Um dos mais espantosos apelos de Quaresma que conheço não foi assinado por um eclesiástico, nem por um teólogo, mas sim por um poeta. Escreveu-o T.S.Eliot em 1930, três anos após a sua conversão, e deu-lhe um nome austero, sem o cómodo encosto que por vezes é o dos adjetivos: chamou-lhe simplesmente “Quarta-feira de Cinzas”. Nesse poema, dizem-se três coisas fundamentais. Se as soubermos ouvir, percebemos que elas correspondem a caminhos muito objetivos (a mapas pessoais e comunitários) de conversão. E não é esse o desafio da Quaresma, e desta Quaresma em particular?
1. A Quaresma vem ao nosso encontro para que nos reencontremos. Os traços que o poeta desenha coincidem dramaticamente com os do nosso rosto: vivemos uma vida que não é vida, acantonada entre lamentos e amoques, sem saber aproveitar verdadeiramente a oportunidade que cada tempo constitui, como se tivéssemos capitulado no essencial, e passássemos a olhar para as nossas asas (e para as dos outros) sem entender já o papel delas. “Esmorecendo, esmorecendo”.
2. A Quaresma vem ao nosso encontro para nos devolver ao caminho pascal. O que é que nos dá o sentido de redenção no tempo? – pergunta o poema. E o poema evangelicamente responde: o sentido de transformação é-nos dado quando aceitamos trilhar um caminho. O que nos permite passar do cerco das coisas triviais à revigoração da fonte, o que do sono nos dá acesso à vigília iluminada da vida é aceitarmos o desafio de nos fazermos de novo à estrada, e à estrada menos óbvia e mais adiada que é aquela interior. A Páscoa é a grande possibilidade de revitalização. Mas é preciso consentir naquela imagem brutalmente verdadeira do profeta Ezequiel: por agora somos mais uma sucata de restos, do que uma primavera do Espírito.
3. A Quaresma vem ao nosso encontro para que a tensão criadora do Espírito de Jesus redesenhe em nós a vida. Interessantes são os verbos que o poeta usa como prece: “que sejamos instigados”, “que sejamos sacudidos”. A Quaresma faz-nos passar do “deixa andar”, e do viver espiritualmente entorpecido ao estado da corda tensa. Aquela que é capaz de avizinhar da nossa humanidade reencontrada a música de Deus.
José Tolentino Mendonça
in: site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura de Portugal
13.02.2012
“Deus é Criador, e dos escombros constrói novidades surpreendentes”
Nos Evangelhos encontramos uma estreita vinculação entre perdoar e curar. O perdão tem um indubitável efeito terapêutico, e a cura dos enfermos é revelação da presença da misericórdia de Deus. Em seu caminho Jesus cura perdoando os pecadores e dando vida aos que estão envolvidos nas amarras da enfermidade e da morte. A experiência de sentir-se perdoado impulsiona o enfermo para além da sua situação vivida. É, portanto, um elemento prévio à cura.No NT, alguns textos nos fazem perceber que o perdão reconciliador de Deus é necessário para vivenciar e reconhecer a cura. Ex: paralítico toma seu leito e caminha curado como sinal do perdão dos pecados (Mc. 2,1-12). A reconciliação é um dom que gera harmonia e paz.
Em Jesus, as curas se convertem em resposta de Deus à dura realidade da condição humana marcada pelo sofrimento e exclusão e que clama uma contínua re-criação por parte de Deus.Jesus é presença visível da misericórdia re-criadora de Deus. Nesse sentido, perdoar é re-criar. Deus re-cria o ser humano a cada instante. Cada dia que passa é um perdão sempre novo, pessoal, criativo, mas também discreto e silencioso. Um perdão que abre um futuro cheio de possibilidades; um dom que permite o ser humano ir além de si mesmo.Só o amor misericordioso de Deus reestrutura as pessoas por dentro, abrindo-lhes horizontes maiores de coragem, responsabilidade e compromisso.O perdão aparece, no ministério de Jesus, como elemento terapêutico de uma práxis de regeneração que faz com que o ser humano viva, apesar do pecado, e cujo primeiro suposto terapêutico é a misericórdia.Para além de sua autoridade, os milagres mostram a reação de Jesus frente à dor dos pobres e fracos. A misericórdia é n’Ele virtude e princípio de sua atuação ética; é ela que quase “obriga” Jesus a curar.Os milagres são sinais poderosos que surgem da dor de Jesus diante do sofrimento alheio, em especial os enfermos. À luz de Jesus a misericórdia é mais que compaixão pela desgraça, é ternura diante de um alguém gestado nas entranhas do Deus Pai-Mãe. Jesus percorre a Galiléia e cura toda enfermidade e dolência, cura a situação de solidão de uma multidão desamparada. Cura, em definitiva, a carência de Deus.
Jesus insiste fortemente sobre o perdão, porque este é uma necessidade vital quando a vida foi ferida.O perdão re-situa as pessoas na grande corrente da vida; busca restabelecer um vínculo positivo entre vidas feridas, vidas que se ferem e a vida que as rodeia.O perdão é uma experiência forte que nos re-conecta com a vida; ele quer abrir uma porta à vida, em um muro fechado de dores, de sentimentos feridos, de auto-agressividade. O perdão busca estabelecer uma aposta pela vida. É um ato de realismo, em profundidade e a longo prazo. Jesus vive comprometido com a vida saudável, e faz a vida crescer de forma integral, sem divisões. Ele devolve às pessoas a saúde em seus corpos, em suas emoções, projetos e relações. Jesus vê nas enfermida-des uma ocasião para a manifestação da atividade salvífica de Deus. Para as palavras saúde e salvação o latim utiliza um mesmo termo: “salus”. A saúde não é alheia à salvação que Jesus traz. A recuperação da saúde e a salvação que Deus desperta estão em íntima relação com as fontes de energia curativas e a capacidade interna de regeneração do próprio ser humano.A proximidade de Jesus põe em movimento grandes dinamismos de vida do doente; debaixo do costume paralisado do enfermo, existe uma possibilidade de vida nova nunca posta em movimento. Jesus recons-trói “pessoas quebradas”. As obras que Ele realiza consistem em libertar o ser humano de sua inati-vidade e dar-lhe capacidade de ação. Podemos chamar Jesus de terapeuta do perdão: com seu perdão ativo desencadeia o processo de conversão, mobiliza todas as dimensões da pessoa, reestrutura o universo relacional e abre a interioridade à alteridade. Como presença visível da misericórdia, Jesus se dirige a cada com a força da torrente que jorra para a vida eterna e quer arrastar a todos para aquela Fonte de comunhão que o Pai deseja, a fim de que toda a vida esteja exposta ao seu amor.Em última análise, o perdão é um ato de fé na bondade fundamental do ser humano.
O paralítico do evangelho de hoje é um homem afundado na passividade: incapaz de mover-se por si mesmo e sem liberdade para desenvolver-se como ser humano; não fala, não diz nada; deixa-se conduzir pelo outros; vive preso ao seu leito, impedido de ser plenamente humano.Toda a cena se desenrola “em casa”, não no templo. O templo era o paradigma da instituição, mas havia deixado de ser o lugar da presença de Deus, porque seus dirigentes fizeram dele lugar de exploração e violência aos mais fracos e excluídos.Jesus passa da sinagoga, lugar oficial da religião judaica, à casa, lugar onde se vive a vida cotidiana junto àqueles mais queridos. Nessa casa vai-se gestando a nova família de Jesus.A casa não é lugar onde se vive a Lei, mas o lar onde se aprende a viver e conviver de maneira nova, à maneira de Jesus.
Sabemos que a enfermidade e o sofrimento tem muito a ver com a fragmentação, a dispersão e a divisão.Há muitos enfermos que, além da dor física, sofrem com sentimentos de culpabilidade, impotência, fragilidade, solidão... A reconciliação contribui a diminuir o sofrimento e potencia a saúde na dupla direção: integração pessoal e comunhão com os outros, tal e como fez Jesus.Ser curado por Jesus gera harmonia, equilíbrio saudável, unificação interior e reconciliação com a vida, com o que se é e com o que foi:“Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa” (Mc. 2,11). Jesus rompe as amarras da enfermi-dade que paralisa a pessoa, liberando o potencial humano presente em cada um. Ele desperta em cada enfermo a responsabilidade frente à própria saúde. É um chamado a evitar as atitudes patogênicas. Assumir este compromisso com a própria vida gera liberdade.
O valor terapêutico e reconciliador do perdão é central para restabelecer as fraturas da relação do ser humano consigo mesmo, com os outros, com a natureza e com Deus.Disse-lhe Jesus: “Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa!”O paralítico levantou-se imediatamente e, carregando o leito, saiu diante de todos.A ordem de vida é dada por Jesus. O homem obedece. Não sabe quem é Jesus, mas pressente que Aquele que lhe fala é portador de vida. O paralítico poderia ter perfeitamente permanecido deitado, mas adere à ressurreição. Jesus não o toca, como faz com outros enfermos; não o toma pela mão, para ajudá-lo a levantar-se, pois a cura desse homem passa, precisamente, pela recuperação da confiança em sua própria identidade. O doente deve escolher levantar-se por si mesmo; deve reencontrar seu desejo de viver.As três ordens que Jesus dá ao paralítico já dizem tudo: “levanta-te” (coloca-te de pé, recupera tua dignidade, libera-te daquilo que paralisa tua vida); “toma o teu leito” (aprende com o passado e abre-te ao futuro com fé renovada); “vai para tua casa” (aprenda a conviver).
O leito também não é abandonado imediatamente. É pedido ao homem curado “carregá-lo” e não jogá-lo fora. Carregar seu leito é um ato interior preciso; eis um verbo ativo, opondo-se à passividade do “estar deitado” e “ser carregado”. Deixa de ser “peso morto” para ser “companheiro” de estrada. Carregar seu leito é inverter o movimento, mudar de direção, substituir um movimento de morte por um movimento de vida. Antes, o leito o carregava; agora é o homem curado que carrega seu leito.Isto significa que o enfermo não partiu do nada, não partiu do zero, mas ergue-se, coloca-se em marcha a partir do passado. Carregar seu leito é romper com a prisão a seu mal. É tomar consciência de seus verdadeiros problemas, livrar-se do “vitimismo” e não mais esperar que os outros o carreguem.Terá ele um trecho do trajeto a perfazer, carregando seu leito. Depois, virá o tempo de lançá-lo fora e, então, tornar-se-á livre da dependência que lhe fizera tanto mal.
Na oração: não é possível seguir Jesus vivendo como “paralíticos” que não sabem como sair do imobilismo, da inércia ou da passividade; há muitas atitudes petrificadas, traumas paralisantes, feridas não cicatrizadas que nos impedem viver “como Deus manda”. Só o perdão terapêutico de Deus reequilibra nossa existência a nos impulsiva a viver a comunhão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.05.2013
"Se queres, podes purificar-me" (Mc. 1,40)
Só o horizonte do "querer" de Deus é garantia de superação de um horizonte que limita demais a expansão da vida. A partir do “querer” de Deus, nosso “querer” se amplia: no encontro dos dois “quere-res”, algo novo acontece.O parâmetro único e insubstituível é o querer de Deus. Só este querer é a garantia de um exercício de autoridade que se toma incontestavelmente um serviço à vida. Não é uma satisfação pessoal, nem um perpetuar situações favoráveis, cômodas ou agradáveis com o risco de uma incapacidade para ver as necessidades dos outros. Em Mc. 1,40-45, o leproso, dentro de sua necessidade, reconheceu que o "querer" é de Deus. A súplica que brota do seu coração toca o centro do coração compassivo de Jesus. Esta escuta direciona a ação terapêutica d'Ele. A lição do coração de Jesus é única; outro percurso é sempre perigoso e cria cenários de violência, exclusão, sofrimento...
O sentimento que baliza e dá a tônica no exercício da autoridade de Jesus é a compaixão.Jesus revela sua autoridade e esta é o caminho para o serviço e a promoção da vida.A autoridade de Jesus é sempre percebida como garantia e sustento da vida. Tem "autoridade" quem garante a vida e a recupera em todas as circunstâncias.A compaixão esvazia toda pretensão de poder, pois ela projeta a pessoa para o outro, torna a pessoa sensível ao clamor e às necessidades do outro. A compaixão, que toma conta do seu coração, é fruto do corajoso deslocamento para a margem, para a necessidade do outro. A autoridade de Jesus é sempre percebida como garantia e sustento da vida. Tem "autoridade" quem garante a vida e a recupera em todas as circunstâncias.A vida do outro é a razão única da autoridade.O outro, sua necessidade e sofrimento, será sempre a alavanca que gera no coração humano a compre-ensão e o exercício da autoridade como verdadeiro serviço.Só a compaixão desloca cada um para o lugar do outro. Só a compaixão ilumina a realidade do sofri-mento do outro. Só a compaixão move na direção da oferta do outro.
O fato de que Jesus se aproxime dos doentes e se deixe tocar por eles, ou de que os cure de forma pouco ortodoxa, era um atentado contra as normas de pureza que foi imposta à sociedade palestina daquele tempo. Jesus não teve receio em transgredir estas normas, pois só assim podia se aproximar daqueles que estavam em situação de exclusão.O que chama a atenção é a “gestualidade” de Jesus: Ele se aproxima dos homens e mulheres de sua época, toca os enfermos, impõe as mãos, toma as pessoas pela mão, estende as mãos...As verdadeiras curas e milagres de Jesus são, antes de tudo, gestos de “huma-nização evangélica”: de purificação humana, de libertação pessoal, de aber-tura à fé... que mostram que o dinamismo final do Reino implica na destrui-ção da enfermidade e da dor.Em Jesus a “comoção das entranhas” é o núcleo de sua ação curativa.O sofrimento da multidão desperta n’Ele a compaixão e o amor. Curar é sua forma de amar e seu amor curador o impulsiona à proximidade, estima ao enfermo, respeito à capacidade de cura da própria pessoa. Seu amor que cura é gratuito.
Ao curar fisicamente uma pessoa, Jesus busca fazer emergir um ser humano mais são e inteiro, a partir de suas raízes, a partir de seu coração, centro e fonte das decisões. Jesus se compromete com a saúde radical e integral do ser humano, e devolve às pessoas a saúde de seu corpo, em suas emoções, projetos, relações e abertura ao Transcendente. Através das curas Ele mobiliza todas as dimensões da pessoa, reestrutura seu universo relacional e abre sua interioridade à alteridade; ao mesmo tempo Ele potencia a liberdade do ser humano, recuperando a autonomia e a capa-cidade de dar direção à própria vida. A enfermidade e o sofrimento tem muito a ver com a fragmentação, a dispersão e a divisão. A pessoa curada por Jesus recupera a harmonia, a unificação interior e a reconciliação com a vida. Arriscar-se a curar o ser humano é arriscar-se a colocá-lo de pé, e encaminhá-lo na busca da verdade e da felicidade. A saúde implica viver desde a verdade. Não falamos de um caminho de perfeição farisaico mas de um caminho feito de feridas curadas, apoiado na autenticidade. “Curar”, para Jesus, significava levantar a cabeça daquele que estava encurvado pelo peso do legalismo e comprometê-lo responsavelmente a descer às profundezas de sua condição humana, para aí sentir-se em comunhão com todos os que foram gestados nas mesmas entranhas do Deus Pai-Mãe.Ser curado implica assumir uma responsabilidade que leva a implicar-se na transformação pessoal e social. A saúde integral tem a “carga” da maturidade e da responsabilidade na própria vida e no próprio processo.
Seguindo a Jesus, sentimo-nos chamados não só a levar ajuda direta às pessoas que sofrem, senão também a reconstruir as pessoas em sua integridade, reincorporando-as à comunidade e reconciliando-as com Deus. Nossa missão encontra sua inspiração no ministério terapêutico de Jesus. “Cuidar” de alguém é cuidar do que é saudável nele, porque é a partir desse estado de saúde que se poderá integrar e curar as feridas e fragilidades do outro. O cuidado mobiliza e potencia os recursos presentes no outro; é preciso despertar a consciência que todo ser humano tem reservas de riquezas, criatividade, inspiração, intuição..., e que toda pessoa precisa encontrar uma presença capaz de ativar e despertar o seu mundo interior.
Quando acolhemos a realidade e nenhuma venda nos impede ver o sofrimento do outro, a reação imediata é a compaixão; ela não se reduz a um mero sentimento empático; inclui, além disso, a ação por aliviar o sofrimento do outro e o risco de compartilhar seu destino. A compaixão significa abraçar visceralmente, com as próprias entranhas, o sofrimento ou a situação do outro. Compadecer-se, aproximar-se, curar, cuidar... tecem a rede de ações que definem o compromisso solidário com o outro.
Na oração: pedir a graça de sentir a ternura, o carinho, a proteção e a cura das mãos benditas e providentes de nosso Deus;alargar o coração, para que aí a ternura e a compaixão de Deus possa fazer morada.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.02.2012
Página 38 de 38