua a dor do outro... esse “ganhará a vida”. Sua vida se transformará em Vida. Libertam o mundo todos aqueles e aquelas que fazem de sua vida uma doação, um oferecimento. Assim deixam passar por eles(elas) o que é Deus, puro Dom de Si, Amor que não se reserva a Si mesmo.
É gratificante fazer memória de tantos homens e mulheres que foram presença compassiva e, à maneira de Jesus, consumiram suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua presença ajudaram os outros a viver; pessoas que revelaram a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregaram suas vidas sem brilho algum, sem vozes que a proclamassem; foram como o fermento silencioso que se dissolveram na massa para fazê-la crescer.
Texto bíblico: Jo. 12,20-33
Na oração: Somos grãos de trigo na grande seara do mundo; e o grão de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com sentido.
Aprendamos a morrer para nossos interesses mesquinhos; só assim nossa vida terá a dimensão da eternidade.
- “Se a semente do trigo sou eu, a quê devo morrer, para que a vida interior possa se expandir?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito...” (Jo 3,16)
O evangelho indicado para este 4º. dom. da Quaresma nos faz retomar o verdadeiro sentido do Mistério da Encarnação. Pode parecer estranho, uma vez que a liturgia quaresmal nos motiva e nos prepara para viver os mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. Mas os “mistérios” da vida de Jesus não estão separados: trata-se de um só e único “Mistério”, qual seja, do “Deus que se humaniza” para redimir a humanidade perdida.
O que aconteceu no mistério da Encarnação é algo surpreendente e cheio de novidade. Não só Deus ama radicalmente a sua criatura, senão que se “abaixou” e se fez um de nós em Jesus: a carne é digna de Deus, o mundo é digno de Deus, a Encarnação é a expressão mais profunda de que somos de Deus. Com isso, rompe-se o medo do corpo, o medo do humano, o medo do diferente, o medo do mundo, o medo de sentir e experimentar a condição humana, com sua grandeza e fragilidade.
Ao se revelar Manancial e Fonte de nossa humanidade, não é mais possível crer que o Criador seja nosso rival, mas amigo; não é possível mais aceitar que Ele seja insensível, mas providente; que seja nossa ameaça, mas alívio; que seja nossa diminuição, mas plenitude; Ele não é o “juiz distante” mas o “Deus encontro”, fonte de nossa liberdade...
O relato do Evangelho de hoje nos revela a atitude de Deus no seu encontro com o mundo, marcado por uma atitude amorosa. Em Jesus Cristo, nos fazemos conscientes da relação que há entre todos os seres humanos e destes com todas as demais criaturas e com o Criador. Ele não só tornou próximo um Deus cuja essência é encontro (cerne da doutrina cristã da Trindade), mas revelou que o caminho para a plenitude e a transformação humana consiste “entrar no fluxo do encontro intra-trinitário”, fazendo-nos encontro e reconstruindo as relações rompidas. Na verdade, Ele chamou o ser humano a sair de seu mundo fechado, de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para expandir-se em direção a um novo encontro com tudo o que existe; tal encontro é o prolongamento do encontro trinitário e concretização do sonho do Reino de Deus.
Inspirados no evangelho deste domingo, contemplemos, com o olhar do Deus Amor, nosso mundo fragmentado, vendo as diversidades em conflito que geram o sofrimento, a exclusão, a morte... Entrar no fluxo do “amor compassivo e descendente de Deus” ativa também em nós uma maneira cristificada de ser e de estar no mundo; nossa presença e nossa missão fazem do mundo em que vivemos um lugar transparente, santo e luminoso em Deus. O “amor descendente” nos expande e nos lança em direção ao mundo, à humanidade, nos faz mais universais e nos capacita para sermos “contemplativos nos encontros”.
Na espiritualidade cristã, quem experimenta o encontro com o Deus vivo e amoroso, começa a “ver” os homens e as mulheres no mundo como Deus mesmo os vê. Precisamente por ter-se encontrado com o Deus-Amor, a pessoa torna-se mais “encarnada” na realidade e mais comprometida com os irmãos e irmãs no mundo, sobretudo com os mais pobres, os mais sofridos e excluídos; é aquela que mais se compromete com a justiça e é a que mais desenvolve uma criatividade eficaz na história, com obras que nos surpreendem.
O Tempo Quaresmal nos sensibiliza e nos capacita para nos aproximar do nosso mundo com uma visão mais contemplativa. Como “contemplativos nos encontros”, movidos por um olhar novo, entramos em comunhão com a realidade tal como ela é. É olhar o mundo como “sacramento de Deus”; um olhar gratuito e desinteressado, que nos abre a uma atitude acolhedora de tudo que nos rodeia; um olhar que rompe distancias e alimenta encontros instigantes.
O(a) seguidor(a) de Jesus não é aquele(a) que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele(a) que, movido(a) por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença do Inefável; o mundo já não é percebido como ameaça ou como objeto de conquista, mas como dom pelo qual Deus mesmo se faz encontrar. O mundo não é lugar da exploração e da depredação, mas é o lugar da receptividade, da oferenda e do encontro inspirador.
Para realizar esta nobre missão, não podemos permanecer sentados. Seguir Jesus exige de nós uma dinâmica continuada, um colocar-nos a caminho em direção às margens. A disponibilidade, o despojamento e a mobilidade são exigências básicas.
Corremos o risco de viver em mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o convencional. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um mundo amplo, complexo e cheio de surpresas. Muitas vezes “vemos” o diferente, mas só como notícia, como o olhar do espectador que sabe das “coisas que acontecem”, mas não sente e nem se compadece por elas.
Encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações…; escutar outros relatos que trazem muita luz para a nossa própria vida. Olhar a partir de um horizonte mais amplo, ajuda a relativizar nossos próprios absolutos e deixar-nos impactar pelos valores presentes no outro. Escutar de tal maneira que o que ouvimos penetra na nossa própria vida; isso significa implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas. Acolher na nossa própria vida outras vidas; abrir espaços para que as histórias dos excluídos e diferentes encontrem morada nas nossas entranhas, na nossa memória e no nosso coração.
O encontro com o diferente possibilita também o encontro consigo mesmo, ou seja, encontrar a própria verdade. Isso implica em se perguntar pela própria identidade, por aquilo que dá sentido à própria vida, o impulso por viver de uma maneira cristificada, conforme os valores do Reino.
Para que haja verdadeiro encontro com o outro, o deslocamento expõe quem se desloca, deixa-o vulnerável e “contaminado” pela realidade que encontrou. Quando alguém se desloca e se aproxima de realidades diferentes, é para encontrar, encontrar-se e encontrar Aquele que veio iluminar todo encontro.
Como seguidores(as) de Jesus, nosso desafio não é fugir da realidade, mas aproximarmos dela com todos os nossos sentidos bem abertos para olhar e contemplar, escutar e acolher, percebendo no mais profundo dela a presença ativa do Deus que nos ama com criatividade infinita, para encontrar-nos com Ele e trabalhar juntos por seu Reino. O mundo precisa de místicos(as) que descubram onde está Deus criando algo novo, para proclamar esta boa notícia.
É aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o seu Reinado, trabalhando cada dia como amigos(as) de Jesus que passam, observam, curam, se compadecem, ajudam, transformam, multiplicam os esforços humanos. Apaixonados por Deus, nos apaixonamos pelo mundo que, em sua diversidade, riqueza, simplicidade, profundidade, fragilidade, sabedoria... nos fala do novo rosto do Deus que buscamos com desvelo. E amando e investigando tudo o que é do mundo, adoramos o Deus que habita em tudo.
Texto bíblico: Jo 3,14-21
Na oração: “Pai de bondade, para descobrir tua proposta original, ensina-nos a contemplar o mundo inteiro com o teu próprio olhar, respeitoso e fiel à nossa realidade”. (Benjamin Buelta)
- Evangelizar nossos sentidos, muitas vezes atrofiados e limitados, para que eles sejam mediação cristificada e assim viver encontros verdadeiramente humanizadores.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo…” (Jo 2,15)
A Quaresma nos oferece os grandes sinais da vida e da mensagem de Jesus: das tentações (1º. dom.) e transfiguração (2º. dom.) à expulsão dos comerciantes do Templo (3º. dom.). Este terceiro sinal, vinculado com a construção do novo Templo (formado pela vida dos cristãos, unida à vida de Cristo), está no centro da mensagem de Jesus. E revela-se uma ocasião privilegiada para denunciar a tendência da religião cristã em distanciar-se da mensagem de Jesus e deixar-se contaminar pelo poder, pela riqueza, pela vaidade... Todos devemos nos empenhar em destruir muitas coisas do “velho templo” que fomos construindo ao longo da história.
João, à diferença dos outros evangelistas, situa o relato da expulsão dos comerciantes do Templo no começo do ministério de Jesus. O espaço do Templo tinha se convertido em mercado, e se encontrava dominado pelos comerciantes da religião, vendedores e sacerdotes. Com sua atitude, Jesus combate uma religião que está a serviço do “deus-dinheiro”, deixando de ser mediação de vida, de comunhão e partilha dos bens. Evidentemente, este não é o templo de Jesus, que veio chamar e convocar aqueles que não podem comprar “bois-ovelhas-pombas”. Jesus expulsou os mercadores-vendedores do templo porque estes expulsaram Deus de suas vidas e da realidade cotidiana; queriam ter Deus sob seu controle para se enriquecer com o sagrado.
Por que este gesto violento de Jesus para com aqueles que dominavam o templo e manipulavam Deus em favor de seus interesses? Porque, para eles, o primeiro e o intocável era “o ritual” e “o sagrado” (com todas as suas consequências). Enquanto que, para Jesus, o primeiro e o intocável, era “o humano” (a vida humana, o respeito ao humano, a dignidade de todos os seres humanos por igual). Jesus se situou do lado da vida e da felicidade dos seres humanos. De fato, as preocupações de Jesus não foram nunca nem as observâncias rituais do templo, nem a inviolabilidade do sagrado, nem a dignidade dos sacerdotes, nem os poderes da religião... As preocupações de Jesus foram: a saúde das pessoas (relatos de curas), a mesa da partilha e da inclusão (relatos de refeições), a reconstrução das relações entre os humanos (o sermão da Montanha).
Jesus foi um profeta leigo; não foi sacerdote, nem funcionário da religião, nem mestre da lei, nem nada parecido. Mais ainda, Jesus viveu e falou de tal maneira que logo entrou em conflito com os dirigentes da religião de seu tempo, os sacerdotes e os funcionários do Templo, que eram os representantes oficiais do “religioso” e do “sagrado”.
Se há algo que é claro e é repetido tantas vezes nos Evangelhos é que os “homens da religião” não suportaram o Evangelho de Jesus, centrado na vida e não no Templo. E não o suportaram porque eles viram, em Jesus, um perigo e uma ameaça aos seus privilégios. Enquanto o projeto deles era defender e manter o Templo com seus ritos e normas, com suas dignidades e privilégios, com seus poderes sobre o povo, o projeto de Jesus centrava-se na cura dos enfermos, na proximidade junto aos mais pobres, aos pequenos, aos pecadores e a todo tipo de pessoas desprezadas e rejeitadas pelos dirigentes religiosos. Tudo isto é o que Jesus privilegiou, inclusive transgredindo as normas da religião, enfrentando os escribas, fariseus, os sacerdotes e atuando com violência contra aqueles que utilizavam o templo como negócio, até convertê-lo em “casa de comércio”. O Compassivo não quer sangue, nem incenso, nem ritos...; quer compaixão, ternura, quer justiça, quer que todos vivam e vivam intensamente.
Sabemos que em toda religião o determinante está no sagrado. No projeto de Jesus, o centro de tudo está no humano, na dignidade e na felicidade das pessoas, na vida. Jesus não suprimiu o sagrado, mas o deslocou do religioso ao humano. Este é o verdadeiramente sagrado para Jesus. Seu projeto não é projeto “religioso”, mas a vida humana; o central na sua vida não foi o religioso, mas o humano e a humanidade.
Por isso, Jesus prescindiu do Templo para relacionar-se com Deus. Ele se encontrava com o Pai não no espaço sagrado do Templo, nem no tempo sagrado do culto religioso, mas no espaço cotidiano do encontro com as pessoas. Seu Templo era a convivência com as pessoas, sobretudo as mais excluídas.
Jesus foi um piedoso israelita que teve uma forte experiência de Deus, a quem chamava Pai e que fomentava a oração não no templo, mas no monte, nos lugares solitários e silenciosos. Sua “religiosidade” não estava vinculada ao templo nem aos rituais sagrados.
Frente ao projeto que chamava “Reinado de Deus”, Jesus foi questionando uma religião que desumanizava as pessoas. Ele mesmo foi relativizando os pilares da religião: o sábado, a “pureza” legal, o pecado, o Templo, o culto, os sacrifícios, as doutrinas... Pouco a pouco, foi colocando tudo em questão, infringindo suas normas e atacando a hipocrisia de um culto a Deus que desprezava as pessoas.
Para aqueles que veem em Jesus o novo Templo onde habita Deus, tudo é diferente. Quem deseja viver a fundo e encontrar-se com Deus (“os verdadeiros adoradores do Pai), não é preciso ir a um templo ou outro, frequentar uma religião ou outra. É necessário aproximar-se de Jesus, entrar em seu projeto, seguir seus passos, viver sob o impulso do seu Espírito.
Neste Novo Templo, que é Jesus, para adorar a Deus não bastam o incenso, as aclamações nem as liturgias solenes. Os verdadeiros adoradores são aqueles que vivem diante de Deus “em espírito e em verdade”. A verdadeira adoração consiste em viver com o “Espírito” de Jesus e na “Verdade” do Evangelho. Sem isto, o culto é “adoração vazia”.
Nós dizemos que a religião é um meio (mediação) para nos relacionar com Deus. Mas nem sempre caímos na conta que a religião com seus rituais (templos, ritos, o sagrado, os sacerdotes, a normativa religiosa...) ocupam tanto espaço e alcançam tanta importância na experiência dos indivíduos e da sociedade que Deus acaba ficando deslocado da vida e desfigurado em sua imagem de Pai/Mãe de misericórdia. O que acontece, com muita frequência, é que a religião, seus ritos, suas hierarquias e suas normas, em lugar de fazer-nos aproximar de Deus e fazer-nos pessoas melhores, na realidade fazem é complicar nossa relação com Deus e, sobretudo, dificultam nossas relações sociais, religiosas ou simplesmente humanas.
No Reino de Deus não se requer “templos” mas corpos vivos. Estes são os santuários de Deus, onde brilha Sua presença e Seu amor, onde as pessoas vivem dignamente. Jesus não veio para continuar a linha religiosa tradicional. Veio para propor uma humanidade restaurada a partir do princípio da centralidade da vida das pessoas que vivem com dignidade. Sobre esta base é possível sonhar e construir outra maneira de viver e outra maneira de ser.
Neste Novo Templo, que é a vida dos(as) seguidores(as) de Jesus, não se faz discriminação alguma, nem se fomenta a desigualdade, a submissão e o medo. Não há espaços diferentes para homens e mulheres. Em Cristo já “ não há varão e mulher”. Não há raças eleitas nem povos excluídos. Os únicos preferidos são os necessitados de amor e de vida.
Necessitamos, sim, de igrejas e templos para celebrar e fazer memória de Jesus como Senhor, mas Ele é nosso verdadeiro Templo. Os templos físicos não podem ser fronteiras que dividem o sagrado do profano, mas espaços onde vivemos a sacralidade de toda a vida.
Texto bíblico: Jo. 2,13-25
Na oração: As portas do “novo Templo”, que é Jesus, estão abertas para todos; ninguém está excluído.
Podem entrar nele os pecadores, os impuros, os excluídos, os marginalizados da religião...
O Deus que habita em Jesus é de todos e para todos.
Somos também o “novo templo”, morada do Espírito, presença que alarga nosso interior para que todos possam ali ter acesso.
- Quem são os “frequentadores” do seu “templo interior”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O Espírito levou Jesus para o deserto” (Mc 1,12)
Ao iniciarmos a Quaresma, um lugar que continuamente será citado e que vai aparecer com frequência nos textos, reflexões e orações, é o “deserto”. Deserto que deve fazer parte de nossas vidas em algum momento: espaço de escura e de silêncio, de busca, de despojamento; lugar que nos faz tomar consciência das coisas essenciais que dão sentido à nossa existência; ambiente privilegiado para o encontro tu a tu com o Deus amor que nos habita, ou melhor, em Quem habitamos. Se nos abrirmos à Sua presença amorosa, caminharemos livres dos falsos absolutos que cada dia nos tentam, e nossos desertos existenciais se converterão em um jardim onde florescerá de novo a esperança.
Como seres humanos, de tempos em tempos precisamos passar por experiências de despojamento, de esvaziamento, de vulnerabilidade, de crise..., para poder suavizar nosso coração e, desse modo, fazer-nos mais receptivos e expansivos.
O “deserto” é o lugar das perguntas, do discernimento, da busca de profundidade, o ambiente favorável que nos oferece ferramentas com as quais poder romper as bolhas que nos aprisionam, impedindo-nos sair para a aventura da vida.
O “deserto” nos sacode e nos desnuda, porque desmascara nossas falsas seguranças. Por isso, somos movidos a buscar nossas raízes mais profundas. Quando esse percurso é vivido adequadamente, é provável que no final vamos poder dizer, como Kierkegaard, “eu teria me afundado se não tivesse ido ao Fundo”. Com efeito, antes ou depois, o deserto nos conduzirá para o Fundo estável e sereno, nos conduzirá à “casa”, à nossa verdadeira identidade, à “Terra prometida”.
Num mundo em que a imagem e as redes sociais ocupam, com suas presenças, toda a nossa vida, todos os nossos lares, os espaços públicos, fazendo-nos viver a cultura da superficialidade, muitas pessoas de diferentes condições sociais e religiosas já começam a sentir a urgente necessidade de escapar de tanta solicitação externa que as oprime e alimentam o desejo de se ocupar mais decididamente com o seu mundo interior. Mas, se somos sinceros, adentrar-nos em nosso “eu profundo” e viver a partir de dentro é algo que não sabemos e muitas vezes até sentimos medo. É cada vez mais difícil a criação de um espaço interior, em sintonia e bem integrado com o mundo exterior.
Nesse sentido, a liturgia quaresmal revela-se como uma mediação privilegiada para potencializar nossa interioridade, ou destravá-la, para que a expansão de nossa vida seja possível. Tal experiência resgata-nos do entorpecimento e nos dá um choque de lucidez. Ela oxigena a nossa mente e implode nosso conformismo; revela-se instigadora e provocativa, fonte inspiradora que nos liberta do cárcere da rotina. Ela nos faz lembrar que somos andarilhos, deslocando-nos no traçado da existência em busca de respostas que dêem sentido à nossa existência.
O caminho para Deus passa pela experiência mais profunda e autêntica de si mesmo, convidando cada um a repensar como, em meio às dificuldades de cada tempo, sempre é possível o percurso em direção à própria interioridade.
Buscar o Deus que “está dentro de mim, enquanto eu estou fora” (S. Agostinho), significa entrar em relação direta com nosso interior, com o que nos move, com o que sentimos e pensamos; significa dissolver bloqueios afetivos já solidificados e conflitos não resolvidos; é fazer que se calem muitos ruídos parasitas e que se escute, por fim, o silêncio sonoro que brota do oculto; desentupir os condutos do coração e processar a lava ardente dos grandes desejos significa abrir os olhos para uma paisagem desconhecida.
Foi no deserto onde Jesus descobriu o que move verdadeiramente o coração do ser humano. Foi nessa situação – de solidão – onde também descobriu o que Deus ama no coração humano. Nessa experiência de deserto Jesus tomou consciência de duas forças ou dinamismos que atuam no coração humano: um de expansão, de saída de si, de vida aberta e em sintonia com o Pai e com os outros; outro, de retração, de auto-centração, de busca de poder, prestígio, vaidade...
Jesus viveu impulsionado pelo Espírito, mas sentiu em sua própria carne as forças do mal: “foi tentado por satanás”; satanás significa “o adversário”, a força hostil a Deus e a quem trabalha por seu reinado. Na tentação de Jesus se des-vela o que há em nós de verdade ou de mentira, de luz ou de trevas, de fidelidade a Deus ou de cumplicidade com a injustiça. Qual dos dois dinamismos internos alimentamos?
O evangelista Marcos ressalta que o “deserto” não é só um lugar geográfico; é também o lugar que buscamos para nos silenciar e nos oferecer a oportunidade para reconectar conscientemente com nosso centro. Em todo processo de crescimento, e mais ainda nos períodos críticos do mesmo, vamos nos deparar com a presença dos “animais selvagens” e dos “anjos” em nosso eu profundo.
É assim que nomeamos as experiências que acontecem quando nos adentramos em nosso mundo interior. Os “animais selvagens” são aquelas circunstâncias internas e que nos frustram e, sobretudo, aquele material psíquico que não reconhecemos ou aceitamos em nosso interior: nossas paixões, nossos traumas, nossas feridas, nossos instintos, nossa impotência e fragilidade... É a “sombra” que vamos arrastando, e que continua nos assustando enquanto não a reconhecemos e a abraçamos abertamente em sua totalidade.
Os “anjos” são os consolos – externos e internos – que aparecem em nosso caminho, em forma de paz, de luz, compreensão, de fortaleza, de amor...
“Animais selvagens e anjos” cumprem seu papel, pois nos “obrigam” a avançar para nossa verdade profunda, tirando-nos da superfície de nós mesmos, ou talvez da “zona de conforto” na qual tínhamos nos instalado, conformando-nos com uma vida “normótica” e sem criatividade.
O amadurecimento humano implica abraçar toda nossa verdade, também aquela que nos aparece sob disfarces temerosos, como o medo, a solidão, a tristeza, a angústia... Lidar com tais “feras” requer capacidade de olhá-las de frente, com compreensão, paciência e muito afeto. A espiritualidade cristã nos mostra que exatamente em nossas feridas nós descobrimos o tesouro do nosso verdadeiro “eu”, escondido no fundo de nosso coração.
Tradicionalmente, fomos coagidos a viver uma espiritualidade que nos ensinou a prender os “animais selvagens” e a levantar junto deles um edifício de “grandes ideais”. E com isto, passamos a viver constantemente com medo de que as feras pudessem fugir e nos devorar.
Sabemos que tudo quanto nós reprimimos nos faz falta à nossa vida. Os “animais selvagens” tem muita força. Quando os prendemos, fica nos faltando a sua força, de que temos necessidade para o nosso caminho para Deus, para nós mesmos e para os outros. Somos obrigados a fugir de nós mesmos, ficamos com medo de olhar para dentro de nós, pois poderíamos correr o risco de nos deparar com as feras perigosas.
Quando, graças à presença dos “anjos”, deixarmos de rejeitar e de resistir aos “animais selvagens”, iremos tomando consciência como a luz e a fortaleza vão se expandindo em nosso interior; nós nos perceberemos mais unificados e harmoniosos. E assim, estaremos mais preparados para a “travessia” em direção à Páscoa.
Texto bíblico: Mc 1,12-15
Na oração: Cuidamos da interioridade quando nos questionamos sobre o modo como olhamos a vida, como atuamos diante das situações, como nos relacionamos com os outros, como vivemos nossas convicções e crenças; e, sobretudo, quando nos exercitamos em determinadas “atividades espirituais” que podem nos ajudar a des-velar o nosso “eu original”, como o silêncio, os momentos de oração, o encontro com a Palavra, a partilha em grupo...
- Quê mediações você vai ativar durante a Quaresma para ajudar a des-velar sua própria interioridade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Tu, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto…” (Mt 6,17)
Outra Quaresma que chega! E alguém pode, com certo ar de rotina, multiplicar referências ao deserto, ao jejum, à esmola e à oração, com o risco da regularidade de tudo o que, na vida, é habitual, com a tranquila cadência do ano litúrgico, com a normalidade da passagem das estações.
No entanto, a quaresma litúrgica, que nos é dada como tempo para voltar ao essencial, ou seja, ao Evangelho, é tempo pedagógico e terapêutico para preparar as entranhas e mobilizar o nosso coração frente o acontecimento central de nossa fé, a Páscoa. Tempo que provoca uma sacudida em nossa apatia, em nosso andar por inércia...
Antes de empreender o caminho quaresmal, antes de querer fazer a travessia do deserto, é necessário inclinar um pouco a cabeça e receber o perfume de nossas cinzas. Tal e como Jesus nos recomenda no Evangelho de hoje, não se trata de des-figurar nosso rosto, mas de nos deixar trans-figurar.
As “cinzas” são o símbolo daquilo que morreu e foi reduzido à sua expressão mínima. Essa é a nossa garantia: aquilo que passa pelo fogo, é necessariamente renovado. Animar-nos, neste tempo de travessia, a acender o fogo para converter em cinza tudo o que é caduco e ultrapassado em nós; e ao nos ver rodeados de cinzas, sentir-nos-emos esvaziados de nossas falsas seguranças e ilusões, de nossa prepotência e auto-centramento. Das cinzas surgirá a oportunidade de uma nova vida, mais aberta e expansiva; as folhas caídas darão lugar ao novo broto e isto implica atrever-nos a viver com mais intensidade e criatividade, fazendo a dura travessia em direção ao novo que nos humaniza.
Quê podemos cultivar nestas próximas semanas quaresmais?
O deserto como atitude de silêncio, de esvaziamento e de solidão carregada de presença, para não viver de atração em atração, na feira das vaidades.
A oração como busca do Deus compassivo, dificultada pela cultura da superficialidade; isso implica uma escuta verdadeira da Palavra e uma sintonia profunda com Aquele que sempre se revelou Mestre e Guia.
A esmola como amor compassivo, que se expressa não em dar o supérfluo, mas fazer-se presença junto àqueles que mais precisam.
O jejum como resposta austera a um mundo que constantemente excita os apetites.
A conversão como saída da acomodação, deslocando-se em direção a uma vida mais comprometida com a justiça evangélica, ou seja, “ajustar-se” ao modo de ser e de agir de Jesus.
No Evangelho que abre o tempo da Quaresma, Jesus nos convida a praticar de coração as disciplinas espirituais da oração, do jejum e da esmola. Soa estranho falar de “disciplinas” em pleno séc. XXI. Mas a palavra “disciplina” vem da mesma raiz de “discípulo”. Poderíamos defini-la como um modo de proceder proposto por um mestre a seu discípulo para crescer e emadurecer em diferentes aspectos de sua vida. Há disciplinas desportivas, artísticas, científicas... A partir da ótica cristã, ser discípulo de Jesus é segui-lo, escutá-lo, amá-lo e viver as “disciplinas” que nos propõe.
O problema é que as “disciplinas quaresmais” estão muito desgastadas na Igreja porque foram transfor-madas em leis e obrigações, impostas aos fiéis à força. Disfarçadas como penitências, se apresentavam como imprescindíveis para obter o perdão de Deus. Mas podemos redescobrir seu sentido a partir da liberdade e do amor. Assim veremos que são um presente e uma oportunidade privilegiada para nós, não para merecer o amor de Deus (pois Ele ama a todos incondicionalmente), mas para celebrar o amor de Deus. Para poder agradecer seu amor, queremos ser mais livres, mais justos, mais amorosos.
Nesta perspectiva, as três disciplinas espirituais da Quaresma (oração, jejum e esmola) encontram sua relação com as três dimensões do amor: a Deus, ao próximo e a si mesmo.
A oração nos ajuda a amar a Deus e a entrar em sintonia com Sua vontade. A vivência da oração e de todas as disciplinas associadas a ela, como o silêncio, a solidão, a reflexão, a meditação bíblica, a contemplação, a participação na liturgia da comunidade, a leitura de um livro espiritual,... nos preparam e nos ajudam a entrar no fluxo da ação amorosa de Deus, no mais profundo de nosso ser. Quando oramos, conhecemos e amamos mais a Deus, intuímos sua passagem em nosso dia-a-dia, alimentamos nossa vida interior, somos menos superficiais, nos fixamos mais nos dons que Ele nos concede, damos graças por estarmos rodeados de tanta beleza, mesmo em meio a uma terrível situação, alimentamos compaixão com aqueles que sofrem, somos mais conscientes de nossa fragilidade e, ao mesmo tempo, de nossa maravilhosa dignidade de filhos e filhas de Deus. Quê lugar ocupa Deus em minha vida?
Esmola: a palavra “esmola” soa mal. Dá ideia de resto, de poder de quem tem sobre o nada de outros. O termo “esmola” deriva do grego “eleéo”, “ter piedade”, cuja forma imperativa “eleéson” figura no “kyrie” do ato penitencial da celebração eucarística. Antes que possamos ter piedade dos outros é Deus que teve piedade de nós. Precisamente porque brota da piedade divina e se modela sobre ela, a esmola não se reduz a um gesto de ordem apenas material: ela manifesta “um ato que indica o fazer-se companheiro de viagem de quantos se encontram em dificuldade”, participando na sua situação, com ternura. O sentido não está em dar coisas, mas fazer-se dom, oferecer algo de si, importante, significativo. Tem a ver com abertura de coração, sensibilidade e olhos abertos. É resultado de uma atenção permanente e ativa, que vai ao encontro do outro, que toma iniciativa, que se comove. É um estímulo a superar o assistencialismo, que mantém as diferenças, sustenta a dependência e não promove a cidadania.
A esmola nos provoca à solidariedade e ao espírito de compaixão, nos move ao serviço, à presença-qualidade, ao voluntariado, à prática do bem e da justiça.
- O quê prevalece em meu cotidiano: a mística do encontro ou a cultura da indiferença?
Finalmente, o jejum nos leva a amar-nos mais a nós mesmos. Há muitos tipos de jejum, desde aquele que busca fins terapêuticos até políticos (Gandhi) ou solidários. O desafio do jejum espiritual é que, para ser efetivo, necessitamos encontrar uma razão nobre: de quê temos de jejuar ou abster-nos?
Para muitos, o jejum clássico da comida continuará sendo um grande meio, mas para outros o jejum difícil e preciso será, por exemplo, desconectar-se um pouco das redes sociais, livrar-se de um vício ou afeto desordenado, controlar a língua e não falar mal dos outros, recuperar tempos de silêncio... Em definitiva, o jejum e a abstinência nos levam à auto-estima e a ser “senhor de si” e são sinônimos de desintoxicar-se, desconectar-se, desapegar-se, desprender-se...Ou seja, fazer tudo o que nos leva a sermos pessoas mais equilibradas, autônomas e livres..., que tem mais tempo para amar a Deus e ao próximo.
Fazer jejum para despertar outras fomes: de justiça, de partilha, de compaixão...
- Quê outras fomes quero ativar em minha vida?
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Da cabeça aos pés, perfumar-nos com o aroma da humildade. Toda a aventura para a Páscoa começará com este gesto de inclinar a cabeça e nos conduzirá, com o Mestre, a nos colocar aos pés dos outros para lavá-los com a água pura do nosso coração e cingidos, como Ele, com a toalha do serviço humilde.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou no leproso...” (Mc 1,41)
Como as narrações anteriores do evangelista Marcos, também a deste domingo é concebida como um desvelamento da personalidade de Jesus. Autoridade e compaixão: dois atributos de Deus que Jesus deixa transparecer no encontro com as pessoas, sobretudo as enfermas e excluídas; são as feições divinas que se visibilizam no agir de Jesus. Além disso, Marcos quer também revelar a superioridade de Jesus em relação à Lei. Ele não depende da Lei para fazer o bem às pessoas ou para reintegrar o ser humano no convívio social e religioso. Pois, a Lei é (e deveria ser sempre) para o bem das pessoas; se Ele pode curar alguém pela “autoridade”, não é preciso primeiro consultar os guardiões da Lei. Basta que, depois da cura, o leproso ofereça o sacrifício de agradecimento a Deus, conforme o rito religioso costumeiro.
Jesus não duvida em transgredir a lei quando a vida está em perigo; mesmo sabendo que Ele se fazia “impuro” ao tocar no leproso, atreve-se ao risco do contágio. O motivo de sua atuação é só uma: a compaixão. Frente à situação de extrema exclusão, Jesus experimenta compaixão que faz brotar nele uma resposta amorosa; nascendo de suas entranhas e vencendo as normas rituais, a compaixão se transforma em uma palavra eficaz que devolve a vida ao homem enfermo e marginalizado.
A compaixão era já um dos atributos de Deus no AT. Jesus a faz sua em toda sua trajetória humana. É uma demonstração de que para chegar ao divino não é preciso destruir o humano. A compaixão é a forma mais humana de manifestar amor. Quando alguém sente como seu o sofrimento do outro é quando, de verdade, se fez próximo dele.
A compaixão, que toma conta do coração de Jesus, é fruto do corajoso deslocamento para a margem, para a necessidade do outro. Sua autoridade é sempre percebida como garantia e sustento da vida, pois ela é carregada de compaixão e não de poder. Só tem "autoridade" quem garante a vida e a recupera em todas as circunstâncias. A vida do outro é a razão única da autoridade compassiva.
O outro, sua necessidade e sofrimento, será sempre a alavanca que gera no coração humano a compreensão e o exercício da autoridade como verdadeiro serviço. Só a compaixão desloca cada um para o lugar do outro. Só a compaixão ilumina a realidade do sofrimento do outro. Só a compaixão move na direção da oferta do outro.
No relato do evangelho de hoje(6º Dom TC) pode-se descobrir uma cumplicidade entre o leproso e Jesus. Os dois vão mais além da Lei: um por necessidade imperiosa, o outro por convicção profunda. O leproso, através de seu gesto ousado de se aproximar de Jesus, sabia também que sua vida – e sua libertação da marginalidade – não dependiam do Templo e dos sacerdotes, pois estes só constatavam a cura ou a permanência da doença em seu corpo. Os sacerdotes eram impotentes: não podiam restabelecer a vida.
Diante disso, o leproso toma uma atitude radical: não vai ao sacerdote, e sim a Jesus. Ao invés de ficar à distância e gritar sua marginalização, aproxima-se de Jesus, joelha-se diante dele e pede: “se queres, tens o poder de curar-me”. Reconhece que o poder da cura (que o tira da marginalidade) não vem da religião dos sacerdotes, e sim de Jesus, fonte de libertação e vida. Viola a lei para ser curado.
O leproso, dentro de sua necessidade, reconheceu que o "querer" é de Deus. A súplica que brota do seu coração, toca o centro do coração compassivo de Jesus. Esta escuta direciona a ação terapêutica d'Ele. A lição do coração de Jesus é única: o encontro de dois “quereres” que faz surgir nova vida.
Jesus, terapeuta compassivo do Espírito, revela uma presença que mobiliza o leproso a deixar emergir o Deus que habitava nele. E para isso necessita dar um passo a mais: através de suas mãos, estabelece com o enfermo um contato sanador, libera as fontes do amor que permaneciam ocultas e obstruídas. Sua ferida se converterá para ele no lugar da experiência de Deus.
O significado original do verbo “tocar” vai além de um simples e rápido contato: expressa outros sentidos: atar, enlaçar, envolver... muito mais coerente com a maneira de atuar de Jesus.
Quer dizer que Ele não só tocou o enfermo por um instante, mas que manteve essa postura durante um certo tempo. Tendo em conta o perigo do contágio que a lepra representava, podemos compreender o profundo significado do gesto, suficiente, por si mesmo, para fazer patente a atitude vital de Jesus. Não só demonstra que está acima da Lei quando se trata do bem de um homem, senão que assume o risco de contrair a lepra e tornar-se impuro também ele.
Ao tocá-lo, Jesus destravou a fonte originante da vida do leproso. Não só desapareceu a enfermidade, senão que é reconstruído em sua plena condição humana e reintegrado em seu ambiente social e religioso. De fato, o homem, até então marginalizado, encontrou a reintegração e aproveitou-a para contar o que lhe acontecera. Mas Jesus foi ocupar o lugar do leproso, excluído para os “lugares desertos”.
De acordo com o sistema religioso vigente, ao tocar um leproso, Jesus torna-se impuro: torna-se leproso e fonte de contaminação; torna-se marginalizado e não poderá mais entrar publicamente numa cidade: deverá permanecer fora, em lugares desertos, como os marginalizados. O Filho de Deus foi morar com os excluídos. Aqui o evangelho de Marcos mostra quem é Jesus: é aquele que rompe os esquemas fechados de uma religião elitista e segregadora, indo habitar entre os banidos do convívio social.
A cura do leproso nos revela também que há outros contágios muito piores que desumanizam: preconceito, intolerância, indiferença, suspeita....
Continuamos presos à ideia de que a impureza contagia, mas o evangelho nos está dizendo que a pureza, o amor, a liberdade, a saúde, a alegria de viver..., também podem contagiar. Com sua presença inspiradora Jesus contagia compaixão, bondade, acolhida... Por isso, contágios que salvam e libertam.
Este passo teríamos que dar, se de verdade queremos ser seguidores(as) de Jesus. No entanto, continuamos justificando muito casos de marginalização sob o pretexto de nos permanecer puros.
Quantas leis, civis e religiosas, deveríamos transgredir hoje para ajudar todos os marginalizados a se reintegrarem na sociedade e na Igreja, possibilitando-lhes se sentirem como seres humanos!
Texto bíblico: Mc 1,40-45
Na oração: O Evangelho indica que Jesus “estendeu a mão, tocou no leproso...”
O contato é sinônimo de calor, afeto, atenção, pre-sença e ternura. Também expressa reconhecimento e segurança. Precisamos tocar e ser tocados para viver, necessitamos uma espiritualidade que se enraíze em nossas mãos.
O leproso se abre diante de Jesus que o toca. Quê poder tem nossas mãos quando as estendemos cheias de bênçãos! Quê força sanadora quando aprendemos a tocar com ternura, a tocar despertando essa vida profunda debaixo da pele!...
Todos somos um pouco como o leproso e podemos nos reconhecer em seu desejo de cura e de abundância de vida. E todos podemos também ser como Jesus para os outros, quando nosso olhar está livre de preconceito, nossas mãos se estendem para quebrar distâncias e nossa voz é capaz de tocar com calor a vida profunda e escondida dos outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus saiu da sinagoga e foi, com Tiago e João, para a casa de Simão e André” (Mc 1,29)
O Evangelho de Jesus é experiência de casa, de encontro e comunhão, de palavra para todos, lugar aberto à novidade do Reino.
No relato de hoje, Jesus desloca-se da sinagoga, lugar oficial da religião judaica, à casa, onde se vive a vida cotidiana, junto aos entes mais queridos. Nessa casa vai sendo gestada a nova família de Jesus. As comunidades cristãs devem recordar que não são um lugar religioso onde se vive da Lei, mas um lar onde se aprende a viver de maneira nova em torno a Jesus.
A primitiva comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus não começou formando uma nova religião instituída, mas uma federação de casas abertas, a partir dos pobres e para os pobres, criando redes de comunicação e de vida fraterna, casas-família, impulsionadas pelo testemunho e presença do Espírito do mesmo Jesus. “Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e possuíam tudo em comum... partiam o pão pelas casas e tomavam a refeição com alegria e simplicidade de coração” (At. 2,44-46).
A casa deve ser escola de encontro e fraternidade. A comunicação (comum união) se celebra entre suas paredes que, em seguida, se expande para além de seus limites, despertando uma sensibilidade solidária. A casa prepara para a vida, pois é ali que os fundamentos de uma personalidade vão se solidificando. Para Jesus, ser “humano” é ser casa aberta e acolhedora.
O evangelho de Marcos apresenta Jesus como “tekton” (6,3), construtor (pedreiro, ferreiro, carpinteiro…), e seu ofício era construir casas. Um dia descobriu que sua missão não era construir mais casas para o sistema injusto; deslocou-se, então, para as periferias, em direção aos sem-teto e iniciou um movimento de transformação, a fim de que todos pudessem ter “casa na terra de Deus”. Quis construir sobre o mundo a nova Casa do Reino, aberta a todos, com pão, com palavra, com amor mútuo. Ele, que não teve onde reclinar a cabeça, quis que todos os homens e mulheres tivessem casa, família... cem vezes mais. Assim, deixando seu trabalho de construtor, se fez “arqui-tekton” do Reino de Deus, onde todos pudessem construir suas casas em bases sólidas, começando pelos excluídos sociais: leprosos, cegos, paralíticos, coxos... Não construiu casinhas para pobres sem teto nas ladeiras e encostas da Galileia, mas moradas com fundamentos na rocha; ou seja, ofereceu-lhes dignidade e consciência, solidariedade e desejo de viver, espírito de comunhão e partilha... para que eles mesmos pudessem criar novas moradas (construí-las e compartilhá-las). A boa nova da “Casa de Deus” (para todos) devia começar pelos mais pobres, excluídos, sem-teto e sem-terra, portadores de uma nova esperança de vida e casa compartilhada.
Em um mundo no qual as relações se estabeleciam através da força, da dominação, de uma maneira de exercer o poder em que o forte se impõe sobre o fraco, o rico sobre o pobre, o que possui informação sobre o ignorante, o relato da mulher curada por Jesus, no evangelho de hoje, nos introduz na nova ordem de relações que devem caracterizar o Reino: nele a vinculação fundamental é a da irmandade no serviço mútuo.
A prática de Jesus desestabiliza todos os padrões e modelos mundanos de poder, desqualificando qualquer manifestação de domínio de uns sobre os outros: inaugura-se um estilo novo no qual o “desenho circular” desloca e dá por superado o “modelo hierárquico”. Sua maneira de se relacionar com as pessoas marginalizadas e excluídas põe em marcha um movimento de inclusão onde, uma casa acolhedora e uma mesa partilhada com os menos favorecidos, invalidavam qualquer pretensão de poder, de prestígio, de situar-se acima dos outros, devolvendo a todos a dignidade perdida.
Do “exorcismo” da sinagoga passamos às “curas” nas casas e a primeira destinatária da ação de Jesus é a sogra de Pedro, erguendo-a da cama e curando-a no dia de sábado. Ela, uma vez curada, respondeu com um gesto de serviço, em sua casa, oferecendo uma refeição a Jesus e seus companheiros, como uma ação que inaugura o primeiro ministério cristão.
Assim está Jesus sempre presente entre os seus: com uma mão estendida que a todos levanta, como um amigo próximo que infunde vida. Jesus só sabe servir, não ser servido. Por isso, a mulher curada por Ele se põe a “servir” a todos; ela foi integrada em seu grupo de seguidores(as) e pode então “servir”, construindo a comunidade de iguais que Jesus queria, rompendo com a mentalidade patriarcal. Seus seguidores e seguidoras deverão viver acolhendo-se e cuidando-se uns dos outros.
Tanto Jesus como a sogra de Pedro superaram uma compreensão atrofiada do sábado, porque Ele curou e ela serviu nesse dia. Ninguém precisou dizer a ela o que deveria ser feito; não aprendeu de nenhuma exegese rabínica. Ela mesma compreendeu, como mulher, o que significa estar a serviço da vida. Com gratidão, correspondeu à ação de Jesus que lhe estendeu a mão para levantá-la de sua enfermidade, precisamente no dia de sábado; seu gesto (deixar-se levantar por Jesus e servir aos outros) marcará, de agora em diante todo o evangelho de Marcos, onde as mulheres serão as protagonistas. Ela superou um tipo de religião farisaica e se vinculou a Jesus de um modo pessoal, como servidora, a “ministra” da comunidade cristã.
Por isso, quando Marcos nos apresenta a sogra de Pedro “servindo”, está nos dizendo: aqui há alguém que entrou no círculo de Jesus, que “alistou-se” no seu movimento, que respondeu ao seu convite para colocar-se aos pés dos outros e começou a “ter parte com Ele” (Jo 13,8). Muitas dificuldades que temos na vida relacional procedem justamente de nossa resistência em nos colocar na atitude básica de um serviço que não pede recompensas, nem exige agradecimentos... Quem busca viver assim, basta-lhe a alegria e o prazer de poder estar, como Jesus, com a mão estendida para erguer o que está prostrado sob o peso da enfermidade.
Quantas distâncias se encurtam quando se toma alguém pela mão! Quantas suspeitas se dissipam quando se toma alguém pela mão! Quantos medos são superados quando se toma alguém pela mão!... As mãos são divinas: expressam ternura, proteção, cuidado. Para Jesus, as mãos são para isso: levantar o outro, ajudar o outro a colocar-se de pé, devolver ao outro a capacidade de dar direção à própria vida.
Graças a muitas pessoas que se deixaram “tomar pela mão” por Jesus para “levantar-se” e “servir”, o cristianismo primitivo foi se constituindo em pequenas comunidades domésticas, reunidas nas casas, onde muitas mulheres assumiram funções eclesiais, ora como missionárias itinerantes e ora como responsáveis pelas igrejas familiares, onde presidiam a oração e a fração do pão.
Texto bíblico: Mc 1,29-39
Na oração: O evangelho convida a nos deslocar e nos aproximar dos lugares onde estão os prostrados da vida, tomá-los pela mão e ajudá-los a levantar-se. Então, todos juntos, nos disporemos a servir, teceremos o manto da solidariedade social e eclesial a partir da cotidianidade; seremos assim testemunhas mobilizadoras numa sociedade cansada de palavras e necessitada de experiências que se façam verdade e vida.
- Você percebe que sua casa é prolongamento da Casa do Reino, desejada e construída por Jesus? Quê sinais você encontra nela que confirmam ser uma “casa cristificada”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Cala-te e sai dele” (Mc 1,25)
Estamos fazendo o percurso contemplativo, seguindo o evangelista Marcos. Ele foi o primeiro que escreveu o Evangelho, por isso conserva o calor dos inícios da vida cristã. É o mais conciso. Não apresenta grandes discursos de Jesus nem conta muitas parábolas. Interessa-lhe sobretudo o cotidiano na vida pública de Jesus: sua atitude vital para com os pobres e excluídos, sua presença terapêutica, sua liberdade diante da religião, do templo, das tradições judaicas, a revelação do novo rosto de Deus, o anúncio da Boa Notícia da Salvação…
A intenção de Marcos é que as pessoas se façam a pergunta chave: “quem é Jesus?”. Todo o seu evangelho é revelação progressiva da personalidade e da identidade de Jesus. Jesus não tinha nenhum doutorado na Lei, não tinha nenhum Master em questões do Templo; não era um perito a quem consultar sobre a lei. Jesus era Ele mesmo; seu único título era sua verdade, sua honestidade, sua bondade, sua capacidade de sanar a dor daqueles que sofriam e libertá-los dos maus espíritos que os escravizavam. Era a identidade de si mesmo, plena: a identidade entre o que dizia e fazia, entre o que era e o que ensinava. Podemos afirmar que Jesus era um “profissional da vida”, um “mestre da vida humana digna”. Não havia estudado em outra universidade a não ser a universidade da vida, do amor, da liberdade...
O evangelho deste domingo (4º TC) é o primeiro ato público de Jesus: estamos num dia típico de sua vida e de sua atividade. Seu primeiro contato com as pessoas, depois do batismo e da experiência do deserto, tem lugar na sinagoga. É um sinal de que a primeira intenção de Jesus foi redirecionar a religiosidade do povo que tinha sido deformada por uma interpretação opressora da Lei. Por duas vezes no relato se faz referência ao ensinamento de Jesus, mas não se diz nada do que ensina. Fala-se de suas obras. As curas e a expulsão de demônios, entendidos como libertação, são a chave para compreender a verdadeira mensagem deste evangelho. O que Jesus faz é libertar um homem de um poder opressor, o espírito imundo.
A Boa Notícia que Marcos anuncia é a libertação, em duas direções: da força do mal e da força opressora da Lei, explicada de uma maneira alienante pelos fariseus e letrados. As pessoas reconhecem um novo ensinamento, com autoridade, ou seja, com convicção, com coerência de vida, com profunda fé... O ensinamento de Jesus é novo porque liberta ao mesmo tempo que ensina. Jesus não ensina nada verbalmente: mostra-se a si mesmo. Marcos dá mais importância ao modo de falar de Jesus que ao conteúdo de seu ensinamento.
De Jesus diziam que “ensinava com autoridade” e não como os escribas e fariseus. Ele tinha a graça de conceder autoridade a cada pessoa, de devolver-lhe sua dignidade, de remeter-lhe a si mesma, de ajudá-la a conectar com seu ser profundo, com aquilo que é mais divino no próprio interior.
Ensina com autoridade quem fala a partir de sua própria experiência e quem, com seu ensinamento, “faz crescer” (a palavra “autoridade” provém do verbo latino “augere”, que significa aumentar, fazer crescer, elevar o outro…); em outras palavras, é despertar a autonomia e a autoria do outro para que ele seja capaz de dar direção à própria vida.
O critério para distinguir quando nos encontramos em presença de quem “fala com autoridade” sempre será o mesmo: sua palavra faz as pessoas crescerem em profundidade. A “autoridade” de Jesus, portanto, está em que sua palavra e sua vida formam uma unidade plena, porque não diz nada que não esteja já fazendo; suas palavras brotavam de uma experiência profunda que confirmava com sua vida. Provava com suas obras suas palavras, vivia o que ensinava.
Ao entrar na sinagoga, Jesus se volta para quem não recebia atenção. Ele faz com que o possuído pelo mau espírito se torne o centro das atenções e sua libertação é, ao mesmo tempo, prática e ensino. O homem possuído é o símbolo de todas as pessoas despersonalizadas, impedidas de falar e agir, como sujeitos da própria vida e história. Sua vida e destino dependiam de “outros” que pensavam, falavam e agiam por elas.
Jesus vai curá-lo com sua presença e também com sua voz. Ao lhe dizer: “cala-te e sai dele”, Jesus está desatando uma vida, está devolvendo ao homem possuído o seu ser essencial. Há palavras que tem força reconstrutora, pois, não só restabelecem a saúde mas ativam a dignidade escondida da pessoa. Dizem que há pessoas capazes de serem curados por uma voz, pelo material sonoro de uma voz determinada. Quanto aspira nosso coração escutar este convite: “esteja livre...”! Esteja livre daquilo que os outros possam dizer ou pensar a seu respeito; livre do domínio das suas compulsões; livre para amar sem defesas; livre daquilo que se acredita saber sobre si mesmo e sobre os outros; no fundo, esteja livre para ser você mesmo, para poder entrar em uma relação nova com a realidade.
Somos seres de palavras e somos também seres de silêncios. Em nosso mundo atrofiamos o dom de proferir palavras de vida; elas tem pouco valor e, por isso, precisamos voltar a lapidá-las no silêncio, porque só o silêncio restaura a integridade de nossas palavras. Tais palavras tem força para curar, como aquela que Jesus proferiu diante do homem possuído pelo mau espírito.
Precisamos receber palavras que toquem nossas superfícies endurecidas e nos libertem de tantas ataduras que não nos deixam respirar com profundidade, nem olhar compassivamente, nem considerar a beleza da diversidade e a diferença. Também nós buscamos pessoas que possam nos dizer palavras para viver e somos requisitados a entregar aos outros uma palavra de vida.
Jesus foi o homem que movia com suas palavras. É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Essas palavras são bem-aventuradas, pois são capazes de fazer crescer, sustentar, edificar as pessoas para o convívio social, humano-afetivo, espiritual. São palavras que trazem luz e calor, infundem confiança e segurança.
A palavra tem força de ressurreição, é como brisa suave que ativa nossas melhores energias. As palavras jamais deixam as coisas como estão. Elas não se limitam a transmitir uma mensagem; elas tem uma força operativa, desencadeiam um movimento... Quando falamos, algo acontece, muda alguma coisa dentro de nós e ao nosso redor. Aparentemente nada mudou; mas é possível que tudo tenha mudado. A palavra foi além de sua vibração sonora. Ela contribui para criar o clima, o ar que respiramos... um ambiente que nos plenifica, nos nutre, favorece o encontro e o compromisso e abre possibilidade de viver
Texto bíblico: Mc 1,21-28
Na oração: Hoje o evangelho nos convida a sermos sinceros conosco mesmos, a revisar nossa conduta cristã. Devemos expulsar muitos “maus espíritos” interiores (ânsia de poder, riqueza, prestígio, vaidade…) que jogam ao chão nossa dignidade e impedem um testemunho coerente, uma verdadeira autoridade que profere palavras que fazem as pessoas crescer.
- Repassar o repertório das palavras proferidas ao longo do dia: palavras que elevam, que curam, que salvam...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo” (Mc 1,15)
Apagaram-se as luzes do Natal; os Magos voltaram a seus países; Jesus foi revelado como o “Filho amado” no Batismo. Agora começa o tempo do “chamado”; agora começa o tempo do “fazer caminho com Jesus”; agora começa o “tempo do seguimento”.
Podemos dizer que Jesus irrompe na nossa Galileia cotidiana como um chamado a viver de maneira alternativa, fazendo a experiência de Deus, Mistério último da vida, como uma Força que nos atrai para construir um mundo mais humano e ditoso.
Jesus não começa sua vida pública com ameaças, nem com anúncios de castigos. Começa proclamando a Boa Notícia de Deus; este anúncio original sintetiza toda sua missão: não é em vão que Marcos coloca na boca de Jesus estas primeiras palavras: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo”. Trata-se da Boa Nova, ou seja, tudo aquilo que “buscamos”, na realidade, já está próximo. E para acolher esta Boa Nova faz-se necessária uma profunda conversão. O termo “conversão”, traduzido do grego “metanoia” (mais além da mente), nos convida a “outro modo de pensar, de ver, de agir...” Trata-se de sair da perspectiva mental atrofiada para entrar em sintonia com aquela Presença que expande a nossa vida para além de nossos estreitos modos de viver, tanto na perspectiva pessoal quanto social.
Propriamente falando, Jesus não deixou como herança uma nova doutrina religiosa da qual se pode extrair alguns princípios que logo são aplicados à vida. O que Ele nos traz, a partir de sua experiência profética, é um novo horizonte para assumirmos a história, um novo paradigma para humanizar a vida, um marco para construir um mundo mais digno, justo e ditoso, a partir da confiança e da responsabilidade.
Sua mensagem não provém do interior do sistema imperial nem da instituição do Templo. Pelo contrário, desmascara a iniquidade do Império e a conivência do Templo, sacudindo a indiferença de muitos e redefinindo as expectativas de outros.
Jesus não é um escriba judeu, nem um sacerdote do templo de Jerusalém, nem um asceta do deserto. O específico seu não é ensinar uma nova doutrina religiosa, nem explicar a Lei de Deus, nem assegurar o culto de Israel. Jesus é um profeta itinerante, um homem a caminho, aberto às surpresas de Deus. Caminhava pela Galileia, anunciando um acontecimento, algo que já está ocorrendo e que pede ser escutado e atendido, pois pode mudar tudo. Ele desencadeia um novo movimento humanizador, que coloca o ser humano no centro de sua missão. Ele já está experimentando isso e convida a todos a compartilhar esta experiência: Deus está comprometido com a história humana. É preciso mudar e viver tudo de maneira diferente.
Começa um tempo novo, uma história nova. Deus não nos deixa sozinhos frente aos nossos conflitos, sofrimentos e desafios. Quer construir, conosco e junto a nós, uma vida mais humana. Para isso, é preciso mudar a maneira de pensar e de agir; é preciso aprender a viver crendo nesta Boa Notícia.
Isto que Jesus chama “Reino de Deus” não é uma religião. É muito mais. Vai mais além das crenças, preceitos e ritos de qualquer religião. É uma experiência fundante de Deus que resignifica tudo de maneira nova. “Reino de Deus” é o coração de sua mensagem e a paixão que animou toda sua vida
O surpreendente é que Jesus nunca define o que é o Reino de Deus. Ele o encarna em suas palavras e em sua vida; é algo que irrompe, de maneira surpreendente. Podemos dizer que “Reino de Deus” é a vida, tal como Deus deseja que a vivamos.
Se queremos saber o que é o Reino, também nós devemos nos colocar a caminho com Jesus: Ele é o Reino. Ele foi o homem que se definiu, que tinha claro qual era sua missão; por isso, nos apresenta uma causa muito nobre e, com seu chamado, rompe nosso estreito mundo e desperta em nós ricas possibilidades, reacendendo o que de mais nobre há em cada um e ampliando nosso horizonte de vida.
Para Jesus, a vida de uma pessoa vale pela causa à qual se entrega. Por isso, ao anunciar a presença do Reino do Pai, Ele desperta nas pessoas uma garra, uma vibração e um entusiasmo por esta causa tão nobre. Escutar e acolher a proclamação do Reino é uma prova de audácia e coragem, uma provocação à generosidade de cada um.
É preciso sonhar alto, ter ideais, ser uma pessoa corajosa e marcada pela esperança para poder “escutar” o apelo de Jesus; é preciso ser apaixonado(a), deixar-se empolgar, aceitar correr riscos na vida para saber o que significa “estar e fazer caminho com Ele”; é indispensável uma enorme generosidade para se dedicar incondicionalmente a uma grande causa; é preciso forte dose de ousadia e coragem para transcender-se, ir além de si mesmo...
Jesus não só se deixou mobilizar pelo “sonho do Reino”, mas foi também capaz de seduzir e mover outras pessoas a participarem desse mesmo sonho; sua presença inspiradora era capaz de despertar nos outros o melhor de si mesmos e de mobilizá-los. Por isso, os primeiros discípulos deixaram-se impactar pela força do seu chamado e foram capazes de dar uma nova direção às suas vidas.
Não sabemos se o chamado ao seguimento foi assim tão rápido, como relata Marcos; mas, provavelmente, a forma um tanto mecânica em que ele se expressa, é uma maneira de destacar a força mobilizadora da presença e do chamado de Jesus. Todas as narrativas acerca do chamado conservam a marca intencional de um encontro surpreendente, inesperado e expansivo: deixar a vida estreita do lago de Genezaré para entrar no vasto oceano de vida proposto por Jesus.
Há um dado, um tanto quanto estranho no chamado de Jesus: parece ser um chamado que quase não tem programa. Ele afirma simplesmente: “sereis pescadores de homens”. O que isto quer dizer?
Esta frase deve ser lida não no sentido quantitativo, típico dos proselitismos e da mentalidade moderna, mas num sentido mais qualitativo: “pescar homens” é extrair o melhor, a melhor versão humana de cada um, fazer emergir a autêntica qualidade humana desse mar turvo de inumanidade que somos todos.
Isso é “pescar o humano” que todos carregamos dentro. No contexto atual, essa expressão tem uma enorme importância: porque é verdade que nem todos os homens desejam ser cristãos, mas, seguramente, continua sendo verdade que Deus deseja que cada um extraia de si a melhor versão possível.
O convite para “pescar homens”, que pode parecer uma expressão estranha, evoca a imagem de sair de um meio aquático e começar a respirar. Não poderíamos ver aí a possibilidade de ajudar outros em um novo nascimento, de uma saída das águas amnióticas para começar a respirar a vida do Espírito?
O chamado de Jesus, portanto, nos individualiza e nos personaliza de modo irrepetível e inconfundível, confere um sentido completamente novo ao nosso próprio nome. Jesus toma em suas mãos o futuro daqueles(as) que o acompanham: junto d’Ele vão adquirindo nova personalidade, definida pela referência a outros. Responder ao chamado de Jesus inaugura uma nova relação com os(as) seus(suas) seguidores(as): Ele adiante, nós atrás. O encontro com Ele atinge o núcleo de nossa própria autonomia e de nossa consistência pessoal, de nossa vida profissional, familiar e relacional. Há um deslocamento de nossos estreitos mares da vida e passamos a respirar a imensidão de outro oceano.
Texto bíblico: Mc 1,14-20
Na oração: Encontrar-se com Jesus é encontrar-se com o Reino de Deus. Jesus se põe totalmente a serviço da “causa” de Deus; Ele é inseparável de sua obra: o Reino que anuncia e que Ele faz presente.
Somos impulsionados a ser protagonistas de uma história mais ditosa; somos movidos a atrever a pensar e agir “fora do sistema” para entrar na lógica e na dinâmica do Reino de Deus. O Reino condensa e leva à plenitude todas as aspirações humanas.
- Que sonhos você carrega em seu coração?
- Sua vida tem a dimensão do “mar da Galileia” ou do Oceano de vida de Jesus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quê estais buscando?” (Jo 1,38)
Um dos temas importantes do quarto evangelho é o da busca-encontro de Jesus. Ao leitor atento não passa desapercebido que a primeira palavra que o autor do evangelho põe na boca de Jesus é uma pergunta: “Quê buscais?”
Na realidade, parece que no ser humano tudo começa com a busca, pois é ela que põe em marcha todo o processo existencial. No princípio, sem saber bem o quê, ele busca “estar bem”, “sentir-se melhor”... E projeta a busca “fora”, naqueles objetos, pessoas, títulos, bens, ocupações..., que poderiam satisfazer sua sensação de carência e conferir-lhe maior segurança.
Mais cedo ou mais tarde, a vida lhe mostrará que nada que está fora é capaz de “plenificá-lo”, fazendo-o suspeitar que é preciso dirigir o olhar para o seu interior. Quem busca, entra em um movimento inspirador, criativo, despertando os melhores recursos da própria interioridade. É a busca que dá sentido e calor à própria vida. Quem não busca, vive um processo continuo de atrofia de sua própria humanidade, pois a busca é o dinamismo que mais nos humaniza.
Viver é desafiador na medida que viver é buscar. A dinâmica da busca marca a caminhada humana e define os rumos da vida. Vive-se em permanente busca e só à medida que se vive para buscar é que a vida se torna, de verdade, vida, com mais sabor e sentido. O que se busca define e determina o que é a vida da pessoa. “Diga-me o que buscas e dir-te-ei quem és”.
No interior de cada um permanece aguçada a dinâmica da busca, aquela que mantém a vida de todo coração e o incita na direção do que vale, do que conta e do que é essencial. Como ser necessitado e carente, o ser humano se sente impulsionado a buscar para conseguir acalmar sua insatisfação existencial. Mas a busca não guarda relação só com a carência, senão que é, ao mesmo tempo, expressão do desejo (aspiração) que parece constituir à pessoa e que se manifesta em forma de dinamismo vital (“buscar o que quero e desejo” – S. Inácio).
A diferença entre ambos movimentos – o que nasce da carência e o que nasce do desejo – poderia se expressar deste modo: pelo primeiro, o ser humano busca apegar-se e apropriar-se de algo que percebe como “bom” para ele e que lhe dá segurança; no segundo, pelo contrário, o que se dá é o impulso a viver e a expressar a própria identidade profunda.
No primeiro caso, falamos do ego e seus movimentos egocentrados; no segundo, de nossa verdadeira identidade, enquanto Plenitude que se transborda. O coração de cada um foi feito para encontrar a razão mais profunda do seu viver; há uma inquietude latente em seu interior que o faz peregrino do sentido. Tão fundamental como é o respirar, toda pessoa precisa assumir sua condição de navegadora do infinito. Somos todos, por natureza, eternos buscadores e garimpeiros do novo. Por isso, buscar torna-se um hábito de vida.
Uma lógica de contínua busca deve permear o coração do(a) seguidor(a) de Jesus, para aprender a viver da busca d’Ele, e da busca de todos os outros, colocando-se a serviço da vida, unicamente por amor. A vida se torna mais vida na medida que se vive para dar razão a essa busca. Uma busca que exercita o coração e o modula na sinfonia amorosa do coração de Deus. Ele é a única e completa razão da busca do coração humano.
Estar em busca é sair de nosso ser atrofiado pelas preocupações individuais para mover-nos num horizonte maior de pré-ocupação pelo Reino; estar em busca é perguntar-nos, é estar abertos para sermos tocados pela mais profunda das graças: a gratidão diante de Deus.
Enquanto estejamos identificados com o eu superficial (ego), nos perceberemos como seres carentes e nos sentiremos compelidos a uma busca ansiosa daquilo que supostamente poderia completar-nos. Quando chegarmos ao reconhecimento de nossa verdadeira identidade, a busca deixa de ser estressante para ser repousante. Cairemos, então, na conta de que a Plenitude não é “algo” que devemos alcançar ou um “prêmio” que nos aguarda mais adiante; é o que já somos e sempre fomos. Quando a pergunta de Jesus – “quê buscais?” ressoa em nós, aí é que descobrimos nossa mais autêntica maneira de ser, nossa originalidade, nossa identidade... Na realidade, o que andamos buscando é o nosso “eu verdadeiro”, o “eu profundo”, a “identidade original”. A busca revela nossa identidade profunda. Com outras palavras: o que buscamos não é diferente do que já somos. O buscador é o buscado.
Com esta chave, podemos voltar ao texto do evangelho de hoje: ao “ver Jesus”, estamos vendo quem somos, pois o encontro com Ele desvela nosso “eu original”. Quando não nos identificamos com o nosso “eu carente”, emerge a plenitude que somos: a semente enterrada se descobre espiga transbordante. Reconhecido em sua identidade, consciente de seu lugar e missão junto ao povo de Deus, o(a) seguidor(a) de Jesus continuamente mantém “fixo seus olhos fixos n’Ele” e deixa ressoar em seu interior sua pergunta radical: “o que vocês estão buscando?”
Jesus não chama para seguir uma religião, uma doutrina, nem faz proselitismo... Ele desencadeia um movimento e o seu modo de viver a todos seduz para identificar-se com Ele e com sua proposta de vida. Aqui não se trata de adesão a um programa nem a um projeto, senão do convite a um seguimento (“vinde e vede”), no calor e intimidade de uma relação pessoal que é dirigida a cada um em particular. Para isso requer-se uma resposta sem reservas, sempre mais criativa e ousada.
João evangelista quer deixar claro que há maneiras de seguir a Jesus que não são as mais adequadas. A pergunta – “onde moras?” - não significa querer saber o lugar ou a casa onde habita Jesus, mas buscar uma identificação com a atitude vital d’Ele.
Poderíamos ampliar a pergunta dos discípulos de João Batista: “Mestre, onde vives, ou seja, onde estão tuas raízes; quê é que te dá Vida; quê é o que te vivifica; diga-nos onde está a Fonte, para que nós possamos permanecer, enraizados, sempre bebendo dela?”
Os dois primeiros discípulos não lhe perguntam por sua doutrina, por sua religião, mas por sua vida. E Jesus não responde com um discurso, mas com um convite à experiência de vida. “Vinde e vêde”, disse Jesus àqueles dois buscadores. “Entrai”, vinde à “Casa”, “reconhecei-vos na Vida que sois...; Vida que continuará se expandindo, movendo-vos a uma contínua busca, pois sois habitados por uma fome e sede de Plenitude”.
“...e permaneceram com Ele naquele dia”: é a mesma expressão que João utiliza para dizer que o Pai permanece no Filho e o Filho permanece no Pai; ou que Jesus e sua Palavra permanecem em nós e nós somos chamados a permanecer n’Ele. Permanecer enraizados somente na pessoa de Jesus e no sonho do Reino como o melhor legado que podemos oferecer aos nossos contemporâneos, sacudidos por tormentas que os afundam sem poderem vislumbrar um novo horizonte e um novo sentido para suas vidas.
Texto bíblico: Jo 1,35-40
Na oração: Ter os olhos centrados em Jesus deixando-se impactar pelo Seu modo de viver, Sua paixão pelo Reino, Sua missão, Seu chamado.
- o que lhe impede de ter um olhar límpido e transparente na tentativa de se configurar ao olhar de Jesus?
- O que você busca ao fixar os olhos em Jesus? O que sente ao perceber os olhos de Jesus fixos em você?
- que consequências tem para sua vida o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus?
- quais são seus sonhos? Quê esperanças você carrega no coração?
- a quê você se anima a gastar sua vida? Quê medos o paralisam?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles, até parar sobre o lugar onde estava o menino” (Mt 2,9)
Teilhard de Chardin, paleontólogo jesuíta, manifestou, repetidas vezes, o desejo de que a solenidade da Epifania mudasse de nome, ou ao menos de prefixo. A solenidade de hoje deveria denominar-se “dia-fania” em lugar de “epi-fania”, para ressaltar que festejamos o dia em que Nosso Senhor Jesus Cristo se revela em plena transparência, como fundamento de tudo e de todos, fonte e fim, alfa e ômega.
Teilhard não vê o relato dos Magos como uma “verdade fotogrática”, mas como uma verdade que nos ilumina sobre Aquele que enche o universo com sua presença dinâmica, sobre Aquele que dá sentido à nossa história, tornando-a “diá-fana” (transparente). Porque, neste mistério, não se trata propriamente de uma repentina irrupção de quem é o Salvador, senão muito mais de uma misteriosa e silenciosa “dia-fania”, mediante a qual o recém-nascido em Belém deixa “transparecer” o verdadeiro rosto do Deus misericordioso e compassivo. Nele, Deus se humaniza para também des-velar (tirar o véu) e deixar trans-parecer a verdadeira e divina identidade de cada ser humano, escondida na interioridade de cada um.
Nosso eu profundo é habitado por “magos” e “herodes”: impulsos de vida e impulsos de morte, busca da verdade interior e busca do poder, caminho de “saída de si” e caminho de “auto-centramento”... O Nasci-mento de Jesus desvela e ilumina nosso interior e nos coloca diante deste desafio: qual dos dois dinamismos nós alimentamos? Qual caminho marca a nossa vida? O caminho dos Magos ou o medo de Herodes?
Continuam acontecendo atualmente as famosas peregrinações que levam a Meca, a Santiago de Compostela, a Jerusalém, a Roma..., mas, na verdade, segundo o evangelho de hoje, a primeira e mais importante de todas é a peregrinação dos Magos que vão até Jesus, guiados pelo canto e pelo chamado de sua Estrela (a Estrela de Deus, a Estrela de cada um).
Os Magos consultavam os astros do céu para compreender o caminho da humanidade na terra. Examinando os céus, descobriram uma estrela brilhante como nenhuma outra. E ficaram fascinados com o seu fulgor. Deixaram-se conduzir por inquietações e buscas, talvez não oficialmente “religiosas”, mas sim profundamente humanas, que pulsam no interior de cada pessoa; perguntaram, comunicaram o que tinham visto, seguiram adiante em tempos de obscuridade e, como recompensa de sua busca, “encontraram o Menino com Maria sua mãe”.
Foi assim a longa jornada dos Magos, seguindo o caminho que a luz da estrela lhes indicava. E ao final de longa peregrinação chegaram ao lugar procurado. Eles, então, ficaram iluminados, não pela luz da estrela, mas pela luz da criança, pois é na simplicidade e pobreza dela que resplandece a Luz de Deus.
Os Magos retornaram, depois, a seus países, agora convertidos em portadores da Nova Luz. O encontro com o Senhor os transformou. Todo encontro com Jesus era e é um encontro que transforma radicalmente. Alguns encontros são fundantes, são como uma pedra angular sobre a qual podemos começar a construir algo novo; outros encontros reavivam e ativam os fundamentos de nossa vida.
Hoje também estamos vendo sinais. Em nossas vidas sempre há alguma estrela que nos guia até Belém. Podemos nos assustar e permanecer paralisados, olhando as estrelas, mas os sinais não nos são dados para ficarmos pasmados, mas para nos deixar interpelar e responder. Algumas vezes nos convidarão à interioridade e outras nos mobilizarão a fazer caminho, mas sempre nos tirando da acomodação e nos abrindo horizontes. Os sinais nos comprometem e nos dinamizam. Precisamos ler e interpretar para onde as “estrelas”, que aparecem no horizonte da vida, nos conduzem.
Esta é a Grande Peregrinação que os profetas haviam prometido, como um caminho que leva para a Nova Jerusalém da Paz e da vida. Mas, segundo o evangelho de Mateus, essa Peregrinação da Luz não leva a Jerusalém (cidade dominada pelo Rei Herodes e pelos sacerdotes cumplices da morte), mas a Belém, que é a “Casa do Pão”, a “Casa da Lua”, pois alimenta e ilumina homens e mulheres que, na noite da existência, buscam um sentido para a própria vida. Por isso, uma peregrinação que continua sempre aberta.
Esta é também a nossa peregrinação em direção à nossa Belém interior; a vida mesma é entendida como caminho de desvelamento de nossa verdadeira identidade e de descoberta da nossa própria verdade (o que é mais divino em nós). No encontro com Aquele que é a Luz e que ilumina todo ser humano, ativa-se a “faísca de luz” que todos levamos em nosso coração.
Epifania, portanto, é a festa da “estrela de Deus”, que não só ilumina o caminho da humanidade; ela é a grande Festa de Iniciação, de “descobrimento da própria luz”, ou seja, da Luz do Deus de Jesus em nossa própria vida. Por isso, no sentido mais profundo, todos somos “phos-phoros” (fós-foro) ou “phos-phorantes”, portadores de luz, lamparinas de Deus neste mundo envolto em trevas; cada um de nós é uma estrela de Deus no imenso mar de constelações. Somos luz de Deus, porque Deus é nossa luz, a lâmpada de sete luzes que é a única Luz de verdade em nossa existência.
Por isso, Epifania não é só hoje, epifania é sempre, é nossa vida. Frente ao Rei Herodes e frente a todos os Reis e Sacerdotes do poder estabelecido, que só buscam o domínio sobre os outros (que são capazes de matar, porque não tem outra riqueza), emergem, no relato de Mateus, os “magos e magas”, que realizam o caminho de iniciação, que os leva à verdade de sua própria vida, a verdade do Deus dos pobres, a verdade de Belém.
Todos somos “magos-magas”, homens e mulheres que buscam a Deus, em gratuidade, em reverência, em constante surpresa... Por isso, desde a Idade Média, os Magos aparecem como sinal de reverência amorosa, no caminho de iniciação que temos de fazer para o encontro de nossa verdade original. A Estrela dos magos é o mesmo Jesus, cuja luz brotou em Belém, para iluminar, a partir dali, a todos os homens e mulheres. Por isso, os magos nos ajudam a descobrir Aquele que é a Luz, para que, a partir do encontro com Ele, nós mesmos sejamos luz, sejamos Cristo, feito epifania (manifestação) e diafania (transparência) de Deus na terra. Nós somos os “magos e as magas”, milhares de homens e mulheres de luz, estrelas de Deus espalhadas pela imensidão do universo do Criador.
O presente dos magos (ouro, incenso e mirra) é nossa própria vida, que se faz dom de Deus, para nós mesmos e para os demais. Somos ouro, o de maior valor, mas não em forma de capital monetário para comprar e vender, mas como beleza da vida que se faz dom-presente para ser compartilhado. Somos incenso, o melhor odor do Natal, o perfume mais precioso, para exalar santidade, amor, compaixão… em meio a um ambiente fétido de morte e exclusão. Somos mirra, unguento do amor, como o que usavam os noivos, unguento da vida com o qual se despedia dos mortos, esperando a ressurreição.
Nossa vida mesma é um presente que viemos oferecer a Deus e aos outros, no transcurso da noite luminosa de nossa existência, dirigida para Jesus.
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: O relato dos Magos nos convida a ir ao encontro do ano novo por outro caminho. Depois do encontro com o Menino Jesus, não deveríamos regressar à nossa terra pelo mesmo caminho pelo qual viemos. Transitar por um caminho novo é que deveria caracterizar o começo doeste novo ano. E esta mudança de estratégia deveria ser criativa, buscando alternativas desconhecidas e novas para enfrentar os desafios que a realidade na qual vivemos nos apresenta. A criatividade não está em dizer ou fazer coisas raras ou extraordinárias, mas em saber dizer e fazer o mesmo com outra motivação, com outra inspiração, de maneira que o resultado seja sempre melhor.
Somos chamados a reler muitas vezes nossas vidas, à luz das experiências que tivemos, e tomarmos consciência de que cada encontro nos vai configurando, até chegarmos a uma identificação mais profunda com Jesus.
Pe. Adroaldo Palaro sj
“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido” (Lc 2,20)
A celebração do “Ano novo”, prática vivida em todas as culturas e religiões, parece responder a um desejo humano de “começar de novo”.
“O homem foi criado para que no mundo houvesse um começo”. Este pensamento de S. Agostinho deveria iluminar nossa vida ao longo deste novo ano que se inicia. Desde que o ser humano surgiu da terra e sobre a terra, o mundo criado ganhou um “novo início”. Nós o estamos reconstruindo incessantemente. “O ser humano é criado e é criativo”; pois é exatamente o dom de re-começar, sempre, que nos caracteriza como humanos.
Caminhamos hoje para algo novo; somos convocados pelo futuro a realizar projetos diferentes, possibilidades novas, “coisas” que nos acenam lá de longe e nos fazem uma proposta: “re-criem-nos”; coisas que surgem sob a forma de um desejo, de uma esperança... mas que sempre dependem de nós para se tornarem concretas. Elas exigem empenho, dedicação e criatividade.
Habita em nosso interior uma nostalgia de alguma coisa mais original, de um novo início e da tentativa de outros caminhos. Trata-se de uma aspiração de algo mais humilde e simples, que nasce do “húmus”, da terra que somos. É o desejo de sermos nós mesmos simplesmente, sinceramente, prazerosamente. É a necessidade de viver re-começando, sempre.
A atitude do “recomeçar contínuo” revela-se como oportunidade para ativar outros recursos internos e colocar a vida em outro movimento, mais inspirado e criativo.É inevitável que na existência humana se façam presentes a dor, o cansaço, a frustração, a repetição mecânica..., que ameaçam afogar as melhores expectativas. Frente a essa constatação, compreende-se a voz que brota das nossas entranhas e diz: “comecemos de novo”. A celebração do “ano novo”, neste sentido, significa a oferta de uma nova oportunidade à vida, para que ela tenha um novo sentido.
Somos impulsionados, continuamente, a romper com o formalismo e o convencional, a vida marcada pela ordem, normas claras e recompensas seguras... e caminhar para uma vida mais audaz e incerta, de hori-zontes amplos, de exigências que nos convidam a “começar de novo”, de significado mais universal. Não caminhamos empurrados pelas costas, nem nossa vida é obra da inércia. Fomos feitos para o “mais”.
Ver a novidade em uma simples mudança de datas do calendário não passa de uma mera convenção. O 01 de janeiro não é mais “novo” que o 31 de dezembro. E, depois do rito de “passagem de ano”, tudo continuará sendo como era ontem, ou inclusive pior, porque, a ressaca da celebração será acompanhada pela frustração de comprovar que nada mudou.
É óbvio que a novidade não é “algo” que possamos encontrar “fora” para ser incorporada à nossa existência cotidiana. O máximo que podemos encontrar nesse nível são aparências de novidade que, satisfazendo por um momento nossa curiosidade, rapidamente nos farão voltar ao ritmo da rotina.
O “novo” está dentro de nós. Estamos no tempo para crescer na consciência de nosso verdadeiro ser e descobrir que estamos já na eternidade, que nosso verdadeiro ser não está no “kronos” mas no “kairós” (tempo de plenitude e de sentido). Nosso verdadeiro ser é constituído pelo divino que há em nós, e isso é eterno, é sempre novo. Somos já a plenitude e estamos no eterno.
Nesse sentido, novidade é sinônimo de viçoso, abertura, presença, vida; a vida sempre é nova, e vai acompanhada de atitudes e sentimentos de surpresa, admiração, louvor, gratidão, comunhão e plenitude. “E todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam” (Lc 2,18). Seria um crime transformar a vida num velódromo, dando voltas sempre em torno ao mesmo circuito de 365 dias, sem avançar nada.
Vida expansiva, projetada para todas as direções e sintonizada com as surpresas, grandes e pequenas, que a plenificam e lhe dão um sentido de eternidade. “A vida é demasiado breve para ser mesquinha” (Disraeli). Tudo isto é o que, saibamos ou não, nosso coração aspira. Mas, habitualmente, o buscamos onde não pode encontrar-se. Os pastores, movidos por uma sensibilidade especial, foram capazes de encontrar onde ninguém pensaria encontrar:
Este ano será novo se aprendermos a crer na vida de maneira nova e mais confiada, se encontrarmos gestos novos e mais amáveis para conviver com os outros, se despertarmos em nosso coração uma compaixão nova para com aqueles que sofrem.
Quem sabe, o Evangelho de hoje nos possa inspirar para que, algum dia, aprendamos a viver cada mo-mento como se fosse o último, ou melhor, o mais completo, o mais ditoso: a melhor oportunidade para uma presença inspiradora, para o abraço mais acolhedor, para a palavra melhor pronunciada ou o silêncio mais criativo, para o gesto solidário mais espontâneo... É como se cada momento fosse sagrado e eterno.
O cristão é aquele que, como os pastores de Belém, conserva límpido os seus olhos interiores, prontos para perceber a maravilha que está sendo germinada em sua vida. Movido por um olhar novo, ele acolhe a surpresa de Deus, passa a ser surpresa para os outros, com seu gesto de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola, com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona.
“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido”. Qual foi o novo e o surpreendente que encontraram: um recém-nascido deitado na manjedoura. Trata-se do “no-vo” despojado de ornamentos, de poder, de riquezas. Tiveram olhos e ouvidos abertos para se deixarem impactar pela imagem, humanamente simples; o encontro com o “Deus que se humanizou” possibilitou o retorno à eterna infância, escondida na própria interioridade. Porque descobriram facilmente o Infinito, passaram a viver humildemente sua condição humana na paz, na alegria e na gratidão.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: A partir do “olhar” admirado dos pastores, iniciar, ao longo deste ano, um processo minucioso de extirpação das “cataratas” do seu olhar interior: o olhar das lembranças negativas, das suspeitas, dos julgamentos, das comparações... e reacender o olhar contemplativo capaz de expressar a benevolência, a delicadeza, a acolhida, a cortesia, a serenidade, a modéstia, a afabilidade, a alegria simples de estar junto...
- Re-cor-dar todos os “olhares amorosos” que Deus foi depositando sobre você ao longo da vida.
- Coração e olhos espreitam na mesma direção. São os puros de coração os que verão a Deus (Mt. 5,8).
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“... Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22)
Certamente todos já viram um invento recreativo para crianças, composto de um globo inflável que flutua sobre um reservatório de água; ali elas são introduzidas, e ficam se movendo prazerosamente. Tal invento evoca um comportamento frequente nas famílias de hoje. Sem se darem conta, elas mesmas fabricam uma bolha e se fecham nela como num reduzido microcosmo. Elaborado pela mente e inflado pelo ego, esse pequeno globo enclausura as pessoas em um mundo familiar muito definido: o êxito, a vaidade, o dinheiro, os bens materiais, um ambiente raquítico de espaço e tempo, torna-se sua única realidade.
No entanto, para as famílias cristãs, poderíamos perguntar se há algo mais além, por detrás dessa bolha, desse globo fechado no qual todos brincam como crianças inconscientes. Despertar o “eu profundo e universal” é descobrir-se habitante de um universo novo e espaçoso, um “eu sou” com sabor de infinito, onde nem a escassez ou a riqueza, nem a saúde ou a enfermidade, nem a vida curta ou longa..., é o mais essencial, mas a consciência expandida que rompe a bolha e faz a pessoa sentir a liberdade amorosa dos filhos e filhas de Deus.
Deus “se fez diferente” e é na “diferença” que Ele vem ao nosso encontro como chance de enriquecimento vital e de intercâmbio criativo. Deixemo-nos surpreender pelo Deus da vida que rompe esquemas, crenças, legalismos, bolhas...; ou nossa vivência de fé se reduzirá a um ritualismo fechado, impedindo sair de nós mesmos.
Também os muros estão voltando à moda. Não podemos esquecer que os muros foram criados para a segregação dos “diferentes”. O muro econômico que exclui, se visibiliza no muro que segrega os excluídos. Um muro é uma ordem, um silêncio forçado e prolongado, é vontade de poder e domínio sobre os outros. Muros são pedras da vergonha no nosso percurso vital. Como tirá-los do caminho?
Muros não têm semente, embora se multipliquem pelo mundo. O muro é um veneno. Muros são concretos: muros entre ricos e pobres, entre homens e mulheres, entre ignorantes e doutores, entre negros e brancos, entre centro e periferia. Muros são urros. Muros são murros, são muito burros! Todos os muros deviam se envergonhar, pois se os muros pudessem ensinar alguma coisa, desistiriam de serem muros.
A festa da Sagrada Família, que se deslocou a Jerusalém, nos instiga a romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros que cercam o coração das famílias, atrofiando sua própria existência. A mudança de mente, de coração, de esperança, de paradigmas... exige que todos, de tempos em tempos, revisem suas vidas, conservando umas coisas, alterando outras, derrubando ideias fixas, convicções absolutas, modos fechados de viver... que impedem a entrada do ar para arejar a própria vida.
Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção. Também as famílias não estão imunes desta tentação. No entanto, nada mais contrário ao espírito cristão que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores... Numa vida assim faltaria por completo o princípio da criatividade, a capacidade de questionar-se, a audácia de arriscar, a coragem de fazer caminho aberto à aventura.
Se quisermos que a família cristã tenha a marca da Família de Nazaré, é necessário compreender que ela é chamada a um compromisso diferente e mais profundo: sair da reclusão do próprio mundo para entrar na grande “casa” de Deus; romper com o tradicional para acolher a surpresa; deixar a “margem conhecida” para vislumbrar o “outro lado”; desnudar-se de ilusões egocêntricas; afastar a “pedra” da entrada do coração para poder viver com mais criatividade... As respostas do passado às questões atuais já não satisfazem; as velhas razões para fazer coisas novas, simplesmente já não movem os corações num mundo repleto de novos desafios. Não há razão para permanecer nas bolhas e condomínios quando todas as circunstâncias mudaram.
Comprovamos hoje um “déficit de interioridade”. O ser humano “pós-moderno” perdeu a direção do seu coração; dentro dele há um “condomínio” onde portas se fecham, chaves se perdem, segredos são esquecidos... e mergulha na mais profunda solidão estéril. Vive perdido fora de si mesmo e não consegue colocar as grandes perguntas existenciais: “de onde venho? Quem sou? Para onde vou? Quê devo fazer?”
Muitos já não conseguem mais recolher-se e voltar para “dentro” de si, para recuperar o centro gravitacional de sua vida, o ponto de equilíbrio interior. São vítimas da chamada “síndrome da exteriorização existencial”; tem dificuldades de introspecção, silêncio, reflexão, contemplação...; não são capazes de velejar nas águas da interioridade, vivendo uma vida superficial e sem sentido.
Seduzidos pelos estímulos ambientais, envolvidos por apelos vindos de fora, cativados pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizados por ofertas alucinantes... muitos ambientes familiares se esvaziam, perdem a dimensão da interioridade, afastam-se do horizonte de sentido e... se desumanizam. Tudo se torna líquido: o amor, as relações, os valores, a ética, as grandes causas... Longe de um ambiente humano dinâmico, operante, ousado, solidário..., o que elas deixam transparecer é, pelo contrário, um ambiente humano neutro, apático, estagnado.
Inspirando-se em Maria e José, pais e mães convertem-se em fonte de vida nova; e a sua missão mais apaixonante é aquela de poder dar uma profundidade e um horizonte novo aos seus filhos; sabem integrar “vida em Nazaré” (espaço de interioridade) e “presença em Jerusalém” (vida expansiva, aberta ao novo e ao diferente).
“O menino crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria”; esta expressão sugere a atitude básica dos pais e mães: cuidar a vida frágil de quem começa o seu percurso neste mundo. Como seguidores(as) de Jesus e com sua presença humanizadora, eles(elas) são promotores(as) de habilidades na vida de seus filhos: “dão asas” e despertam neles as potencialidades do humano presentes em cada um, levando-os a experimentar condições ousadas de crescimento e realização; na convivência cotidiana, interagem com eles e conseguem extrair deles o melhor, fomentam o papel ativo deles, incentivam-os a desenvolver sua autonomia e dar asas à sua imaginação.
O ambiente familiar, sadio e instigante, torna os filhos conscientes de que são seres em movimento, protagonistas de mudanças, capazes de criar novos modos de existir, de romper com o instituído e buscar o diferente, o novo, o desconhecido... A família é o espaço das inovações, dos riscos, dos experimentos... Nela se encontra o lugar dos sonhos, dos desejos, da liberdade e autonomia.
Texto bíblico: Lc 2,22-40
Na oração: A exortação apostólica “amoris Laetitia”, do Papa Francisco, inspira os casais cristãos a que se convertam em pontes, ponham suas energias, sua formação, dedicação, sua vida a serviço de criar, alimentar e sustentar os laços humanos, relações sociais, estruturas políticas e econômicas que tornem possível a solidariedade entre todos os seres humanos e aponte para um mundo fraterno e justo. A vocação para estender pontes, superando fronteiras, é algo crucial para o mundo de hoje.
- Seu ambiente familiar: risco da aventura ou medo asfixiante? Contínua surpresa ou perene rotina? Espaço de liberdade ou vivências dentro de bolhas asfixiantes e muros de proteção?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...pois não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7)
Na noite de Natal, Deus “desce” aos rincões da humanidade; uma intensa Luz brilha no interior de uma gruta e se expande em direção a todo o universo. “Deus se veste de mundo”. As grutas sempre despertaram fascínio nos seres humanos; elas possuem uma força atrativa e guardam segredos em seu interior. Ao mesmo tempo simbolizam o desejo permanente de retornar ao ventre materno, lugar de segurança, de aquecimento...
A contemplação do Nascimento de Jesus nos impulsiona a fazer a travessia para o interior de uma Gruta: ali o Grande Mistério se faz visível e revelador do sentido da existência humana. Trata-se de “entrar” nela com suavidade, de percebê-la e fazê-la descer até o coração, de convertê-la em matéria de consideração, oração silenciosa e surpreendida. É que nada é digno de Deus, nada está à sua altura para poder acolhê-Lo: nenhum tipo de ornamento, nenhum palácio, nenhuma forma de sabedoria humana. Por isso, Deus decidiu escolher um lugar despojado de tudo, onde não há concorrências ridículas: gruta, manjedoura, pobreza...
Acolhido pela natureza, presente na Gruta, Deus se deixou impactar por tudo aquilo que o rodeava. Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano.
Na pobreza, na humildade da própria gruta pessoal, inserida na grande quantidade de grutas de refugiados e excluídos, torna-se possível acolher o dom do amor de Deus, visível na Criança de Belém.
O Nascimento de Jesus inspira a nos deter para escutar-sentir o significado da gruta, para nossa vida e para a comunidade cristã. A gruta não é um fim em si mesma, não é um fim de trajeto; ela é uma etapa imprescindível para compreender a Encarnação. Ou seja, o cristianismo não passa de uma boa ideologia se não desce da cabeça às entranhas da vivência. A gruta é algo assim como as entranhas da humanidade, onde se sente a vida, porque é um espaço natural, sem cimento nem tijolos, sem paredes divisórias, aberto.
A gruta é essa abertura da natureza que acolhe e abriga: ela é espaço para refúgio, proteção do frio, último recurso diante do despejo. Francisco de Assis, em sua vivência de Natal, no-la encheu de natureza: animais, vegetação, riachos…, tudo em expectativa, tudo em seu estado puro: a nova criação com a chegada do menino que nela encontramos. Temos medo da gruta, das entranhas da vida, da história e de Deus, porque a gruta contém o Deus que se veste de mundo, como o seio materno contém a criança que virá.
A gruta está dentro e fora de nós. Dentro, ou seja, esse lugar marginal de nosso ser que não nos atrai, porque é escuro, frio, não visitado, nos dá medo entrar...; e, fora de nós, a gruta é esse lugar da noite, sem luz artificial, que intimida aproximar-nos porque não sabemos quê ou quem podemos encontrar. Talvez pessoas que nos olham com suspeita ou com carinho, nos acolhem ou nos rejeitam...
De qualquer forma, só uma coisa importa fazer agora: diante da fragilidade de uma criança, ampliar o olhar, afastar o medo, tirar o pó das lembranças não integradas… A gruta interior é uma abertura natural na rocha dura da vida. Nela, se supero os medos e acesso às suas profundezas, descubro-me habitado pelo Amor; entrar na gruta de Belém torna-se uma privilegiada ocasião para soltar as amarras internas, tirar as paredes que separam ou dividem, abrir espaços acolhedores...
E, para entrar, é preciso agachar-se, descer de nosso ego inflado, das vaidades… Só quem se inclina pode acolher uma criança nos braços. Para encontrar Deus é preciso empreender o caminho de “descida”, dirigir o olhar e o coração para o próprio interior e para o mundo da exclusão.
O mundo é uma pousada, lugar de passagem onde homens e mulheres, maiores e menores, devemos ir construindo lugares de encontro. Mas Deus quis vir à pousada dos homens e não encontrou lugar nem na cidade, nem em nenhuma estalagem. Não tinha o que era preciso ter: dinheiro, poder, influências...
Portas e corações se fecharam ao pedido de ajuda de uma família, apesar da evidente necessidade urgente que eles tinham de alojamento. “Para eles não havia lugar na hospedaria” (Lc. 2,7). Uma cocheira de animais funcionou como “centro de acolhimento”.
Assim, a vida de Jesus, desde o início, foi muito semelhante àquela de um “clandestino”: indesejado e incômodo. E Ele continua vindo a nós sob o semblante do clandestino. “É inútil procurá-lo nos prestigiosos palácios do poder onde se decide a sorte da humanidade: não está ali. É vizinho de tenda dos sem casa, dos sem pátria, de todos aqueles que a nossa dureza de coração classifica como intruso, estrangeiro, refugiado” (Tonino Bello)
Mas era Deus e nasceu, ainda que fosse fora, no descampado, no que então era uma gruta de pastores, um lugar para guardar animais. Jung dizia: “somos tão somente o estábulo onde nasce Deus”. A gruta está sem defesa, por isso, entram as chuvas e também o frio; mas é precisamente nas fendas de sua pobreza onde ocorre o nascimento da Vida, onde acontece, desde aquela noite, a manifestação da glória de Deus, o perfume de sua compaixão.
É surpreendente que a pequenez e a vulnerabilidade sejam o cartão de visitas de Deus. O Natal é o memorial desta verdade, sempre esquecida. Deus não nos estende a mão a partir de cima, senão que se mostra necessitado, dentro de uma gruta. Ele nos ajuda a partir da fragilidade. Ele está “envolvido em faixas”, deitado em cima de palhas, como se não houvesse outro modo de se revelar.
Na presença de uma Criança tudo é aceito e acolhido, tudo encontra seu lugar. Nada é rejeitado: o sujo e o que não conta, o desprezível, o mal olhado, perdem seu aspecto desagradável e se ungem de calor e suavidade. Tudo fica transformado pela irradiação da luz que emerge a partir de dentro; há muito mais dignidade e beleza onde sequer poderíamos imaginar.
Na Encarnação e Nascimento de Jesus esvaziou-se o céu; Deus, em sua misericórdia, abandonou o trono altíssimo, exilou-se nas entranhas profundas da humanidade e assumiu tudo o que é radicalmente humano.
Se a história da Encarnação começa lá “embaixo”, na periferia, quer dizer que a fé em Deus implica prestar atenção na manifestação do amor materno e na frágil beleza do recém-nascido. É por esse caminho que podemos chegar à descoberta e à experiência de Deus; é também por este caminho que podemos chegar ao conhecimento de nós mesmos.
No momento em que o Verbo de Deus assume um rosto, todo ser humano chega à plenitude de sua realização: entra em comunhão com o Infinito e recebe uma dignidade infinita.
Textos bíblicos: Lc 2,1-14
Na oração: Contemplar o rosto do recém-nascido... Contemplar nele os rostos desfigurados da história.
A cena do Nascimento de Jesus pede tempo, presença, assombro... para deixar-se afetar por ela; “... como se estivesse ali presente, com todo acatamento e reverência possível” (S.Inácio).
A todos vocês, um Natal feito de promessas, de caminhos... e de ternura infantil.
Minha bênção natalina.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus” (Lc 1,30)
No tempo do Advento, Maria é sempre uma presença cheia de significados: a mãe que espera, a mulher que acolhe a Palavra, a jovem que arrisca, a amiga que ajuda, a mulher de fé que silencia e medita... Tudo isso encontramos nela. E nela, todos nos vemos; nela nos inspiramos. Porque também nós precisamos acolher, arriscar, servir e deixar que a boa notícia seja semente que se enraíza na terra de nossa interioridade.
O Advento também é tempo do “sim” e hoje fazemos memória daquela que foi protagonista do “sim” que mudou a história. Aquele que é a Vida e por quem foram feitas todas as coisas pede o consentimento da virgem de Nazaré para assumir a vida humana no seu seio virginal. Para que sejam cumpridas, para que o Salvador entre na nossa história, só falta o Sim de Maria.
Deus nunca força a liberdade humana, nem mesmo nos momentos em que está em jogo o futuro da humanidade; dinamiza-a, a partir de dentro, em todos aqueles(as) que se abrem à sua graça. O Deus que nos criou sem pedir o nosso consentimento, nunca nos impõe missão alguma sem o nosso assentimento. Ele suscita nossos desejos, atrai, convida, mas respeita sempre nossa liberdade. Nossas decisões serão tanto mais livres e fecundas, quanto mais unidos estivermos com Deus, quanto mais confiarmos na sua graça; mas elas devem ser assumidas por nós.
A redenção querida por Deus é universal, mas encarna-se no particular, no ponto de intersecção de um tempo e de um espaço únicos: na casa e no corpo de Maria de Nazaré, na Galileia. Esse ponto torna-se o centro da história, o ponto de apoio e de partida de um movimento pelo qual o Filho assume a condição humana para fazê-la retornar consigo, pelo poder do Espírito, ao Pai.
Maria é o primeiro e mais belo fruto do olhar de misericórdia da Trindade sobre a humanidade e de sua decisão de salvá-la. “Um anjo faz o anúncio, uma virgem o escuta, crê e concebe. Na alma, a fé, e no ventre, Cristo” (S. Agostinho). Essa graça é tão fundamental e tão significativa, que a expressão “cheia de graça” é usada no lugar do nome próprio. Maria é nomeada pelo modo como é vista por Deus. Ela é pessoalmente, de maneira singular e única, e de maneira permanente, a “agraciada” de Deus.
Para revelar e realizar a Encarnação do seu Filho, Deus não escolheu o templo, nem uma família sacerdotal. Nazaré, lugarejo situado na Galileia dos gentios, uma terra considerada abandonada de Deus, da qual “não havia saído nenhum profeta” (Jo. 7,52), foi escolhida por Deus para a encarnação do seu Filho. Não menos estranho é o fato de Deus ter escolhido, como forma de entrada na nossa história, uma jovenzinha de Nazaré, aldeã com um nome comum, totalmente desconhecida e insignificante aos olhos dos grandes do mundo, como tantas Marias do nosso povo.
Para realizar a salvação dos homens, Deus escolhe o insignificante e desprezado pelos homens. Escolhe o caminho do “esvaziamento” e do “amor louco”. Verdadeiramente, os caminhos de Deus não são os nossos caminhos, e seus pensamentos não são os nossos pensamentos (Is. 55,8).
Devemos compreender que a Anunciação não se refere somente a Maria, a José e a Jesus, mas a cada um de nós e à humanidade inteira. O amor com o qual Deus nos ama é, ao mesmo tempo, um amor voltado à humanidade inteira e um amor que se dirige a cada um em particular, pois foi Deus que nos concedeu a cada um o dom de existir. Podemos dizer que cada um de nós é amado e buscado como se fosse o único no mundo. E este amor, no entanto, nos invade para nos atravessar e chegar até os outros. “Cheios de graça”, assim como Maria.
Não olhemos a Anunciação como se fosse um acontecimento exterior a nós. Estamos todos incluídos nela. Mais ainda, devemos compreender que este relato não fala apenas de algo que se passou há dois mil anos atrás, mas refere-se também ao que nos acontece hoje: Jesus vem ao mundo e a cada um de nós sem cessar, e vem de novo, sempre.
O mistério da Anunciação é como o nosso espelho: nele todos nos vemos; ou melhor, a Anunciação acontece com todos nós, a todo momento e em todos os lugares e etapas da vida. Anunciação somos todos que, como Maria, dialogamos com Deus desde o mistério mais profundo de nossa vida, em gesto de disponibilidade radical. A Anunciação a Maria é uma experiência universal: todos recebemos visitas dos mensageiros de Deus.
Estamos rodeados de mensageiros divinos: pessoas (presenças angelicais), fatos, experiências interiores... que através de vozes e sinais movem nossa vida em direção à missão. São anúncios surpreendentes, ines-perados... Deus é surpreendente, inesperável, revela-se na vida... É preciso uma atitude contemplativa da vida para perceber os sinais divinos de sua presença.
Em primeiro lugar, os mensageiros fazem elogios a cada um de nós: “Deus está encantado com você; você é agraciado(a), você é único(a) e original; você tem uma missão específica”. É preciso estar em sintonia para captar a presença dos mensageiros. Eles falam da vida e apontam para o futuro. Falam que Deus faz nascer a vida mesmo onde é impossível aos olhos dos homens. O problema é que estamos distraídos ou focados em muitas preocupações e não captamos a mensagem que nos chega.
É natural que brotem medos, perturbações, dúvidas... pois se trata de algo fora do normal, inédito... que nos espanta. Mas o mensageiro nos pacifica, sustenta nosso ânimo, alimenta a coragem, vence o medo... E o que ele nos pede? Deixar-nos conduzir pelo Espírito, como “Maria que respira ao ritmo do Espírito”. Quem se deixa conduzir pelo Espírito torna-se fecundo, está aberto à vida, gera a vida e luta em favor da vida.
Do encontro com os mensageiros de Deus brota um “sim” do mais profundo; sim, sem temor, sem dúvida; sim que nos expande em direção aos outros; sim que nos coloca em movimento; sim que desencadeia outros sins. Sim que muda a história pessoal e coletiva. Sim que destrava a vida, nos faz criativos, abertos ao novo. Sim que nos faz entrar em sintonia com o Sim de Deus, proferido desde todos os tempos.
Sim que é dado a Deus se amplia; sim que revela nossa identidade, nos humaniza. Sim que aponta para a vida. Deus é sempre fecundo; deixar Deus ser Deus em nossa vida: essa é a marca da Anunciação. O consentimento de Maria encerra o diálogo; o anjo retira-se em silêncio. Com certeza, estava alegre, por poder contar com o sim resoluto de Maria. Que o anjo não se afaste triste de nós, pela nossa resposta negativa.
Texto bíblico: Lc 1,26-38
Na oração: Poucas vezes Maria fala nos evangelhos e, no entanto, suas palavras são rotundas, definitivas, inapeláveis: “faça-se”, “eles não tem mais vinho”, “fazei o que Ele vos disser”. E, sobretudo, o “Magnificat”, que é um hino de liberdade, de justiça e de louvor.
Também nós falamos: em família, no trabalho, entre amigos... Falamos de outras pessoas, da situação social e política... Falamos daquilo que nos preocupa ou dos nossos desejos e sonhos... Quem sabe, também falamos de Deus. Há muito poder nas palavras: poder para ferir e curar, para levantar e derrubar, para bem-dizer ou mal-dizer... Oxalá, aprendamos com Maria a proferir palavras carregadas de vida e de verdade.
- Você tem consciência do peso e do valor de suas palavras?
- Fazer memória dos “sins de vida”, pronunciados ao longo de sua existência, e que foram o prolongamento do “sim” de Maria.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Perguntaram então: ‘Quem és, afinal? Temos que levar uma resposta para aqueles que nos enviaram. O que dizes de ti mesmo?” (Jo1,22)
Quem és? Quem sou? Quê dizes de ti mesmo? Que digo de mim mesmo? Às vezes, o mais evidente e o mais próximo termina sendo o que menos conhecemos. Talvez acreditamos conhecer melhor os outros que a nós mesmos.
É possível que os enviados a João Batista tampouco pudessem dar razão de si mesmos, mas queriam saber quem era João e o que ele pensava de si mesmo. É possível que ninguém tenha ousado perguntar aos sacerdotes do Templo: “E vocês, quem são e que dizem de si mesmos?” E, no entanto, é o Templo que se sente incomodado com a presença desse estranho homem do deserto: sem ornamentos luxuosos, vestido de pele de camelo e levando uma vida de austeridade. Mas, uma vida que por si só fala de algo diferente, de algo novo.
João, nas areias do deserto, despertava inquietações e preocupações nos sacerdotes do Templo. Esta é a verdadeira identidade de João; uma identidade expansiva e original que, ao mesmo tempo, era expressão de sua dimensão mais profunda e o movia a ser presença provocativa junto aos outros. Ele foi um homem inquieto, que passou a vida buscando e preparando o ambiente para acolher uma outra presença surpreendente: “no meio de vós está aquele que vós não conheceis”.
Todo ser humano é aventureiro por essência; com ardor, ele anseia por uma causa última pela qual viver, um valor supremo que unifique a multiplicidade caótica de suas vivências e experiências, um projeto que mereça sua entrega radical. Para dar sentido à sua vida e realizar-se como pessoa, o ser humano necessita da auto-transcendência, isto é, viver para além de si mesmo, de seus impulsos, caprichos, desejos... Carrega dentro de si a sede do infinito, a criatividade, a capacidade de romper fronteiras, os sonhos, a luz... Portador de uma força que o arrasta para algo maior que ele... não se limita ao próprio mundo; traz uma aspiração profunda de ser pleno, de realização, de busca do “mais”... Nesse sentido, o tempo do Advento vem ao encontro desse nosso desejo profundo e se apresenta como uma mediação para ajudar-nos nessa longa travessia em direção à própria identidade expansiva, deixando nosso estreito território e enveredando pelas terras desconhecidas do além-Jordão, onde João Batista também deixa transparecer sua verdadeira identidade: “eu sou a voz que grita no deserto”.
Ao ler o evangelho deste domingo e inspirando-nos na figura de João Batista, que revela quem ele é, pode-mos, também nós, reservar um tempo para nos contemplar por dentro; provavelmente nos sentiremos um grande desconhecido para nós mesmos. Nossa existência não pode ser de anonimato e indefinição. Ela exige identidade clara e bem definida.
Normalmente confundimos a identidade com certas “marcas distintivas”: o nome, a profissão, a posição social, política ou religiosa, a função... A identidade, no entanto, é dinâmica, histórica, fecunda, aberta ao desconhecido, aventureira...; é a capa-cidade de ir além de si e adiante de si. É poder ser invenção contínua de si mesmo, infinita trans-cendência. É ter projeto, ter futuro, sair de si... Só transcende quem se aproxima da própria interioridade, do próprio coração.
“Descobrir-se a si mesmo” é ter consciência que no próprio interior há um movimento infinito de construção de si, de identidade em movimento... que se torna possível graças a um constante arrancar-se do imobilismo e da paralisia existencial, que impedem o fluxo da vida.
Só consegue aproximar-se da própria interioridade quem se desprende de defesas e projeções. A Palavra de Deus, pronunciada sobre cada um de nós, des-vela e re-vela a nossa verdadeira e plena identidade: única, irrepetível, original. Essa identidade vai sendo gestada ao longo de nossa história pessoal com os avanços e recuos, vitórias e fracassos, alegrias e sofrimentos... que vão pontilhando nossa existência e constituindo esse ser único, que somos cada um de nós.
Vivemos um contínuo chamado na vida e para a vida. A experiência de sentir que estamos insatisfeitos, o impulso em ativar desejos, cultivar aspirações sempre novas, procurar entender quem somos, o que devemos fazer, o que nos torna realmente felizes..., no fundo, tudo isso, é um contínuo desvelamento de nossa identidade. Nós realizaremos nossa vocação, sendo nós mesmos, com nosso modo de ser, nossas possibilidades, nossa originalidade. Ninguém poderá realizá-la por nós.
Ser fiel à própria identidade é ser fiel à nossa vocação. Isso é identidade, ou seja, mergulhar no “fluxo da vida”, colocar-nos em movimento, caminhar para o nosso próprio interior. Afinal, somos um “ser de caminho”, um ser em marcha, em contínua peregrina-ção. Ter identidade é viver em contato com as raízes que nos sustentam. No percurso para dentro, clareia-se a visão sobre nós mesmos, sobre nossa originalidade e dignidade.
Há uma força de gravidade que nos atrai progressivamente para a interioridade, onde Deus nos espera e nos acolhe, e onde encontraremos a nossa própria identidade e a verdadeira paz.
“Que eu me conheça e que te conheça, Senhor! Quantas riquezas entesoura o homem em seu interior!
Mas de que lhe servem, se não se sondam e investigam?” (S. Agostinho)
Quem é que pode nos fazer acreditar que chegamos ao fim do caminho, que finalmente adquirimos uma identidade definitiva? Quem pode nos fazer dizer “eu sou?”. Para a mentalidade bíblica, o ser humano é uma criação contínua, um processo permanente de “tornar-se pessoa”, passando por uma transfiguração, cada vez mais nova, de si e do mundo. O ser humano descobre a “existência” como identidade dinâmica, invenção constante de novas possibilidades de ser.
A identidade vai se des-velando à medida que do interior de cada um brota esta certeza: “Sou um tesouro, para mim e para os outros, e que não conseguia encontrar; sou um mistério da graça e do amor de Deus; sou alguém que se sentia vazio por dentro e descubro que estou habitado por Ele; sou alguém chamado, preferido de Deus; sou alguém que sente as mesmas fragilidades de todos e que, no entanto, sinto a fortaleza de Deus em mim; sou alguém que cada manhã pode desfrutar de um novo dia, posso sorrir para os demais; sou alguém que não sou a luz, mas posso ser testemunha da luz e indicar aos outros onde encontrá-la; sou alguém que ama profundamente a vida”...
Sem dar-nos conta, vamos encontrando verdadeiras maravilhas dentro de nós. E enquanto buscamos reencontrar-nos interiormente, podemos nos sentir como o garimpeiro que, em meio ao cascalho e à profundidade da terra, esbarra-se com o veio de ouro.
Texto bíblico: Jo 1,6-8.19-28
Na oração: Deus garante a nossa identidade: podemos ser nós mesmos. Deus investiu pesado em cada um de nós. Mais ainda, fez do nosso coração sua morada. Ter uma identidade significa assumir um lugar na história, uma missão a cumprir.
- Agora, sabendo o que Deus-Pai pensa de ti, poderias descobrir o teu nome? a tua identidade? Quais os teus “sinais digitais divinos”?
- Que resposta darias de ti mesmo, agora, se um repórter te entrevistasse e te perguntasse: “Quem és tu?”
- O que colocarias na tua carteira de identidade que te diferenciasse de todas as outras pessoas?
- Quais seriam os teus sinais digitais mais originais?
Ser “João” é ser graça amorosa de Deus na vida e na história de tantas pessoas.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Campinas-SP
“Esta é a voz daquele que grita no deserto” (Mc 1,3)
Advento é um tempo que se revela como uma espécie de respiro, um tempo para distanciar-nos do conflito de ideias, interesses e especulações que acabam por alterar a tranquilidade e a paz de nosso interior. Este é um tempo sagrado e um tempo de silêncio, muito necessários para o momento em que vivemos. Um silêncio que não é isolamento, mas capacidade de escuta; algo assim como desconectar o auricular, no qual permanentemente soam as músicas “interesseiras”, para escutar as músicas ambientais; um silêncio que não é só ausência de palavras, mas ocasião para dar a possibilidade a palavras diferentes e novas; um silêncio que é superação do palavreado crônico que nos esvazia por dentro.
A “voz que grita no deserto” é a do profeta vestido pobremente, que nos prepara um coração compassivo e reconciliado. Aquele que saltou de alegria no ventre de sua mãe diante da voz da jovem de Nazaré, nos rompe, com sua voz, a surdez do coração e nos força a abrir os olhos para ver, de maneira nova e diferente, Aquele que sempre se aproxima.
O Batista é só uma voz; não é a Palavra. Mas não é uma voz qualquer, não é mais uma voz entre tantas outras; é a voz que faz a diferença: ela des-vela e re-vela. Des-vela a dureza do coração daqueles que não se abrem à novidade do Deus que “continuamente vem em sua direção”; revela a presença d’Aquele que com sua Palavra destrava a voz dos sem voz, ativando e despertando a dignidade escondida sob o peso das “vozes que desumanizam”, sejam elas políticas ou religiosas.
O tempo litúrgico do Advento nos possibilita renovar uma atitude tão escassa e tão necessária em nossa cultura: escuta das vozes frágeis do nosso entorno; são as vozes dos tristes, dos deprimidos, dos cansados e tantas outras vozes que se encontram nas margens sociais e religiosas. Essa escuta nos conduz à voz frágil d’Aquele menino Deus que sempre quer nascer onde há necessidade de mudança, de busca, de melhora, de um novo começo.
Mas o Advento também nos faz mais sensíveis para captar as vozes frágeis de nossa interioridade; elas querem se expressar, mas não encontram ambiente favorável, devido aos ruídos e sons estridentes que nos ensurdecem. Dentro de nós há muitos sentimentos reprimidos, experiências bloqueadas, vivências rejeitadas, pensamentos atrofiados... buscando uma oportunidade para se fazerem ouvir; são “vozes caladas”, “vozes que gritam no deserto interior”, procurando encontrar gretas de nossa existência por onde respirar. É preciso criar silêncio para ouvi-las, dialogar com elas e assim poder restabelecer um equilíbrio ecobiológico interior.
Há um rumor em nossa interioridade, e disso temos medo, pois desvelam nossa real identidade. O pensador Pascal dizia que “a infelicidade do ser humano vem de uma só coisa, que é não saber permanecer quieto em seu quarto”. Verdadeiramente há um rumor de vigor e de vida no coração, como a melodia da fonte na aridez do deserto, que é capaz de pacificar nosso espaço interior. Há um momento em que uma frágil voz sem palavras nos alcança no ponto mais vivo e original de nossa existência.
É o rumor que brota da provocação de uma palavra escutada como aquela de João Batista: “preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!” É a estrada mesma da vida que passa pelos meandros do coração. Por ali transita o Espírito de Deus, que ora grita, ora sussurra, dependendo da nossa sintonia ou não com sua presença.
Sentados às margens das estradas ou de um riacho silencioso de nossas vidas, podemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar em direção às regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que dão sentido e consistência ao nosso viver.
Estamos mergulhados num mundo de vozes; um “vozerio” nos cerca: vozes que nos levam à morte, vozes que nos chamam à vida; vozes contaminadas pelo egoísmo, adulteradas pelo medo, deturpadas pela impureza, e vozes que são o eco do paraíso convidando para a festa, comunicando paz, convocando à comunhão... É possível que as vozes do egoísmo, do orgulho e da ambição tentem se disfarçar em voz do Batista, a fim de arrastar-nos para o vazio e a ruína.
Mas o Espírito não fala por ruídos, e sim pelo silêncio; não fala pela força dos pulmões, e sim pelo vento suave de sua voz inconfundível. Para escutá-la, requer-se interioridade e atenção aos sinais de sua presença: pode ser a voz de um irmão pedindo socorro; pode ser a linguagem de um acontecimento alegre ou triste; pode ser uma palavra lida ou proclamada; pode ser uma inspiração misteriosa captada no silêncio...
Sentimos a ressonância da voz do Espírito na oração, na atividade, ao ver um noticiário, ao dar um abraço, ao ler um livro, ao ouvir uma canção, ao contemplar um quadro, fazendo um passeio, escutando alguém que nos fala de sua vida...; sua presença ressoa na história e na imaginação convidando-nos a sonhar um futuro melhor; sua atuação ressoa nos encontros humanos, reconstruindo os laços rompidos; sob seu impulso ganham consistência, em cada um de nós, as atitudes que nos levam a viver com mais plenitude: compaixão, justiça, verdade, amor... No silencioso sussurro de Sua voz toda realidade interior fica abençoada: os sentimentos contraditórios, os dinamismos opostos... Ele “desce” para encontrar-nos e despertar nossa vida atrofiada. Com seu toque, uma identidade nova ressurge: não seremos mais estrangeiros, nem inimigos de nós mesmos. Sua presença dá calor e sabor à nossa existência.
Na arte do discernimento das vozes, o importante é, através da escuta interior, perceber de onde vem e para onde nos conduz cada voz que ressoa em nós. Se ela nos conduz para o outro, para o serviço, para o Reino...é clara manifestação da voz do Mestre. Isto dá uma profundidade especial ao nosso caminhar, nos desvela uma riqueza humana escondida em nosso interior, nos dá uma alma de poetas, capazes de dar nome ao mistério. “Endireitar as estradas interiores” é apaixonante, pois no situa no caminho de uma humanização mais verdadeira e profunda e dilata nosso coração. Somos advento; cuidemos, pois, de nossa vida interior!
Texto bíblico: Mc 1,1-8
Na oração: Espirituais somos todos, se deixarmos que, dentro de nós, o Espírito de Deus encontre espaço livre para mover-se, sussurrar e suscitar inquietações. Ao habitar-nos, o Espírito não nos invade, nem se impõe.
Se abrirmos espaço à sua presença, brota uma sadia convivência que potência o melhor em nós mesmos, sensibiliza nosso coração e abre os sentidos para que fiquem mais alertas e sintonizados com as surpresas que brotam da vida.
- Recordar (lembrar com o coração) dimensões da vida que precisam ser ampliadas a partir da vivência do Advento.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O que vos digo, digo a todos: vigiai!” (Mc 13,37)
Gregório de Nissa afirma que “na vida cristã vamos de começo em começo, através de começos sem fim”. Re-começar contínuo, no qual nos colocamos sempre de novo em sintonia com Aquele que plenifica nossa existência, dando sentido e inspiração ao nosso modo de ser e viver. Estamos re-começando mais um tempo litúrgico, sempre original e instigante; trata-se do Advento. No evangelho, indicado para este primeiro domingo, o apelo de Jesus (“vigiai”) poderia perfeitamente ser traduzida por “estejam atentos”, “estejam despertos”.
Por que essa insistência em viver despertos, atentos e lúcidos, como nos pede o tempo do Advento? Porque, como dizia Antony de Mello, a grande tragédia da vida não é tanto aquilo que sofremos, mas aquilo que perdemos. Perdemos muitas oportunidades porque a dispersão e a distração nos acompanham sempre. E isso é justamente o que pretende a espiritualidade do Advento: despertar.
De vez em quando, deveríamos ter a coragem de deixar ressoar em nós esta pergunta: “Você vive ou simplesmente sobrevive?”; pois o perigo de viver adormecidos ou de maneira superficial nos espreita continuamente. Aqui podemos recordar um texto de Henry Thoreau que se fez famoso graças ao filme “A sociedade dos poetas mortos”: “Fui aos bosques porque queria viver em plena consciência, queria viver a fundo e extrair toda a essência da vida; eliminar tudo o que não fosse a vida, para que, quando a minha morte chegasse, eu não descobrisse que não tinha vivido”.
Paulo também nos convida a despertar de nossa inconsciência para deixar-nos iluminar por Cristo e assim viver em plenitude, e não como mortos vivos: “Desperta, tu que estás dormindo, levanta-te dentre os mortos, e Cristo te iluminará” (Ef 5,14)
Sabemos que o maior inimigo da atenção e da vigilância é a rotina e o modo de funcionar em “piloto automático”. A rotina tem a vantagem de facilitar as coisas e nos confere uma certa sensação de segurança: movemo-nos por caminhos trilhados nos quais tudo nos torna familiar; ela é como uma roda que, de vez em quando, nos move para aquilo que já sabemos, para o já conhecido. Os hábitos permitem que façamos muitas coisas sem precisar pensar: são feitas de uma maneira “in-sensata”, ou seja, sem sentido e sem discernimento.
Muitas de nossas rotinas são manias que herdamos, atmosferas que respiramos, condutas que imitamos, maneiras de ser que assumimos como próprias; nessa repetição do conhecido, vamos nos habituando a viver na apatia, na falta de sonho e de entusiasmo. A rotina nos encobre, nos disfarça, nos mascara e nos anula no costumeiro, na tradição, no hábito, na repetição.
Alguém já disse que a “rotina é o colchão da comodidade na qual a pessoa vai morrendo, pouco a pouco”. Há rotinas que se impõem a nós, sobretudo para que nada se modifique, para que tudo continue como sempre; com isso não arriscarmos ao novo e, sobretudo, atrofiamos nosso espírito aventureiro e criativo que nos sussurra outras brisas, que nos instiga a caminhar por paisagens desconhecidas e nos impulsiona para horizontes inspiradores.
A rotina nos instala no gesto mecânico, no movimento inconsciente, na vida sem alento, nas maneiras normóticas de agir, no vazio do estancamento e na vigília adormecida; ela nos converte em figueiras estéreis, nos seca por dentro, nos torna deserto, sem brilho nos olhos, sem vibração no coração, sem presença inspiradora em nosso mundo.
O Advento, como “primeiro movimento”, é sempre atenção, convite a estar desperto para “fazer novas todas as coisas”. Não é promover novidade superficial, mas recuperar o novo que sempre brota a partir de nosso ser mais profundo. O Advento é tempo litúrgico da criatividade; as rotinas nos alienam, a criatividade nos faz, nos rerefaz.
A atenção vigilante nos conecta com a vida, porque nos traz ao presente. E o presente é o único lugar da vida. Graças à atenção, vivemos na consciência, acolhendo tudo a partir da lucidez e amando tudo a partir da sabedoria; nós nos sintonizamos com a corrente da vida e passamos a habitar o momento presente, deixando-nos fluir com a vida mesma. E, em meio a qualquer atividade, devemos acostumar a nos perguntar: “estou completamente aqui?”
O cultivo da atenção tornará possível a saída progressiva do sono e da ignorância para poder viver na luz; tal prática continuada, não só fará com que saboreemos a vida, mas que reconheçamos e nos famíliarizemos com nossa verdadeira identidade: não somos a “onda” que emerge fazendo movimentos, mas o “oceano” de onde a onda surge. Ver isto é “estar despertos”.
Cada Advento nos mostra um cenário no qual tudo brota de novo, sem estridências nem espetáculos extravagantes. É o tempo do silêncio que vai gestando algo novo, pleno de vida e de sabor; tempo que nos move a reestreiar nossa vida; para isso é preciso destravar nossos sentidos para olhar, escutar, sentir, tocar, saborear tudo como se fosse a primeira vez.
À luz do evangelho deste domingo, vemos que o tempo da ausência do dono da casa que partiu em viagem não é um tempo morto, mas um tempo de intensa gestação. Não é uma espera vazia, angustiante e ansiosa, provocadora de medo, mas uma espera centrada no Senhor que vem e centrada na responsabilidade que nos foi confiada: serviço.
Muitos cristãos perdem a intensidade da espera; e aqueles que persistem na espera vão aprendendo a paciência da espera, mobilizando outros recursos interiores. A vigilância consiste em viver esperando o inesperado e o surpreendente. As comunidades cristãs precisam fortalecer uma pedagogia da espera. Sabem que o Senhor chega de forma surpreendente. A espera é sempre ativa, atenta aos sinais dos tempos e aos clamores da vida; ela busca expandir-se, pois aguarda “o novo céu e a nova terra”.
O Advento é um tempo de oportunidades únicas; e ele está carregado de sinais, elementos fora do comum, pessoas e acontecimentos pelos quais Deus interpela nossa liberdade e frente aos quais é preciso tomar uma atitude. Estamos diante daquilo que podemos chamar de “Kairós” (tempo oportuno, carregado de inspiração).
Se excepcionais podem ser as pessoas, os lugares, as relações, as habilidades, etc... excepcional também pode ser um determinado tempo, que não depende de sua durabilidade, mas o quanto é carregado de sentido e de presença. É um tempo qualitativamente diferente e denso. É um tempo de graça, propício para o reencontro, para avançar, para passar a uma nova etapa da vida. É preciso aproveitar esta oportunidade única.
Oxalá, neste Advento esperemos o Cristo e saiamos ao seu encontro. E contagiemos os outros com nossa esperança. Essa é a disposição de uma Igreja em saída e que não aguarda em uma “sala de espera”.
Texto bíblico: Mc 13,33-37
Na oração: Diante do Senhor, que continuamente está vindo em nossa direção, podemos nos perguntar: “minha vida, continua adormecida?
- Como seguidores(as) de Jesus, somos homens e mulheres que podemos despertar o mundo?
- O que estamos vislumbrando no nosso horizonte pessoal, eclesial, social, familiar...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes”
Rei, título inapropriado para Aquele que tocou leprosos, que preferiu a companhia dos excluídos e não dos poderosos do povo, que lavou os pés dos seus discípulos, que não tinha riqueza nem poder... O senhorio de Jesus foi a do amor incondicional, do compromisso com os mais pobres e sofredores, da liberdade e da justiça, da solidariedade e da misericórdia... Com sua palavra e sua vida Ele afirmou que “não veio para ser servido, mas para servir”. Por isso, assumiu uma posição crítica frente a todo poder desumanizador.
A festa de “Cristo Rei”, que encerra o Ano Litúrgico, pode ser ocasião propícia para “transgredir” nossa concepção de “rei” e “reinado”, e evitar um triunfalismo religioso, pura imitação dos reis deste mundo que vivem às custas da exploração dos seus súditos.
Jesus nunca se proclamou rei; o que Ele fez foi colocar-se a serviço total do Reino, de forma que este foi o centro mesmo de sua pregação e de sua vida, a Causa pela qual estava apaixonado e pela qual deu sua vida. Importa, pois, honrar a verdadeira identidade de Jesus: Ele não foi rei, nem quis ser nunca, por mais que alguns cristãos creem que chamando-o assim prestam-lhe as devidas honras. A melhor honra que devemos prestar a Jesus é prolongar seu modo de ser e de viver. É preciso voltar a Jesus e sua Causa.
Se Jesus não foi rei historicamente, nem se chamou rei, nem deixou que lhe chamasse assim, recusou e se retirou quando queriam fazê-lo rei, tem sentido que nós o aclamemos com esse título? Por quê?
Jesus é Rei porque deixa transparecer sua “realeza”: o que é mais real, mais humano e divino, a sua verdade, seu ser verdadeiro... no mais profundo de si mesmo. Realeza que se visibilizava no encontro com o outro. A partir de seu ser verdadeiro, Jesus destravava e ativava a realeza escondida em cada um.
Este é o sentido profundo do título: ser Rei sem tomar o poder, sem exercê-lo com a força das armas, sem a pressão da justiça legal, sem prestígio, sem riqueza... Esta é a tarefa da nova humanidade, a promessa de um Reino do conhecimento verdadeiro, da igualdade e da justiça, da fraternidade e não violência..., para que todos sejam reis, no sentido radical da palavra.
Segundo o relato de Mateus, quando chegar o momento supremo, a hora da verdade definitiva, a única coisa que ficará de pé, o que somente será levado em conta como critério de salvação ou perdição, não vai ser nem a piedade, nem a religiosidade, nem as práticas espirituais, nem a fé, nem mesmo o que cada pessoa tiver feito ou deixado de fazer para com Deus; o que vai ser considerado é apenas uma coisa, a saber: o que cada um tiver feito ou deixado de fazer para com os seres humanos.
A fundamentação está no fato de que Jesus se identifica com cada ser humano, de maneira especial com aquele que mais sofre, vítima da violência, da exclusão, da pobreza, da humilhação... Essa identificação e essa fusão de Jesus com os humanos (“foi a mim que o fizestes”) é tão forte e tão decisiva que, no momento do encontro definitivo com Ele, o critério para entrar no Reino não é o que cada pessoa fez ou deixou de fazer “para” Deus, mas o que ela fez ou deixou de fazer “para” os seus semelhantes que cruzaram o seu caminho e que clamaram por uma presença solidária e compassiva.
Na parábola do “juízo final” não é casual que os casos ali mencionados são as situações mais baixas, mais humilhantes e as que mais detestamos, de acordo com o que neste mundo se considera necessário para ser uma pessoa de sucesso e que goza de uma vida cômoda e digna: a comida, o vestuário, a saúde, a liberdade e a legalidade de quem não é um estrangeiro ou um imigrante “sem documentos”. Essa lista de situações extremas refere-se à realidade de sofrimento e exclusão. E Jesus assume como sua a dor de cada ser humano, pois, mediante sua Encarnação, Ele se identificou e se fundiu com o mais basicamente humano, com aquilo que é comum a todos os seres humanos, sem nenhuma distinção.
Toda parábola desperta ressonância e causa impacto no nosso ser profundo; não é um relato periférico e neutro; escutar ou ler uma parábola é sentir-se implicado nela ou, em outras palavras, toda parábola deixa transparecer nossa real identidade; por isso, a parábola do “juízo final” pode também ser lida em “chave de interioridade”: o que em mim está excluído, faminto, desamparado, exilado, preso... e que precisa ser integrado e iluminado?
Mas a luz da parábola desvela nosso eu interior e deixa transparecer também nossos pontos nutrientes, iluminantes... que serão fonte de salvação para as dimensões do nosso ser profundo que ainda permanecem na sombra da não aceitação.
Por outro lado, precisamos deixar ressoar em nosso “eu profundo” as palavras duras do Rei Eterno: “Afastai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos”. Centrados em nós mesmos e separados dos outros, vamos alimentando uma espécie de ego (força diabólica: força que divide). Todo “ego” é possessivo e manifesta-se como um desejo insaciável de acumular, possuir, não compartilhar... O ego exacerbado quer controlar o seu mundo: pessoas, acontecimentos e natureza. Ele compara-se com os outros e compete pelos elogios e pelos privilégios, pelo amor, pelo poder e pela riqueza. É isso que nos torna invejosos, ciumentos e ressentidos em relação aos outros. Também é isso que nos torna hipócritas, dominados pela duplicidade e pela desonestidade.
Esse ego centrado em si próprio não confia em ninguém a não ser em si mesmo; ele não ama ninguém e quando “ama” é para atender apenas às suas próprias necessidades e à sua própria gratificação. Sofrendo de uma falta total de compaixão ou empatia, ele pode ser extraordinariamente cruel para com os outros, vivendo uma situação infernal.
Como evitar que o nosso ego nos domine e determine nossa vida?
O primeiro passo será desvelar e desmascará-lo com todas as suas maquinações e duplicidades. Só uma pessoa esvaziada de seu ego pode transformar-se e transformar a realidade. O nosso verdadeiro eu está enterrado por baixo do nosso ego ou falso eu. Segundo a parábola deste domingo, a pessoa “torna-se bendita de meu Pai” na entrega e no descentramento. Porque só assim deixa transparecer a realeza original, aquela que se identifica com a realeza d’Aquele que viveu para servir.
Só nos fazemos conscientes de nossa realeza quando compreendemos nossa verdade mais profunda. Até que isso não ocorra, viveremos como mendigos, tratando de apropriar-nos e de identificar-nos com tudo aquilo que possa conferir uma certa sensação de identidade e de segurança. No entanto, ao compreender o que somos, tudo se ilumina: o suposto “mendigo” se descobre “rei”. Só na medida em que nos esvaziamos de nossos impulsos egóicos, fazemo-nos solidários com a fragilidade e, o que é mais profundo, nos fundimos com a fragilidade dos outros.
A salvação da humanidade está, pois, em ajudar aos excluídos do mundo a viver uma vida mais humana e digna. A perdição, pelo contrário, está na indiferença diante do sofrimento. Este é o grito de Jesus a toda a humanidade.
Texto bíblico: Mt. 25,31-46
Na oração: O Reino de Deus foi o centro da pregação de Jesus, o motivo de seus milagres, a razão de ser de sua fidelidade até a morte, a coroa de sua ressurreição. Quê é para mim o Reino de Deus? Está também no centro de minha vida? É “minha Causa” como foi a de Jesus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Fiquei com medo e enterrei o teu talento no chão” (Mt 25,25)
A liturgia deste domingo (33º Dom TC) nos propõe uma parábola que pode ser facilmente mal interpretada; ou pior ainda, fomentar a auto-autocobrança e o perfeccionismo. E, como consequência, os sentimentos de culpa, de impotência, de fracasso...
No campo específico da espiritualidade cristã, uma leitura deturpada da parábola dos “talentos” pode conduzir a uma religiosidade perigosa por vários motivos: supõe a imagem de um Deus como um patrão que exige um cumprimento das suas ordens até os mínimos detalhes, sem admitir nenhum fracasso; fomenta a ideia do mérito e, com isso, uma religião mercantilista; alimenta um perfeccionismo – busca de um “ideal de perfeição” -, que gera muito sofrimento e farisaísmo; estimula a competitividade para ver quem consegue um “prêmio maior”... Em definitiva, aqui nos encontramos diante de uma parábola potencialmente perigosa.
Todos nós temos uma tendência a alimentar o perfeccionismo e a leitura da parábola dos talentos só viria confirmar essa tendência. De fato, o conceito de perfeição cristaliza-se em nós desde a infância, a partir de experiências não integradas, de sentimentos de culpabilidade, e que acabam nos identificando, no plano pessoal, como não ter defeitos, não ter fragilidades, não ter nenhuma falha ou pecado. Trata-se de um modo fechado de viver dentro do próprio eu orgulhoso, que exige o máximo esforço para não falhar em ponto algum, uma vez que o “perfeccionista” está convencido de que somente será amado por Deus e pelos outros se for perfeito. A grave consequência disso é que estaríamos pervertendo a mensagem de Jesus, centrada radicalmente na gratuidade, na compaixão e no amor.
Custa-nos reconhecer Jesus como autor da “parábola dos talentos. Mas, em todo caso, não podemos perder de vista que se trata de uma parábola, e que a leitura tampouco pode ser literal. Como ler esta parábola para poder recuperar sua mensagem genuína e, ao mesmo tempo, evitar os riscos que o próprio relato deixa transparecer?
Em primeiro lugar, coerente com a própria mensagem evangélica, só nos cabe ler a parábola como palavra de sabedoria e não como código moral; deve ser entendida a partir da gratuidade e não a partir da ideia do mérito e da recompensa. Tudo é dom e somos felizes na medida em que permitimos que esse dom se manifeste em e através de nós.
Também é importante que levemos em conta a situação concreta em que Jesus vivia quando falava em parábolas. Ele viveu situações muito conflitivas e de enfrentamento com os fariseus, os sumos sacerdotes, os mestres da lei. Mateus coloca esta parábola dos talentos em um momento de máxima tensão e enfrentamento de Jesus com os fariseus; concretamente, com o “Deus” dos fariseus, que era um Deus terrível, ameaçante e justiceiro. Aqui, nesta instigante parábola, Jesus desmascara a falsa imagem de Deus dos fariseus, que torna a vida pesada e marcada pelo medo. É como se Ele dissesse: “Meu Pai não é assim; Ele é fonte de amor, de misericórdia e só deseja que as pessoas vivam felizes, sem medo”.
Nesse sentido, é sumamente útil aprofundar e conhecer o verdadeiro sentido da parábola dos talentos. Normalmente, costuma-se explicar esta parábola dizendo que Deus dá a cada pessoa uma quantidade determinada de talentos, divinos e humanos, dos quais terá de prestar contas a Ele, até o último centavo, no dia do Juízo Final. Quando se interpreta a parábola dessa maneira, o Deus que aí aparece é uma ameaça insuportável; ao considerar a parábola como uma exortação à uma “vida perfeita”, falsifica-se o sentido autêntico da mesma. O que está em questão aqui é a “imagem” de Deus que todos trazemos.
O indivíduo que recebeu um só talento está convencido de que o “senhor”, ou seja, Deus, é “duro”, pois “colhe onde não semeou e ajunta onde não espalhou”. Esse indivíduo tem uma ideia terrível de Deus. E por isso, como é natural, “tem medo”; e o medo o leva a “esconder o talento debaixo da terra”. Isso, precisamente, foi sua perdição. O medo paralisa, ou seja, torna as pessoas estéreis. No fundo, Jesus está dizendo o seguinte: “o Deus que ameaça com a exigência da prestação de contas até o último centavo, é um Deus que bloqueia e anula as pessoas, os grupos, as comunidades”. Por isso, é urgente acabar com a imagem do Deus que ameaça, que não liberta nem cura, que nos amarra e não nos deixa viver.
De fato, a presença de Deus na vida e na história de muitas pessoas é vivida secretamente sob as vestes do temor e do medo. Um “Deus” que a todos nós pedirá contas no juízo, onde teremos de responder pelo mau uso de nossos dons; um “Deus” que nos castiga com desgraças, por causa de nossos fracassos; um “Deus” interesseiro, um senhor severo que impõe obrigações duras e dificulta nossa entrada no banquete; um “deus-patrão” que nos prende com contratos e cobranças; um “Deus” que é um constante perigo, causador do Grande Medo que nos paralisa.
Crer em um Deus que pede conta até o último centavo é o mesmo que crer em um juiz justiceiro que torna a vida amarga e pesada. Sem a superação cotidiana dos medos, nossa experiência de Deus estará comprometida, perderá sua força inovadora e nos fará menos humanos.
Para relacionar-nos humanamente com o Deus que Jesus nos revelou, o mais urgente que devemos fazer é quebrar as “falsas imagens” d’Ele que carregamos em nossas consciências, em nossa intimidade mais secreta. E a primeira e principal imagem falsa é que Deus é uma ameaça da qual devemos nos proteger.
Deus é fonte da Vida, ou melhor, o próprio Dom, o “talento” que se dá generosamente em tudo. Ao conectar com nossa verdadeira identidade, nós nos descobrimos n’Ele, não como uma presença separada, mas como nosso núcleo mais íntimo e profundo.
Essa descoberta é a fonte de nossa ação; estamos permitindo que o “talento” – o Dom, a Graça, Deus..., possa viver em nós; deixar “Deus ser Deus em nossa vida”. Tal vivência sempre dará fruto abundante. Mas o fruto não é algo conquistado, que antes nos faltara e nos é dado agora em forma de prêmio ou recompensa – para engordar o ego -; o “prêmio” não é outro que a descoberta daquilo que somos e o prazer de viver isso. O “talento” que nos é presenteado é a descoberta da plenitude que sempre fomos.
Finalmente, aquele que não faz frutificar o talento fala também de nós mesmos, quando permanecemos na ignorância de quem somos e, desse modo, “perdemos” a vida, fechados – o talento enterrado – em nossa pequena couraça narcisista. Isso significa não deixar o talento expandir e permaneceremos nas trevas de nós mesmos, perdidos na confusão e no sofrimento.
Mais uma vez, não se trata de uma ameaça e, menos ainda, de um castigo: é um apelo que nos chama a despertar, para que saiamos das crenças tóxicas que envenenam a mente e o coração, não nos deixam amadurecer no nível humano e espiritual e nos privam do prazer de viver o Dom (Talento) que nos habita.
Texto bíblico: Mt 25,14-30
Na oração: No interior de cada um, Deus está chamando, está convidando a que ponha em movimento toda a capacidade de admiração e quer ensinar a ler e interpretar Sua presença em todas as coisas.
- pedir para experimentar, desde já, a presença do Senhor tal como Ele é, evitando todas as suas falsas imagens; diante de sua presença cada um deve sentir-se acolhido, desafiado e com uma nobre missão a realizar.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“As previdentes levaram vasilhas com azeite junto com as lâmpadas” (Mt 25,4)
Os textos destes últimos domingos do ano litúrgico nos convidam a velar, a estar preparados, a viver despertos. Deus não nos espera no final do caminho para nos submeter a um juízo; Ele está dentro de nós todos os instantes de nossa vida, inspirando-nos, para que possamos viver com mais plenitude e sentido. Interpretar a parábola deste domingo(32º Dom TC) no sentido de que devemos estar preparados para o dia da morte é falsificar o evangelho. Esperar passivamente uma vinda futura de Jesus não tem sentido, pois Ele já disse a seus discípulos: “Eu estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo”.
A parábola não está centrada no fim, mas na inutilidade de uma espera que não é acompanhada de uma atitude de amor e de serviço. As lâmpadas devem estar sempre acesas; se esperamos para prepará-las no último momento, perderemos a oportunidade de entrar para a festa de casamento.
A ideia que muitas vezes temos de uma vida futura esvazia a vida presente até o ponto de reduzi-la a uma incômoda “sala de espera”. A preocupação pelo “mais além” nos impede assumir com mais intensidade o tempo que nos cabe viver. A vida presente tem pleno sentido por si mesma. O que projetamos para o futuro já está acontecendo aqui e agora, e está ao nosso alcance; aqui e agora podemos viver a eternidade, já que podemos nos conectar com o que há de Deus em nós; aqui e agora podemos alcançar nossa plenitude, porque sendo morada de Deus, temos tudo ao alcance da mão.
A “chave de leitura” da parábola “das dez virgens” está na falta de azeite para que as lâmpadas possam permanecer acesas. O relato é tirado da vida cotidiana. Depois de um ano ou mais de noivado, celebrava-se a festa de casamento, que consistia em conduzir a noiva à casa do noivo, onde acontecia o banquete. Esta cerimônia não tinha um caráter religioso. O noivo, acompanhado de seus amigos e parentes, ia à casa da noiva para buscá-la e conduzi-la à sua própria casa; na casa da noiva, encontravam-se suas amigas que a acompanhariam no trajeto e participariam da festa. Todos estes rituais começavam com o pôr-do-sol e avançavam noite adentro, daí a necessidade das lâmpadas para poder caminhar.
A importância do relato não está no noivo, nem na noiva, nem sequem nas acompanhantes. O que o relato destaca é a luz. A luz é mais importante porque o que determina a entrada no banquete é que as jovens tenham as lâmpadas acesas. Uma acompanhante sem luz não tinha como fazer parte no cortejo nupcial. Pois bem, para que uma lamparina consiga iluminar é preciso ter azeite. Aqui está o ponto chave. O importante é a luz, mas o que é preciso para alimentá-la é o azeite.
Que é o azeite que alimenta a lamparina? São as reservas insondáveis de potencialidades criativas, de recursos inspiradores, de dinamismos vitais, de forças latentes, de energias sadias, de desejos oblativos... presentes nas profundezas do coração humano, e que o impulsionam a viver em sintonia com tudo o que acontece ao seu redor; o azeite é constituído pelas riquezas do próprio ser, as beatitudes originais, as intuições, os valores... que alimentam a autonomia, a autoria, a criatividade, a iniciativa, o espírito de busca, a capacidade de sonhar... Trata-se do “tesouro do ser”, conservado em sua mensagem essencial, e que pode tornar-se a energia que alimenta a luz da vida, a sabedoria da própria existência; o azeite é tudo aquilo que é nutriente, fecundo, iluminante... e que se expressa como contínua fonte de renovação; azeite é vida interior expansiva que se revela e que se consome nos encontros, na interação e na comunhão com os outros...; em resumo, azeite é o que há de mais divino no interior de cada um, que precisa ser descoberto, reconhecido e ativado para tornar-se luz.
No entanto, só quem vive a partir das raízes do próprio ser, só quem tem acesso à própria interioridade, descobre a presença do azeite que pode ser ativado para dar um novo significado e sentido à própria vida. É isso que a parábola do evangelho de hoje nos alerta: é preciso estar desperto e sintonizado com o azeite interior para poder alimentar a luz da vida e corresponder às vozes surpreendentes que vão surgindo.
“No meio da noite ouviu-se um grito: eis que chega o noivo! Saí ao seu encontro”.
É uma convocação urgente a sair do sono da distração e da trivialidade que talvez nos tem aprisionado, durante muito tempo, àquilo que é acessório e que nos provoca a viver à espera do essencial, atraídos por um impulso que nos move por dentro, ou seja, o desejo de vida plena.
Com os distraídos não se pode ir muito longe; dizendo melhor; distraídos são que vivem do momento e não pensam no depois. Seduzidos por estímulos ambientais, envolvidos por apelos vindos de fora, cativados pelas luzes artificiais, os distraídos perdem a direção da fonte provedora de azeite em seu interior; dormem e acordam sem luz em suas vidas.. Quem anda distraído, disperso e surfando na superfície de si mesmo, acaba perdendo as grandes oportunidades que a vida lhe oferece. Por isso, ser “sensato” é viver com sentido, atento e desperto às surpresas da vida. Para quem está desperto, sua vida interior torna-se uma fonte inesgotável de energia, de dinamismo e criatividade. Assim se entende porque as jovens prudentes não compartilhem o azeite com as imprudentes. Não se trata de egoísmo: é que a lâmpada não pode arder com o azeite do outro. A chama, à qual se refere a parábola, não pode ser acesa com o azeite comprado ou emprestado.
Sabemos que o azeite só ilumina quando se consome. Nossa vida revela pleno sentido e alcança seu fim quando desaparecemos, consumindo-nos no serviço aos outros. Quando a chama da vida está acesa, cresce em nós a consciência de que somos luz na medida em que nos gastamos na nobre missão de iluminar nosso entorno, até chegarmos a ser cera derretida.
Vivemos imersos num oceano de luz; carregamos dentro a força da luz. Ela sempre está aí, disponível; basta abrir-nos a ela com a disposição de acolhê-la e de fazer as transformações que ela inspira. A Luz é força fecundante, princípio ativo, condição indispensável para que haja vida. Somos luz quando expandimos nosso verdadeiro ser, ou seja, quando transcendemos e vamos mais além, desbloqueando as ricas possibilidades e recursos presentes em nosso interior. O que há de luz em nosso interior pode chegar aos outros através das obras. Toda ação realizada com amor e compaixão, é luz.
Encantam-nos os cristãos antenados que, cada dia, alimentam sua fé, sua esperança com pequenas coisas, com pequenos detalhes e gestos de amor carregados de luz; cada dia, aprofundam um pouco mais na experiência do Evangelho, mantendo sempre suas lâmpadas acesas, atentos à passagem e às pegadas de Deus por suas vidas; e, sobretudo, carregam sempre reservas de azeite para acolher com alegria a chegada surpresa d’Aquele que sempre está vindo ao seu encontro.
Encantam-nos os cristãos comprometidos que sabem que o azeite se consome, a fé se debilita, a esperança se apaga e amor atrofia quando não são alimentados com o azeite sempre novo em reserva nos seus corações.
Texto bíblico: Mt 25,1-13
Na oração: Dentro de ti deves descobrir o azeite. Se o descobres, dará luz que alumiará teus passos. Essa chama, se é autêntica, não pode se ocultar, pois iluminará também os outros, ativando neles a luz ainda escondida.
Tens que descobrir teu próprio azeite; ninguém pode te emprestá-lo, porque é tua própria vida.
Toda a vida se move de dentro para fora. Azeite que se consome na nobre missão de iluminar.
- Qual é o “azeite original” de teu interior, que inspira tua vida e te move a ser presença iluminante?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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