Inácio de Loyola foi um homem da mudança, da transição no tempo, dos tempos novos, agitados, turbulentos, de transbordantes novidades que punham em questão tudo o que até então ele recebera; mas não se fechou a elas, e sim abriu-se ao diferente e novo. Um novo “movimento” começa em sua vida e Inácio passa a viver a aventura de contínuos deslocamentos, internos e geográficos. Torna-se o peregrino do Absoluto.
Sempre em marcha, sem encurtar os passos, o peregrino Inácio avança como homem livre, sem deixar-se aprisionar por nada nem por ninguém, aberto aos acontecimentos, pronto a servir a Deus ali onde O encontra. A peregrinação interna e geográfica o torna mais humano, com maior visão, grandes desejos.
Antes de fazermos memória dos “lugares” que tiveram impacto na experiência espiritual de S. Inácio, recordemos esta expressão: “a planta dos pés”. Esta planta clama por raízes. Os pés escutam a terra e nos enraízam na realidade histórica. É difícil ter os pés sobre a terra... Podemos sentir isso se “escutarmos” bem nossos pés. Segundo a tradição oriental, quanto mais próximo do chão estiver o corpo, mais livre fica a mente e mais sensível o coração.
Quanto mais proximidade e intimidade com a terra, mais profunda é a experiência espiritual.
Cada passo deve ser uma oração e cada caminhar é um rosário de contas que marcam os caminhos da vida com a fé do caminhante.
Dá força e inspiração sentir-se junto à terra, apalpar sua firmeza, medir sua imensidade.
É o altar cósmico sobre o qual celebra-se diariamente a liturgia da vida.
Não há uma “Terra Santa”, há uma maneira santa de caminhar sobre a terra. É a nossa maneira de caminhar sobre a terra que a torna sagrada.
Mudar o nosso modo próprio de caminhar, mudar o nosso modo de colocar o pé na terra, não é somente uma terapêutica psicossomática, mas pode ser um exercício espiritual. É aceitar-nos em nossa dimensão terrosa, adâmica.
O equilíbrio do corpo, o equilíbrio do nosso psiquismo, o equilíbrio de nossa vida espiritual depende deste enraizamento. E se as raízes são sadias, toda a árvore é sadia. Algumas vezes somos jardineiros, muito atentos à flor e ao fruto, mas esquecemos as raízes, esquecemos os pés.
É por aí que devemos começar os nossos cuidados.
A tradição dos Padres do Deserto nos diz que todos nós temos os pés vulneráveis, muitas vezes feridos e maltratados. E temos necessidade de sermos cuidados e curados no nível de nossos pés. Precisamos fazer o caminho que vai dos “pés inchados e feridos” aos “pés alados”; partimos de nossos pés pesados como se tivéssemos um fardo de memórias para carregar conosco. Sentimos que este fardo de memória nos entrava a marcha e nos impede o caminhar.
É preciso cuidar dos próprios pés para que eles possam reencontrar suas asas; caminharemos, assim, sobre a terra com os pés livres, leves, soltos. E, como seres humanos, reencontraremos nossa condição divina.
1º. Movimento: Loyola – peregrinação em direção à própria interioridade
A grande originalidade da história e da vida de Inácio não é a que ocorreu fora, mas a que aconteceu dentro dele mesmo. Sua principal contribuição à história da humanidade não é o que pessoalmente ele realizou em suas atividades de apostolado e de governo, ou sua obra exterior mais conhecida, a Companhia de Jesus, mas a descoberta de seu “mundo interior” e, através dela, a descoberta desse continente sempre inexplorado e surpreendente, que é o coração de cada ser humano, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa.
O tempo de sua convalescença foi a mediação histórica de que Deus se valeu para irromper na vida daquele homem. tudo começou com a leitura de alguns textos (“Vita Christi” e “Legenda Áurea”).
Foi, para ele, a primeira porta de acesso ao Mistério.
“Como era muito dado a ler livros mundanos e falsos, que costumam chamar de cavalarias, sentindo-se melhor, pediu que lhe arranjassem alguns deles para passar o tempo. Mas naquela casa não se encontrou nenhum dos que costumava ler. Deram-lhe então uma Vita Christi e um livro da vida dos Santos romanceada. Lendo-os muitas vezes, ia-se afeiçoando lentamente ao que ali estava escrito. Mas, deixando-os de ler, algumas vezes parava a pensar no que havida lido” (Aut. 5 e 6)
Da “leitura do texto” à “leitura de si mesmo”: este é o primeiro deslocamento que Inácio experimenta em seu interior. Inicia-se uma travessia do “texto escrito” ao “texto da vida”. Leitura provocativa e questionadora, pois ela desmonta uma estrutura fincada em falsos fundamentos e desperta o desejo de construir a vida sobre uma nova base. Uma leitura conflituosa, marcada por resistências e medos…, mas, ao mesmo tempo, uma leitura atenta e centrada, com pausas para reflexão sobre as reações que ela despertava. Leitura que o compromete com outra escrita, carregada de sentido, valor e utopia.
Imobilizado e impossibilitado fisicamente, Inácio se surpreende a si mesmo escavando e trazendo à tona toda sua capacidade de aventura neste continente inexplorado (o de seu mundo interior e o da ação de Deus nele). Enquanto seus contemporâneos aventuravam-se na descoberta de novas terras, seu descobrimento não é menos importante, e é de maior alcance humano que o daqueles. Sem ruído, sem galeões, sem dinheiro, sem pólvora, sem armas, sem sangue, sem violência, sem vencidos e humilhados, Inácio abrirá caminhos nesse continente interior, próprio e de cada ser humano, “conduzido, sabiamente ignorante” do que vai encontrar, deixando-se levar e observando como é levado.
2º movimento: Esse caminho interior, iniciado em Loyola, sedimenta-se em Manresa (Cardoner).
“Uma vez ia, por devoção, a uma igreja que estava mais de uma milha de Manresa. Creio que se chama São Paulo, e o caminho vai junto do rio. Indo assim em suas devoções, assentou-se um pouco com o rosto para o rio, o qual ficava bem em baixo. Estando ali assentado, começaram a abrir-se-lhe os olhos do entendimento. Não tinha visão alguma, mas entendia e penetrava muitas verdades, tanto em assunto de espírito, como de fé e letras. Isto, com uma ilustração tão grande que lhe pareciam coisas novas. Não se podem declarar os pormenores que então compreendeu, senão dizer que recebeu uma intensa claridade no entendimento. (Nisto ficou com o entendimento de tal modo ilustrado, que lhe parecia ser outro homem e ter outro entendimento, diferente do que fora antes)” (Aut. 30).
Este texto da Autobiografia de Inácio nos remete à experiência fundante de sua vida. No espaço entre a estrada e o rio revela-se o “caminho do Amor de Deus” rumo ao ser humano. Esta experiência significa abertura, dilatação do coração na fé, expansão da consciência ao ver que tudo parte de Deus (Fonte do rio da vida) e tudo volta para Deus (rio que mergulha no Mar).
No fundo do seu coração, Inácio acolhe, escuta e reconhece o murmúrio da voz de Deus, que, como um rio calmo e ao mesmo tempo vivaz, o acompanha da nascente ao mar aberto.
A experiência de Inácio à margem do rio Cardoner o conduz à outra fonte, aquela que brota do coração, e que estava ressequida, impedindo-o de reconhecer o murmúrio da água viva.
“Uma água viva murmura dentro de mim e me diz: Venha para o Pai” (S. Inácio de Antioquia)
Foi a “ilustração” junto ao rio Cardoner que o fez perceber que o sentido da própria existência é deixar-se conduzir pela força do Espírito, assim como as águas do riacho se deixam conduzir em direção ao Grande Oceano. Abandona sua solidão na gruta, seu coração se expande e se abre a uma experiência universal.
3º. movimento: Esta experiência de universalidade é consolidada em Jerusalém-Paris-Roma.
Seu itinerário não é unicamente geográfico. Mais que um simples deslocar-se, trata-se de um modo de viver e de situar-se no mundo. Em sua breve estadia na Terra Santa, Inácio ficou muito marcado com a imagem do Cristo companheiro, que o chama a trabalhar com Ele. Em cada canto daquela terra ele “via” Jesus ocupado em estabelecer o Reino do Pai. E não estava só, mas com o grupo dos apóstolos, companheiros de Jesus e companheiros entre si.
O chamado de Jesus feito aos apóstolos e o posterior envio deles para a missão, são duas páginas do Evangelho que marcaram profundamente Inácio e que se encontram refletidas nas meditações mais tipicamente inacianas: o chamado do Reino, as Duas bandeiras, os Três binários.
Depois de ter posto materialmente seus pés sobre as pegadas de seu Senhor e beijar o solo que Ele havia pisado, Inácio compreende que a terra de Cristo era o vasto mundo de seu tempo. Desde então, para além do deserto e da peregrinação a Jerusalém, abre-se diante de seus olhos, outro caminho.
Decididamente Inácio volta-se para o mundo, para esse borbulhar de acontecimentos sócio-político-religiosos, no qual reconhece o lugar da Encarnação.
Para fazer-se presente neste vasto mundo, de uma maneira original e criativa, decide “estudar”. Forma-se em Paris, onde conquista o título de Mestre em Artes.
Ali se matriculou com um nome novo, no dizer de Ribadeneira, “por ser mais universal”: Inácio.
Mesmo durante o período de l541 até 1556, ano de sua morte, quando se instalou em Roma, continua sendo o peregrino que escolheu ser. A partir de seu pequeno quarto, continua estando presente em todos os pontos do mundo onde algo novo se prepara.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos que estavam sentados...” (Jo 6,11)
No domingo passado, o relato evangélico de Marcos nos deixou às portas da multiplicação dos pães. Em seu lugar, a liturgia insere, a partir deste domingo, todo o capítulo 6 do evangelho de João. É o mais longo e denso capítulo de todos os evangelhos, e que vai ocupar os próximos cinco domingos. Em seus 71 versículos, partindo da multiplicação dos pães, João elabora toda uma teologia do seguimento. No fundo trata-se de um processo de iniciação catequética, que na primitiva comunidade cristã durava vários anos e que, no final inspirava o catecúmeno a tomar uma decisão definitiva: o batismo.
João, o evangelista dos detalhes, começa trazendo um dado interessante: “Jesus foi para o outro lado do mar da Galileia”. Ao passar para a outra margem, Jesus desencadeia um movimento inspirador: não podemos nos limitar a ver as coisas a partir das margens conhecidas. É preciso deslocar-nos para a outra margem, para ver as coisas sob outra perspectiva, com um olhar mais amplo.
Jesus desvela o perigo de fechar-nos no próprio grupo, nas próprias ideias, doutrinas e considerar-nos como donos da verdade; somos sempre tentados a instalar-nos no conhecido e custa abrir-nos a outras percepções. É preciso fazer a travessia para deixar-nos interpelar pelo novo, colocar em questão nossa própria visão e compreensão da vida e enriquecer-nos com outros pontos de vista: a dos pobres e marginalizados. O Evangelho não é para acomodados ou para aqueles que tem medo de fazer a travessia; o Evangelho é para fazer estrada, viver em atitude de saída. Sair dos lugares conhecidos, rotineiros, estreitos e abrir-nos às surpresas dos lugares novos.
Outro dado instigante, apresentado no evangelho deste domingo: não basta ver a fome nas fotos, embora as fotos costumam “doer”. O importante é ver os rostos famintos. Jesus não é daqueles que, quando passa junto ao faminto, baixa os olhos para não ver. Jesus “levantou os olhos e viu uma grande multidão”. Segundo a versão de João, Jesus é o primeiro que pensa na fome daquela multidão que acudiu para escutá-lo. Ela precisa comer e é preciso fazer algo. Assim era Jesus. Vivia pensando nas necessidades básicas do ser humano.
Jesus é daqueles que, quando descobre que a multidão tem fome, busca respostas, busca soluções. “Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?” A solução de Felipe é aquela que a maioria tem às mãos: só vê a dificuldade e, inclusive, a impossibilidade de encontrar uma saída para a situação. Ele recorda que o grupo não tem dinheiro. Entre os discípulos, todos são pobres: não podem comprar pão para tantos.
Jesus sabe disso. Os que tem dinheiro não resolverão nunca o problema da fome no mundo. É preciso algo mais que dinheiro. A solução de Jesus é abrir outra possibilidade: Ele vai ajudá-los a vislumbrar um caminho diferente. Antes de mais nada, é necessário que ninguém monopolize o seu alimento para si mesmo, quando há outros que passam fome. Seus discípulos terão que aprender a pôr à disposição dos famintos o que têm, mesmo que seja só “cinco pães de cevada e dois peixes”.
Jesus ensina que a dinâmica do Reino é a arte de compartilhar. Talvez todo o dinheiro do mundo não seja suficiente para comprar o alimento necessário para todos os que passam fome... O problema não se soluciona comprando, o problema se soluciona compartilhando. O pão nas mãos de Jesus era pão para ser partido, repartido e compartilhado. O pão armazenado, como o maná no deserto, se corrompe, apodrece.
Também hoje Ele precisa de nossas mãos para multiplicar os grãos; precisa de nossas mãos para triturar esses grãos, amassar a farinha e fazer o pão. E precisa de nosso coração para que o pão seja repartido.
O pão sem coração é pão “monopolizado”. Pão indigesto, que engorda o egoísmo. O pão sem coração gera divisões e conflitos. Quantas guerras fraticidas provoca o pão sem coração! Deus precisa de nosso coração para que o pão leve o sinal da fraternidade, seja vitamina de solidariedade, alimento de comunhão, para que possamos comungar. No pão compartilhado, encontramos a luz da vida. “Se partes teu pão com o faminto... brilhará tua luz como a aurora” (Is. 58,7-8).
Uma refeição fraterna foi servida por Jesus a todos, graças ao gesto generoso de um menino, com seus cinco pães de cevada (pão dos pobres) e dois peixes.
Para Jesus, isso é suficiente. Esse menino, sem nome e desconhecido, vai tornar possível o que parece ser impossível. Sua disponibilidade para partilhar tudo o que tem é o caminho para alimentar aquela multidão. Jesus fará o resto. Toma em suas mãos os pães, dá graças a Deus e começa a “reparti-los” entre todos. Esta refeição compartilhada era, para os primeiros cristãos, um símbolo atrativo da comunidade nascida do movimento de Jesus para construir uma humanidade nova e fraterna. Esta cena, evocavalhes, ao mesmo tempo, a eucaristia, celebrada no dia do Senhor, para que todos pudessem se alimentar do espírito e da força de Jesus, o Pão vivo vindo de Deus.
Mas, os seguidores de Jesus nunca esqueceram o gesto despojado daquele menino. Se há fome no mundo, não é por escassez de alimentos, mas por falta de solidariedade. Há pão para todos, falta espírito generoso para partilhar. Temos deixado a marcha do mundo nas mãos do poder financeiro, nos dá medo partilhar o que temos, e as pessoas morrem de fome devido ao nosso egoísmo irracional.
A dinâmica do mundo neo-liberal é precisamente o dinheiro. Cremos que sem dinheiro nada se pode fazer e procuramos converter tudo em dinheiro, não só os recursos naturais, mas também os recursos humanos e os valores: o amor, a amizade, o serviço, a justiça, a fraternidade, a fé, etc. Neste mundo capitalista nada é dado gratuitamente, tudo tem seu preço, tudo é taxado e comercializado. Esquecemos que a vida acontece por pura gratuidade, por puro dom de Deus.
Jesus, nesta multiplicação dos pães e dos peixes, partiu daquilo que as pessoas tinham no momento. O milagre não foi tanto a multiplicação do alimento, mas o que aconteceu no interior de seus ouvintes: sentiram-se interpelados pela palavra de Jesus e, deixando de lado o egoísmo, cada um colocou o pouco que ainda tinham; maravilharam-se, depois, ao verem que o alimento se multiplicou e sobrou.
Compreenderam, então, que se o povo passava fome e necessidade, não era tanto pela situação de pobreza, mas pelo egoísmo dos homens e mulheres que, conformados com o que tinham, não lhes importava que os outros passassem necessidades. O gesto de compartilhar marcou profundamente a vida das primeiras comunidades que seguiram a Jesus. Compartilhar o pão se converteu num gesto para prolongar e manter a vida, um gesto pascal. Ao partir o pão descobriam a presença nova do Ressuscitado.
Nós seguidores(as) de Jesus, não devemos esquecer o gesto de partilhar é a chave para tornar realidade a fraternidade e para nos reconhecer como filhos e filhas do mesmo Pai. Quando se compartilha com gosto e com alegria, o alimento se multiplica e sobra.
Texto bíblico: Jo 6,1-15
Na oração: Nosso próprio interior é dotado de pães que devem ser acolhidos, abençoados, repartidos e distribuídos.
O alimento vem de nossa própria interioridade: poucos pães e peixes, mas o suficiente para saciar a fome de muitos. Há um menino interior que aponta para a presença dos pães e peixes e nos instiga a partilhar.
- A atitude de Jesus é a mais simples e humana que podemos imaginar. Mas, quem vai nos ensinar a compartilhar, se só sabemos comprar? Quem vai nos libertar de nossa indiferença frente àqueles de morrem de fome? Há algo que possa nos fazer mais humanos?
Será que algum dia acontecerá esse “milagre” da solidariedade real entre todos?
- Quais são seus pães e peixes do seu interior que devem ser apresentados e partilhados?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
"Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão” (Mc 6,34)
No evangelho deste domingo(16º dom do Tempo Comum), contemplamos Jesus olhando a realidade para além da superfície evidente de abandono em que vive o povo, até chegar a outra dimensão mais profunda onde descobre o rosto de um Pai compadecido, que sofre o abandono e a dor de seus filhos e filhas. Jesus olha e vê. Esse é o primeiro passo. Não desvia de seus olhos a realidade dura de seu povo. “Contemplava”, ou seja, olhava atentamente, uma e outra vez, pousava o olhar sobre a crosta ressecada e sem beleza provocada por golpes mal curados. E, nesse primeiro olhar, vê a miséria da multidão dispersa frente a ausência de verdadeiros pastores que cuidassem de suas ovelhas; vê as mordidas mal cicatrizadas dos lobos. Desse primeiro olhar nascem a compaixão, a misericórdia. Seu coração sensível deixa-se afetar pela miséria e abandono de seu povo.
Como em outras passagens do Evangelho, Jesus muda o plano do dia de descanso com seus discípulos para acolher a dor das pessoas que surge de repente em seu caminho; contempla-as, e em sua maneira de se fazer próximo está já encarnado, em gestos, palavras e olhares, o Reino que anuncia.
Deus é compassivo: esta é a base da atuação de Jesus. É precisamente esta compaixão de Deus aquela que move Jesus em direção das vítimas inocentes: as maltratadas pela vida ou pelas injustiças dos poderosos. É a compaixão de Deus que faz Jesus tão sensível ao sofrimento e à humilhação das pessoas. Sua paixão pelo Deus da compaixão se traduz em compaixão pelo ser humano.
A partir desta experiência de um Deus compassivo, Jesus vai introduzir um princípio de atuação, a compaixão. Chegou o momento de recuperar a compaixão como a herança decisiva que Jesus deixou à humanidade, a força que deve impregnar a marcha do mundo, o princípio de ação que deve mover a história para um futuro mais humano. É a compaixão, ativa e solidária, aquela que nos há de conduzir para esse mundo mais digno e ditoso querido por Deus para todos.
“Com-paixão”, palavra de etimologia latina, significa “padecer-com”, “sentir-com”, vibrar-com”, “afetar-se-com”... Seu equivalente, derivado do grego, seria a palavra “sim-patia”, termo ao qual se opõe diretamente o de “a-patia”, ausência de sentimentos, de vibração, de capacidade de proximidade... Muitos se referem à compaixão como uma paixão, outros como uma emoção forte, outros ainda, como um sentimento...; mas todos coincidem em um ponto: ela tem a ver com nossa comum humanidade.
A compaixão nos situa em uma espécie de irmandade entre seres radicalmente iguais em sua humanidade. É um dinamismo natural que expressa a bondade original do ser humano, a origem dos sentimentos altruístas, a sensibilidade solidária...
A compaixão é força que impulsiona à ação; não se trata de uma relação de cima para baixo, de quem, a partir de uma situação superior e distante, faz concessões a quem lhe é inferior. A compaixão é, antes de tudo, uma situação na qual prevalecem a igualdade, a dignidade básica e comum do ser humano; ela capacita a superar barreiras e condicionamentos que impedem uma vinculação fraterna entre as pessoas, para chegar a se colocar no lugar do outro e atuar por e para ele.
A compaixão é essa capacidade de sentir com o outro, particularmente o outro golpeado pelas circunstâncias da vida. É a valentia para compartilhar sua paixão, é participação imediata no seu sofrimento e buscar com ele a esperança, o alívio e a alegria. A compaixão desvela o sentimento profundo de amor para com aqueles que sofrem, buscando eficazmente aliviar sua situação, através de uma ação bondosa e serviçal.
Por isso o outro deixa de ser um estranho e se converte em próximo.
Mas a compaixão genuína nasce de uma fonte ainda mais profunda: não é só a experiência da própria vulnerabilidade, mas a consciência de uma identidade compartilhada. Não somos seres separados que, eventualmente, se ajudam uns aos outros, mas que constituímos uma Unidade, pela qual ninguém nos é indiferente. O bem dos outros é nosso bem; sua dor, nossa dor. “Sou humano, e nada do humano me é alheio” (escritor romano Lactancio). Por isso, podemos afirmar que o obstáculo comum para viver a compaixão é a identificação com o ego. Tal identificação apoia-se na crença fundamental de que somos seres separados. Dessa crença nascem, entre outras coisas, o individualismo, a egocentrismo, a indiferença, a intolerância...
O ego busca a comodidade, porque se rege pela lei do mínimo esforço, ou seja, pelo apego ao “agradável” e a aversão para o “desagradável”. Tende a evitar tudo aquilo que lhe implica mudança em suas rotinas ou expectativas e busca, acima de tudo, “sentir-se bem”. Dado que a necessidade do outro o implicaria em um compromisso, o ego tende a refugiar-se na indiferença, que não é outra coisa que a “cegueira” diante da realidade, porque, como diz o refrão popular “olhos que não veem, coração que não sente”.
Em definitiva, para poder viver a compaixão, precisamos ativar os recursos internos que potenciam nossa capacidade de sentir e nossa capacidade de amar e, simultaneamente, o empenho pessoal que nos permita libertar-nos da identificação com o ego, assumindo um compromisso solidário com quem mais sofre.
A compaixão esvazia toda pretensão de poder, pois ela projeta a pessoa para o outro, torna a pessoa sensível ao clamor e às necessidades do outro. A compaixão rompe a couraça do “eu” constituída pelo poder. A vida do outro é a razão única da autoridade.
Um dos sintomas que definem a nossa época é o fato de ser um tempo de “sem-compaixão”, um tempo no qual se faz muito difícil vibrar de verdade com os outros, alegrar-se com quem se alegra, caminhar juntos, com-viver, oferecendo-se mutuamente o ombro e dando-se as mãos. O outro, sua necessidade e sofrimento, será sempre a alavanca que gera no coração humano a compreensão e o exercício da autoridade como verdadeiro serviço.
Só a compaixão desloca cada um para o lugar do outro. Só a compaixão ilumina a realidade do sofrimento do outro. Só a compaixão move na direção da oferta do outro. A compaixão é a entrada do ser humano no mundo do humano; ela é o perfume do humano que invade a chão da vida, a sua fragilidade e sofrimento, e torna operativo o processo de humanização.
Texto bíblico: Mc 6,30-34
Na oração: A experiência de viver permanentemente sob o olhar compassivo de Deus nos permite descobrir que “o ser-com” e “o ser-para” é a autêntica condição humana que se desloca em direção ao outro, na arte de deixar e abrir lugar ao excluído, ao estranho, ao sobrante...
- Sua vivência do Seguimento de Jesus é marcada pelo “olhar compassivo e comprometido” ou por práticas piedosas alienadas, que não o(a) projetam em direção aos mais sofredores?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E Ele percorria os povoados da região, ensinando” (Mc 6,6)
“Adeptos(as) do Caminho”: assim eram conhecidos os(as) primeiros seguidores(as) de Jesus (At 9,2). Assim também quer Jesus que sejamos seguidores seus, sempre em caminho, em todos os lugares, em todas as casas de passagem, dispostos a parar e conversar, prontos ao encontro e à solidariedade com todos os que vão e vem pela vida.
Deveríamos voltar a recuperar o sentido desta expressão (“adeptos do Caminho”), pois ela nos convida a continuar percorrendo o caminho cotidiano da existência de uma maneira cristificada; e isto é algo fundamental para o encontro profundo com o outro, com as alegrias e os sofrimentos daqueles que se encontram às margens, com a novidade e a surpresa da senda da vida, com o desafio de prosseguir confiando na Boa Notícia de Jesus, que se manteve sempre em caminho pelas estradas da Palestina, para levantar os feridos, oprimidos e excluídos do sistema social e religioso.
Hoje como ontem, sair, caminhar, deslocar-se, ser itinerante... tem sentido, porque significa ir ao encontro do novo e do diferente. “Sair” é também uma experiência constitutiva da natureza humana porque tem um ar transformador. Cada um, ao longo do caminho, experimenta “novos modos” de habitar a existência, de olhar-se, pensar e relacionar-se. A itinerância permite ir mais além de si mesmo para encontrar outras maneiras de viver, para entrar em outras terras prometidas, para aproximar-se de outras pessoas, povos, culturas, onde encontrar o sentido de vida; sobretudo, possibilita ir ao encontro d’Aquele que nos transcende e sempre se revelou Peregrino.
A vida humana, neste sentido, é caminho, com um ponto de partida, uma meta, um trajeto e um horizonte. Caminho, palavra familiar e também humilde que evoca a existência de uma origem e um destino e, entre ambos, de uma aventura: a aventura de nosso caminhar, feita de desafios e extravios, e também de encontros e de momentos inesquecíveis que nos confortam ao longo do percurso.
Todos somos “peregrinos” neste “êxodo de nós mesmos para Deus”, no qual nos “adentramos em terra estranha, despojados dos suportes usuais da existência, desprovidos de todo amparo que não seja o da caridade...” (Tellechea Idógoras).
Quem caminha calcula seu trajeto, suas próprias forças, fadigas, planeja suas paradas. Por outra parte, decide correr o risco de sair de sua zona de conforto, para abrir-se à paisagem de novas relações, ao inesperado e inexplorado, a novos encontros e sensações, a confiar e percorrer a própria existência. O caminho é um processo de mudança pessoal, um lugar pedagógico de cura, de aprendizagens, abertas ao assombro, a um olhar dinamizador, à liberdade de pensamento e de ação. Ele nos move a dilatar o coração e interessar-nos pela situação das demais pessoas, a aproximarmos dos(as) samaritanos(as) que encontramos nas idas e vindas. Porque o caminho é a ocasião, o Kairós, o tempo pedagógico de um movimento que vivifica, deixa pegada e sabor de um outro sentir.
Podemos dizer que na Igreja são imprescindíveis os itinerantes, os peregrinos do Reino de Deus, como o próprio Jesus, que enviou discípulos e discípulas pelos caminhos e povos, sem nenhuma estrutura de apoio a não ser um coração disposto a não querer outra riqueza a não ser o fermento de nova humanidade. Com os itinerantes Jesus iniciou um movimento a serviço do Reino e Ele mesmo foi um itinerante. Não permaneceu numa casa, não se fechou em um lugar, não fundou uma instituição vinculada a um tipo de templo, sinagoga ou santuário, mas foi percorrendo, com um grupo de discípulos(as)/amigos(as), também itinerantes, os povoados e aldeias da Galileia, anunciando e tornando presente o Reino. Jesus os tirou de seus lugares estáveis, de suas simples redes da margem do mar, e os fez itinerantes através de outros e amplos caminhos e mares, para assim encontrar-se com os caminhantes, os perdidos e expulsos, e iniciar com eles a grande Marcha da Vida.
Jesus, o Homem dos Caminhos, chama para uma Vida nova. Chama na vida e para a vida e põe as pessoas em movimento, a caminho. A “pegada” que Ele deixa ao passar é sua própria Vida partilhada. Ele é o inspirador de toda itinerância; com sua peregrinação Ele abre possibilidade de outros caminhos.
Jesus, o homem que se definiu, tem um sonho, um projeto (Reino). E surge diante dos outros com força pessoal capaz de sacudi-los e colocá-los em movimento. Ele “passa” e sua presença os atrai arrancando-os da acomodação. Faz-se do chamado um caminho, quando se partilha a vida com quem chamou. Responder ao chamado feito por Jesus significa tornar esse chamado um caminho de entrega e de serviço.
Jesus nos apresenta uma causa muito nobre e, com seu chamado, rompe nosso estreito mundo e desperta em nós ricas possibilidades, reacende o que de mais nobre há em cada um e amplia nosso horizonte de vida. Para isso é preciso sair dos templos que pretendem fechar e aprisionar o Espírito, para dirigir-nos aos caminhos do mundo, para entrar em sintonia com o Coração e o Manancial da Vida, “em espírito e verdade”, tocando a carne concreta da Humanidade e da Mãe Terra.
“Chamado-resposta” implica, pois, um encontro comprometedor. O modo de ser de Jesus, transparente e livre, ativa nossa vida atrofiada e estreita e nos capacita a olhar amplos horizontes: seu povo, seu mundo dividido e excluído... A ressonância de seu chamado nos predispõe a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos permitam peregrinar e viver no contexto atual com amor, entusiasmo e criatividade. Jesus envia seus discípulos com o necessário para caminhar: cajado, sandálias e uma túnica. Não precisam de mais nada para serem testemunhas do essencial. Jesus quer vê-los livres e sem ataduras, sempre disponíveis, sem instalar-se no bem-estar, confiando na força do Evangelho.
“O discípulo-missionário é um des-centrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais. A posição do discípulo-missionário não é a de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias” (Papa Francisco)
Quê significa “fronteiras geográficas e existenciais”? É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer... A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
Texto bíblico: Mc. 6,7-13
Na oração:
- Nas nossas vidas acontece algo de verdadeiro e belo quando nos dispomos a buscar dentro de nós mesmos a razão da nossa existência.
- No “mapa espiritual” de nosso interior ainda existe uma “terra desconhecida”, que proporciona interesse à vida, suscita curiosidade, nos põe a caminho... Grandes surpresas interiores estão à nossa espera, e a capacidade de continuar procurando é que dá sentido ao esforço e vigor à vida.
- A quê você se sente chamado(a)? A quem se sente enviado(a)?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E ficaram escandalizados por causa dele” (Mc 6,3)
Marcos não tem relatos da infância de Jesus. Por isso, busca narrar alguns encontros dele com seu povo e sua família. No entanto, para aqueles que melhor O conheciam, Jesus era visto como um homem a mais, um galileu a mais do povo. Seus conterrâneos estavam tão seguros de que Ele era uma “pessoa normal”, que não podiam aceitar Seu modo original de ser. Eram seus companheiros de infância, tinham brincado juntos, trabalhado com Ele, sabiam perfeitamente quem Ele era. “Enquadraram-no” numa família, requisito indispensável, naquela época, para ser alguém. Até esse momento não haviam descoberto n’Ele nada fora do “normal”. Como não esperassem nada extraordinário, de onde Ele tirava tanta sabedoria?
O relato deste domingo é surpreendente. Jesus foi rejeitado precisamente pelos seus parentes e familiares. É a primeira vez que Ele experimenta uma rejeição coletiva, não dos dirigentes religiosos, mas de sua comunidade familiar, com quem convivera tanto tempo. Jesus se sente “desprezado”: os seus não o aceitam como portador da mensagem profética de Deus. Por isso, fecham-se em suas ideias preconcebidas a respeito do seu vizinho Jesus e resistem a abrir-se à novidade revolucionária de sua mensagem e ao mistério que se revela em sua pessoa.
Porque estavam acostumados a ouvir sempre o mesmo, rejeitam-no por ensinar “coisas novas”. Mas Jesus não se deixou domesticar e nem se acomodou às expectativas de seus conterrâneos.
Sua vida desconcertou a todos; seu modo de falar, seus critérios, seu compromisso em favor da vida, sua liberdade de espírito suscitou um espanto em todos. Sua presença despertou perguntas, dúvidas e até discussões. Quem será Ele? Será o Messias? Ou não será? Como explicar sua vida?
Porque, “sendo um entre tantos”, atuava, pensava e vivia um estilo único que o diferenciava de todos?
Sua postura de mestre e sua atuação desencadearam no seu povo uma crise, ou seja, romperam com a “normalidade doentia” das pessoas e se revelou imprevisível e desconcertante.
Na realidade, a reação dos familiares e parentes de Jesus é expressão da mesma reação que surge em todos nós quando, diante de alguém que se revela original, com um novo modo de ser e viver, manifestamos suspeitas, dúvidas, indiferença... O ser humano, em todos os tempos, tende a instalar-se, acomodando-se facilmente ao conhecido e se deixando levar pela rotina que evita sobressaltos; isso lhe confere uma certa sensação de segurança e tranquilidade: “para quê e por quê mudar...?”
E isso ocorre também com suas idéias, crenças, visões...
Habituado a ver a realidade a partir de uma determinada perspectiva, custa-lhe abrir-se a outras percepções, novas ou desconhecidas. Tem medo de ser diferente e reage com indiferença frente àqueles que são diferentes. E a indiferença mata.
Prefere a vulgaridade de ser como todo mundo à originalidade de ser diferente; prefere a monotonia de ser como todos e passar desapercebido na multidão, sem chamar a atenção por ser distinto a todos, sendo ao mesmo tempo, como todos.
Podemos, então, afirmar que o mais anti-evangélico será sempre uma pessoa, um grupo ou uma instituição instalada em suas ideias, posturas normóticas, preconceituosas, intolerantes...
Todos sabemos que isso constitui um mecanismo de defesa através da qual a pessoa busca proteger-se frente àquilo que poderia questioná-la ou trata de desqualificar a alguém diante de quem se sentiria inferi-or. Aqui aparece claro como a desqualificação do outro esconde medo ao diferente ou, simplesmente, ao novo, e algum sentimento oculto de inferioridade.
O filósofo Gabriel Marcel escreveu que “a indiferença é o grau mais baixo da liberdade” e o Pastor negro, Martin Luther king Jr, concordava com isso, ao dizer que se assustava mais com a indiferenças dos bons do que com as atitudes dos maus. De fato, ele tinha razão.
Se, por um lado ela é “a maneira mais polida de desprezar alguém” (Mario Quintana), a indiferença, em relação ao outro, é terreno fértil para alimentar o ego, levando-o à cobiça e à inveja.
Não admira o semelhante a não ser para desconstruir ou destruir a sua imagem.
De fato, a indiferença é como uma praga no jardim, vai se espalhando e contaminando e pode revelar, em sua raiz, uma insegurança estonteante em relação ao outro. Psicologicamente, diríamos que a indiferença é um mecanismo de defesa, é negação. Na negação do outro se escondem sentimentos de auto-destruição e um deles é a inveja. Quem cultiva a indiferença, facilmente sente-se alegre ao saber que o outro está numa pior. Nietzsche afirma que não saber voar é a qualidade dos indiferentes que, cada vez menos, enxergam aqueles voam alto e, se os enxergam, é a partir de uma ótica corrompida pela forma ofuscada de ver a vida. Jesus foi aquele que começou a voar alto e sua comunidade tentou cortar suas asas.
Também para nós hoje continua sendo difícil crer n’Aquele que simplesmente se revela “como um de nós”. Não é fácil reconhecer a passagem de Deus por nossa vida, especialmente quando essa passagem se reveste de “roupagem comum”; às vezes, gostaríamos que Deus se manifestasse de maneiras espetaculares, mas o enviado d’Ele, seu próprio Filho, come em nossas mesas, caminhas nossos passos e veste nossas roupas. Rejeitamos, quase que por instinto, a revelação de um Jesus muito humano e que não esteja de acordo com o que aprendemos desde pequenos. Acostumados a ouvir sempre o mesmo, se alguém diz algo diferente, mesmo que esteja mais de acordo com o Evangelho, rejeitamos de imediato.
Estamos seguros de que “tudo o que não corresponde ao sabido, ao esperado, não pode vir de Deus”. Em outras palavras, temos medo do Jesus humano, porque Ele coloca em questão nossa segurança, nosso estilo de vida e nossa vivência religiosa.
Entrar no caminho do seguimento de Jesus implica estar desapegado de todas as falsas imagens que podemos fazer sobre Ele. Sempre que nos fechamos em ideias fixas sobre Jesus, estamos nos preparando para o escândalo.
O Jesus do Evangelho nunca se apresenta duas vezes com o mesmo rosto. Se O buscarmos de verdade, descobri-Lo-emos sempre diferente e desconcertante. Se esperamos encontrar um “Jesus domesticado”, nos enganamos a nós mesmos, aceitando o ídolo que já nos é familiar. A consequência é uma vida cristã atrofiada e pesada, centrada na doutrina, na lei, na moral, e não no seguimento d’Aquele que, na “normalidade da vida”, deixou trans-parecer o extraordinário Amor do Pai.
Texto bíblico: Mc 6,1-6
Na oração: Marcos não narra este episódio em Nazaré para satisfazer a curiosidade de seus leitores, mas para advertir às comunidades cristãs que Jesus pode ser rejeitado justamente por aqueles que acreditam conhece-Lo melhor: aqueles que se fecham em suas ideias pré-concebidas, sem abrir-se à novidade de sua mensagem e nem ao mistério de sua pessoa.
- Esta era a preocupação de Paulo: “Não apagueis o Espírito, não desprezeis o dom de Profecia, mas examinai tudo e ficai só com o que é bom” (1Tes. 5,19-21). Nós cristãos deste tempo pós-moderno estamos precisando alimentar esta atitude. Estamos vivendo demasiado indiferentes frente à novidade revolucionária da mensagem de Jesus. Com o peso do legalismo, do moralismo, do ritualismo... estamos correndo o risco de apagar seu Espírito e desprezar sua Profecia.
- Rezar sua presença cristã no cotidiano da vida: faz diferença? Presença inspiradora e provocativa? Ou presença acomodada, sem deixar-se interpelar pelo modo original de ser e viver de Jesus?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Tu és Pedro, e sobre esta rocha edificarei a minha igreja...” (Mt 16,18)
Há indicações históricas de que já no séc. IV se celebrava uma festa em honra de S. Pedro e S. Paulo. Não é fácil descobrir as razões que levaram aqueles primeiros cristãos a unir em uma mesma celebração litúrgica duas figuras humanas tão diferentes. O mais provável é porque os dois foram martirizados em Roma durante a perseguição de Nero e quase ao mesmo tempo. Pode ser também porque suas sepulturas estivessem juntas durante muito tempo. É também provável que muito cedo se descobriu a complementariedade desses dois homens. De qualquer forma, são um claro exemplo de que personalidades tão diferentes, que inclusive discutiram duramente aspectos importantes da primitiva fé cristã, pudessem ser dois seguidores autênticos de Jesus.
Mas, desde sempre, Pedro e Paulo foram considerados como as colunas da Igreja. No caso de Paulo é tão evidente que alguns estudiosos chegaram a dizer que ele foi o verdadeiro fundador da Igreja, enquanto organização. Pedro é o personagem mais destacado em todo o NT. Mesmo assim, sabemos muito pouco de sua vida. Pelo contrário, Paulo é a pessoa melhor documentada. É o único apóstolo do qual podemos fazer uma biografia quase completa.
O texto do Evangelho da festa de hoje nos ajuda a reler nossa vida. Ali afirma-se nossa identidade: temos um nome, que carrega algo sólido, firme, resistente, que não se desfaz com as adversidades existenciais (crises, fracassos...). A identidade de uma pessoa é dada por aquilo que é consistente, seguro... no seu interior e não pelo nome em si.
“Tu és Pedro e sobre esta rocha edificarei minha Igreja..."
E sobre ela, ao longo dos séculos, se assentou a fé dos cristãos de todos os tempos. Mas a Pedra da qual Cristo fala não é Pedro, pois a pedra da sua presunção, de sua segurança, de seu orgulho se transformou em cacos com suas negações na noite da Paixão. Mais tarde, Pedro, estará em condição de entender que a Pedra é unicamente Jesus. Somente Ele oferece toda a segurança. Pedro nos alenta na fé: confirma os seus irmãos, mas a fé é em Jesus Cristo.
O fundamento da Igreja é Jesus Cristo. Quem é decisivo na Igreja é Ele. O papa, os bispos, a clero tem sua missão e sua importância, mas a pedra angular é o Senhor. Igualmente decisivo é o Reino de Deus, não a Igreja. A Igreja é aquela que trabalha em favor do Reino de Deus, mas o fundamento último é o Reino de Deus. Um Reino de justiça, de amor e de paz.
Mateus, no evangelho deste domingo, nos situa diante de um jogo de palavras entre “petros” (pedregulho, pedra sem estabilidade e que se esfarela) e “petra” (rocha firme, consistente). Simão é, por si mesmo, um “petros”, mas através de sua confissão messiânica, acolhendo a revelação de Deus e confessando Jesus como o Cristo, Filho de Deus vivo, alargou sua interioridade para que o mesmo Jesus ali se fizesse “petra” (Rocha – fundamento). Pedro chega ao grau máximo de identificação com Jesus, que mais tarde Paulo afirmará: “Não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim”. Pedro é proclamado bem-aventurado porque na sua fragilidade (petros) Jesus se faz presença solidificada (petra). A Igreja se fundamenta na misericórdia de Deus, não na força dos homens. A Igreja é a comunidade dos pecadores perdoados, não a comunidade dos perfeitos.
A primeira coisa que estes dois personagens, Pedro e Paulo, nos ensinam é que não é nada fácil aceitar a mensagem de Jesus e segui-lo. Precisamente, os dois foram os mais resistentes, cada um à sua maneira, na hora de dar o passo e aceitar o verdadeiro Jesus. Tanto Pedro como Paulo eram pessoas muito religiosas e que se encontravam muito confortáveis dentro do judaísmo. O encontro com Jesus desbaratou essa segurança e os fez entrar na dinâmica de uma autêntica relação com o Mestre galileu. Pedro, com toda espontaneidade, não perde ocasião de manifestar sua oposição àquilo que o Mestre dizia. Paulo foi um fanático na defesa de sua religião. Por defender o judaísmo se converteu em perseguidor de todos aqueles que seguiam a maior heresia surgida dentro do judaísmo: “os seguidores do caminho”.
Mais ainda: pode-se perceber claramente nos evangelhos os obstáculos que eles tiveram de superar para passar do conhecimento de Jesus à vivência de tudo o que Ele pregou. Seria muito interessante descobrir que somente a partir da vivência pessoal alguém pode se lançar à missão de comunicar uma fé. Isto explica como um punhado de pessoas, em pouco tempo, foram capazes de transformar o mundo até então conhecido.
Essa dificuldade que Pedro e Paulo tiveram para seguir Jesus, pode ser de muita ajuda para nós hoje. Pedro, antes da experiência pascal, seguia a um Jesus que se encaixava em seus ideais e interesses de bom judeu. Paulo, antes da queda a caminho de Damasco, servia ao Deus do AT que estava a anos-luz do Deus de Jesus.
Não serve para nada seguir a Jesus sem conhecê-Lo a fundo, identificando-nos com seu modo de ser e viver. Só depois de termos superado os nossos pré-juízos, estaremos preparados para despertar nos outros o desejo de viver o mesmo seguimento. Todos temos de passar pelo doloroso processo de maturação na fé, pelo qual passaram Pedro e Paulo. No caso deles, a dificuldade se agravou porque os dois tiveram que dar o salto de uma religião centrada na Lei a uma experiência interior de seguimento, o que não é em nenhum caso, algo cômodo.
Da aprendizagem de uma doutrina à vivência do seguimento de uma Pessoa, há um grande percurso que todos devemos fazer. Sem essa passagem a fé se converte em pura teoria, que torna estéril nossa vida e nem desperta sedução nos outros. Talvez esteja aqui a causa de muitos fracassos no caminho da evangelização. Estamos mais preocupados em “passar” uma doutrina, uma moral, uma religião... e não deixamos transparecer em nossas vidas que somos seguidores d’Aquele que é Rocha em nosso interior.
Na origem do discipulado e da igreja está sempre presente a consciência de termos sido chamados. A vontade e a decisão de cada um são imprescindíveis, mas são despertadas pela chamado e testemunho de outros, pelo chamado de Jesus e, em último termo, pelo chamado do próprio Deus. Isso é o que significa originariamente o termo “igreja” (ekklesia): “comunidade de chamados”. No chamado de Jesus, Pedro e Paulo reconheceram o chamado de seu próprio interior, o chamado do povo sofredor, o chamado dos tempos difíceis e, em última instância, o chamado do Deus grande e próximo que lhes convidava à identificação com seu Filho e ao compromisso com o Reino.
Texto bíblico: Mt 16,13-19
Na oração: É o Espírito que, guiando-nos pelo caminho da escuta de nosso “eu interior”, nos faz sentir originais, únicos, sagrados...
A oração é a chave interior que abre caminho para chegarmos até o “eu original”, aquele lugar sólido, a rocha sobre a qual construímos nossa vida. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde mergulhamos no silêncio, à escuta de todo o nosso ser.
Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa sobre a qual encontramos segurança para caminhar na vida, superando as dificuldades e as inevitáveis resistências na vivência do Reino.
- Dê nomes aos seus recursos internos, valores e capacidades, sonhos e desejos... que dão solidez à sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“João é o seu nome” (Lc. 1,63)
A natividade de João Batista assemelha-se às festas da infância de Jesus. O espírito da festa é tipicamente de Lucas, ou seja, ela é inspirada e sustentada pela manifestação da graça e da bondade de Deus.
O nascimento de João se dá num clima de intensa alegria. Isabel se alegra e com ela os vizinhos. É a alegria de haver nascido um menino de uma mãe que era estéril e de idade avançada. Esta alegria do coração se manifesta no louvor: o Senhor tem favorecido com grande misericórdia. O reconhecimento agradecido dos grandes feitos do Senhor proporciona alegria.
A alegria é um sentimento central na experiência cristã. Nisto consiste a verdadeira alegria: sentir que um grande mistério, o mistério do amor de Deus, nos visita e plenifica nossa existência pessoal e comunitária. Alegria que brota do interior e é um dom do Espírito. “O fruto do Espírito é: amor, alegria” (Gal 5,22). Este dom nos faz sentir como filhos(as) de Deus, capazes de viver e saborear sua bondade e misericórdia.
O nascimento de João Batista é cheio de mistério, porque ali todos descobrem o agir misterioso de Deus. É o mistério da vida. É o mistério de Deus que dá a vida como presente; é o mistério de um ventre seco que se torna fértil; o mistério do novo em um ventre que carrega a “novidade”. Dois anciãos, Isabel e Zacarias: uma grávida, o outro mudo. No entanto, uma vida que cresce. “Os vizinhos e parentes ouviram dizer...” Não tinham percebido até o nascimento? Alguém afirmou que, de vergonha, Isabel se retirou a um sítio vizinho para esconder o mistério de Deus em seu ventre. Pode-se ocultar a gravidez; não se pode ocultar o filho. Para eles, é o filho esperado no silêncio que faz amadurecer a fé. Para os vizinhos e parentes, o filho da surpresa. E todos o veem “como o Senhor tinha sido misericordioso para com Isabel, e alegraram-se com ela”. E todos se perguntavam: “O que virá a ser este menino?”
A natividade de João é uma visibilização do mistério da misericórdia de Deus; é o mistério da missão que Deus tinha para ele. Não seria sacerdote como seu pai; seria um mensageiro que prepara caminhos.
João Batista é a primeira ruptura com o passado. Já não se chamará Zacarias, porque não será como seu pai. Chamar-se-á João porque anunciará o novo que está ali mesmo, a seu lado, no ventre virginal de Maria.
Não será o “homem do templo e do culto”, mas o “homem do deserto e do anúncio”.
Não será o “homem que recorda o passado”; será o “homem que anuncia a proximidade do novo”.
Não será o “homem que anuncia a esperança”; será o “homem que anuncia que a esperança já é realidade”.
Não será o “homem da lei”; será o “homem que abre caminhos onde tudo parece estar bloqueado.
Por isso, o tema central do Evangelho deste domingo é este: “João é seu nome”. Esta frase é uma mensagem da gratuidade e bondade de Deus. João é um nome muito especial. Nele são guardadas muitas e importantes lembranças. De fato, o nome “Yohanan” significa “Deus se mostrou misericordioso”.
João é um dom gratuito de Deus, pois está além dos cálculos humanos; pertence plenamente a Deus. Nem sempre Deus elege o tradicional, o velho costume, o caminho trilhado. Agora nasce um tempo novo: o Espírito vai por caminhos novos, que nem sempre são fáceis de conhecer. É Deus quem toma a iniciativa e chama pelo nome. O “nome” encerra toda a verdade da pessoa e, ao mesmo tempo, todo o mistério da sua relação direta com Deus.
Na Bíblia, o nome é algo dinâmico, é um programa de vida. A troca de nome implica uma missão que deve ser realizada pela pessoa (Gen, 17,5; Jo. 1,42). Um nome novo: uma aventura que começa; uma história a ser construída. O nome é ponto de partida e de chegada na relação com Deus.
Todo nascimento é um mistério. Por isso, cada um de nós é fruto do mistério da misericórdia de Deus. E todos somos o mistério do anúncio do novo. Não somos repetição de ninguém. Somos únicos. E somos preparadores dos caminhos de Deus. Nosso nome, escrito na palma da mão de Deus, é uma missão a realizar.
É preciso crescer na consciência de que o próprio nome tem uma história e manifesta uma identidade única, irrepetível, original. O nome próprio está relacionado com nossa realidade pessoal, responsável, criativa e livre. Essa identidade vai sendo elaborada ao longo de nossa história pessoal, com os avanços e recuos, vitórias e fracassos, as alegrias e os sofrimentos... que vão pontilhando nossa existência e formando esse ser único que somos nós.
Na linguagem bíblica, “nome” significa aquilo que torna a pessoa única. O nome é um símbolo que exprime a individualidade de cada um. No nome está toda a pessoa. O nome é a pessoa. Interessar-se por conhecer o nome é interessar-se pela pessoa; é o primeiro passo para o encontro pessoal; é pelo nome que nos identificamos.
Os orientais, por exemplo, não dizem o seu nome a qualquer um. Só aos amigos, aos seus mais íntimos.
Conhecer o nome de alguém, para eles, é conhecer a pessoa toda. Fazer saber o seu nome é prova de amizade. Interessar-se por conhecer o nome é interessar-se pela pessoa.
O nome é referência reveladora da verdade da pessoa. É a porta de entrada de cada história particular.
Deus sabe o nosso nome: “Eu te gravei na palma de minha mão” (Is. 49,16). Deus nunca pode olhar Sua mão sem ver o nosso nome. E o nosso nome quer dizer: “EU mesmo”. Deus garante a nossa identidade: podemos ser nós mesmos. Ter recebido um nome de Deus significa tomar um lugar na história, uma missão a cumprir. Nosso nome secreto Deus o conhece.
Cada um de nós tem um nome, que é próprio, não comum. É de uma pessoa. Ele expressa o nosso ser, indica uma missão a realizar, uma vocação a viver, um apelo a responder.. Somos seres chamados. É isso que significa ter um nome.
Nós realizaremos nossa vocação, sendo nós mesmos, com nosso modo de ser, nossas possibilidades, nossa originalidade. Ninguém realiza-la-á por nós. Ser fiel ao nome é ser fiel à própria vocação. A dinâmica da relação com Deus passa através da nossa história, das nossas alegrias, dos nossos sofri-mentos, e das nossas perguntas: “Quem sou eu?”, “O que quereis de mim?”.
Não posso permanecer indiferente. É preciso ter coragem de perguntar: “Quem me chama?” e “a quê me chama?”; pedir ajuda para conseguir entender, reconhecer, descobrir o próprio nome. Deus, no momento em que me chama pelo nome, me revela a mim mesmo. Assim, meu nome se torna a minha própria vida, o meu patrimônio existencial, a minha realidade.
Texto bíblico: Lc. 1,57-66
- Tome consciência de que também você tem um no-me, é pessoa única e com características muito parti-culares. Você tem uma dignidade imensa: é imagem e semelhança de Deus.
- Para realizar o seu nome, você deve ser você mesmo. Você tem a sua própria vida, o seu modo próprio e original de ser.
- Ser “João” é ser graça amorosa de Deus na vida e na história de tantas pessoas.
- Rezar o sentido do seu nome.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O Reino de Deus é como quando alguém espalha a semente na terra;
... e a semente vai germinando e crescendo, mas ele não sabe como isso acontece” (Mc 4,26-27)
Todas as religiões e culturas se servem de relatos para revelar a verdade e fazer chegar até nós a sabedoria de nossos antepassados. A revelação mais antiga e universal é que a Terra e todas as suas criaturas, assim como o ar, o solo, a pedra e a água são sagrados, e que esta verdade deve refletir-se em nossas vidas.
Como cristãos, seguir Jesus Cristo hoje é adquirir conhecimento e experiência consciente desta história oculta e sagrada. Com efeito, a Terra acolheu Jesus como acolhe toda pessoa que vem a este mundo.
É a casa verdadeira, a mais básica. Jesus sentiu a companhia desta Terra que é irmã e mãe.
Os Evangelhos destacam de muitas maneiras a boa relação que Ele teve com a Terra. Desfrutou dos caminhos andados, dos campos semeados, do vento que se assemelha ao Espírito, das árvores que servirão como parábolas do Reino, das vinhas que serão símbolo de sua oferta em novidade...
Jesus experimentou a dureza da Terra, sua aspereza no deserto e o calor de seu abrigo à hora da morte; pisou o chão de terra batida, machucada, rasgada... Teve uma mentalidade inclusiva porque, no fundo, entendeu que tudo estava relacionado e que as coisas e as pessoas espreitam o mesmo horizonte.
O ritmo da natureza inspirou Jesus para anunciar que o Reino também tem seu ritmo e seu momento. Não o acelera a impaciência de uns nem o paralisa o fracasso de outros. Não somos nós que levamos o Reino em nossas mãos, mas é nossa missão ajudar a desvelá-lo (tirar o véu) na vida humana como o dinamismo mais profundo da existência. O Reino alcança a todos, ninguém fica excluído; ele não está fechado dentro dos limites de uma igreja ou das religiões.
Ninguém tem a exclusividade do Reino, e por isso mesmo devemos viver constantemente despertos para descobri-lo e acolhê-lo ali onde se faz presente, seja onde for.
Precisamos cultivar processos. O Reino tem seu tempo, o tempo de Deus, que não coincide necessária-mente com os nossos tempos, projetos e ansiedades. Saber distender-se nos processos, não querer acelerá-los pela ansiedade que nos chega de uma cultura estressante, nem nos paralisar diante de um ambiente de desencanto, é uma grande sabedoria. Atravessamos momentos favoráveis e luminosos como o dia, e momentos desfavoráveis como a noite, com sua obscuridade e seu desconcerto. Não podemos nos apoderar dos momentos luminosos, nem nos perder nas trevas obscuras e ameaçantes: “o agricultor vai dormir e acorda, noite e dia, e a semente vai germinando e crescendo...”
Por isso, a melhor imagem que Jesus encontrou para expressar essa “presença misteriosa” do Reino é a da semente. Na semente acha-se presente uma grande força de crescimento. A força da vida, contida na semente, envelhecerá e se apodrecerá se não houver quem confie nela, se não houver quem arrisque sua terra, seu tempo e seu trabalho. Quando a semente é enterrada na terra, ela já conhece o seu caminho; escondida ali, debaixo da terra, envolvida pelo absoluto silêncio, a semente germina e vai crescendo.
Mesmo à margem de todo e qualquer esforço que possa ser feito pelo agricultor, “a terra por si mesma produz fruto”, ultrapassando etapas precisas e bem definidas, que de modo algum podem ser modifica-das, apressadas ou suprimidas. O importante é dar frutos no seu devido tempo.
“As sementes armazenam possibilidades misteriosas e surpreendentes aos nossos olhos. Cada semente é uma fonte, um desfecho, uma pausa da eternidade. Ser semente é possuir todas as idades, todos os percursos, todas as histórias. É preciso prezar a coragem das sementes. Apodrecer para inaugurar o fruto. Cada semente, como poesia, é um bilhete para viagens” (Campos Queiroz).
“O Reino é verde”: as parábolas do Reino nos animam a “descer” junto à natureza com um sentimento e uma visão de parentesco; todos procedemos das mesmas entranhas amorosas do Criador. As parábolas nos ajudam a desenvolver uma relação de proximidade e um conhecimento espiritual da vida, para aproximarmos da terra com espírito de gratidão, frente a uma visão de domínio e exploração; elas também nos animam a despertar em nós um espírito de solidariedade para compartilhar os bens da terra com os pobres e os marginalizados. Este equilíbrio conserva a comunidade de vida para o futuro e promove uma esperança cósmica.
A relação com a terra, pegá-la entre as mãos, espremê-la, semear e plantar, regar e ver crescer, é um exercício espiritual para o ser humano; conhecer a terra e o entorno é conhecer o que torna possível a vida. A vida depende de uma fina camada de 15 cm ao redor da terra: por que maltratá-la, desconhecê-la, ignorá-la, desprezá-la? Dizem os cientistas que em um punhado de terra há mais biodiversidade que toda aquela que até o momento conhecemos no resto do Universo. E este milagre não nos diz nada?
Sabemos que o “novo” sempre nasce pequeno, frágil, oculto e a partir de baixo. As sementes, muito pequenas, são colocadas na terra e desaparecem. No entanto, contém uma vitalidade oculta que as leva a germinar. O fundamental não é seu tamanho senão a enorme força transformadora que contém e sua grande fecundidade.
Submergidas na terra, as sementes vivem um lento processo até poderem liberar uma vida nova e abun-dante. Mas para que isto aconteça sofrem uma certa morte: para gerar vida, entregam sua vida.
Não esqueçamos que somos terra e em terra nos converteremos.
Somos terra de Deus, alimentada pela seiva de seu Espírito. Sobre esta terra, Deus plantou a semente de seu Reino para que germine, cresça e dê frutos. O que essa semente carrega em seu interior é um novo modo de viver e conviver, em sintonia com todas as expressões de vida.
Como as sementes na terra, somos movidos a atuar a partir de dentro, transformando a realidade e mobilizando os meios mais simples, mas com criatividade e audácia.
Viver a experiência do Reino significa, portanto, “mergulhar os pés na terra” (Lev. 25,1-24). É na obscu-ridade da terra que a planta vai buscar a força que a manterá viva, que lhe dará condição de expandir sua copa em direção à imensidão do céu. As raízes mergulham na terra de modo profundo, silencioso e lento.
Na experiência espiritual nos é pedido que mergulhemos no “chão da vida”, como as raízes na obscuri-dade, na presença do silêncio. O movimento de enterrar profundamente as raízes possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio.
Sentir que somos Terra faz-nos ter os pés no chão da vida e viver em comunhão com a comunidade das criaturas. Faz-se necessário lançar raízes no mais profundo do humano e despertar todas as energias criativas, todas as grandes motivações adormecidas, toda bondade aí presente, toda decisão de assumir-se como cooperador e artífice de um novo tempo.
Sentir-se Terra é perceber-se dentro de uma complexa comunidade de seres vivos. É a diversidade incontável de seres vivos, animais, pássaros e peixes, nossos companheiros dentro da unidade sagrada da vida. A Terra produz, para todos, condições de subsistência, de evolução e de alimentação, no solo, no subsolo e no ar. Terra, nossa “casa comum”!
Sentir-se Terra é mergulhar na comunidade terrenal, todos filhos e filhas da grande e gene-rosa Mãe. A hora é de somar em prol da vida e no cuidado de todos os seres da Terra.
É para Deus que tudo converge. É Ele que tudo sustenta. É Ele que, no Amor, tudo atrai.
Texto bíblico: Mc 4,26-34
Na oração: Mobilize seus sentidos para ver, ouvir, tocar, sentir e saborear a beleza de nossa terra.
Considere sua conexão com esta beleza e como ela lhe faz perceber o amor da Trindade ao cosmos em constante evolução.
Considere o novo sentimento de maravilha que cresce em seu coração e como dá novo sentido à sua missão de ser colaborador(a) no grande jardim do Criador.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Os mestres da lei, que tinham vindo de Jerusalém, diziam que Ele estava possuído por Belzebu…”
Desconcertante: exatamente assim foi Jesus; e sabemos disso através dos evangelhos. Jesus foi um homem que viveu e falou de tal maneira que se revelou desconcertante para aqueles que o conheceram e se aproximaram dele. Jesus desconcertou sua família que o considerava louco; desconcertou àqueles que o acusavam de “blasfemo”, de “Belzebu”, de “escandaloso”. Jesus desconcertou todo mundo, até o final de sua vida, que foi o mais desconcertante de tudo. Desconcertou porque assumiu uma postura diferente frente ao contexto social, religioso e político no qual viveu. Jesus não se “encaixou” em nenhum grupo e deixou transparecer sua liberdade frente às leis, às tradições de seu povo, ao templo, aos poderes... Por isso foi incompreendido e rejeitado.
Numa sociedade corrupta e deformada, uma pessoa que se ajusta ao modo de proceder e de pensar dos intolerantes e preconceituosos, não desconcerta ninguém; é uma pessoa “formatada” que passa pela vida sem deixar “marcas”, sem saber “por quê e para quê vive”, deixando tudo como está.
Jesus viveu deslocamentos contínuos; fez-se presente em diversos lugares; teve contatos com outras culturas, raças, expressões religiosas… Tudo isso o enriqueceu, tornando-o diferente, aberto; sua vida se ampliou, sua mente se abriu, seu coração se expandiu… Nova visão, nova experiência… Seu movimento de vida foi desencadeado nas casas, ao longo dos seus percursos; Jesus desejou que também sua casa entrasse nesse movimento em favor da vida. Mas não foi acolhido pelos seus parentes, pois não se “encaixou” mais nos esquemas da família, da religião, da sua comunidade… Seus parentes em Nazaré continuaram vivendo uma estreiteza de vida; Jesus não voltou mais o mesmo, saiu da “normalidade” de vida própria de Nazaré. Voltou enriquecido, expansivo, muito maior, mas não foi compreendido.
O deslocamento de Jesus pelos territórios vizinhos da Galileia revela-se como um apelo e uma ocasião privilegiada para pôr em questão nosso confinamento religioso, nossas posturas fechadas, nossas visões preconceituosas... e abrir-nos à diversidade e ao diferente. Sem alteridade regenerante caímos no confinamento de uma pureza de ortodoxia, de um fascismo enrustido, de um legalismo estéril, de uma doutrina impositiva. Confinamento que nos torna cegos aos valores e riquezas que vem de outras expressões humanas, sociais e religiosas.
Vivemos contínuos deslocamentos geográficos, sociais, culturais, religiosos… Tudo isso nos enriquece. Com esta riqueza voltamos às nossas Nazarés, para ampliá-las, expandi-las. Não se trata de impor, mas de propor; compartilhar as ricas experiências adquiridas. Não é fácil ser diferente dos outros; não é fácil assumir uma vida alternativa frente àqueles que estão petrificados em suas posturas e ideias; não é fácil dizer “não” onde todos, como cordeiros, dizem “sim”; não é fácil fazer o que ninguém quer fazer.
Toda autêntica vida humana é vida com os outros, é convivência, é encontro... Assim, o princípio de alteridade está fundado no princípio de identidade; a diversidade reforça a identidade pessoal: podemos nos compreender apesar de sermos diferentes, porque todos somos seres criados e agraciados por Deus, chamados a ser habitados por uma verdade que está para além de uma religião e uma cultura específica.
Somos humanos, seres em caminho, buscadores de sentido, buscadores da verdade e habitados pelo mesmo Deus. E viver a “cultura do encontro” (Papa Francisco) implica respeitar e se alegrar com a diversidade, considerando-a riqueza. Saber conviver com as diferenças é sinal de maturidade. É maravilhoso que haja raças, costumes, cultura, gênero, religiões, tradições, línguas, formas de pensar... diferentes. Assim, ser seguidores(as) de Jesus nos converte em seres abertos, acolhedores da diferença.
As diferenças mobilizam a energia e a fertilidade criadora; elas provocam intercâmbio entre as pessoas. A diversidade é uma forma de aproximação entre os seres humanos. A diferença do “outro” deve ser motivo para o encontro e para o enriquecimento mútuo. A diferença é rebelde, quebra o uniformismo, convulsiona a quietude, sacode a rotina. É a diferença que gera alteridade. O outro é diversificado e não repetitivo. Massificar as pessoas é uma forma de silenciá-las e dominá-las. Perverter a diferença é uma atitude que degrada a pessoa. Diferença é originalidade, é o inédito, é o que excede a medida comum, é o que distingue uma personalidade de outra. A humanidade é profundamente diversificada em seus talentos, valores originais e em sua vitalidade; seu tesouro está precisamente em sua diversidade criadora.
Daí a importância e a urgência de aprender a valorizar o que é próprio e também o que é diferente, esforçando-se para não transformar as diferenças normais (geográficas, culturais, de raça, de gênero...) em desigualdades. É preciso educar e preservar as diferenças humanas.
Deveríamos pensar mais sobre a importância das diferenças que nos humanizam. Deveríamos admirar as diferenças pessoais e grupais, e não lamentá-las. É necessário evitar tudo o que reprime as diferenças e desenvolver a verdadeira coexistência pessoal, social, científica, religiosa, ética. Deveríamos remover abusos e vícios que anulam a diferenças. Perverter a diferença é uma atitude que degrada a pessoa. Valorizar a diferença e os diferentes implica tratar com cortesia, saber interagir, trabalhar juntos, respeitar...
Segundo o modo de ser e proceder de Jesus, o que mais nos desumaniza é viver com um “coração fechado” e endurecido, um “coração de pedra”, incapaz de amar e de abrir-se ao novo. Quem vive “fechado em si mesmo”, não pode acolher o Espírito de Deus, não pode deixar-se guiar pelo Espírito de Jesus, pois acredita que quem é diferente “está possuído por um espírito mau” (3,30).
Quando nosso coração está “fechado”, em nossa vida não há mais compaixão e passamos a viver indiferentes à violência e à injustiça que destroem as relações entre as pessoas. Passamos a viver separados da vida, desconectados. Uma fronteira invisível nos separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia. Quem assume atitudes de indiferença tem medo do diferente, e a vida vai se atrofiando...
Num coração petrificado o Espírito não tem liberdade de atuar; dessa resistência à ação do Espírito brotam as doentias divisões internas. São os dinamismos “diabólicos” (aquilo que divide) que se instalam em nosso interior, atrofiam nossas forças criativas e nos distanciam da comunhão com tudo e com todos.
Não podemos permanecer trancados em redutos que rejeitam as diferenças existenciais. Daí a importância de aprender a ver o melhor de cada pessoa e de cada povo, superando as visões estreitas e fundamentalistas e todo tipo de racismo, xenofobia, desprezo, mixofobia, preconceito, dominação...
A “Ruah de Deus” nos move a construir uma Comunidade fraterna, capaz de abrir suas portas e derrubar seus muros, para que ninguém se sinta excluído. É missão específica da Ruah integrar as diferenças numa grande comunhão universal. Não podemos matar a presença e a ação original do Espírito.
Texto bíblico: Mc 3,20-35
Na oração: “E olhando para os que estavam sentados ao seu redor…” Estar em círculo supõe uma postura de acolhida e comunhão com os outros, respeitando sua diversidade. Tal atitude quebra toda pretensão de imposição, de poder, de violência... Isso só é possível quando Jesus se faz o centro.
Trata-se de uma imagem espacial do discipulado que pode nos ajudar a entender melhor nossas posturas vitais, tanto no nível pessoal como no comunitário ou na missão.
- “Estar em círculo” também quer dizer que estamos vinculados a outros numa postura corporal que tem Jesus como centro. A imagem do círculo é a que melhor expressa o modo de seguir Jesus e não a “hierarquia” que dá margem ao carreirismo e à busca de poder.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...os fariseus, com os herodianos, tramaram, contra Jesus, a maneira como haveriam de matá-lo”
No Evangelho deste domingo (9º dom TC), Jesus desmascara uma patologia do espírito, uma enfermidade da alma, uma espécie de tumor social: trata-se da intransigência, que se expressa nas atitudes de preconceito, intolerância, fanatismo, racismo, indiferença, legalismo, moralismo..., matando na raiz toda possibilidade de encontros humanizadores, sobretudo com os “diferentes”.
O intransigente, precisamente porque é vazio de humanismo, deixa transparecer uma visão hermética e fechada da realidade. Esta visão atrofiada, a partir do lugar e da posição social ou religiosa que ocupam, os leva a um enfrentamento com outros por razões ideológicas, políticas ou religiosas, em lugar de compreender a perspectiva do outro e as verdades latentes que há em todo ser humano.
O roteiro que rege todo intransigente é sumamente simples: consciente ou inconscientemente, divide a humanidade em dois grupos que considera radicalmente opostos. De uma parte, estamos “nós”, que nos encontramos na verdade e somos merecedores de atenção e cuidado, de respeito e inclusive admiração; de outra, se encontram “os outros”, aqueles que estão forçosamente equivocados porque pertencem a um grupo que pensa, sente, age... de maneira diferente. Só resta eliminá-los, ou afastá-los da presença para que não “contaminem” o ambiente com ideias e atitudes subversivas. Em outras palavras, o que transparece é isto: “nós” temos a verdade, “eles” estão no erro.
Sofrendo de uma falta total de compaixão ou empatia, o intransigente pode ser profundamente cruel para com os outros; com a lei na mão e no coração, ele alimenta um tribunal interior que julga, emite pareceres, condena..., acreditando ser fiel a Deus. Os obsessivos e os intransigentes sempre criam problemas; e os intransigentes religiosos mais ainda, porque fundamentam sua intransigência em Deus.
A intransigência edifica uma barreira instransponível entre o “nós” e os “outros”. Ao negar sua condição criatural de com-viver junto aos diferentes, seus semelhantes, o intransigente torna-se uma ilha sem vida e triste. Sua intransigência é sintoma de desumanização. E essa desumanização afeta e é prejudicial a todos. Todo mundo perde. Aos poucos, as pessoas se recolhem em seus medos, em suas inseguranças e começam a acreditar que os diferentes são seus inimigos. Da intransigência passa aos sentimentos hostis, aos discursos fascistas, às práticas fundamentalistas, à segregação...
O princípio da diversidade nos diz que no outro há verdade e que esta verdade deve ser reconhecida e entendida. Considerado sob o enfoque do ouvir sem preconceitos, do conhecer a diferença e do amar a verdade presente no outro, a “diversidade reconciliadora” supõe o diálogo fundado no amor.
Para que haja amor é preciso que haja diferenciação. No amor respeitamos a diferença do outro, amamos a diferença do outro. Diferenciar não é separar; a unidade não é a uniformidade. A diferença não dispersa nem divide, mas provoca convergência crítica e favorece a unificação na diversidade. Ao tornarem absoluta uma verdade, os intransigentes se condenam à intolerância e passam a não reconhecer e a respeitar a verdade e o bem presentes no outro. Não suportam a coexistência das diferenças, a pluralidade de opiniões e posições, crenças e ideias. Daí surgem o conservadorismo radical, o medo à mudança, a violência diante da crítica, a suspeita, a vigilância, o controle autoritário...
A intolerância é uma expressão de atrofia espiritual que tem graves consequências na vida social e no desenvolvimento dos povos. É a incapacidade de aceitar os outros em razão de suas ideias, convicções ou crenças. É uma grave debilidade que torna impossível a coesão e a correta interação entre pessoas e grupos humanos. No fundo, tudo isso é expressão de um avassalador vazio existencial. A vida fanática e intolerante é uma vida sem sentido, carente de interesse e de originalidade,
Em um mundo polarizado por fanatismos de caráter muito diverso, tensionado por forças irracionais, tanto de origem religiosa como política, a educação do “sentido espiritual” da vida constitui uma urgência, frente a uma insistência mecânica de padrões de conduta e de modelos impostos pelos grandes meios de comunicação de massa. A vida espiritual é abertura, receptividade e movimento. As grandes figuras da história espiritual nunca sucumbiram ao fanatismo e à intransigência. Foram benevolentes, compassivos e receptivos. Praticaram o diálogo com todos, sem discriminação alguma.
Há demasiadas divisões entre nós; há demasiadas condenações e violências (verbal e física); há demasiadas exclusões e marginalizações. E tudo simplesmente “porque não é dos nossos”, “porque não pensa como nós”... Podemos pensar diferente, mas nem por isso temos de nos excluir; não somos donos da verdade; também os outros pensam e tem uma percepção diferente da realidade.. Podemos ter critérios diferentes, mas nem por isso temos que criar muros que nos separam. O diferente não deve excluir ninguém; o diferente pode ser uma fonte de enriquecimento mútuo.
O evangelho deste domingo (9º dom TC) nos revela que o intransigente nunca se põe no lugar do outro; só ele tem razão. Isso porque ele pensa a partir da lei, mas não pensa a partir da situação e das necessidades dos outros. E com isso ele faz um triste favor a Deus, porque dá a impressão de que Deus prefere suas leis ou suas interpretações e não as carências dos outros.
O intransigente se converte em centro de sua fidelidade à lei; mas prescinde do ser humano. Ao intransigente não lhe importa que o outro tenha fome no sábado, como tampouco lhe importa que esteja enfermo. O importante é o sábado e não a pessoa.
Mas Jesus pensa e age de outra maneira; primeiro é o ser humano e depois a lei; esta deve estar a serviço do ser humano. Por isso, a presença de Jesus na sinagoga revela-se como um apelo e uma ocasião privilegiada para pôr em questão nosso confinamento religioso, nossas posturas fechadas, nossas visões sociais estreitas e preconceituosas... e abrir-nos à diversidade e ao diferente. Sem alteridade regenerante caímos no confinamento de uma pureza de ortodoxia, de uma ideologia segregadora, de um legalismo estéril, de uma doutrina impositiva. Confinamento que nos torna cegos aos valores e riquezas que vem de outras expressões humanas e religiosas. O modo de proceder de Jesus nos instiga a acolher a diversidade como expressão da inesgotável criatividade divina.
A diferença promove a unidade lúcida e criativa; por isso é valor a ser preservado e a ser desenvolvido, é potencial a ser ativado. “O Espírito Santo cria a diversidade na Igreja. A diversidade é bela, mas o mesmo Espírito Santo faz também a unidade, para que a Igreja esteja unida na diversidade; para usar uma expressão bela: uma diversidade reconciliadora” (papa Francisco).
Texto bíblico: Mc 2,23-3,6
Na oração: a intransigência impede a pessoa de viver, de se abrir ao mundo, de ser espontânea e de viver mais intensamente;
- a impiedade da intolerância frente ao “diferente” e o descalabro dos racismos envenenam corações e fomentam as dinâmicas excludentes que envergonham a humanidade e não podem ser aceitas, pacificamente, pelos(as) seguidores(as) de Jesus;
- o racismo é sutil; está presente lá no fundo; é uma grande praga que exige grande esforço para dela se livrar; vira sentimento que se justifica e dá forma a modos de falar, define posturas e cria as distâncias, rompendo a comunhão.
- Como você se posiciona diante das diferenças religiosas, políticas, raciais, de gênero, de cultura...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus tomou o pão e, tendo pronunciado a benção, partiu-o e entregou-lhes, dizendo: ‘Tomai, isto é o meu corpo” (Mc 14,22)
Na celebração da festa de Corpus Christi, corremos o risco de honrar o Corpo de Jesus, mas desprezar o corpo humano, “ a carne de Cristo”. Participamos, com muita fé, dedicação e respeito, das celebrações do “Corpo de Cristo”, mas pode ser que, às vezes, façamos uma profunda cisão ou ruptura entre o que celebramos e a realidade que nos cerca, ou seja, o encontro com os “corpos desfigurados”: explorados, manipulados, usados, escravizados, destruídos... Pode ser que tenhamos um profundo amor e respeito pelo “Corpo de Cristo vivo e presente na Eucaristia”, e não O vejamos nos “corpos” que estão aqui, ali, lá, por todos os lados. “Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a carne de Cristo” (Papa Francisco)
É esse o sentido que a festa de “Corpus Christi” nos revela, ou seja, a festa do Corpo Histórico e Humano de Jesus, corpo prazeroso e sofredor, amado por muitos e muitas, rejeitado, crucificado, morto e ressuscitado. Esta é também a festa do grande Corpo de Cristo que é a Humanidade inteira. Corpo real de Cristo são especialmente todos os que sofrem com Ele no mundo, os enfermos e famintos, os rejeitados e encarcerados, os pobres e excluídos... Eles são a humanidade ferida no Corpo do Filho de Deus.
Corpo de Cristo é também o universo inteiro, criado por Deus para que nele se encarnasse e habitasse seu Filho. Assim Jesus, na Ceia, ao tomar o pão e o vinho em suas mãos, abraça os bilhões de anos de evolução e chama-os de seu Corpo e de seu Sangue. Cada cristão, ao fazer “memória” do Corpo de Jesus, entra em comunhão com todas as energias da Criação. Corpo de Cristo que continua sendo o Pão, fruto da terra e do trabalho dos homens e mulheres, todo pão que alimenta e é compartilhado, em fraternidade, a serviço dos que tem fome.
“Corpus Christi” também nos motiva a perguntar: Como viveu Jesus, em sua corporalidade, a relação com o Pai, com os outros e com a natureza? E como nós somos convidados a viver nossa corporalidade? Jesus não compactuou com a visão dualista do ser humano (corpo e alma). Para Ele, tudo era sacramento, epifania de Deus, revelação do Reino, história de salvação... Jesus escandalizou a muitos proclamando que o “puro” ou “impuro”, não está fora, em ritos e prescrições. Não são impuros os enfermos, as mulheres menstruadas, os leprosos, as prostitutas...; a “pureza” está no coração que nos permite um olhar límpido, não possessivo, egoísta, invejoso ou violento...
Jesus levou muito a sério a questão do corpo, o seu e o das pessoas que encontrou ao longo de sua vida. Cuidou do seu descanso e o daqueles que com Ele compartilhavam o mesmo caminho; deixou-se acariciar e ungir sua cabeça e seus pés com perfumes valiosíssimos por algumas mulheres, algumas delas malvistas pelos rótulos preconceituosos que os varões lhe impunham, agradecendo esse gesto fruto de um amor sem cálculos; curou corpos atrofiados pela doença e fragilizados pela exploração... Os Evangelhos nos situam Jesus no nível da corporalidade próxima: é Ele que sabe olhar, tocar, sustentar, acariciar...
Se fixarmos nossa atenção em Jesus na última Ceia, descobriremos que suas palavras (“isto é o meu corpo”) e seus gestos (partir e repartir o pão) constituem a essência afetiva e social (de amor e justiça) do cristianismo, a verdade central do Evangelho.
Eucaristia é “Corpo” e é corpo doado e partilhado, não pura intimidade de pensamento, nem desejo separado da vida. A Eucaristia é Corpo feito de amor expansivo e oblativo, que se expressa no trabalho da terra, na comunhão do pão e do vinho, no respeito mútuo frente o valor sagrado da vida, no meio do mundo, nas casas de todos... Não são necessários grandes templos e nem suntuosas procissões para celebrar a festo do Corpo de Deus; basta a vida que se faz doação e partilha, no amor, como Jesus fez.
Diante do Corpo de Cristo, nosso corpo se plenifica na comunhão com outros corpos, com Deus e com o corpo da natureza. Nosso humilde corpo é parte da Criação inteira e nosso bem-estar faz sorrir a natureza. Aqui precisamos encontrar a justa proximidade para nos relacionar com o corpo e estabelecer um vínculo sadio com ele. Afinal, nossas maneiras de nos relacionar estão configuradas por ele. Não há experiência de amor, e por isso não há experiência de Deus e dos outros, que não ocorra em nosso corpo. O nosso corpo nos pede espaço, tempo, atenção, alimento e, sobretudo, nos pede descanso e bem-estar, inspiração e contemplação... O corpo não é só a unidade de nossos membros, mas a presença de nossa pessoa; por ele estamos e somos.
O corpo é o companheiro inseparável de nosso caminho. É preciso senti-lo, percebê-lo, escutá-lo. Mas é preciso ir mais longe: podemos afirmar que o corpo se transforma em caixa de ressonância da “voz de Deus” que nos previne contra caminhos equivocados e nos orienta para uma vida natural e plena. O corpo é “lugar” teológico, lugar da manifestação de Deus; neste sentido é morada do divino, habitação do Espírito, enquanto participa, pensa, sente, deseja, decide...
Quem não escuta nem percebe seu corpo não pode compreender o sentido da vida, do amor, das relações... pois cairá no narcisismo de seu próprio ego. Não é possível viver feliz sem relações amistosas e próximas com o corpo, para poder entendê-lo e expressar-se adequadamente com ele. Para conhecer-se é necessário acolher o corpo, querer o corpo, observar o corpo, olhar para dentro do próprio corpo, com atitude reverente.
Minha própria casa é meu corpo; o templo onde Deus se revela a mim. Só eu posso habitar e possuir meu corpo. Eu me identifico com meu corpo, sem o qual não posso viver. Deus, com seu Espírito, anima meu corpo; mas não pode habitar em mim a graça de Deus sem a colaboração e a abertura de meu corpo.
Nosso corpo constitui nossa presença no mundo; a acolhida do próprio corpo nos projeta para uma relação sadia com o corpo do outro; é o cuidado do corpo do outro que determina nossa relação com Deus (Mt. 25,31-46). O corpo do ferido, do faminto, do preso... tornam-se “territórios sagrados” onde crescemos e nos humanizamos; são os “lugares” nos quais Deus revela seu rosto compassivo.
O corpo é um documento histórico: há corpo burguês e corpo proletário, corpo de cidade e corpo de roça; há corpos explorados e corpos que são só força de trabalho; corpos que são modelos anatômicos; os “corpos empobrecidos” gritam a Deus por justiça, por alimento, por saúde e por novas relações entre os humanos e o cosmos, gritam a Deus por viver.
O corpo desrespeitado, expropriado e dominado de muitas pessoas, clama a liberdade, a paz, a vida. O corpo é lugar de êxtase e de opressão, de amor e de ódio, lugar do Reino, lugar de ressurreição. O corpo é espaço de salvação, de justiça, de solidariedade, de acolhida, é lugar da experiência de Deus, da celebração, da festa, da entrega... Celebrar “Corpus Christi” é “cristificar” nossos corpos.
Texto bíblico: Mc. 14,12-16.22-26
Corpo de Cristo
Olhos inquietos por verem tudo. Ouvidos atentos aos lamentos, aos gritos, aos chamados.
Língua disposta a falar verdade, paixão, justiça…
Cabeça que pensa, para encontrar respostas e adivinhar caminhos, para romper noites com brilhos novos.
Mãos gastas de tanto servir, de tanto abraçar, de tanto acolher, de tanto repartir pão, promessa e lar.
Entranhas de misericordiosas para chorar as vidas golpeadas e celebrar as alegrias.
Os pés em marcha em direção a terras abertas e a lugares de encontro.
Cicatrizes que falam de lutas, de feridas, de entregas, de amor, de ressurreição.
Corpo de Cristo… Corpo nosso. (José María Olaizola, SJ)
“Tomai, Senhor, e recebei”, toda minha corporalidade, com suas pulsões, seus limites e sua energia profunda. Que não fique nada em mim onde Tu não entres. Nenhum quarto escuro nem fechado que não seja invadido por Ti”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19)
A Igreja celebra, neste domingo, a Festa da Trindade, cume e compêndio de todas as festas do ano: do Deus que é Pai, é Filho e é Espírito.
Assim, a festa de hoje vem plenificar o tempo pascal, como uma espécie de “síntese”. Síntese, não intelectual, mas “misterial”, ou seja, celebração de nossa participação no fluxo amoroso das pessoas divinas; pois a SS. Trindade não é uma questão especulativa, é, sobretudo, uma experiência de um Deus amoroso.
A liturgia nos convoca a viver a experiência do Deus “comunhão de Pessoas”; para isso, ela nos convida a fazer uma viagem ao interior de Deus, como vida de amor que se revela na história da humanidade, vida entendida como Pai, Filho e Espírito Santo.
A imensa maioria dos cristãos não sabe que, ao adorar a Deus como Trindade, está confessando que Deus, em sua intimidade mais profunda, é só amor, acolhida, ternura, misericórdia. Essa viagem ao coração da Trindade culmina na grande comunhão humana, pois o Deus Pai, Filho e Espírito integra no amor todos os povos da terra. Dessa forma, a viagem ao interior de Deus se converte em movimento ao exterior, no encontro expansivo com todos os homens e mulheres. Quanto mais mergulhemos em Deus, comunidade de Amor, mais poderemos expandir-nos em solidariedade, amor e justiça para com todas as pessoas, porque o interior de Deus é princípio de reconciliação e unidade (na diversidade) de todos os povos e raças do mundo.
Foi-nos dito que o dogma da Trindade é o mais importante de nossa fé católica; no entanto, a imensa maioria dos cristãos não consegue compreender o que ele quer dizer. Com a Trindade, nós cristãos não queremos “multiplicar” Deus. O que queremos é expressar a experiência singular de que Deus é comunhão e não solidão. “No princípio está a comunhão dos TRÊS e não a solidão do UM” (L. Boff).
Aproximar-nos do Deus de Jesus é descobrir a Trindade. E em cada um de nós a Trindade deixa-se refletir. Nossa vida deveria ser um espelho que em todo momento refletisse o mistério da Trindade. O grande ensinamento da Trindade é que só vivemos, se convivemos.
Viver a experiência do Deus Trino implica saber com-viver; fomos feitos para o encontro e a comunicação. Estamos, portanto, falando de uma única realidade que é relação. Deus-Trindade é a relacionalidade por excelência; Deus só existe como ser em relação; Deus é só relação, porque Deus é so amor. “No princípio está a relação” (G. Bachelard). E sendo Deus essencialmente relação, não poderia permanecer fechado n’Ele mesmo; num gesto de pura gratuidade, essa relação se manifesta como transbordamento de vida, chamando toda a Criação à existência e convidando a humanidade a entrar no fluxo dessa relação trinitária.
Mas, para nos aproximar do Deus comunhão de Pessoas, temos de superar o ídolo ao qual nos apegamos. Sim, o “falso deus” identificado com um ser poderoso que se manifesta como um déspota, um tirano destruidor, um ditador arbitrário; um ser onipotente que ameaça nossa pequena e limitada liberdade. É muito difícil abandonar-nos a alguém infinitamente poderoso. Parece mais fácil desconfiar, ser cautelosos e salvaguardar nossa independência.
Mas Deus Trindade é um mistério de Amor. E sua onipotência é a onipotência de quem só é amor, ternura insondável e infinita. É o amor de Deus que é onipotente. E sempre que esquecemos isso e saímos do fluxo do amor, nós fabricamos um Deus falso, uma espécie de ídolo que não existe. A Trindade não é uma verdade para crer mas uma presença a ser acolhida, uma experiência a ser vivida. Uma profunda experiência da mensagem cristã será sempre uma aproximação ao mistério Trinitário.
A festa da Trindade deve nos libertar do “Deus Ser todo poderoso” e empapar-nos do Deus Ágape que nos identifica com Ele. A imagem do “Deus todo poderoso” não expressa bem a experiência do “Deus trino”. Deus é amor e só amor. Só na medida que amemos, poderemos conhecer a Deus. Esta é talvez a conversão que muitos cristãos mais precisam: fazer a passagem de um Deus considerado como Poder a um Deus adorado alegremente como Amor.
Felizes aqueles que descobrem que a Trindade não é um mistério incompreensível, mas a cotidiana experiência do Amor, a partir de uma vida encarnada em nossa história, com um respiro, um ânimo e uma paixão especial por continuar vivendo cada dia com os mesmos sentimentos de Jesus, junto a tantas pessoas que trabalham por outro mundo mais fraterno, justo e solidário. A Trindade é o espelho que nos mostra como devemos ser e viver à luz da “melhor Comunidade”.
Ora, tal Mistério fonte de todo ser, constitui o modelo ideal de todo e qualquer convívio humano. Somos feitos à “imagem e semelhança da Trindade”. Trazemos em nós impulsos de comunhão. Sempre que construirmos relações pessoais e sociais que facilitem a circulação da vida, a comunhão de diferentes à base da igualdade, estaremos tornando visível um pouco do mistério íntimo de Deus.
Deus quer inserir-nos nesta sua comunhão eterna, como no-lo disse Jesus: “Que todos sejam um como Tu, Pai, estás em mim, e eu em Ti. Que eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que Tu me enviaste” (Jo. 17,21).
Portanto, Trindade é a glória de Deus que se expressa na vida da humanidade; é o Amor mútuo, a comunhão pessoal, de Palavra (Filho) e de Afeto (Espírito Santo) que sustenta as relações entre os seres humanos. Assim é a Trindade na terra: quando todos compartilham a vida e se amam. Não crê na Trindade quem simplesmente professa que há “em Deus três pessoas”, ou quem faz mecanicamente o sinal da Cruz, mas aquele que vive o impulso e a expansão do Amor Redentor, que se expressa como compaixão, reconciliação e compromisso. Crer na Trindade é amar de um modo ativo, como dizia S. Agostinho. Contempla-se a Trindade ali onde nos amamos e nos comprometemos com a libertação do próximo. Estamos envolvidos pelo mesmo movimento do Amor sem fim que parte do Pai, passa pelo filho e se consuma no Espírito. Só quem tem coração solidário adora um Deus Trinitário, pois no compromisso libertador torna-se visível a presença trinitária.
Texto bíblico: Mt 28,16-20
Na oração: Como homem e como mulher trazemos uma força interior que nos faz “sair de nós mesmos” e criar laços, construir fraternidade, fortalecer a comunhão.
Fomos criados “à imagem e semelhança” do Deus Trindade, comunhão de Pessoas. (Pai-Filho-Espírito Santo). Quanto mais unidos somos, por causa do amor que circula entre nós, mais nos parecemos com o Deus Trindade.
- Em quê aspectos concretos de sua vida se manifesta o mistério do Deus trinitário como amor e vida?
- Como poderia abrir-se mais à ação do Espírito da Verdade em sua vida, para que o(a) leve a um conhecimento existencial e atualizado do Evangelho de Jesus?
- Com quais iniciativas concretas você poderia contar para que sua comunidade cristã seja cada dia mais imagem da comunidade de amor infinito que é a Trindade divina?
- Quais diferenças estão criando divisões e intolerâncias em sua comunidade? Quais elementos da vida comunitária são fatores de união, fazendo-os crescer como irmãos(ãs) e fortalecendo a missão evangelizadora?
- Sua comunidade é sinal e instrumento de salvação de Deus Trindade, através da iniciativa do amor (Pai), da entrega radical (Filho) e da abertura à novidade dos caminhos de Deus (Espírito)?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...soprou sobre eles e disse: ’Recebei o Espírito Santo’” (Jo20,22)
Pentecostes é uma festa eminentemente pascal. Sem a presença do Espírito, a experiência pascal não teria sido possível. Ressurreição, ascensão, irrupção do Espírito e missão eclesial aparecem aqui intimamente articuladas. Não são momentos isolados, mas simultâneos, progressivos e dinamizadores na comunidade dos(as) seguidores(as) de Jesus.
O Ressuscitado, através da eficácia do sopro do Espírito, reconstrói as relações rompidas, afasta o medo, abre o horizonte da missão... Com a força do Espírito, a vida se torna profecia de ressurreição.
O sopro incontrolável do vento revela a liberdade de ação de quem é movido pelo Espírito. Como não se pode segurar, determinar o rumo, exercer controle sobre o vento, o mesmo se dá com a pessoa que recebe o sopro do Espírito. Sua capacidade de fazer o bem torna-se ilimitada. Nada a detém quando se trata de demonstrar, com gestos concretos, o amor ao semelhante; esse amor que ela traz dentro de si permite-lhe expressar, de maneira criativa, sua solidariedade e sua presença inspiradora. Tudo, em sua vida, torna-se novo, pois o Espírito não lhe permite cair na rotina e na inatividade, características de quem perdeu a razão de viver.
O Espírito que nos habita não é um Espírito de medo que recusaria a novidade; é um Espírito que nos torna capazes de inventar, criar, decifrar, abrir novos caminhos, a fim de permitir às mulheres e aos homens de hoje encontrar e reconhecer o Cristo sempre vivo através dos seus discípulos.
A festa de Pentecostes é uma ocasião privilegiada para nos aproximar do mistério do Espírito através de imagens que tem muita relação com nossas experiências vitais.
Quê sentimos quando parece que nos afogamos, porque nos falta ar, e de repente podemos respirar a ar fresco a pleno pulmão? E quando temos muita sede e alguém nos oferece água? Ou quando estamos muito cansados e alguém se aproxima para nos ajudar e nos animar? Quê sentimos quando uma pessoa está ao nosso lado e nos ajuda nos momentos de enfermidade e de medo?
A palavra “Espírito” é um termo latino, e seu uso se generalizou. Em hebraico se fala “ruah”, termo feminino, que indica vento, ar, alento, vida, amplitude, espaço ilimitado... Tem conotações muito mais ricas e vitais que o termo “espírito”. A totalidade de nosso ser está empapada do Ruah de Deus.
O termo “ruah” evoca também o sopro do vento, a brisa fresca que traz a chuva, considerada como uma benção. Evoca também o mistério e a presença de Deus, similar ao vento, porque se nota sua presença, mas não se pode vê-lo.
A ação da “ruah” nos seres humanos refere-se, portanto ao alento de vida de Deus que há em cada um, à abundância de Vida divina que está presente no interior de cada homem e cada mulher e na história.
As angústias e os sofrimentos mais radicais do ser humano são acolhidos e transformados pelo sopro do Espírito: um sopro vital que possibilita a vitória da esperança contra o desespero, da comunhão contra a solidão, da vida contra a morte.
O Espírito é sopro, hálito, vento que gera vida, que move, impulsiona e sopra onde quer. De onde vem e para onde vai não é fácil dizer. No entanto, está presente, se faz sentir, age. Sopra, despoja, subverte, separa, varre, empurra, levanta, expande, toca de leve... Aparecem e permanecem os sinais da sua passagem.
É um vento leve, refrescante, novo, penetrante, inovador, cambiante; um sopro sutil, interior, profundo; um sopro que não pode ser detido, sufocado.
Ao mesmo tempo é um vento impetuoso, desafiador e perigoso, pois pode conduzir a direções inimagináveis. Envolve, mas não invade. Interroga, mas não condena. Arrasta, mas não constrange. Oferece, mas não impõe. Presente, vital, essencial, livre, libertador. Pode ser acolhido e tudo torna-se novo.
Por isso, quem se deixa mover pelo Sopro sente sua força e reconhece sua ação. E, sem perder o chão da realidade e da história, aspira por algo mais alto, mais profundo, mais bonito e transcendente.
Quem se deixa mover pelo Espírito é imprevisível e não se deixa enquadrar pelas ideias cristalizadas e nem se fecha em atitudes petrificadas. Quem se deixa conduzir pelo Espírito não se contenta com a superficialidade e a mediocridade: abre espaço para a força do “mais”. Deseja voar mais alto e mergulhar o mais profundo, busca novidades, é dinâmico, muda de paradigmas e desfruta do presente, sem se desconectar do passado e do futuro. Quem assim o faz renasce sempre, a mudança é seu hábito de vida.
É preciso resgatar, no dinamismo do seguimento de Jesus, a força, a beleza e a fecundidade da dimensão espiritual de todo ser humano. Ao referir-nos à espiritualidade cristã, estamos situados frente uma “vida segundo o Espírito” (Rom. 8,9), uma vida nascida, orientada e alimentada pelo Espírito Santo; estamos, pois, frente à experiência original que torna cristã uma pessoa: ser habitada pelo mesmo Espírito que habitou Jesus de Nazaré.
Espiritualidade vem de “spiritus” e tem a ver com respiração, um alento que vem de dentro, um fogo e um calor, uma energia e força que brotam e sustentam o íntimo da pessoa espiritual.
Espiritualidade é a arte de respirar corretamente, cada vez de forma integral, atenta e concentrada, a partir do âmago, da profundidade, mas também de maneira natural e leve. Quem cultiva essa respiração integral, esse alento e fôlego do espírito dentro de si, consegue caminhar mais longe, ir mais adiante, ser mais criativo e intuitivo, não desanima ou esmorece quando muitos já estão com a língua de fora.
Espiritualidade significa, antes de mais nada, não perder o fôlego interior em qualquer circunstância da nossa vida. Somos “pessoas espirituais” quando exercitamos tão bem a arte e o alento do espírito que, mesmo nas situações mais difíceis da vida e do caminho, não perdemos a energia, o fôlego, a consistência. A força do espírito nos conduz sempre adiante.
Como “filhos e filhas do Vento” basta deixar-nos envolver pelo Sopro e escutar aquela voz que habita a dimensão mais profunda da vida e que se aninha nas cavidades mais secretas de nossa existência.
“Espiritual” é alguém que cultiva e cuida da respiração interior do seu ser com o mesmo cuidado que tem o camponês quando trabalha a terra e a plantação. Apenas aquelas pessoas que se mantêm próximas ao chão, às raízes da vida, conseguem manter também esta postura totalmente radical, a “humilitas” que vem de húmus, o chão escuro, úmido e fértil da terra.
Esta radical humildade, que vem da proximidade do chão e da comunhão com a terra, desperta piedade, respeito, cuidado, atenção, sensibilidade, misericórdia e, sobretudo, coragem e compaixão.
Nesse sentido, a busca pela espiritualidade vem de baixo, das raízes do humano, ela salta das profundezas da alma humana, não vem de cima, do além. A busca da espiritualidade nasce do ímpeto interior do ser humano por ser livre, por superar-se e poder crescer integralmente.
Espiritual é, portanto, a pessoa humilde, que vive da força que vem das raízes, que tem suas raízes fincadas profundamente no chão da vida, como uma árvore.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração:
- Deixe que o Sopro liberte seu corpo de todas as memórias negativas que o entulham, devolvendo ao seu espírito sua inocência, sua disponibilidade, sua energia...
- Acolha simplesmente o Sopro em seu interior. Deixe que o Espírito desça ao mais profundo de você mesmo.
- Acolha-o com gratidão, simplesmente expirando e inspirando. Por alguns instantes, seja um com o Sopro.
- O Sopro que respira em você é o mesmo que respira em todo o Universo.
- Deixe o Ser respirar em você, sendo inspirado e expirado. Respire em Sua presença para o seu bem-estar e
para o bem-estar de todos. Viva conscientemente o Sopro presente em você!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Os discípulos saíram e pregaram por toda parte” (Mc 16,20)
Na dinâmica do Tempo Litúrgico, após uma longa e criativa caminhada com Jesus, a liturgia nos faz “desaparecer em Deus”, como o Cristo da Ascensão “desapareceu em Deus”. Depois da Ressurreição, Jesus “ascendeu”. E fez isso abertamente. Os discípulos, atordoados, permaneceram olhando para o alto enquanto Jesus partia. Ele deixou claro que começava uma nova maneira de se fazer presente junto aos seus seguidores. De fato, Ele insistiu que os estaria acompanhando todos os dias até o fim do mundo. Portanto, nada de ruptura, mas de uma mudança qualitativa em sua presença, e assim impulsionar um novo vínculo com Ele.
Mas, em que sentido Jesus “foi levado ao céu”? Jesus não se “elevou ao céu” no sentido estrito, senão que “desceu” ao mais profundo de nossa existência, para dentro da nossa história, pois Ele continua “nos ajudando e confirmando sua palavra por meio dos sinais”. Esta nova presença é algo tão misterioso que não é possível defini-la, pois ela não está mais restrita aos limites do espaço e do tempo. Transcende o que se pode ver e tocar. A realidade pascal é muito mais ampla que aquilo que nossos sentidos podem abarcar.
Naqueles Onze apóstolos primeiros, “catequizados” pelas mulheres que fizeram a primeira experiência de encontro com o Ressuscitado, junto ao sepulcro, nos encontramos refletidos todos os cristãos. A terra inteira é campo de Páscoa de Jesus, espaço onde se expressa seu mistério de Vida plena. Este é o Cristo pascal da montanha da Galileia, que continua se fazendo presente no transcurso dos tempos, no mesmo caminho da história, no processo de missão que dura até o final do mundo.
Jesus não “subiu” para fugir dos problemas deste mundo, senão que, destruindo a morte, fortaleceu o vínculo que nos une, para continuar atuando em nosso favor de um modo diferente. Por isso, quis deixar claro que a ressurreição não supõe “ir mais além”, para viver comodamente e desfrutar de um merecido descanso depois de tanto sofrimento. Com sua presença nova mostrou que ressuscitar significa viver mais, amar mais, compartilhar em plenitude. Uma injeção de ânimo para vacilantes e temerosos.
Dessa forma, o ensinamento pascal se traduz como experiência de gratuidade e doação de vida. Ali onde as pessoas se ajudam a viver gratuitamente uns aos outros, em solidariedade e entrega radical, podem confessar que Jesus ressuscitou e continua presente, animando e inspirando a todos. Assim, quando perguntem onde estão os sinais de que o Cristo triunfou da morte, devemos responder: vejam como creem e atuam os cristãos! Suas obras de amor são reflexo da vida de Jesus, são expressão intensa de sua Páscoa.
Pode-se reconhecer o Senhor ressuscita nos sinais quase imperceptíveis que revelam que de verdade Ele não nos abandonou: pessoas que atualizam seus mesmos gestos, que pronunciam com autenticidade suas palavras, que são como um prolongamento de seu ser. Talvez por isso animou seus discípulos a guardar e propagar tudo o que lhes havia ensinado, para que outros reconhecessem Sua presença neles e acreditassem que o amor e a vida não tem “data de vencimento”.
Portanto, para nós seguidores(as) de Jesus, a Ascensão é abertura para o cotidiano, para a realidade do serviço. É preciso partir e viver o chamado do Mestre ao longo da existência. A festa da Ascensão nos revela que vivemos o “tempo do Espírito”, tempo de criatividade, de ousadia, de novidade... O Espírito não proporciona aos seguidores de Jesus “receitas eternas”. Por isso, não podemos ficar olhando para cima. O Espírito nos dá luz e inspiração para contemplar a realidade, buscando caminhos sempre novos para prolongar hoje a mesma missão de Jesus.
Torna-se necessário descruzar os braços, deixar de olhar passivamente para o céu e, com os pés plantados no chão, ser “presença cristificada” que fermenta e transforma a realidade. O mistério da Ascensão nos sensibiliza e nos capacita para ir ao encontro do nosso mundo com uma visão mais contemplativa. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da humanidade. Como contemplativos, movidos por um olhar novo, entramos em comunhão com a realidade tal como ela é.
Ascensão nos convida a olhar o mundo como “sacramento de Deus”. Um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que existem nele; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e por isso gerador de misericórdia; um olhar que compromete solidariamente.
A Ascensão de Jesus significa tomar consciência de que Seu tempo se completou e começa o tempo da nova comunidade dos seus(suas) seguidores(as). Trata-se de um “mistério” que revela uma nova pedagogia de Jesus, qual seja, saber “retirar-se a tempo”. E retirar-se a tempo para que os discípulos cresçam, para que os discípulos amadureçam. Porque, enquanto Jesus estava entre eles e com eles, os discípulos viviam como os pintinhos debaixo das asas da galinha.
Saber retirar-se a tempo implica uma grande sabedoria. Os pais, nem sempre sabem retirar-se a tempo; creem que precisam envelhecer sem passar as responsabilidades aos filhos. Os mestres creem que seus alunos ainda não sabem o que eles sabem. Os sacerdotes não sabem abrir passagem para os leigos; consideram que ainda não estão preparados. Jesus soube retirar-se a tempo; era consciente de que os seus discípulos não estavam plenamente maduros e preparados para a missão. O Evangelho reconhece que “alguns vacilavam”. E no entanto, Jesus confiou a eles sua própria missão: “ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura”. Não pediu que primeiro se doutorassem, nem que fizessem uma pós-graduação. Enviou-os assim como estavam, com suas dúvidas no coração. Também eles aprenderão fazendo; também eles aprenderão equivocando-se.
Portanto, a Ascensão de Jesus marca o início de nossa missão, ou seja, um novo modo de presença no mundo. Viver com os olhos voltados para o Senhor glorioso não nos dispensa de estar com os dois pés no chão, plantados na terra da história.
Enfim, a celebração do mistério da Ascensão nos impulsiona, ao mesmo tempo, para Deus e para o mundo. Paixão por Deus e paixão pelo mundo. Podemos assim estar sempre enraizados firmemente em Deus e, ao mesmo tempo, imersos no coração do mundo. O cristão é tão familiar com Deus que admira e se encanta com a variedade e a multiplicidade do mundo, e não teme o mundo com toda sua complexidade. Ao mesmo tempo, é tão familiar com o mundo que sente o Espírito de Deus que trabalha em todos os lugares e da maneira mais inesperada. “Fora do mundo não há salvação” (E. Eschillebeeckx).
Muitas vezes preferimos seguir um Jesus no “céu”. Descobri-lo dentro de si mesmo, nos outros e no mundo é demasiado exigente e comprometedor. Muito mais cômodo é continuar olhando para o céu... e não sentir-nos implicados naquilo que está acontecendo ao nosso redor. A Ascensão de Jesus nos desafia a romper a estreiteza de nossa vida para expandi-la a horizontes mais inspiradores.
Textos bíblicos: Mc. 16,15-20
Na oração: Que nossa ascensão seja: romper as cadeias de injustiça e morte; derrubar toda parede e muro; ir pela vida como samaritanos; mostrar os caminhos de vida plena; oferecer razões de esperança; despertar o instinto criativo; interpretar os sinais dos tempos; pôr o coração nas estrelas...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Eu vos disse isso, para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” (Jo 15,11)
O Evangelho deste domingo é desenvolvimento do tema do domingo anterior, ou seja, a videira e os ramos. Jesus explica em quê consiste essa “conexão” dos seus seguidores à Videira verdadeira. Apresentando como inspiração sua união com o Pai, Jesus vai des-velando a essência de sua mensagem. Sem usar metáforas nem comparações, Ele nos coloca diante da realidade mais profunda da mensagem evangélica: o Amor que, vivido na alegria, é a essência divina que mais nos humaniza.
Trata-se de entrar em sintonia, de “ajustar-se” ao modo de amar de Deus: amor descendente, amor sem fronteiras, oblativo, expansivo... e que se “revela mais em obras do que em palavras” (S. Inácio).
O(a) seguidor(a) de Jesus encontra-se, assim, envolvido(a) pelo Amor transbordante de Deus e, ao mesmo tempo, entra no fluxo desse Amor criativo, “descendo” à realidade cotidiana e ali deixando transparecer esse mesmo Amor através dos encontros com os outros. Portanto, o ser humano, na mística cristã, é o “ponto” no qual convergem o Amor “que desce do alto” e o Amor que flui para o outro, o Amor que vem do outro e o Amor que retorna à sua Fonte.
João põe na boca de Jesus a senha de identidade que distingue os(as) seus(suas) seguidores(as). É o mandamento novo, em oposição ao antigo, ou seja, a Lei. Fica estabelecida a diferença entre as duas alianças. Jesus não manda amar a Deus nem amar a Ele, mas amar como Ele ama. Na realidade, o mandamento do Amor não é lei que se impõe de fora; mas emana do coração alegre de Deus e de todos nós. É dinamismo expansivo que brota de dentro e nos impulsiona em direção ao outro, sem buscar recompensa.
Não se pode impor o amor por decreto. Todos os esforços que façamos por cumprir um “mandamento” de amor, está fadado ao fracasso. A busca deve estar encaminhada a descobrir o Deus que é amor, dentro de nós. No fundo, o evangelho deste domingo(6º Dom Páscoa) está nos dizendo que, para o(a) seguidor(a) de Jesus, a primazia é a experiência de Deus. Só depois de um conhecimento intuitivo do que Deus é em nós, poderemos descobrir os motivos do verdadeiro amor.
Nosso amor será “um amor que responde ao amor de Deus”; e Jesus deixou transparecer esse amor de Deus até o extremo da doação de si. Portanto, amor de Deus é a realidade primeira e fundante: descobri-la e vivê-la, é a verdadeira identidade daquele(a) que segue Jesus. Qualquer relação com Deus sem um amor manifestado em obras, será pura idolatria. A nova comunidade não se caracterizará por doutrinas, nem ritos, nem normas morais. O único distintivo deve ser o amor manifestado. Jesus não funda um clube cujos membros devem ajustar-se a uns estatutos, mas uma comunidade que experimenta Deus como amor e cada membro n’Ele se inspira, amando como Ele.
Nenhuma outra realidade pode substituir o essencial. Se isto falta, não pode haver comunidade cristã.
Jesus não apresenta este mandato do amor como uma lei que deve reger nossa vida, fazendo-a mais dura e pesada, mas como uma fonte de alegria. Quando entre nós falta o verdadeiro amor, cria-se um vazio que nada nem ninguém pode preencher de alegria. A alegria é o sentimento central na experiência cristã da Páscoa. Nossa alegria é Cristo ressuscitado. Ele é a causa de nossa alegria.
A alegria na vida cristã aninha-se e cresce na vivência do mistério pascal. A ressurreição de Jesus causou uma imensa alegria na comunidade dos(as) discípulos(as). A alegria é contagiosa. Tem uma dimensão social e comunitária. Nós não estamos alegres só porque Jesus está vivo, mas porque nos fez partícipes de sua ressurreição, de sua nova vida. Assim nossa alegria é a alegria de Jesus.
A vida cristã, por vocação e missão, deve ser alegre. Toda ela é profecia de alegria e esperança. A participação afetiva na alegria de Cristo é a forma de expressar o desejo da íntima comunhão no amor que reforça o seguimento. “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Com Jesus Cristo sempre nasce e renasce a alegria” (Papa Francisco).
Essa alegria, da qual nos fala Jesus, não é um simples sentimento passageiro; trata-se de um estado permanente de plenitude e bem-estar por ter encontrado nosso verdadeiro ser, luminoso e indestrutível. No encontro com o Ressuscitado surgirá espontaneamente a alegria, que é nosso estado natural.
A alegria, portanto, não é um estado de ânimo, mas um estado da pessoa. Por isso, a alegria não é algo que acontece na pessoa: é a pessoa mesma acontecendo. A alegria é “gerúndia”: é a pessoa alegrando-se. Só quando descobrimos quem realmente somos, estamos, então, em condições de viver para os demais sem limites. O verdadeiro amor é expansivo, é dom total; e a prova de fogo do amor é o amor ao inimigo. Se há um limite em nossa entrega, ainda não alcançamos o amor evangélico.
Os santos e santas, por viverem profundamente fundamentados no amor de Deus, foram testemunhas da alegria. Eles(elas) deixaram transparecer que o amor que Deus nos tem suscita a alegria e esta motiva, dá energia, gera confiança. Este amor é o que nos faz sair de nós mesmos, reencontrar-nos e entregar-nos aos demais. E aqui está o “peso” do amor, o vigor da alegria.
O amor é o princípio que ordena a vida e a alegria irradia harmonia e bem-estar àqueles que nos rodeiam. Existe, portanto, uma relação de reciprocidade entre a alegria e o amor. São como vasos comunicantes: a alegria brota do amor, o amor se expressa na alegria. É na atmosfera da alegria que o mandamento do amor revela seu pleno sentido.
Nisto consiste a verdadeira alegria: sentir que um grande mistério, o mistério do amor de Deus, nos visita e plenifica nossa existência pessoal e comunitária.
A alegria que brota do amor é a experiência da vida já ressuscitada; e este amor oblativo já não busca seu próprio interesse, mas somente o serviço e a glória do Ressuscitado. O Pai, em seu amor, pronunciou a palavra definitiva de fidelidade que consola e enche de esperança. Seu amor nos inunda e ativa a alegria pascal: é preciso devolvê-lo em gratidão e em generosidade para com o próximo.
A alegria sempre indica que a vida está se expandindo, que ganhou terreno, que conseguiu ir além de si mesma. Um sinal de identidade da alegria é o olhar profundo, amplo e expansivo da vida. Mesmo em meio à dor e ao sofrimento, não faltam o bom humor e a ternura. Quem é cristãmente alegre se desgasta menos, integra melhor os acontecimentos, é feliz e faz felizes os outros.
Quem vive na alegria se sente sereno, livre, pensa positivamente, está próximo dos pobres, acolhe as adversidades, integra suas contradições, ama sem pôr condições, louva, canta e bendiz sem cessar.
De fato, a alegria experimentada não nos põe na retaguarda nem nos acomoda; pelo contrário, nos pede que sejamos mais radicais nos questionamentos e nos compromissos. Está em jogo a glória de Deus e a dignidade de seus filhos e filhas.
Texto bíblico: Jo 15,9-17
Petição: Sentir em si mesmo a alegria de Cristo; alegria que é dom do Espírito do Ressuscitado. Em Cristo, as alegrias humanas são divinizadas. Considerar na oração os diversos motivos que lhe enchem de alegria.
“A maior prova da existência de Deus é a alegria dos pobres. Eles não tem outro motivo para se alegrar a não ser em Deus”. (D. Luciano Mendes de Almeida).
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira...” (Jo. 15,4)
Se há algo que caracteriza nosso tempo é a nova consciência de ser rede-comunhão-interconexão-unidade. Todos já sabemos que tudo está interconectado: a globalidade é interação. Lentamente vai-se tomando consciência de que formamos parte de um todo. Há em nós uma necessidade básica de viver conectados com os outros, de entrar em relação com o mundo.
Este tempo pede de nós “uma espiritualidade da conexão”, da busca da experiência da Unidade, de estender pontes entre culturas, raças, sexos, crenças religiosas, ideologias, de romper fronteiras, de estreitar laços, de criar espaços acolhedores... Precisamos sair de nossos pequenos círculos para criar vínculos com tantas pessoas, grupos, organizações sociais e movimentos que buscam outra globalização, a globalização da solidariedade, da interconexão responsável, da comunhão universal.
O desafio que se apresenta diante de nossos olhos é o de sermos fiéis à realidade para poder descobrir nela a novidade de Deus, uma experiência “mística” que nos faça tocar o mais profundo de tudo, e como conseqüência, denunciar o que obstrui e mata este dom novo de Deus.
A imagem da videira e dos ramos, no Evangelho de hoje, nos revela a teia das relações, das inter-de-pendências e da comunhão de todos com a Fonte originária de tudo. Pertencemos a uma comunidade cósmica de vida tal como foi criada e sustentada por Deus. Somos quem somos somente na relação e por nossa relação com todas as criaturas e com o próprio Criador; somos alimentados pela mesma seiva divina, que tudo sustenta com sua mão providente.
Isto significa que há uma unidade fundamental que perpassa todas as partes do universo, na forma de uma “rede”. Nós, seres humanos, também fazemos parte desta vasta rede de inter-relações, conectados a todos os elementos da natureza, desde a menor célula até a ecologia global. Sentimo-nos impulsionados pela seiva do Espírito que alimenta as energias do universo e a nossa própria energia vital e espiritual. Conectar-nos com a Videira possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio nas relações; viver em profunda fusão com a videira desperta as energias criativas, todas as grandes motivações adormecidas, toda bondade aí presente. Sem a seiva divina que nos atravessa nunca poderemos dar o verdadeiro fruto.
No entanto, percebemos, no contexto atual, que o ser humano tem perdido o contato e a comunhão com o cosmos e com os seus semelhantes, recusando receber a seiva que a todos alimenta; ele está conectado com tudo e com todos e, no entanto, tal conexão não lhe nutre, nem lhe oferece sentido à sua existência. A compulsão dos meios eletrônicos o ameaça de superficialidade, de individualismo e de isolamento. Isto tem provocado nele toda espécie de mal-estar, de doenças, de conflito e divisão, de insegurança, de ansiedade, de solidão, de aridez existencial... É aguda a consciência de uma fragmentação do eu interior.
A verdadeira nobreza do ser humano consiste nisto: há nele “algo” de interior, decorrente de sua profunda conexão com a Videira, de onde recebe a seiva que o nutre e o faz entrar em relação com tudo e com todos; há nele uma força latente, como uma energia fundamental, que o impulsiona a viver, que o ajuda a crescer e a melhorar continuamente, aumenta a sua capacidade de resistência, estimula-o a alcançar aqui-lo que é o sentido de sua própria existência: a verdade, a liberdade, o bem, o amor...
Com a presença desta força interior, a pessoa se sente guiada pelo seu dinamismo, que lhe proporciona saúde física, lucidez mental e limpidez afetiva. É esta força que comanda os melhores momentos da vida humana como um princípio ativo, dinâmico, criativo... Tais forças primordiais, vitais, presentes nas diferentes etapas do crescimento, são essenciais ao ser humano, graças às quais ele se orienta diante das solicitações da vida pessoal e das múltiplas escolhas, constrói a sua vida pessoal, reforça as relações comunitárias e sustenta o seu compromisso solidário no caminho em direção à plenitude do seu ser.
Quando esta “força vital” permanece bloqueada, o ser humano perde a direção, seca a criatividade e o gosto por viver, não faz progredir a sua potencialidade e demite-se da própria vida. Diante dessa situação existencial, faz-se urgente uma poda. A poda é constitutiva de nossa vida, sempre será necessária; temos a perma-nente tendência à acomodação, à rigidez em nosso modo de ser e proceder, ao fechamento em nossas idéias, aos afetos desordenados; constantemente experimentamos perdas, amputações, despedidas, limites...
Vivemos as perdas como autênticas mutilações do eu e da vida. Algo ligado à nossa identidade, à nossa imagem pública, com as quais nos identificamos, deve ser jogado ao fogo, pois já não serve mais para nada. Mas as podas abrem espaço à vida nova. À luz da Páscoa, toda poda revela-se nova possibilidade de vida. É certo que ela pode nos paralisar na queixa contínua, na saudade melancólica do passado ou em posturas defensivas; mas também nos possibilitam experimentar a chegada de uma vida inspirada que ativa nossa criatividade e nos enche de alegria. O decisivo não é fixar-nos no “por quê?” das perdas e podas, mas, à luz da Ressurreição, mudar o sentido da pergunta: “para quê” a poda aconteceu? No “para quê” descobrimos um novo sentido e uma nova força vital que brota das feridas e perdas existenciais. Na experiência da ressurreição nada é “descartado”, tudo é iluminado e a seiva de vida surge de onde menos se espera.
O Podador sabe que está preparando uma vida nova e de mais plenitude. Mas é doloroso, produz-se uma perda, é necessário fazer o luto e despedir-nos daquilo que inevitavelmente nós perdemos. Precisamos fazer descer da cruz o que em nós está caduco e morto, olhá-lo de frente, sepultá-lo e despedir-nos dele para que a vida nova possa expandir-se com liberdade.
Só quando morremos e ressuscitamos podemos nos renovar e gerar muitos frutos, pois experimentamos em nossa própria carne a fragilidade humana, o que é efêmero e secundário, mas ao mesmo tempo ressuscitamos a partir de uma força que nos vem do mais profundo de nós mesmos, que transforma o que está morto em nós numa nova possibilidade ainda por ativar. Ninguém ressuscita no sentido de recuperação do antigo, mas como a acolhida de um dom inédito de Deus.
É decisivo religar-nos à Fonte e aproveitar, para o desenvolvimento integral da nossa personalidade, os abundantes nutrientes e recursos presentes nas profundezas do nosso coração. São forças construtivas e autônomas, livres de influências externas, que devem ser colocadas a serviço da construção de uma personalidade sadia, equilibrada e mais rica. Com isso, todo nosso interior se alarga e se dilata.
A seiva de nosso ser essencial constitui nossa autêntica vida. Descobri-la, abrir-nos a ela, fazer-nos trans-parentes a ela e vivê-la cada dia constituem a plenitude de nossa realização. É seiva divina, presente no “eu” mais profundo, que nos arranca de nosso fechamento e nos faz ir para além de nós mesmos; ela nos abre a uma Realidade maior que nos transcende; é ela que nos faz perceber que temos no coração um espaço que está feito à medida de Deus.
Precisamos viver mais nas raízes de nosso ser; precisamos aprender a viver de uma maneira mais profunda e autêntica, a partir do núcleo mais íntimo de nosso ser, a partir de nosso ser essencial. Trata-se de descer em profundidade, de achar o nosso centro, aquele ponto de gravidade por onde passa o eixo do nosso equilíbrio pessoal. A oração nos ajuda a encontrá-lo e a ampliá-lo.
Texto bíblico: Jo 15,1-8
Na oração: A compulsão dos meios eletrônicos nos ameaça de individualismo e de solidão, mas a oração cristã é um grande corretivo, pois ela nos ajuda a descobrir nossa interioridade, nos dá “olhos interiores” para captar o mais profundo nas pessoas, a dimensão mais verdadeira de nossas vidas, a beleza escondida na realidade.
A oração é, também, um convite a sentir-nos com os outros, a conectar-nos com todos e a viver em comunidade;
o “blog” da oração cristã é também com outros, junto aos outros, para outros.
- Qual é a seiva que alimenta e sustenta sua vida? Onde você a busca?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas” (Jo 10,11)
A partir deste 4º. Dom de Páscoa, a liturgia se afasta dos relatos das aparições do Ressuscitado, mas não sai do tema pascal. Como Bom Pastor, o mandato que Jesus recebeu do Pai é “dar a Vida” e a disposição em “dar a Vida” está profundamente sintonizada com o tempo de Páscoa que estamos celebrando.
A raiz da experiência pascal é que Jesus está vivo e comunica Vida à comunidade. Como os primeiros cristãos, também nós temos o mesmo privilégio de fazer nossa essa Vida. Trata-se da mesma Vida de Deus, de seu Amor que se entrega a nós incondicionalmente.
Crer e anunciar a Ressurreição é confiar na vida que morre, para dar lugar a mais vida, a Vida maiúscula. É crer vivencialmente que a morte é necessária para que a corrente da vida flua, e nos comunique suas maiores riquezas. A vida (minúscula) morre; para sermos fiéis ao chamado à Vida, devemos ser capazes de abandonar o que já não serve, o que é caduco, o que precisa morrer, para que a vida siga seu curso em direção à plenitude.
Somos também chamados a proclamar que a Vida é possível, que há algo mais além da vida limitada e frágil; somos movidos a gritar pelos caminhos que a morte foi vencida, que o ser humano é e continua sendo filho amado de Deus, chamado à vida maior e à liberdade.
Viver a Páscoa significa apostar pela qualidade de vida, fugindo da mediocridade sonífera na qual muita gente se instala, vivendo uma existência rotineira e normótica, sem cor e sem sabor, correndo sem saber para onde, sem entusiasmo, sem dinamismo e sem poder dar cor à própria vida, à família, ao trabalho, ao descanso, às relações, à fé...
O sintoma mais doloroso, já constatado por sérios analistas e pensadores contemporâneos, é um difuso mal-estar que afeta a humanidade inteira. No fundo, essa crise generalizada revela seu rosto desfigurado no fenômeno do “descuido”, do descaso e do abandono, numa palavra, da falta de cuidado com que são tratadas realidades importantes da vida.
Tudo o que existe e vive precisa ser cuidado para continuar a existir e a viver: uma planta, um animal, uma criança, um idoso, o planeta Terra... É urgente uma práxis de cuidado, de re-ligação, de benevolência, de paz perene para com a Terra, para com a vida, para com a sociedade e para com o destino das pessoas, especialmente das grandes maiorias empobrecidas e condenadas da Terra.
Jesus foi um “homem-de-cuidado” e deixou aos seus seguidores um estilo de vida fundado no cuidado. A imagem do “Bom Pastor” revela esse modo de ser e proceder de Jesus. Trata-se de uma imagem que, para os nossos contemporâneos, revela-se, ao mesmo tempo, anacrônica e perigosa. Anacrônica, porque as cenas do pastor cuidando do rebanho desapareceu do universo majoritariamente urbano e desenvolvido. Perigosa, porque a imagem do rebanho apresenta resquícios de passividade que a consciência moderna rejeita visceralmente, por evocar o binômio poder/submissão.
Embora a imagem tenha ficado esvaziada, seu conteúdo continua sendo plenamente atual, quando realçamos a atitude pascal da “mística do cuidado”, ou seja, quando proclamamos a atitude de entrega aos outros até o final. Jesus, em seu ministério “cuidador” transformou a vulnerabilidade em possibilidade, a fraqueza em força, a dor em alegria... O evangelista Marcos diz com extrema finura: “Ele fez bem todas as coisas; fez surdos ouvir e mudos falar” (Mc. 7,37).
Sua presença e sua intervenção nos revelam o compromisso com a vida, a afirmação da dignidade e da sacralidade de cada pessoa, bem como a reintegração dos excluídos na comunidade humana. Jesus é um biófilo (amigo da vida), pois revela uma especial atenção e zelo pela vida, seja da natureza, seja do ser humano. Cada vida é um cenário de manifestação do Pai. Tudo lhe causava admiração e encantamento.
Para Jesus, a cada dia o Pai chama as criaturas pelo nome e as convoca à vida: as águas fluem, os animais procriam, os astros retomam seu curso e o ser humano acorda para o louvor de Deus e o cumprimento de suas tarefas. Pela ação providente e cuidadosa do Pai, a Criação inteira se refaz de crepúsculo em crepúsculo e de aurora em aurora.
Nesse tempo pascal, o cuidado serve de crítica à nossa civilização agonizante e também de princípio inspirador para um novo tempo de convivialidade. Diante das realidades vulneráveis faz-se necessário despertar as consciências para a prática do cuidado. O cuidado é algo mais que um ato ou uma virtude entre outras; ele se encontra na raiz primeira do ser humano, é um “modo-de-ser essencial” do ser humano.
É uma dimensão fontal, originária, primária, impossível de ser totalmente esvaziada.
É o cuidado que nos faz sensíveis e nos compromete com quem está à nossa volta.
É o cuidado que nos une às criaturas e nos envolve com as pessoas.
É o cuidado que desperta encantamento face à grandeza do firmamento, suscita veneração diante da complexidade da Mãe-Terra e alimenta enternecimento face à fragilidade de um recém-nascido.
Pelo cuidado, o ser humano se religa ao mundo afetivamente, responsabilizando-se por ele.
Jesus de Nazaré foi aquele que mais encarnou o “modo-de-ser-cuidado”. Revelou à humanidade o “Deus-Cuidado”, experimentando-o como Pai/Mãe que cuida de cada um(a) de seus(suas) filhos(as), do alimento dos pássaros, do sol e da chuva para todos. Jesus resgatou a centralidade do cuidado e da ternura para com todas as manifestações da vida. Ele mostrou cuidado especial com os pobres, os famintos, os discriminados e os doentes. Pelo cuidado, Jesus maravilhou-se diante do milagre da vida e solidarizou-se com os humanos fragilizados e excluídos. As parábolas do bom samaritano, que mostra a compaixão pelo caído na estrada, a do filho pródigo acolhido e perdoado pelo pai, e, sobretudo, a do Bom Pastor, são expressões exemplares de cuidado e de plena humanidade.
Cuidar é dar atenção com ternura, isto é, descentrar-nos de nós mesmos e sair em direção ao outro, sentir o outro como outro, participando da sua existência; cuidar é mais que um ato; é uma atitude “kenótica”, porque exige o esvaziamento de nós mesmos para deixar o mistério do outro encontrar abrigo em nosso coração. “Não temos cuidado; somos cuidado”. Sem cuidado deixamos de ser humanos.
É a partir do cuidado que colocamos limite a toda voracidade neurótica de ter e poder; a partir do cuidado acontece a passagem da lógica da conquista para a lógica da gratuidade, da imposição para a interação-comunhão, da exploração para a sintonia-cordialidade, do poder-produção para a atenção-respeitosa.
O amor é a expressão mais alta do cuidado, porque tudo o que amamos também cuidamos. E tudo o que cuidamos é um sinal de que também amamos.
Texto bíblico: Jo 10,11-18
Na oração: pedir a graça de sentir a ternura, o carinho, a proteção e a cura das mãos benditas e providentes de nosso Deus;
- alargar o coração, para que aí a ternura de Deus possa fazer morada.
- está sua vida cheia de Vida e de Cuidado?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Ainda estavam falando, quando o próprio Jesus apareceu no meio deles…” (Lc 24,36)
Lucas descreve o encontro do Ressuscitado com seus discípulos como uma experiência fundante. O desejo de Jesus é claro. Sua missão não terminou na Cruz. Ressuscitado por Deus depois da execução, entra em contato com os seus para pôr em marcha um movimento de “testemunhas” capazes de contagiar a todos os povos com sua Boa Notícia: “Vós sereis testemunhas de tudo isso”. Não é fácil converter em testemunhas aqueles homens afundados no desconcerto e no medo.
Ao longo da cena do evangelho deste domingo, os discípulos permanecem calados, em silêncio total. O narrador só descreve seu mundo interior: estão cheios de medo, só sentem perturbação e incredulidade; tudo aquilo lhes parece muito bonito para ser verdade.
É Jesus quem vai regenerar a fé dos seus discípulos. O mais importante é que não se sintam sozinhos; devem senti-Lo cheio de vida no meio deles. Estas são as primeiras palavras que escutam do Ressuscitado: “A paz esteja convosco!” “...por quê tendes dúvidas no coração?”
Para despertar a fé dos seus discípulos, Jesus não lhes pede que olhem Seu rosto, mas suas mãos e pés; quer que vejam suas feridas de crucificado, que tenham sempre diante dos olhos seu amor entregue até a morte. Não é um fantasma: “Sou eu mesmo!” O mesmo que conheceram e amaram pelos caminhos da Galileia.
Apesar de vê-los cheios de medo e de dúvidas, Jesus confia em seus discípulos. Ele mesmo lhes enviará o Espírito que os sustentará. Por isso, recomenda-lhes que prolonguem sua presença no mundo. Eles não ensinarão doutrinas sublimes, mas hão de contagiar com sua experiência. Não vão pregar grandes teorias sobre Cristo mas irradiar seu Espírito. Hão de despertar a fé com a vida, não só com palavras.
Com sua presença compassiva, Jesus desperta nossa vida, arrancando-a de seus limites estreitos e constituindo-a como vida expansiva em direção a novos horizontes. Pois a vida autêntica é a vida movida, iluminada, impulsionada pelo amor.
O Ressuscitado nos precede, nos sustenta e, na liberdade de seu amor, nos impele a ampliar nossa vida a serviço. Toda peregrinação, em clima de admiração e assombro, se revela rica em descobertas e surpresas, e desperta o coração para dimensões maiores que a rotina de cada dia. Marcados pela ressurreição, passamos a nos relacionar de maneira diferente com os outros; brota em nós mais ternura, somos mais sensíveis à dor e à injustiça.
Quando acolhemos a presença do Ressuscitado, nossa vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa, é convocação...
A “pedra pesada” da nossa impotência diante da dor, do fracasso e da morte, foi retirada pelo Mestre, que, diante de nós, chama-nos pelo “nome” e nos desafia a viver como ressuscitados.
Quem se experimenta a si mesmo como “Vida” é já uma pessoa “ressuscitada”. Somos já “seres ressuscitados”, e isso faz a grande diferença, pois tem um impacto no nosso modo de viver e de nos relacionar com os outros. “Viver como ressuscitados” implica esvaziar-nos do “ego”, para deixar transparecer o que há de divino em nosso interior. Quando esquecemos a presença viva de Jesus no meio de nós, quando O fazemos opaco e invisível com nossos protagonismos e conflitos, quando a tristeza nos impede sentir tudo menos sua paz, quando nos contagiamos uns aos outros com pessimismo e incredulidade... estamos pecando contra o Ressuscitado. Assim não é possível uma Igreja de testemunhas.
Sempre que pretendemos fundamentar a fé no Ressuscitado com nossas elocubrações, O convertemos em um fantasma. Para encontrar-nos com Ele, temos de percorrer o relato dos Evangelhos: descobrir suas mãos que abençoavam os enfermos e acariciavam as crianças, seus pés cansados de caminhar ao encontro dos mais esquecidos; descobrir suas feridas e sua paixão. Esse é Jesus que agora vive, ressuscitado pelo Pai.
Cremos que Jesus ressuscitou não “depois” de sua morte, mas em toda sua vida, incluída a morte. A vida comprometida de Jesus ressuscitava na plenitude eterna de Deus quando curava enfermos devolvendo-lhes a confiança vital, quando partilhava a mesa com os excluídos pela religião, quando proclamava ditosos os pobres campesinos e pescadores da Galiléia, quando contava parábolas que ativavam a misericórdia e provocavam surpresa, quando subvertia as hierarquias e consagrava a fraternidade. Jesus ressuscitou em sua vida, quando vivia e intensamente e despertava a vida bloqueada nos outros; e, quando morreu entregando tudo, ressuscitou totalmente, como todos aqueles que morrem dando a vida, pois dar a vida é viver plenamente. Por isso Jesus ressuscitou também na cruz, quando entregou totalmente seu alento vital.
Cada dia é o “terceiro dia” pascal. Desde que nasceu até que morreu, Jesus viveu ressuscitando para a vida.
Nesse sentido, a Páscoa não se demonstra com argumentos de razão; a Páscoa só é possível manifestá-la com o testemunho da vida. Jesus não dá explicações; Ele mostra os sinais de seu amor para com a humanidade, ou seja, as chagas de suas mãos, de seus pés e a refeição.
As chagas de suas mãos, feridas e cravadas de tanto abençoar, elevar, sustentar... os mais frágeis; as chagas de seus pés, feridos de tanto caminhar em busca de quem estava perdido; a refeição, como expressão de fazer-se pão para quem tem fome.
Qual é o testemunho da nova vida de ressuscitado do cristão hoje? Os joelhos calejados de tanto rezar?
Ou também nós precisamos apresentar ao mundo nossas mãos, nossos pés e nosso pão!!! Nossas mãos feridas na doação, feridas de tanto abrir-se àquele que está caído, de tanto ajudar a quem está cansado, de tanto estendê-las a quem está só, a quem se sente excluído. Precisamos mostrar as mãos feridas pela generosidade da caridade, do amor; mãos cristificadas que abençoam, curam, elevam, apontam horizontes...
E precisamos mostrar as chagas dos pés; Pés cristificados que rompem distâncias, que vão ao encontro do diferente, daqueles que ninguém busca, que transita pelos ambientes excluídos levando a mensagem da vida plena; pés que andam caminhos visitando os enfermos, os anciãos que vivem sozinhos, os presos sem liberdade, que andam caminho buscando aqueles que se extraviaram, que se afastaram...
Texto bíblico: Lc 24,35-48
Na oração: É curioso que hoje os grandes sinais que nos identificam como seguidores(as) ressuscitados (as) não sejam precisamente nossas explicações, mas nossas mãos e nossos pés.
Frente a uma “cultura da indiferença” que impera entre nós, ser testemunhas da Ressurreição significa viver a “cultura do encontro”; e só vive a “cultura do encontro” quem prolonga as mãos e os pés do Crucificado-Ressuscitado; Anunciar a Páscoa com as mãos e com os pés!
Uma mão esconde entre suas linhas a espessura profunda e o valor impenetrável de uma vivência única e irrepetível; exprime autoridade, elegância, dignidade, credibilidade, bênção...
Uma mão se faz encontro. Vai aproximando, oferecendo, interrogando, esperando, indicando, saudando, acolhendo, bendizendo... Uma mão se abre, se oferece, se doa...
Ponha um pouco de amor em tuas mãos e tudo o que tocares tornar-se-á benção.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado...” (Jo 20,27)=
Uma grande ameaça sempre se fez presente na caminhada histórica da Igreja, qual seja, o risco de viver o seguimento de Jesus sem as suas chagas. Crer no Ressuscitado “asséptico”, sem as chagas em suas mãos, em seu lado e em seus pés, é desumaniza-lo. Crer de alguma forma em Jesus, mas um Jesus da glória, um Jesus “espiritual”, separado da vida e da entrega até à morte, é esvaziar o verdadeiro sentido da redenção. Crer no Ressuscitado sem as chagas é esquecer-se das feridas dos pobres, da morte dos oprimidos; é não tocar as chagas da humanidade sofrida, quebrada... Crer no Ressuscitado com as chagas nos compromete em fazer descer da Cruz todos os crucificados da história.
Neste sentido, o evangelho deste 2º domingo da Páscoa, nos apresenta uma profunda experiência pascal da Igreja a partir da “conversão de Tomé”, que é a imagem daquele que aceita a ressurreição de Jesus, mas a entende como uma experiência intimista, sem compromisso de comunhão e sem solidariedade com os mais excluídos e sofredores.
Tomé é aquele que vive isolado, anda solto por aí, sem vínculo comunitário. Enquanto os outros se fecham, ele vive sem comunidade, sem compromisso social, dedicado à sua mística particular. Morreu Jesus, mas não lhe importa as chagas d’Ele, nem o sofrimento dos outros; vive de uma espiritualidade “desencarnada”, com uma fé puramente intimista, sem a visibilidade de um corpo morto, sem a necessidade de precisar tocar as chagas d’Aquele que morreu pelos outros, as chagas de todos os mortos. Custava-lhe tocar as pegadas e feridas de Jesus crucificado; para ele, é como se Jesus não tivesse sofrido e não trouxesse em suas chagas as chagas da humanidade. Possivelmente, Tomé tivesse uma fé de tipo “new age”, de puras melodias interiores, que não se visibiliza no serviço e no cuidado aos outros.
Jesus respondeu à incredulidade de Tomé mostrando suas feridas; só assim, em contato de corporalidade a corporalidade, em encontro com a Vida triunfante de Cristo, pode realizar-se a experiência de Páscoa.
“Tocar o Verbo de Deus”, tocando as chagas dos crucificados: este é o tema deste domingo. Isto é o que devemos todos fazer, se cremos na Ressurreição. Sem chagas do Crucificado não há Páscoa. Sem corporalidade do Ressuscitado não existe cristianismo.
Muitos de nós preferimos continuar buscando uma Igreja bela, de glória, fechada em si mesma, de espaços sem ar de liberdade, preocupada somente com sua doutrina, seus ritos e liturgias celestiais, mas separada da comunidade dos pobres e sofredores ... Temos medo de compartilhar a vida e de “tocar” a ferida de Jesus, que são suas chagas, as chagas da igreja e da humanidade. Se esquecemos isto, esquecemos a Páscoa.
Por isso, o Senhor ressuscitado continua sendo Aquele que traz em suas mãos e lado as feridas de sua entrega, os sinais de seu amor crucificado em favor da humanidade. O Senhor ressuscitado continua sendo Aquele que sofre em todos os sofredores do mundo.
Certamente, nós cristãos podemos e devemos afirmar que “tocamos” o Jesus ressuscitado com as mãos da fé, em um espaço novo de “corporalidade mística”. Mas não podemos tocá-Lo só em um plano de “ideias”, de belas experiências interiores, senão na realidade da carne, da vida concreta: temos que tocar as chagas dos crucificados, na vida concreta dos rejeitados da sociedade. Ali está Jesus como Aquele que vem ao nosso encontro como promessa de vida.
Os mesmos sinais de morte (cravos que ataram as mãos e pés de Jesus no madeiro, lança que perfurou seu coração) revelam-se como sinais de vida, mas não para esquecermos deles, senão para tê-los sempre presentes na vida da comunidade, nas experiências de amor ativo que nos leva a descobrir o caminho pascal em todos os sofredores e chagados da história.
Tomé viu, tocou e apalpou as chagas da entrega radical de Jesus. E justamente ali, naquilo que entra pelos sentidos, Tomé se deu de cara com a fé: “Meu Senhor e meu Deus”. Hoje a presença de Jesus está ali onde os que lhe buscam, encontram chagas de dor e morte. Se, em lugar disso, encontram poder, pompa, prestígio, não poderão dizer: “Meu Senhor e meu Deus”.
O Ressuscitado, ao conservar e mostrar as feridas abertas nas suas mãos e no seu lado, quer que saibamos que se apropriou também das nossas feridas; nas feridas do Crucificado, somos movidos a mostrar nossas feridas; porque carregou nossas dores, nossas feridas Lhe pertencem; assim, nossas feridas, sanadas pelas chagas de Jesus, se convertem em sinal de vida, porque abrem possibilidades de futuro.
As feridas são tudo aquilo que é vulnerado, fragilizado e debilitado, que permanece em nós depois de situações de sofrimento, de frustração ou de perda. Há antigas feridas, velhas e enraizadas, que parasitam nossas forças impedindo o fluir de nossa vida. São como sabotadoras que vão fragilizando nossa estrutura interna e tornando a vida amarga. Sua aparição é típica nos momentos de crise.
É no meio das feridas, pessoais e coletivas, que o Ressuscitado se faz presente, exercendo o “ofício do consolador” (S. Inácio). O “ofício de consolar” é a marca do Ressuscitado, é força recriadora e reconstrutora de vidas despedaçadas. Jesus “toca” as feridas e “ressuscita” cada um dos seus amigos e amigas, ativando neles(as) o sentido da vida, reconstruindo os laços comunitários rompidos, e sobretudo, oferecendo solo firme a quem estava sem chão, sem direção...
A partir da experiência do encontro com o Ressuscitado podemos recuperar a dimensão do tato como possibilidade de viver de forma mais humanizadora e plena. Os sentidos, e de maneira especial o tato, nos fazem mais humanos, nos tornam mais sensíveis, nos ajudam na descoberta do corpo ferido do outro, fazem palpável o amor, nos ajudam a reavivar a beleza do transcendente em cada pessoa.
Jesus sabia deste tocar bem concreto: através de suas mãos fez presente o amor do Pai ao tocar com ternura os corpos das pessoas excluídas, violentadas, consideradas indignas de serem tocadas, nem amadas. O mesmo Jesus se deixa tocar em um momento de grande vulnerabilidade: numa situação de angústia e temor, recebe o contato, a proximidade e a carícia de uma mulher que o unge com perfume (Jo. 12, 1-8).
Ressuscitar o tato é sentir-se próximo, acolhedor, terno... Mas, antes é preciso deixar cair as barreiras; nosso mundo está cheio de alambrados, valas, muros e fronteiras; assim nos defendemos daqueles que são de outra raça, cor, religião, classe social... Comecemos apagando nossos preconceitos antes de tentar tocar.
Ninguém toca ninguém “de longe”. Estaremos “tocando o Ressuscitado” quando nos aproximamos d’Ele com uma visita, um telefonema, uma mensagem, uma saudação na rua, um favor, um serviço prestado com amor. Há templos famosos pela liturgia da oração tátil: orfanatos, hospitais, cárceres, periferias, sanatórios, asilos, favelas... Não deixemos de frequentá-los, pois é ali que “tocamos a carne de Cristo”.
Que Tomé e todos nós toquemos o lado aberto de Jesus e suas mãos feridas, de maneira que o contato com o sofrimento do mundo nos transforme e nos faça capazes de expandir a vida de Deus.
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: contemplar o Ressuscitado significa também “ressuscitar nossos sentidos”, torná-los mais oblativos e abertos para se deixarem impactar pela realidade crucificada.
- À Luz da Páscoa, como você reage diante de tantos crucificados, vítimas de intolerância, preconceito, violência verbal, indiferença?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Maria Madalena e Maria, a mãe de Tiago e Salomé, compraram perfumes para ungir o corpo de Jesus.
E bem cedo, no primeiro dia da semana, ao nascer do sol, elas foram ao túmulo” (Mc 16,1-2)
As mulheres revelaram uma presença fundamental nos relatos da Páscoa. Elas seguiram e serviram a Jesus com seus bens pelos caminhos da Galileia (Lc 8,1-3) e permaneceram fiéis até o final, até a Cruz. São testemunhas, como tantas mulheres de hoje, da fidelidade nas situações limite, onde o que lhes toca fazer é estar e acompanhar, na sua impotência e luto, até que emerja o inédito. São testemunhas da semente do amor entregue, que, embora invisível no ventre da terra, vai pouco a pouco abrindo caminho para a luz, afastando pedras e abrindo sepulcros, dando à luz o novo, porque o Deus de Jesus não é um Deus de mortos, mas de vivos. Frente à traição e a ausência dos discípulos, as mulheres foram significativas por sua lealdade. Enquanto o grupo de homens se trancou na passividade covarde, elas optaram pelo enfrentamento da realidade, vencendo o medo, colocando-se a caminho.
Das mulheres que foram ao sepulcro na manhã de Páscoa levando perfumes podemos aprender sua capacidade de enfrentar os acontecimentos com sabedoria e audácia. Elas são as mulheres “mirróforas”, ou seja, portadoras de perfumes, que madrugam para ir ungir o corpo de Jesus. São conscientes do tamanho da pedra e de sua impossibilidade de removê-la, mas isso não é um obstáculo em sua determinação de ir ao túmulo para fazer memória d’Aquele que abriu para elas um horizonte de sentido. A alusão ao “primeiro dia da semana” e o “nascer do sol” acompanham a entrada delas em cena, na madrugada da Páscoa: estamos no começo da Nova Criação e a luz da Ressurreição as envolve em seu resplendor.
Quem busca, encontra; as mulheres foram as primeiras que viram este instigante sinal: a grande pedra tinha sido removida e o túmulo estava vazio. E foram as primeiras a “entrar”. Entraram no túmulo: esta foi a experiência das discípulas de Jesus, ou seja, entraram no mistério que Deus realizou com sua vigília de amor. Não se pode fazer a experiência da Páscoa sem “entrar” no mistério.
“Entrar no mistério’ significa capacidade de assombro, de contemplação; capacidade de escutar o silêncio e sentir o sussurro de fio de silêncio sonoro no qual Deus nos fala. ‘Entrar no mistério’ requer de nós que não tenhamos medo da realidade: não nos fechemos em nós mesmos, não fujamos perante aquilo que não entendemos, não fechemos os olhos diante dos problemas, não os neguemos, não eliminemos as questões...
‘Entrar no mistério’ significa ir mais além das cômodas certezas, mais além da preguiça e da indiferença que nos freiam, e pôr-se em busca da verdade, da beleza e do amor, buscar um sentido não óbvio, uma resposta não banal às questões que põem em crise nossa fé, nossa fidelidade e nossa razão.
Para ‘entrar no mistério’ é preciso humildade, a humildade de abaixar-se, de descer do pedestal de nosso eu tão orgulhoso, de nossa presunção. A humildade para redimensionar a própria estima, reconhecendo o que realmente somos: criaturas com virtudes e defeitos, pecadores necessitados de perdão. Para entrar no mistério é preciso este abaixamento que é impotência, esvaziando-nos das próprias idolatrias, adoração. Sem adorar, não se pode entrar no mistério” (Papa Francisco – Missa da Vigília Pascal – 2015).
As mulheres buscaram Jesus no lugar equivocado, embora ali aprenderam uma lição inesquecível: é inútil buscá-lo no lugar da morte. Esse espaço está desabitado. O jovem de branco associa a ressurreição a uma tumba vazia: “Ressuscitou, não está aqui” (v.6). O cenário da morte carece de respostas. A busca deverá ser feita no espaço onde se desenvolve a vida. As mulheres entendem que corresponde a elas tomar a iniciativa e tirar da covardia o grupo de discípulos, transmitindo um encargo a todos os que abandonaram Jesus e, em especial, a quem chegou a renegá-Lo: “...dizei a seus discípulos e a Pedro...” (v.7).
Agora, finalmente, Marcos cita os discípulos. Através das mulheres, eles receberão o encargo de Jesus. Elas se converteram em mensageiras da boa notícia; elas assumiram o protagonismo e relançaram o projeto do Reino a partir de sua grande intuição: na Galileia começou a história e ali deverá ser reiniciada. Seguir as pegadas do Galileu confirma que Ele vai adiante guiando os seus seguidores e seguidoras. Percorrer seus passos garante ao grupo a experiência de contar com Ele: “Ele irá à vossa frente, na Galileia; lá vós o vereis, como ele mesmo tinha dito” (v.7).
Para o evangelista Marcos, voltar à Galileia significa retomar e prolongar a mensagem e a proposta do Reino de Jesus. Foi ali na Galileia que Jesus começou sua vida pública e atuou como aquele que veio aliviar o sofrimento humano, com a certeza de que o Reino tinha chegado e que Deus faria mudar a forma de vida dos homens, partindo precisamente dos mais pobres e excluídos. Dessa forma, inicia-se um grande “movimento humanizador”, a partir de baixo, ou seja, dos últimos e pobres, anunciando e preparando a chegada do Reino na Galileia.
Esta volta à Galileia tem, portanto, um sentido teológico, kerigmático e geográfico, marca o começo da nova comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus. Para Marcos, nesse entorno da Galileia está o futuro do Evangelho. A partir desse lugar deve iniciar-se o novo caminho do seguimento. Por isso, os(as) discípulos(as) devem entrar em sintonia com o modo original de ser e de viver de Jesus na Galileia. É ali que se devem encontrar todos os que são de Jesus (Pedro, as mulheres, os discípulos de Jerusalém), para também ali retomar e prolongar o movimento iniciado pelo Mestre de Nazaré.
A partir desse pano de fundo, entende-se a palavra final do evangelho de hoje: “lá vós o vereis”. Ver a Jesus significa aprender a olhar como Ele olhava e a viver como Ele vivia, colocando a vida a serviço dos coxos, mancos, cegos, doentes, expulsos da sociedade... Ver a Jesus significa ver a partir de Jesus (como Ele faria hoje), nas novas condições pessoais e sociais de um mundo que parece condenado à morte, como aquele em que Jesus viveu.
Vendo a Jesus poderemos ver tudo de um modo diferente, vendo o sofrimento das pessoas, ouvindo seus gritos. A missão está aberta. Esse é o caminho do Evangelho, carregando em nossas pobres mãos, como as mulheres da Páscoa, o perfume da Nova vida ressuscitada. E assim como o mau odor repele e afugenta, o bom odor atrai e convida ao seguimento.
Mas é sobretudo através do “modo cristificado de ser e viver” que os(as) seguidores(as) de Jesus exalam um bom odor, criam uma atmosfera perfumada ao seu redor. Assim, às vezes nos encontramos com ambientes que nos cativam e atraem, que desprendem um aroma agradável e prazeroso. São ambientes nos quais reina a acolhida, a afabilidade, o compromisso, a simplicidade. Sempre agrada ficar por mais tempo. Nossa memória parte dali amavelmente carregada com energia salutar e nossos pulmões saem repletos de ar purificado, limpo...
Também existem outros ambientes cujo ar é irrespirável, fétido, com mau odor. São lugares onde há competições, agressividade e violência, onde as pessoas são manipuladas as pessoas; são atmosferas arrogantes, infectadas, orgulhosas, vazias. Saímos dalí meio asfixiados, desejando não querer voltar mais.
Todos nós cristãos fomos ungidos com o óleo santo no batismo, fomos besuntados e massageados com um bálsamo cristificante. Por isso trazemos a força sanadora do perfume de Cristo, para sermos presenças diferenciadas em lugares que cheiram à morte e poder manifestar a beleza da vida cristã com a qualidade do nosso aroma.
Somos uma fragrância que é o símbolo da vida, e que, derramada em favor das pessoas, inunda o mundo, comunicando a salvação.
Páscoa é expandir o perfume da vida que nos envolve.
Desejo uma “Páscoa perfumada” a todos vocês.
Texto bíblico: Mc 16,1-7
Na oração: Como as mulheres “mirróforas”, tomemos consciência dos aromas que levamos para perfumar os ambientes com odor de morte, de rigidez, de indiferença, de medo... para que se transformem em espaços com cheiro de vida, de liberdade, de ternura e acolhida.
- Quê aromas captamos e reproduzimos em nossas casas, em nossas comunidades, em nossos contextos...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“José comprou um lençol de linho, desceu Jesus da Cruz, envolveu-o no lençol e colocou-o num túmulo escavado na rocha;
depois, rolou uma pedra na entrada do túmulo” (Mc 15,46)
A gravidez é uma metáfora sugestiva e provocadora sobre o Sábado Santo; no silêncio e na obscuridade do sepulcro tem lugar a segunda gestação de Jesus Cristo e o novo parto do homem, da mulher e do cosmos renovados. Assim, o sepulcro é contemplado como o ventre da terra, onde acontecerá o milagre da renovação plena da vida. O amor é mais poderoso que a morte e quem ama não morre nunca, senão que suas sementes são húmus e germe de nova vida, embora não possamos controlar quando nem onde.
É preciso saber acolher este silêncio surdo, que marca a passagem entre duas experiências intensas: a Sexta-feira de dor e o Domingo de Ressurreição. No sepulcro, Jesus se faz solidário com toda a morte humana. E é preciso esperar com Ele. É preciso esperar em nossos projetos e sonhos, na libertação dos povos, em uma nova humanidade. Em nossas vidas teremos muitas sextas-feiras santas de dor e dias de páscoa, mas, teremos muito mais sábados de espera.
Fazer memória do Sábado Santo nos faz compreender que, nos sábados santos da vida não podemos ter a pretensão de querer ver o significado de tudo o que vivemos, no mesmo momento que o vivemos. Muitas vezes, terão que passar muitos anos para poder ver o rosto do Deus vivo em situações vividas de dor e abatimento; além disso, temos que começar a entender que não podemos pretender chegar ao último dia com todas as interrogações resolvidas. Saber viver neste tom vital é o que nos convida o Sábado Santo.
A partir da experiência sabática, a noite pode espantar, mas também pode ser chance para ver melhor; a morte pode ser ameaçadora, mas ela ensina a viver; o sepulcro vazio pode causar dúvida, mas ele aponta para a ressurreição; o infinito pode suscitar inquietação, mas consegue impulsionar para o além, até acender no coração uma chama persistente: a esperança.
A terra, a humanidade, o cosmos... estão todos grávidos de Ressurreição. Assim começa a ressurreição; assim começa essa experiência que alguns chamam “a outra vida”, mas que na realidade não é a “outra vida”, mas a vida “outra”.
Como nos deixou escrito um jornalista guatemalteco, desaparecido sob a ditadura nos anos 80. “Dizem que estou ‘ameaçado de morte’; nem eu nem ninguém estamos ameaçados de morte. Estamos ameaçados de vida, ameaçados de esperança, ameaçados de amor. Estamos ‘ameaçados’ de ressurreição. Porque Jesus, além do Caminho e da Verdade, é a Vida, embora esteja crucificado no alto do lixão do Mundo...”. Ameaçados de vida, ameaçados de esperança, mesmo que a esperança frequentemente seja uma “esperança enlutada”. Há homens e mulheres que se fizeram “experts” em transitar e esperar na noite. São nossos “mestres e mestras do Sábado Santo”.
O ser humano que espera não tem certeza, não fica seguro, não está satisfeito. Mas a esperança tem fundamento; não é uma ilusão e nem uma utopia; não é um sonho impossível e nem uma lembrança irrecuperável; não é só futuro, mas permanece, disfarçadamente, presente; não é uma morada, mas um sentimento sempre inédito. A esperança evita tropeçar no fracasso, no desânimo, na apatia e no silencioso desespero.
A esperança é caminho e meta, posse e dom, destino e encontro, antecipação e cumprimento, expectativa e busca, risco e proteção, nó e liberdade. A esperança é certa, mas não dá “garantias”.
“O coração do cristão é inquieto, está sempre em busca, em espera: esta é a esperança...
porque a esperança é aquela que faz caminhar, faz abrir estradas...” (Massimo Cacciari)
O ser humano-esperança é o peregrino que caminha, é o artífice que tece o existir. Esperança é força prospectiva que suscita passos para a gênese da nova humanidade. Esperança é o ser humano nômade. Desloca-se. Desdobra-se. Inventa-se. Deixa de ser o que era para chegar a ser o que ainda não é. Na noite ela se acende; na impotência, ela vence; na finitude, ela impele a caminhar. A esperança é brasa, é pés, é caminho, é narrativa, é assombro, é antecipação.
Não há esperança na solidão das próprias seguranças e das próprias expectativas. A esperança se realiza no encontro, que impele a sair, a caminhar, a ir ao encontro, narrar aos outros o fogo que se acendeu por dentro. A esperança é o canto que ativa a coragem nos corredores escuros da história.
Poderíamos acrescentar que uma humanidade, incapaz de cultivar a esperança, não merece ser considerada, porque lhe faltaria a única razão pela qual vale a pena existir. Sem a esperança, a humanidade perde a iniciativa. Embota-se.
A vida sem desafios não é real; mas a vida sem espera, sem desejo, sem paixão, sem esperança, não é vida. A esperança mora onde a deixamos entrar: onde lutamos, onde convivemos com o outro diferente de nós, onde a fragilidade e a transição podem desorientar, onde as trevas parecem mais fortes que a luz, onde a vida parece ser ameaçada pela morte, onde a violência pensa levar vantagem, onde o caminho é íngreme, onde a espera se confunde com a angústia... A força da esperança está oculta precisamente na sua impotência e fragilidade.
Mas não basta ter esperança. É preciso ser esperança. O ser humano vive de esperança, acredita na esperança, mas, sobretudo é esperança. A esperança leva a querer algo mais. É “antecipação criadora”; ela tem “rosto novo”. É madrugada e não crepúsculo. Jamais “envelhece”. A esperança pascal antecipa aquilo que ainda não é realidade. É o futuro que ainda pode ser convertido em história nova.
O mal, a injustiça, a violência, o sofrimento, existem em nossa história, mas não tem a última palavra sobre ela. A ternura de Deus é mais poderosa e ela é nossa esperança, ela nos sustenta nos túneis mais escuros da vida a partir de dentro, atravessando-os. Deus é nossa esperança; o Deus da vida que nos ama até o extremo é a esperança que nos ampara contra toda desesperança. Mas a esperança não é uma propriedade privada, mas um presente comunitário, coletivo, um bem comum, como nos diz o Papa Francisco:
“Não vos deixeis roubar a esperança! Talvez a esperança seja como as brasas debaixo das cinzas; ajudemo-nos uns aos outros com a solidariedade, soprando nas cinzas, a fim de que o fogo volte a atear-se mais uma vez. Pois é a esperança que nos faz ir em frente. E isto não é otimismo, mas algo diferente. Todavia, a esperança não é de uma só pessoa, a esperança fazêmo-la todos juntos. Temos que alimentar a esperança entre todos, entre todos nós e todos nós que estamos distantes. A esperança é algo vosso e também nosso. É algo que pertence a todos” (Discurso aos trabalhadores de Cagliari – 22/set/2013).
A Cruz permanece em seu lugar, mas o sepulcro fica vazio para sempre!
É Ressurreição: vida plena antecipada.
Textos bíblicos: Mc. 15,42-47 Jo. 19,38-42
Na oração: Como muitos mestres e mestras, cujas vidas são testemunhas da esperança, como os discípulos de Jesus e como as mulheres que o acompanharam até o final, nos perguntamos:
- É possível esperar quando sentimos que a realidade é um “beco sem saída”?
- Como esperar em meio a tanta violência, preconceito, indiferença...?
- Como esperam os vencidos, os últimos, os excluídos...?
- Como aprendemos a esperar quando nos encontramos tendo que enfrentar situações-limite?
- Qual tem sido nosso suporte e ajuda nesses momentos da vida e como podemos oferecê-lo aos outros?
- Quê aprendizagens vitais fizemos na densidade da noite em nossas vidas?
- Quê e quem nos ajudou a rolar a pedra do sepulcro de nossa vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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