“O seu rosto brilhou como o sol e as suas vestes ficaram brancas como a luz” (Mt 17,2)
“Saí de vossas trevas! Deixai para trás a segurança do vale e empreendei sem medo a subida ao monte, porque lá no alto a luz vos espera!”. Este poderia ser o apelo do evangelho da Transfiguração, que pede de nós mobilidade para sair das falsas seguranças de uma vida sem horizontes.
De fato, há em nós uma força atrofiadora que nos faz preferir a acomodação, permanecendo tranquilos, perdidos no imediato e alheios à capacidade de transfiguração que se esconde por detrás da aparente normalidade das pessoas e das coisas.
“O mundo está cheio de esplendor espiritual e de segredos maravilhosos, mas basta um pequeno cisco sobre nossos olhos para que tudo fique escondido”(Baal Sem Tov).
Por isso, no Evangelho de hoje, e com diferentes graus de intensidade, o evangelista sai da esfera plana das descrições precisas e exatas e se expressa na linguagem do excessivo, do simbólico, do totalizante: “seu rosto brilhou como o sol”, “suas roupas ficaram brilhantes como a luz”, “uma nuvem luminosa os cobriu”... E como contraste escuro frente a tanta luz, três pobres homens assustados que balbuciam disparates, que preferiam dormir e ficar aí junto a esta situação tão surpreendente.
A Transfiguração está nos dizendo quem era realmente Jesus e quem somos realmente cada um de nós. Essa cena que Mateus relata é um símbolo das muitas “experiências de transfiguração” que todos experimentamos. A vida diária tende a fazer-se cinza, monótona, cansada, e a deixar-nos desanimados, sem forças para caminhar. Mas, eis que surgem momentos especiais, com frequência inesperados, em que uma luz atravessa nosso coração, e os olhos de nossa interioridade nos permitem ver muito mais longe e muito mais fundo daquilo que estávamos acostumados a olhar até esse momento.
A realidade é a mesma, mas nos aparece transfigurada, com outra figura, revelando sua dimensão interior, essa na qual tínhamos acreditado, mas que com o cansaço do caminhar tínhamos esquecido. Essas experiências, verdadeiramente espirituais, nos permitem renovar nossas energias e, inclusive, entusiasmar-nos para continuar caminhando, com o sentimento de “como se víssemos o Invisível”.
Aquele Monte (Tabor) foi um espaço instigante para Jesus, lugar alto de sua experiência radical, de onde Ele podia ver os problemas da humanidade, para senti-los, para assumi-los e mudar... O mesmo Jesus nos faz subir à grande montanha para que vejamos as coisas de outra forma, de outra perspectiva...
É preciso, de vez em quando, tomar distância e nos afastar do cotidiano rotineiro e atrofiado, para ampliar nossa visão e contemplar o drama humano; é decisivo nos situar diante do calor de Deus (sarça ardente) para desvelar nossa verdadeira identidade. Somente assim a Montanha nos transfigurará para que nos empenhemos no serviço em favor dos “desfigurados” do mundo.
Todos nós aspiramos por experiências como a dos discípulos de Jesus no alto do Tabor. Mas nós não podemos nos encontrar com Jesus no Tabor da Galiléia. Necessitamos buscar nosso Tabor particular, os rincões de nossa morada interior onde estão as fontes que mais forças nos dão, as luzes com as quais nos sintonizamos para iluminar e dar um novo significado ao nosso compromisso primeiro. Todos nós somos portadores de uma luz que procede de dentro, uma iluminação interior, que só aquele que vive a partir de sua própria interioridade consegue ter acesso a ela.
Ao relatar suas experiências espirituais, muitos místicos fazem referência a uma luz que ilumina com força seu interior. É uma graça que não se revela rara, pois temos consciência que “Deus é luz” e que o mesmo Jesus se definiu como a “Luz do mundo”. Somos envolvidos providencialmente por esta expansiva Luz. Todas as pessoas que fizeram esta experiência de encontro com o “Deus da Luz”, puseram os meios para fazer a viagem interior e ativar a “faísca da luz divina” ali presente. Na medida em que se deixaram invadir por essa luz, aproximaram-se cada vez mais dela para vivê-la com mais intensidade e para deixá-la refletir em seus rostos e ações. Por isso, foram pessoas de presenças originais e iluminantes em seu meio.
No ritmo do cotidiano, o dom imenso da luz passa desapercebido. Que o digam aqueles que não podem ver; que o digam aqueles que nunca puderam estremecer-se diante de um pôr-do-sol ou diante das cores vivas de uma pintura; que o digam aqueles que nunca puderam ver o brilho de uns olhos cheios de amor... Na costumeira cotidianidade, o perigo de não valorizar a luz é evidente; no entanto, para quem contempla sua cotidianidade, a formosura da luz que se derrama sobre nós que vivemos neste planeta sem luz própria é a prova da generosidade de Deus para conosco.
Por isso mesmo, há vidas luminosas e vidas obscuras. Há pessoas cuja luz interior transfigura suas vidas: vivem na transparência da luz, seus gestos e atos são luminosos, admiram-se com o brilho da vida e desejam que tudo tenha esse brilho, iluminam com sensata positividade tudo o que acontece ao seu redor, colocam-se sempre na perspectiva de quem desfruta da cor e do amor no encontro com os outros... O resplendor da Transfiguração brilha no interior de cada um de nós; não nos vemos vazios por dentro porque no mais profundo de nós, na morada mais interior, está o “sol de onde procede uma grande luz” (Santa Teresa de Jesus).
Deixar-se transfigurar. Somos seres de luz e nossa verdadeira transformação nasce de nosso interior. Na Transfiguração, Jesus nos faz descobrir nosso verdadeiro ser, que vemos refletido n’Ele. A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Deixar-se transfigurar é descentrar-se e expandir sua luz, para realizar aquele chamado único de Jesus dirigido a todos nós: “Vós sois a luz do mundo”.
Transfiguração é festa da luz: Jesus é a Luz e no encontro com Sua Luz podemos ativar a tímida luz presente no nosso interior. Só assim podemos ampliar os espaços de luz em nossas vidas, para contagiar-nos de luz e para comunicar uma mística de luz em nosso entorno. Não se trata de falsas iluminações, mas de alcançar outra perspectiva de vida, mais luminosa, mais positiva, mais esperançada.
Para transitar na noite de nosso tempo precisamos buscar na Transfiguração a Luz que a ilumine e nos indique a direção e o sentido de nossa existência. A “noite de nosso mundo”- carregada de tanta corrupção, violência, preconceito - pede pessoas marcadas pela experiência da Transfiguração, capazes de ver a presença d’Aquele que é a Luz no meio das realidades simples e cotidianas, no profundo do coração de cada ser humano, de cada realidade vivente, de cada palmo de nossa terra, no mistério insondável do universo grávido de graça.
Precisamos cultivar não só olhos que vejam a realidade, senão que sejam capazes de contemplar, no meio da noite, a presença da Luz: uma luz que brota das profundezas da realidade, do profundo do ser onde o Deus, Fonte de vida, sustenta tudo; uma luz que nos faz descobrir nosso ser essencial: filhos e filhas amados(as) e irmanados(as) com todos e com tudo.
Texto bíblico: Mt. 17, 1-9
Na oração: Na nossa vida cristã não faltam momentos de claridade e certeza, de alegria de luz. E tudo depende de nossa visão, ou seja, se nosso olhar só capta o imediato e rasteiro que nos rodeia, ou se é capaz de descobrir o profundo e o luminoso em tudo... “Tudo é segundo a cor da lente com que se olha”.
- Como é seu olhar? Mais além do imediato que o rodeia? você é capaz de ver a presença da Luz, da profundidade de sentido, da presença de Deus... que há por detrás de cada circunstância?
- Você é capaz de transfigurar o olhar para captar a presença da luz que tudo resignifica?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Campinas-SP
“Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens e a compra”
As parábolas do evangelho de hoje nos colocam diante de um fenômeno humano conhecido como serendipitia, serendipidade ou serendipismo: termos que expressam o sentimento de alegria quando encontramos alguma coisa surpreendentemente boa sem que, necessariamente, estejamos procurando por ela; referem-se às descobertas afortunadas feitas por acaso; trata-se de uma forma especial de criatividade, na qual saímos em busca de uma coisa e acabamos encontrando outras muito mais importantes e valiosas.
Estes termos se originam da palavra inglesa “serendipity”, criada pelo escritor britânico Horace Walpole em 1754, a partir do conto persa infantil “os três príncipes de Serendip”. O conto revela as aventuras de três príncipes do Ceilão, hoje Sri Lanka, que viviam fazendo descobertas inesperadas durante o seu caminho. Graças à capacidade deles que aliava perseverança, sagacidade, inteligência e senso de observação, os príncipes acabavam encontrando “acidentalmente” soluções para seus dilemas. Isso revelava uma mente aberta para as múltiplas possibilidades.
A ciência está repleta de casos famosos que podem ser classificados como serendipismo, mas estes só ocorreram porque as pessoas estavam “abertas” a estas descobertas, preparadas e com o senso de observação apurado. A descoberta ocasional dos manuscritos de Qumram, a fotografia, o raio x, a penicilina, a lei da gravidade, a descoberta de Colombo... tem em comum que não foram diretamente buscados, mas, por serem descobertas afortunadas e inesperadas, abriram novos horizontes e tornaram a vida mais bonita e mais agradável. O serendipismo é a pitada que falta no nosso espírito inovador e criativo, que é estar sempre aberto ao inesperado.
O conceito de “serendipidade” é aplicado em muitos setores da vida humana, inclusive no campo da espiritualidade. Serendipidade se refere às descobertas ou encontros afortunados feitos aparentemente por acaso, que muitas vezes possibilitam transformações radicais e positivas em nossas vidas.
Na vida espiritual, o estilo serendipitico ativa em nós o olhar atento, para dentro e para fora, fomenta o assombro e a admiração diante da nossa realidade cotidiana, nos mantém em atitude de abertura para o gratuito e nos faz abertos à Graça e à sua surpreendente novidade. O verdadeiro segredo está em abrir-nos às oportunidades que a vida nos oferece; é viver a arte de uma apurada sensibilidade e atenção a tudo o que acontece ao nosso redor; trata-se de reconhecer e aproveitar as descobertas inesperadas. Reconhecer, receber, viver e agradecer.
A vida é uma busca incessante por aquilo que consideramos essencial e as descobertas surpreendentes só acontecem quando nos deixamos mover por esse espírito de busca; ser buscador significa ter olhar contemplativo, ou seja, transformar simples observações do nosso dia-a-dia em grandes descobertas. Por isso, é nas entranhas do cotidiano que brotam as grandes intuições, as experiências místicas, a criatividade artística, os sonhos ousados...; pois é no cotidiano que irrompe o novo e o revolucionário. É a atitude contemplativa que nos desperta da letargia do cotidiano. E despertos descobriremos que o cotidiano guarda segredos, novidades, energias ocultas que sempre podem acordar e conferir novo sentido e brilho à vida.
A vida espiritual está cheia de “momentos serendipiticos”, ou seja, encontros reveladores e inesperados com Aquele que se revela sempre de maneira surpreendente, através das surpresas da vida. Só aquele que segue as intuições do coração, estando aberto às infinitas possibilidades, pode entrar em sintonia com Aquele que “trabalha em tudo e em todos”. Ao confiar na sua orientação interior, a pessoa vive a sua vida com discernimento, carregando-a de amor e paixão.
Deus constantemente nos surpreende no singelo, nas coisas simples da vida. Muitas vezes nós perdemos a capacidade de ver a sua ação nas pequenas coisas e ficamos esperando grandes sinais. Cada instante é uma chance para perceber esse amor que Ele tem por nós. Se vivemos cada momento ordinário de forma extraordinária, certamente perceberemos a sua ação e seremos surpreendidos por Ele - um encontro com alguém, um gesto de bondade, uma palavra que alguém nos dá, uma paisagem que vemos, enfim, infinitos momentos em que Deus nos fala e nos busca surpreender. Mas, por não prestarmos atenção, por estarmos dispersos em tantas preocupações, por não fazer silêncio em nosso interior, acabamos não percebendo.
O Evangelho também está cheio desses momentos serendípiticos: uma multidão faminta em busca por alimento e aparece um menino com apenas cinco pães e dois peixes; uma mulher samaritana em busca de água e inesperadamente encontra-se com o autor da água viva; o baixinho Zaqueu que desejava apenas matar a curiosidade, é surpreendido por Jesus que deseja ser hóspede em sua casa; as parábolas da descoberta inesperada do tesouro e da pérola...
O papa Francisco, em uma Homilia proferida no Santuário Nacional de Aparecida, convidou-nos a constantemente "deixar-nos surpreender por Deus". Deus espera que nos deixemos “surpreender por seu amor, que acolhamos as suas surpresas”. O papa nos mostrou como modelo a história do Santuário: três pescadores depois de um dia inteiro sem apanhar peixe encontram, nas águas do Rio Paraíba, a imagem da Senhora Aparecida. Sabemos que os pescadores, após encontrarem a imagem milagrosamente, têm uma pesca abundante e conseguem o que precisavam para atender ao conde de Assumar. O Papa Francisco vai além, vai ao essencial desse episódio para entendermos melhor como Deus atua: “Quem poderia imaginar que o lugar de uma pesca infrutífera, torna-se-ia o lugar onde todos os brasileiros podem se sentir filhos de uma mesma Mãe? Deus sempre surpreende, sempre nos reserva o melhor”.
O evangelho deste domingo nos motiva a “des-velar” nosso “eu profundo”, o lugar onde habitam os aspectos benéficos da nossa personalidade, as boas tendências, as qualidades positivas, os dons naturais, as riquezas do ser, as beatitudes originais, as aspirações de grande fôlego, as ideias-força, os dinamismos da vida... Ao transitar, de maneira atenta e contemplativa pelos espaços interiores, seremos surpreendidos por descobertas inesperadas que farão toda a diferença em nossas vidas.
O “tesouro do ser” (certezas, intuições, projetos, valores...) ainda que pareça esquecido, permanece armazenado em sua mensagem essencial, e pode tornar-se a força que orienta toda a vida, a sabedoria da própria vida, um lugar de fecundidade, de criatividade, fonte de renovação...
Dentro de nós temos forças construtivas que podem mudar-nos eficazmente. E é preciso dar-lhes curso, não ocultando-as e nem desprezando-as, mas deixando-as aflorar espontaneamente. “Que eu me conheça e que te conheça, Senhor! Quantas riquezas entesoura o homem em seu interior! Mas de que lhe servem, se não se sondam e investigam” (S. Agostinho)
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novas vivências, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode enriquecer-nos. A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
Texto bíblico: Mt 13,44-52
Na oração: A oração ajuda a liberar o “olhar” para contemplar a realidade de outra maneira. Com isso, cada um pode descobrir melhor no seu cotidiano o que há de novidade positiva e salvadora.
- Contemplar é ter uma sensibilidade para deixar-se surpreender por Deus hoje, ou seja, re-educar o olhar para deixtar-se impactar pelo novo, pelo inesperado...
- na sua vivência cristã, identifique algumas ocasiões em que você não estava esperando e descobriu algo que se revelou importante para sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Pode acontecer que, arrancando o joio, arranqueis também o trigo.
Deixai crescer um e outro até a colheita” (Mt 13,29-30)
A Bíblia fala sempre da vida humana. Nela encontramos inúmeras referências à questão da sombra ou do lado obscuro em nossa vida. Textos emblemáticos são as parábolas de Jesus que desvelam o que somos, o que está acontecendo em nosso interior; em certo sentido, assemelham-se a uma descrição de nossa realidade interior. Não são contos moralizadores; todos os personagens que aparecem somos nós. Por isso, as parábolas são tremendamente iluminadoras. Com efeito, cada um de nós é um tipo diferente de terreno; cada um, o trigo e o joio; cada um, os dois filhos; cada um, o fariseu e o publicano..., e assim por diante, em todas as parábolas.
O primeiro e o mais claro que se revela na parábola que a liturgia nos propõe para este domingo, é que a realidade da vida humana é de tal condição, que nela sempre vão estar mesclados o bem e o mal, o trigo e o joio, a boa e a má erva. Este é o fato. Todos gostaríamos que as coisas acontecessem de outra maneira. E que, portanto, não teríamos que ver cada dia tanto joio sufocando o bom trigo que cresce e dá vida.
Em nosso interior também sentimos cruamente o trigo e joio, e gostaríamos ser um bom campo de trigo, desses movidos pelo vento, que antecipam um pão abundante; e todo joio que aparece junto a esse trigo nos molesta, desejaríamos arrancá-la e como, depois de muito esforço, não conseguimos, então empreendemos a tarefa de ir buscar joios em campos alheios com um fervor que impressiona.
A parábola do joio e do trigo revela a tendência humana em realizar os ideais de perfeição e distanciar-se cada vez mais de sua condição de criatura. O ideal é o ser humano “puro” e “justo”, sem qualquer imperfeição ou fraqueza. Tal tendência nos leva ao rigorismo contra nós mesmos, ou seja, nos leva a proceder com violência contra nossas próprias limitações.
Aquele que, a qualquer preço, deseja ser “perfeito”, em seu campo não irá crescer senão um trigo raquítico. Nas nossas raízes o joio está intimamente misturado com o trigo. Quando alguém não admite em si nenhuma falha, com suas paixões ele arranca também a própria vitalidade, com a fraqueza ele destrói também a própria força. Muitos perfeccionistas e idealistas se fixam de tal maneira sobre o joio em seu interior que só pensam em eliminar as falhas, de tal modo que a vida mesma fica prejudicada. De tão perfeitos, eles ficam sem força, sem paixão, sem coração.
Numa espiritualidade “perfeccionista”, o ideal é o homem-mulher puro(a) e santo(a), sem defeitos nem fraquezas. Mas isso leva a um rigorismo moral, contra o qual parece dirigir-se a parábola deste domingo. A arte da humanização consiste na reconciliação com a própria sombra. O ser humano comporta em si amor e ódio, razão e emoção, gentileza e dureza... Muitas vezes vivemos apenas um polo e recalcamos o outro. Enquanto este permanecer nas sombras terá um efeito destrutivo. Muitos ficam chocados quando, apesar de todo esforço para serem pessoas amáveis e gentis, descobrem em si lados insensíveis, antipáticos e ofensivos.
Um outro aspecto que aparece na parábola é que os “trabalhadores do Senhor”, ou seja, os que se veem a si mesmos como os vigilantes da ortodoxia e da moralidade, tem a tendência de querer logo arrancar o joio. Ou seja, não toleram que o bem e o mal estejam misturados. E querem um campo limpo de tudo o que eles veem como joio. Normalmente, esta tendência daqueles que se consideram como “vigilantes do bem” costuma desembocar na intolerância e inclusive na intransigência e no fanatismo.
Na “parábola do trigo e do joio”, o impaciente é nosso orgulho, que gostaria de chegar de imediato aos resultados para ficar “satisfeito”. Enquanto vivermos, o joio crescerá no campo do nosso interior. Conviver com isso nos faz mais humildes e nos protege de uma dureza falsa em relação a nós mesmos e aos outros.
A sabedoria de Jesus convida-nos a reconhecer em nós, misturados, o trigo e o joio. Este último, que é semeado “durante a noite”, isto é, na obscuridade do inconsciente, podem ser nossas próprias sombras, aquilo que tentamos eliminar porque se mostra incômodo para nós e não combina com nossos ideais pré-fixados... E Jesus não nos pede que sejamos só trigo – essa é a armadilha de toda espiritualidade farisaica, mas que aceitemos nossa verdade completa e reconciliemos também com o “nosso lado obscuro”
Numa leitura moralista e dualista da vida, nós gostamos de separar o bom do mau, os que pensam como nós e os que não pensam como nós, os que são dos nossos e aqueles aos quais não os levamos em conta. Há muitas pessoas que, não só se sentem capacitadas, senão que além disso estão empenhadas em arrancar o quanto antes o que elas pensam que é a erva má. São os intolerantes, os que não suportam aqueles que fazem ou dizem o que eles creem que não se deve fazer nem dizer. Por isso não respeitam o pluralismo, nem a diversidade. Exigem que todos lhes respeite, mas eles se consideram com direito a não respeitar o dissidente, o diferente ou simplesmente o outro.
No entanto, o Senhor (dono do grande campo da vida) não quer que ninguém se veja no direito de discernir o que é trigo e o que é joio. Mas, sobretudo, o Senhor não tolera que ninguém se constitua em juiz que, como consequência, vai pela vida arrancando tudo o que a ele lhe parece que é joio. Porque pode equivocar-se. A religião não tem nem autoridade nem competência para decidir o que é joio na sociedade. E menos ainda tem competência para arrancar essa presumível joio. Somente o Senhor pode saber quem é trigo e quem é joio.
O ensinamento do evangelho de hoje é claro: sejamos tolerantes e respeitosos. Não julguemos, não condenemos e deixemos a Deus ser Deus. Nós não somos “deuses”. A fertilidade da nossa vida nunca é expressão de uma impecabilidade absoluta, mas resulta da confiança no fato de que o trigo é mais forte do que o joio e de que o joio poderá ser separado na colheita.
Em tudo que fazemos devemos ser permeáveis ao Espírito de Deus. Mas sempre devemos permanecer humildes e contar com a possibilidade de que nossas atividades cotidianas se misturem com segundas intenções. Essas são o joio. Mas isso não significa que devemos deixar o joio determinar a nossa vida, através do seu crescimento irrefreado.
A questão de fundo é esta: qual dos dois alimentamos em nossa vida: o joio ou o trigo? Aqui se trata de pôr ambos, o trigo que cresce em nós e o joio que espreita, sob o olhar e o cuidado do Semeador; porque só Ele é que pode fazer a colheita. O decisivo é colocar o Senhor no centro de nossa vida; e onde Ele encontra espaço de atuação, ali o trigo cresce viçoso e produz frutos.
O caminho do seguimento de Jesus não visa nos transformar em pessoas perfeitas e impecáveis. Antes, deseja encorajar-nos a conviver com nossos lados sombrios. O seguimento de Jesus, portanto, não é combate interno que desgasta, visando eliminar o joio, mas abrir espaço para que o Semeador atue com sua Graça.
Texto bíblico: Mt 13,24-43
Na oração: A vida cristã nos faz especialistas em interioridade precisamente porque somos levados a percorrer, mil e uma vezes, todos os meandros de nosso interior para encontrar, transcendendo luzes e sombras, a Presença criadora que tudo sustenta e vivifica.
E é simplesmente dessa maneira que nos tornamos mais humanos e, portanto, mais divinos.
- quê lucidez você tem de sua própria sombra (joio) e qual a sua atitude com relação a ela? Quê atitudes você assume para que o trigo determine sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quando o sol apareceu, as plantas ficaram queimadas e secaram, porque não tinham raiz” (Mt 13,6)
Temos perdido as raízes? Como conectar-nos com elas? Quê raízes nos alimentam? Onde estamos enraizados? Quais são as raízes que nutrem atualmente nossa vida? São as melhores? Enraizamento, fincar raízes, viver da profundidade das raízes... O “novo” vem das raízes, vem de baixo, da base, do chão da vida. É preciso relançar uma nova radicalidade. Viver a partir das raízes, projetar a partir das raízes, criar a partir das raízes. É tempo de fortalecer as raízes; e viver o tempo das raízes para ser presença “diferenciada” na realidade cotidiana de cada um.
Neste novo contexto em que vivemos, marcado pelo desenraizamento, promove-se muito mais viver em mundos virtuais, em espaços criados pela tecnologia, comunicando-se através de relações informáticas com pessoas distantes, desenraizando-se do próprio chão existencial; no emaranhado das imagens e sons perde-se a noção daquilo que é essencial, decisivo para a vida; vive-se na superfície dos acontecimentos e de si mesmo; mina-se a consistência interior e fundamento sobre o qual se apoia a própria vida; esfria-se toda proximidade e relação com o outro; petrifica-se todo compromisso com as causas sociais...
Desenraizar-se é desumanizar-se.
Jesus, o homem enraizado em seu povo e sua cultura, traçou seu caminho em parábolas. Suas palavras romperam a ordem oficial do templo, a segurança dos sacerdotes, a razão dos escribas, colocando todos os homens e mulheres do povo frente à proposta de vida plena e feliz, desejada pelo Pai. As parábolas parecem revelar a verdadeira identidade de Jesus; é como se alguém lhe perguntasse: “quem és tu? O que fazes?”. Segundo Mateus, Jesus é o verdadeiro semeador. Por isso, é decisivo prestar atenção ao seu modo de semear. E Ele faz isso com uma surpreendente confiança; semeia de maneira abundante; as sementes de humanidade são lançadas em todos os tipos de terrenos, mesmo entre aqueles onde a germinação parece difícil. O semeador não desanima nunca; sua semeadura não será estéril.
A parábola do “semeador” é muito precisa, nem uma palavra a mais, nem uma a menos; nenhum floreio ou comentários em excesso... Austeramente, Jesus descreve o que acontece com a semente, partindo das experiências normais da agricultura de seu tempo, um exemplo concreto do trabalho nos campos, de maneira que todos os ouvintes podiam entendê-lo.
Tudo é normal e todos se descobrem imersos nela, como se estivessem juntos construindo a parábola, buscando seu sentido. Pois bem, quando ela é escutada dessa forma descobrimos que ela desafia todas as convenções sociais, pondo em movimento nossa vida, pois ela fala de nós, do que somos e fazemos. Assim ela se revela surpreendente, pura transparência, como um chamado à nossa própria criatividade. Nesse sentido, toda parábola vem iluminar e inspirar nosso modo de seguir e de nos identificar com Jesus; tal seguimento não é questão de uma simples adesão à pessoa de Jesus, mas um enraizamento na vida d’Ele, buscando ali a seiva que vai dar novo sentido à nossa existência.
A “nova radicalidade” (e não radicalismo) é a forma de seguir a Jesus. É uma radicalidade amável e expansiva, porque quem chega às raízes descobre-se enraizado na natureza humana, naquilo que todos compartilham e, por isso mesmo, descobre-se e sente-se enraizado no Outro. Ninguém pode viver sem raízes, pois não se sustentaria de pé. Quando perde suas raízes, o ser humano se atrofia e fica privado de algo decisivo, essencial: de uma fonte de vitalidade.
A verdade é que a vida cristã nos pede “desenraizamento” de algumas realidades que nos envenenam e fazem romper as relações (enraizamento no poder, na riqueza, na centralidade do próprio ego, na cultura da superficialidade...). Para dizer um “sim” ao seguimento de Jesus e enraizar-nos em uma realidade verdadeiramente consistente (sua palavra e vida) é preciso dizer “não” àquelas outras realidades, desprender-nos delas, desenraizar-nos delas.
Ao nos convidar a ter raízes profundas, o Evangelho de hoje (15º TC) está afirmando algo muito importante: nesta terra, nesta realidade social, cultural, eclesial e política, já está semeado o Reino, já está viva e ativa a presença do Deus fiel que cria futuro. Nós nos alimentamos desta realidade na medida em que nos deixamos semear nela. Somente aquele que se deixa semear experimenta o sabor da seiva da vida de Deus entrando por suas raízes, percorrendo seu ser inteiro, fazendo-o crescer e dando os frutos de que nosso povo precisa. Aquele que não se deixa semear vive de ilusões e quimeras que envenenam sua existência.
O duro trabalho de lavrar a terra, de semear e semear-nos nela, supõe um amor pela terra. Acreditamos nela, a apalpamos entre os dedos para sentir sua qualidade. O camponês ama sua terra não só pelo que lhe possa produzir, mas porque nela está presente a herança de gerações familiares que lhe precederam. Sua terra tem nomes e sobrenomes: para ele é um ser vivo com sangue de família em suas entranhas. Amamos a terra na qual estamos semeados como Jesus amou o seu povo?
Ter as raízes fincadas na história, na realidade, raízes que a partir do oculto nutrem nossa vida e alargam o coração, é saber que temos uma origem e uma meta que é o próprio Deus. Raízes que se entrecruzam por debaixo do solo, no profundo, compartilhando a mesma água e o mesmo húmus. Vida nova, que cresce a partir de dentro e a partir de baixo, a partir do oculto. Ramos que se abrem e se curvam buscando a luz. Uma vida iluminada. Profundidade, serenidade e descanso. Solidariedade e comunhão. Vida que cresce em companhia. Vida consistente. Solidão habitada e fecunda.
Muitas vezes o enraizamento supõe estar presente naquelas realidades das quais muitos fogem, das quais muitos renegam, ou que são somente terras de passagem, fronteiras que geram medo e insegurança. O enraizamento supõe respeito para com toda realidade, amar a terra concreta tal como ela é, como Jesus que, na Encarnação, foi semeado naquela terra dominada e excluída da Palestina.
Foi no enraizamento do chão daquele povo que Jesus foi se humanizando e abrindo-se à novidade do Reino do Pai que tudo transforma. Assim expressa Jesus de si mesmo quando se comparou com a videira plantada na terra de Israel.
É preciso deixar-se semear não só onde a terra já está preparada durante gerações, mas também nas margens da realidade, na dureza das terras sem arar, cheias de pedregulhos e de espinhos. Não podemos fugir da realidade que temos de arar, semear e cultivar com sua dureza e com seu encanto.
Texto bíblico: Mt 13,1-23
Na oração: Uma vida que se enraíza, é uma vida firme, consistente. Por outra parte, as raízes na planta, são as que se introduzem na terra e crescem em sentido contrário do tronco, servindo-se como sustentação. Graças a elas pode absorver o alimento necessário para seu crescimento.
- quais são e onde estão as raízes nas quais seu coração se alimenta?
- onde apoia sua vida? quê é o que a sustenta?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vós” (Mt 11,29)
Em toda visão antropológica, o coração ocupa o centro profundo de nosso ser, o nosso cerne mais íntimo, o coração do coração, que não consiste no mero sentimento, mas trata-se do centro existencial que nos permite orientar-nos como um todo e plenamente em direção ao bem, à verdade, à justiça...
O coração é uma dessas palavras sobre a qual toda a multiplicidade se torna uno.
Ele simboliza, para a grande maioria das culturas, o centro da pessoa, onde se unificam todas suas dimensões. Uma pessoa com coração não é a dominada pelo sentimentalismo, senão aquela que alcançou uma unidade e coerência, um equilíbrio de maturidade que lhe permite ser objetiva e cordial, lúcida e apaixonada, intuitiva e racional; nunca fria, mas sempre acolhedora; nunca cega, mas realista.
Ter coração equivale a ser uma personalidade integrada. O coração é o símbolo da profundidade e da interioridade. Só quem chegou a uma harmonia consciente com o profundo de seu ser consegue alcançar a unidade e a maturidade pessoais.
O coração do ser humano é a própria fonte de sua personalidade consciente, inteligente e livre. É o lugar de suas escolhas decisivas, fonte das bem-aventuranças, santuário da ação misteriosa de Deus e do encontro com Ele. Recordações, pensamentos, projetos e decisões são alguns dos componentes essenciais do órgão vital por excelência. O que acontece nele tem caráter decisivo. “O mistério interior do ser humano, tanto na línguagem bíblica como na não bíblica, se expressa com a palavra coração” (Xavier León-Dufour). Por isso é importante permanecer atento aos seus movimentos. É a única forma de nos conhecer e de conhecer verdadeiramente uma pessoa. O coração pode palpitar ao ritmo da soberba ou da humildade, do amor ou do ódio, do egoísmo ou da generosidade. E está cheio de mesclas: de trigo e de joio.
Vivemos imersos em uma multiplicidade de realidades, imagens, ofertas, caminhos, ideias diferentes... No entanto, quando procuramos reunir e estruturar nossa busca e orientá-la para a realidade última de nossa existência, recorreremos a expressões, palavras, imagens que brotam do mais profundo de nós mesmos, do nosso coração. Trata-se, pois, de chegar à unificação de nossa pessoa, integrando a afetividade, a sensibilidade, a razão, os desejos..., para além da bela expressão de Pascal: “O coração tem razões que a razão não conhece”. O fato é que há “olhos no coração” que permitem compreender o que nem os olhos do corpo, nem a razão são capazes de perceber: “Rogo a Deus que ilumine os olhos dos vossos corações, para que conheçais qual é a esperança à qual fostes chamados” (Ef. 1,18).
A antropologia bíblica considera o coração como o interior do ser humano, num sentido muito mais amplo que o das línguas latinas; não o coração entendido como o órgão da afetividade (uma zona muito inconsistente e instável), mas uma dimensão mais interna e transparente, que se converte em “sede” do espírito. Já no AT, o coração designava o complexo mundo interior do ser humano.
Fechamento, insensibilidade, indiferença, impassibilidade, surdez, falsidade, murmurações... eram razões mais que suficientes para exortar a uma mudança de atitude. “Eu lhes darei um só coração e infundirei neles um espírito novo: tirarei de seu peito o coração de pedra e lhes darei um coração de carne” (Ez 11,19). A conversão devia empapar todo o ser, especialmente o coração petrificado.
Segundo a tradição bíblica, o que mais nos desumaniza é viver com um “coração fechado” e endurecido, um “coração de pedra”, incapaz de amar e de crer. Quem vive “fechado em si mesmo”, não pode acolher o Espírito de Deus, não pode deixar-se guiar pelo Espírito de Jesus.
Quando nosso coração está “fechado”, nossos olhos não vêem, nossos ouvidos não ouvem, nossos braços e pés se atrofiam e não se movimentam em direção ao outro; vivemos voltados sobre nós mesmos, insensíveis à admiração e à ação de graças. Quando nosso coração está “fechado”, em nossa vida não há mais compaixão e passamos a viver indiferentes à violência e injustiça que destroem a felicidade de tantas pessoas. Vivemos separados da vida, desconectados. Uma fronteira invisível nos separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia.
Quando vivemos a partir do coração, escutamos com mais paciência, olhamos com cumplicidade, tocamos com ternura, sofremos com fortaleza, assumimos o risco com naturalidade, misturamos nossa vida com a dos outros e avançamos em comunidade realizando projetos solidários.
Jesus dava decisiva importância ao coração: “a boca fala daquilo que está cheio o coração” (Lc. 6,45); “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt. 5,8). “Onde está teu tesouro, ali está teu coração” (Mt. 6,21). Jesus vivia a partir de seu coração e contagiava com a força poderosa de seu amor e de sua entrega. Nele se realizou definitivamente sua promessa. Ele nasceu com um coração de carne, ou seja, humano, absolutamente divino. Estava chamado a ser o coração de todos, o centro nevrálgico da humanidade.
Jesus é o homem para os outros, que tem coração, um coração não de pedra, mas de carne. Sua vida, um sinal do bem amar, do saber amar. Mas, sobretudo, Jesus, em seu Coração, é a profundidade mesma do ser humano e de Deus. Nele está a fonte do Espírito que brota como água fecunda até a vida eterna. Graças à Encarnação, o Filho de Deus trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, sentiu com vontade humana, amou com coração humano.
O coração de Jesus nos fala de iniciativa, de liberdade, de entrega absoluta e amor profundo. O coração de Jesus revela que sua vida implica um movimento de saída, que provoca encontros pessoais, que transforma a vida daqueles(as) que o seguem, abrindo-lhes novos horizontes, ampliando a visão e descentrando-os de sua própria lógica.
O evangelho deste domingo mostra um dos mais vivos exemplos de coração agradecido que podemos encontrar. Jesus, que acaba de passar por uma profunda experiência de rejeição por parte das cidades da Galileia, explode no canto que começa: “Eu te louvo, Pai, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos”.
O coração de Jesus é sustentado, alimentado, irrigado pelo amor cuidadoso e providente do Pai. É no coração que também nós, seus(suas) seguidores(as), poderemos estar em segurança, profundamente repousados. É no coração, “última solidão do ser”, que decidimos por Deus e a Ele aderimos. Aqui Deus marca “encontro” com cada um de nós. “Deus é mais íntimo a cada um de nós do que nós mesmos” (S.Agostinho).
Texto bíblico: Mt 11,25-30
Na oração: Todos estamos no coração de Cristo. Todos estamos no Amor de Deus. Todos fomos introduzidos na Sagrada Humanidade d’Aquele que, sendo Deus, se fez semelhante a nós para que possamos todos nos sentir n’Ele.
O coração se revela como imagem de amor, de humanidade, de entranhas compassivas. Identificamos as pessoas por seu bom coração, por terem entranhas de misericórdia.
- Você deixa transparecer seu coração na relação com as pessoas? As atividades que você realiza tem coração?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que tu ligares na terra...” (Mt. 16,19)
Neste domingo celebramos a festa de duas grandes figuras-chave na Igreja: Pedro e Paulo; fortes personalidades que fizeram uma impactante experiência de encontro com o peregrino da Galileia. E foram profundamente transformados, a ponto de terem seus nomes mudados pelo próprio Jesus Cristo.
Diante das maravilhadas que serão proclamadas de um e de outro, podemos apresentar uma pergunta que pode nos parecer estranha. “Quê fica de Simão em Pedro?” , “Quê fica de Saulo em Paulo?”. Porque Pedro, primeiro foi Simão; Paulo foi Saulo. E Jesus chamou Simão e chamou Saulo. Em seguida, mudou o nome deles para Pedro e Paulo. Simão, o homem do lago e da barca de pesca; Saulo, o zeloso fariseu, fiel seguidor da lei e perseguidor da Igreja. Pedro, o homem da Igreja, a rocha sobre a qual Jesus assenta sua nova comunidade. E todos nós o recordamos como o homem das “chaves”. Paulo, o apóstolo dos gentios, fundador de novas comunidades cristãs para além do território judaico.
Mas, retornemos às perguntas: o que permaneceu de Simão, aquele do lago, no Pedro da Igreja? Desapareceu o verdadeiro Simão e ficou somente o Pedro? Ou teríamos de dizer que há nele uma mescla de Simão e de Pedro? O que permaneceu de Saulo, fariseu e filho de fariseu, no Paulo que alargou as fronteiras da primitiva Igreja?
O Pedro, rocha firma, não deixa de ser o Simão do lago. Apesar de Jesus ter mudado seu nome, no entanto, em diferentes ocasiões aflora o Simão que não consegue entender Jesus e quer desviar o mestre de seus planos e projetos. Continua vivo o Simão que busca o triunfalismo messiânico de Jesus e revela resistência em seguir Aquele que vai ser crucificado. Continua sendo o Simão que compete com os outros sobre a primazia no novo Reino, e crê que é ele quem vai dar a vida por Jesus. Continua sendo o Simão covarde e com medo que nega Jesus na noite da Paixão. O mesmo poderíamos dizer de Saulo. Muitos traços seus continuam presentes na nova identidade: Paulo.
No evangelho de hoje, Jesus deixa transparecer sua identidade através da confissão de Pedro: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”; e, ao mesmo tempo, Jesus desvela a identidade de Pedro: “Tu és “petros” (pedregulho) e sobre esta “petra”(rocha) edificarei minha igreja”. Pedro se torna rocha firme (“petra”) quando se apoia na identidade de Jesus (a verdadeira Rocha).
Pedro, que era “petros” (pedra de tropeço no caminho, frágil, limitado...), foi sendo transformado, através da identificação com Jesus, em “petra”, rocha firme da primitiva comunidade cristã. Dessa forma, o Simão que era “petros”/pedra lentamente vai fazendo a travessia para “Petra”/rocha firme, porque o mestre desvelou a nobreza que estava escondida no coração dele, ou seja, sua verdadeira identidade sobre a qual o mesmo Jesus iria edificar sua igreja.
Diante dos dois personagens, Pedro e Paulo, vamos intuindo que a questão não é trocar simplesmente de nome. A Graça não destrói a natureza humana, mas a plenifica e a torna expansiva. Em Pedro, a graça não destrói o Simão, em Paulo não destrói o Saulo. Eles procurarão conservar a fidelidade a Jesus e à comunidade dos seus seguidores, mas cada um imprimirá sua própria personalidade.
A graça do seguimento de Jesus não apaga nossa condição humana, nossa herança genética, nossa personalidade, nossa psicologia, nossa sensibilidade e nosso mundo afetivo; carregamos conosco nossa cultura e nossa própria história humana.
O desafio é este: que permanece de nossa herança biológica e cultural na experiência do seguimento de Jesus? É possível que em todos nós, em “Pedro”, permaneça latente muito de “Simão”; em “Paulo”, permaneça muito de “Saulo”. E como distinguir o Simão de Pedro que todos carregamos dentro de nós? Não é fácil a Pedro desprender-se do Simão de antes, nem a Paulo desprender-se do Saulo de antes. Só a identificação com Jesus possibilita fazer a travessia para o “novo nome”, integrando e pacificando
as “marcas humanas” do antigo nome.
O Evangelho da festa de hoje nos ajuda a ler nossa vida. Ali afirma-se nossa identidade; e a identidade de uma pessoa é dada por aquilo que é sólido, consistente... no seu interior, que não se desfaz com as adversidades do mundo no qual vivemos (crises, fracassos, fragilidades, incoerências...). Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.
“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas. A própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que cada pessoa tem, para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis golpes da luta pela vida. Com confiança em si e na rocha do próprio ser, todas as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo que originalmente é chamada a ser.
Para isso temos em nossas mãos as chaves da vida. O que fazemos com elas? Podemos abrir ou fechar, ligar ou desligar, atar ou desatar.... Ter a chave da vida como Pedro e Paulo ou como Simão e Saulo: abrir ou fechar as portas do futuro, das relações, dos sonhos, da missão... Dar amplitude à vida ou atrofiá-la. Atar ou desatar os nós da vida.... Aqui está o grande desafio: abrir-se ou fechar-se: abrir-se à vida, ao novo, ao outro, ao desafiante ou diferente... ou retrair-se ao próprio ego.
Ter identidade é assentar nossa vida sobre a rocha interior (Pedro) que nos sustenta e nos faz sair da prisão do ego (Simão). Nossa identidade é sempre dinâmica, histórica, fecunda, aventureira... Nossa vida é uma contínua travessia do Simão/Saulo para Pedro/Paulo, porque ela está centrada n’Aquele que tudo sustenta. Nossa identidade profunda está a serviço de quem? – do próprio “ego” como Simão ou Saulo, ou do Reino, como Pedro e Paulo.
Texto bíblico: Mt. 16,13-19
Na oração: Muitos caminhos conduzem à própria interioridade. A oração é a chave de acesso; ela é esse silencioso exercício de deixar que Deus me habite para que eu possa abrir as portas do coração e janelas da mente àqueles com quem me encontro.
Onde a Graça de Deus tem liberdade de atuar, ali afloram o Pedro e o Paulo que tenho atrofiados dentro de mim.
- O que prevalece nas minhas relações cotidianas: Simão/Saulo ou Pedro/Paulo?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Vede, eu vos envio como ovelhas para o meio dos lobos; sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas” (Mt 10,16)
Os conflitos são constantes no caminho da fidelidade ao Evangelho: conflitos externos que surgem a partir da presença inspiradora e provocativa dos(as) seguidores(as) de Jesus; conflitos internos que afloram quando a mensagem evangélica ressoa na interioridade de cada um, desvelando seus contraditórios impulsos, tendências, dinamismos, forças...
O ser humano vive tencionado entre dois polos: entre luz e escuridão, céu e terra, fragmentação e unidade, espírito e instinto, solidão e vida comum, medo e desejo, amor e ódio, razão e sentimento, sagrado e profano..., enfim, entre animalidade e humanidade.
Não se trata de alimentar uma luta entre esses dois impulsos, como um combate entre o bem e o mal; tampouco se trata de uma leitura moralista diante da presença das chamadas “tentações”.
O combate dualístico desemboca no puritanismo, no farisaísmo, no legalismo, no perfeccionismo, no voluntarismo..., esvaziando a pessoa de toda densidade humana.
A questão de fundo é saber qual dos dois dinamismos nós alimentamos; é aqui que entra a liberdade (ordenada) para deixar-nos conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito. Só quando dizemos sim a esta tensão básica de nossa vida é que conseguimos superar a divisão interna.
Viver uma “vida segundo o Espírito” significa, antes de tudo, chegar à compreensão e integração das polarizações internas, dos dinamismos opostos, dos movimentos contraditórios... que nos mantêm “despertos” e que dão calor e sabor à nossa existência.
É próprio do Espírito, reunir, integrar, conciliar, pacificar, conduzir-nos a um “lugar interior”, a um centro de calma, onde tudo tem seu lugar, onde tudo encontra seu espaço. Sua discreta presença nos move a acolher em nós nosso potencial de ternura, de cuidado e de resistência diante de todas aquelas situações e forças que desintegram a vida. A atitude fundamental é a de sermos dóceis para nos deixar conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não sabemos.
À luz do evangelho deste domingo, vamos considerar os “conflitos internos”. E a questão primeira que surge é esta: como integrar, pacificar, harmonizar... os “animais interiores”, para que o seguimento de Jesus Cristo não termine num combate espiritual que desgasta, tornando pesada a vivência cristã e levando ao sentimento de impotência e desânimo?
Sob o impulso do Espírito, somos chamados a conhecer, reconhecer, nomear e integrar os animais que nos habitam. E caminhar fraternalmente com eles. Cada um deles representa os instintos, impulsos, paixões, fragilidades, sensualidade, sentimentos... que, quando não pacificados e integrados, criam uma desarmonia interior.
Somos como a “arca de Noé”, no grande Oceano da vida, carregando em nosso interior todos os animais, com seus instintos selvagens e primitivos; e o maior desafio é, justamente, a harmonia e a convivência, onde cada um deles tem sua importância, seu papel sagrado e revelador da nossa identidade humana. São eles que nos facilitarão o acesso às nossas riquezas interiores.
Algumas vezes agimos como uma cobra, ficamos ariscos e escondidos como uma onça, rugimos como um leão ou atacamos como um cão feroz. Outras vezes, até agimos igual a animais ruminantes que mastigam continuamente os rancores e mágoas do passado.
Eles não cessam de ladrar enquanto não lhes damos atenção. É preciso, antes de tudo, pacificar nossos animais interiores. Trata-se de conhecê-los, aprender a linguagem deles, fazer amizade com eles para que eles não nos destruam por dentro.
Faz parte da maturidade e crescimento pessoal encontrar e entender, em cada um de nós, a mensagem e o desafio de animais interiores como a pomba, o cachorro, o corvo, a serpente, a raposa, a perdiz, o lagarto, o falcão, o lobo, o leão... Cada animal deve ser verbalizado, integrado harmoniosamente no tempo certo e no lugar adequado. Ao fazer isso, descobriremos as diferentes dimensões da ecologia espiritual, paradisíaca e harmônica, para bem viver a maravilha da vida plena e em abundância.
Quando todas as energias animais são ordenadas, elas colaboram para o conhecimento pessoal, o refinamento da identidade e a busca da autenticidade, elas são fonte interior de sabedoria e de desfrute espiritual. Então, os animais pacificados irão nos conduzir ao mais profundo e nos mostrar onde o tesouro está escondido, e ajudam-nos a desenterrá-lo. Aqui está o lado “humanizante” da vida.
Fomos forçados, durante nossa formação cristã, a viver uma espiritualidade que nos ensinou a reprimir e a manter presos todos os animais na gruta interior e a levantar junto dela um edifício de “grandes ideais”. Lutar contra os animais interiores é permanecer na superfície de si mesmo e não ter acesso às reservas de riqueza do próprio coração.
Tal vigilância e suspeita nos levaram a viver constantemente com medo de que os animais pudessem fugir e nos devorar. Fomos obrigados a fugir de nós mesmos, ficamos com medo de olhar para dentro de nós, pois poderíamos correr o risco de nos deparar com os eles. Quanto mais os amarramos, tanto mais perigosos eles se tornam; eles nos atacam por dentro, tirando a disposição, o ânimo de viver.
Com isso nos excluímos do prazer de viver, porque tudo é reprimido e nossa animalidade é violentada. E onde está o nosso medo pode estar também o nosso tesouro enterrado. “Não tenhais medo deles. Não há nada de oculto que não venha a ser revelado, e nada de escondido que não venha a ser conhecido” (Mt 10,26).
Sem a superação cotidiana desse medo, nossa missão estará comprometida; perderá sua força inovadora, garantida pela novidade do Projeto de Deus. Sabemos que tudo quanto nós reprimimos nos faz falta à nossa vida. Os “animais selvagens” tem muita força. Quando os prendemos, gera um desgaste muito grande e fica nos faltando a sua força de que temos necessidade para o nosso caminho para Deus, para nós mesmos e para os outros.
Nosso compromisso deveria ser a de travar um diálogo amoroso com os animais dentro de nós. Então tornar-se-á realidade o que o profeta Isaías prometeu: “O cordeiro e o leão andarão juntos, e a pantera se deitará com o cabrito...” (Is. 11,6ss). O compromisso com o Reino requer de todos uma forte dose de coragem e uma alma ágil, animada e vivificada pelo sabor da aventura e da novidade. Vencido o medo, nós nos tornaremos autênticos, criativos e audazes seguidores de Jesus.
Texto bíblico: Mt 10,16-33
Na oração: Na vivência cristã, o que importa é ter a coragem de entrar na “arca interior” e dialogar amigavelmente com todos os animais. Então eles indicarão o caminho do tesouro escondido. Este tesouro pode ser “uma nova vitalidade e autenticidade, um sonho ousado, uma intuição, um dom especial, o encontro com o verdadeiro eu, a imagem que Deus faz de cada um de nós...”
“Entrar na arca” significa “buscar e encontrar a Deus” exatamente em nossas paixões, em nossos traumas, em nossas feridas, em nossos instintos, em nossa impotência e fragilidade... Viver uma nova espiritualidade significa, então, não buscar “ideais de perfeição”, mas dialogar com nossas paixões, nossas fragilidades, nossas carências...Poderíamos nos interrogar o que é que Deus deseja nos revelar por meio delas, e como justamente através delas Ele deseja nos conduzir ao tesouro escondido no interior de nossa vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas...; chamou os doze discípulos” (Mt 9,36)
Uma pessoa que se define tem força para despertar, para arrastar, para mobilizar os outros. Jesus é o homem que se definiu. Por isso, Ele nos inspira e nos impulsiona. Inspirar e impulsionar, impulsionar a partir da inspiração: isso é seduzir no melhor sentido da palavra. Jesus não nos seduz simplesmente para provar sua condição divina ou a veracidade de sua mensagem. Ele nos seduz porque foi um homem de carne e osso como nós, e porque alcançou um grau de humanidade, de compaixão e liberdade, de sensibilidade e compromisso..., que está em nossas mãos alcançar.
A grande novidade e originalidade de Jesus (sua subversão) começou em sua maneira de olhar a realidade e de deixar-se afetar por ela. A “subversão” da vida começa pela subversão do olhar e vice-versa. O coração sente de acordo com o que os olhos veem, mas os olhos veem de acordo com o que sente o coração. A realidade subverte o olhar, e o olhar subverte a realidade. Olhos que não veem, coração que não sente. Mas os olhos não veem quando o coração não sente.
Os olhos de Jesus viram muita dor, miséria, violência..., e suas entranhas se comoveram. Viu o seu povo despojado da terra, dos direitos mais elementares... Jesus viu e se compadeceu; compadeceu-se e indignou-se; indignou-se e se comprometeu na transformação daquela realidade dolente; comprometeu-se porque seus olhos viram mais a fundo, mais além, outro mundo possível. Na raiz de sua atividade terapêutica e inspirando toda sua atuação junto aos enfermos está sempre seu amor compassivo. Jesus se aproxima dos que sofrem, alivia sua dor, toca os leprosos, liberta os possuídos por espíritos malignos, os resgata da marginalização e os devolve à convivência.
O que move a vida de Jesus é a compaixão e a compaixão é expansiva, tem impacto profundo naqueles(as) que estão ao seu redor. Compaixão desperta compaixão pois ela é mobilizadora dos sentimentos mais nobres presentes no interior de cada um. No calor da compaixão ativada brota o chamado de Jesus e a resposta dos seus(suas) seguidores(as). Sem compaixão, a resposta ao chamado se esvazia, o serviço se burocratiza, o seguimento vira lei.
Jesus não nos chama para seguir uma religião, uma doutrina, nem faz proselitismo... Ele desencadeia um movimento e nos convoca a segui-Lo, ou seja, identificar-nos com Ele e com sua proposta de vida. O horizonte do chamado e do envio não é outro que o compromisso em favor da vida e das pessoas, frente àquelas forças que tendem a travar e danificar a mesma vida. A partir desta perspectiva, a “missão” pode reencontrar seu verdadeiro sentido. Enviados(as) em favor da Vida, seus(suas) seguidores(as) sabem muito bem qual é o encargo que Jesus lhes confia. Nunca O viram governando a ninguém; sempre O conheceram curando feridas, aliviando o sofrimento, regenerando vidas, destravando os medos, contagiando confiança em Deus.
A novidade de Jesus consiste justamente em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo, pela pompa dos ritos e pela observância estrita das leis. Desse modo, reconhece-se a vida como lugar privilegiado da Sua Presença.
O(a) seguidor(a) de Jesus não é aquele(a) que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele(a) que, movido por uma radical compaixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença d’Aquele que é a Misericórdia.
É aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o seu Reinado, trabalhando cada dia como amigos(as) de Jesus que passam, se compadecem, curam, ajudam, transformam, multiplicam os esforços humanos. Apaixonados(as) por Deus, apaixonam-se pelo mundo que, em sua diversidade, riqueza, profundidade, fragilidade, sabedoria... lhes fala e lhe revela o rosto misericordioso do Deus que se humanizou para humanizar nossas vidas.
Jesus não fundou o clero nem quis instituir um corpo ou estamento de “homens sagrados”, uma espécie de funcionários do templo, constituindo-se numa “classe superior”. O que Jesus quis foi “discípulos/as” que lhe “seguissem”, ou seja, que vivessem como Ele viveu: dedicados a curar enfermidades, aliviar sofrimentos, acolher as pessoas mais perdidas e extraviadas. Assim nasceu o “movimento de Jesus”.
Jesus, o “rosto misericordioso do Pai”, continua passando diante de cada um de nós, parando e fazendo um chamado que desperta comoção e compaixão. Sua presença provocativa e seu chamado exigente colocam em questão nosso costume de nos refugiar no mundo asséptico das doutrinas, na tranqüilidade de uma vida ordenada, satisfatória e entorpecida, na segurança de horários imutáveis e de muros de proteção, longe do rumor da vida que luta para ter um lugar ao sol, dos gritos daqueles que sofrem e morrem nas periferias deste mundo.
Escutar e seguir Seu chamado implica abandonar a estreiteza de nossos caminhos e deixar o nosso coração bater no ritmo dos doentes e marginalizados, vítimas da desumanização de nossa sociedade. O importante não é pôr em marcha novas atividades e estratégias, senão desprender-nos de costumes, estruturas e dependências que estão nos impedindo ser livres para contagiar o essencial do Evangelho, com verdade e simplicidade.
Como evitar que a aventura, na qual um dia nos embarcamos, nascida de uma paixão pelo Senhor e pelo seu Reino, transforme-se num tedioso cumprimento de normas e costumes? Estamos, talvez, experimentando a frustração de não ter acertado na rota da busca da vida plena e transbordante na qual quisemos investir as nossas melhores energias: sentimo-nos cansados(as) de palavras sem significado e sentimos fome de proximidade, de presença, de compromisso.
Como Igreja, nem sempre temos adotado o estilo itinerante que Jesus propõe. Nosso caminhar torna-se lento e pesado; não acertamos o passo para acompanhar a humanidade; não temos agilidade para deslocar-nos em direção à margem sofredora; agarramos ao poder e às estruturas que tiram a mobilidade; enredamos nos interesses que não coincidem com o Reinado de Deus.
Não estaremos desperdiçando as nossas forças para conservar atitudes arcaicas e nos deliciamos com um estilo de vida que nos atrofia? Não chegou, talvez, o momento de deixar de repetir aquilo que fazíamos antes, e de abrir-nos àquilo que está diante de nós, à novidade que o Espírito está criando?
Para Jesus, o ideal de sua mística é “viver com um pé levantado”, isto é, sempre pronto para responder às oportunidades que são oferecidas pela vida. O(a) seguidor(a) de Jesus vive a aventura enquanto capacidade de estar “na frente” de situações desafiantes, superando o medo de romper paradigmas, potencializando talentos e fomentando a criatividade... Tem a ousadia de inovar, a coragem de arriscar e a vontade de realizar mudanças importantes. Para isso é preciso despojar-nos de hábitos arraigados, pré-juizos, ideias fixas, modos fechados de viver e abandonar a atitude do “sempre fizemos assim”. Estes são os vícios que impedem uma resposta diferente e sedutora num mundo em transformação.
A compaixão deve configurar tudo o que constitui nossa vida: nossa maneira de olhar as pessoas e de ver o mundo; nossa maneira de nos relacionar e de estar na sociedade, nossa maneira de entender e de viver a fé cristã...
Texto bíblico: Mt 9,36-10,8
Na oração: Jesus, foi o homem que se definiu, tinha claro qual era sua missão; por isso, nos apresenta uma causa muito nobre e, com seu chamado, rompe nosso estreito mundo e desperta em nós ricas possibilidades, reacende o que de mais nobre há em cada um(a) e amplia nosso horizonte de vida.
Seguir Jesus Cristo é aderir a Ele incondicionalmente, é “entrar” no seu caminho, recriá-lo a cada momento e percorrê-lo até o fim. Seguir é deixar-nos “configurar”, isto é, movimento pelo qual vamos sendo modelados(as) à imagem de Jesus Cristo.
- Sua vivência do Seguimento de Jesus é marcada pelo “olhar compassivo e comprometido” ou por práticas piedosas alienadas, que não o(a) projetam em direção aos mais sofredores?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (Jo 6,51)
O corpo humano está no centro da revelação cristã, já que se trata de algo assumido pelo mesmo Deus na Encarnação de seu Filho Jesus Cristo; Ele se faz corpo humano e habita entre nós. Este gesto divino eleva e engrandece a corporeidade humana e a resgata para sempre, já que a divindade abraça a “carne”, assumindo sua fragilidade para dentro de Si mesmo.
Deus se revela encarnando-se, assumindo um corpo que sente, que vibra, que tem prazer e que sofre, uma carne que treme, vulnerável ao frio e ao calor, à fome e à sede. Corpo que comunga com nossa mortalidade, padecendo dor, agonia e morte, sendo sepultado no ventre da terra como toda criatura.
Segundo os Evangelhos, Jesus de Nazaré foi Aquele que soube ser feliz transitando com sabedoria e amor o caminho do próprio corpo. Ele não tinha uma mentalidade dualista: sua visão do mundo não era dicotômica nem hierarquizada, nem separava entre sagrado e profano. Essa mentalidade que contaminou o cristianismo não procede d’Ele, mas de filosofias posteriores.
Jesus não se apresentou como inimigo do corpo, do prazer e da festa, nem foi um asceta como João; pelo contrário, escandalizou por sua forma festiva, prazerosa e livre de viver seu corpo e suas relações. Desfrutou de banquetes em companhia de gente excluída e marginalizada por diversas razões, e isso foi motivo de espanto. O fato de ter sido acusado de “comilão, beberrão, amigo dos publicanos e pecadores” é a melhor expressão de sua liberdade relacional e sua maneira de viver reconciliado com seu corpo ao permitir-se prazeres corporais: comer, beber, dormir, descansar, desfrutar dos sentidos... a vista, o sabor, o olfato, o tato.
Nem ele nem seus discípulos guardavam o jejum, participando de casamentos, banquetes, refeições festivas com “gente de má fama”, para escândalo dos considerados “puros”.
Além disso, Jesus viveu seu corpo como um lugar para a relação sem medos nem tabus: tocou e se deixou tocar com profunda liberdade, escandalizou os seus discípulos desfrutando do contato amoroso com Maria de Betânia, que derramou sobre Ele um caríssimo perfume, num gesto de total gratuidade e marcada somente pelo desejo de compartilhar amor e gratidão. Olhou o corpo das mulheres de um modo muito diferente daquele dos seus contemporâneos; para Ele, elas nunca foram lugar de tentação ou seres inferiores dos quais não tinha nada que aprender: foram amigas, companheiras, discípulas, mestras em muitos momentos.
Empenhou-se por praticar um amor operativo e, sobretudo, centrado nos corpos enfermos, desgarrados, desnudos, famintos, encurvados, paralisados, cegos, coxos, leprosos...; além disso, deixou claro a quem quisesse escutá-lo, que isso era o fundamental para entrar no Reino: passar pela vida como tera-peuta/sanador e não como juiz que acusa; abraçar e acolher a carne sofredora dos outros e não manter uma prudente distância do corpo vulnerado de Jesus. E, se com sua vida não tivesse ficado suficientemente claro, quis, num momento solene, recordar a todos que a verdade última sobre o que é ganhar a vida ou perdê-la definitivamente está no fato como tratamos os corpos de nossos irmãos que sofrem. O amor não é algo etéreo: ou passa pelo corpo ou é apenas um bom desejo e nada mais.
Na festa de “Corpus Christi” fazemos memória deste mistério: o único recurso de que Jesus dispunha antes de ser preso e sofrer a paixão era seu próprio corpo. Não teve outra riqueza nem outro dom a nos oferecer. Esse Corpo que era sua própria vida; sentia-se abençoado em sua totalidade, sem deixar nada fora. Agradeceu por isso e fez dele um gesto definitivo: entregou-se por inteiro, sem nada reservar para si. A partir de então, torna-se um Corpo expansivo que se deixa tomar pelas nossas mãos e saborear pela nossa boca, na maior proximidade e no mais íntimo contato. De agora em diante, será nos corpos vulnerados, nos corpos que sofrem, resistem e curam, onde Ele quer permanecer expressamente presente, com uma presença imediata que não deixa lugar a dúvidas: “Todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes”.
Na festa de Corpus Christi, há um grande perigo de alimentar a devoção à presença real de Jesus na Eucaristia desvinculado da realidade de sua Encarnação, ou seja, esquecer que Ele se fez corpo, viveu intensamente seu ser corporal e comprometeu-se com os corpos desfigurados e sofredores dos outros, recriando-os e impulsionando-os a uma vida mais plena. Portanto, “Corpus Christi” é festa do corpo de Jesus e de todos os corpos. Festa do pão e do vinho, frutos da terra e da comunhão de todos os seres. A Terra é um grande organismo vivente; o universo, com suas estrelas e galáxias é um imenso corpo. Da mesma forma, cada átomo é um corpo no qual se movimenta o universo do imensamente pequeno.
Sempre foi verdade a afirmação de que “somos corpo”, e não a afirmação de que “temos corpo”; mas durante muito tempo a espiritualidade cristã esqueceu esta verdade, considerando o corpo como algo acidental ao ser humano, olhando-o com suspeita e inclusive como seu inimigo. Identificada com uma mentalidade dualista que desconecta corpo de espírito, material de espiritual, terra de céu..., a espiritualidade cristã manteve a questão do corpo um tanto exilada e silenciada.
Atualmente caímos no perigo extremo: somos somente corpo, como se o corpo fosse o único centro de atenção da vida. Na cultura pós-moderna, o corpo está se convertendo em extensão da imagem de nosso ego, ao invés de ser expressão de nossa história pessoal e de uma vida aberta à plenitude de Deus. Desconectado de sua intimidade, o corpo vive como objeto dos olhares exteriores e por isso se coisifica e se tecnifica como se fosse uma mercadoria.
“Somos corpo” em relação com tudo o que é. Somos nuvem, água, ar, terra. Carregamos todo o universo dentro de nós. Somos Terra que sente, canta, pensa, ama. Somos partículas de matéria aberta, fonte inesgotável de possibilidades. Somos corpo, somos espírito, somos alma, somos afeto, somos relação… Somos milagre.
Celebremos o Corpus Christi de outra forma; celebremos nosso corpo, tão maravilhoso e vulnenável. Cuidemos do corpo, sem torturá-lo com nossas obsessões, sem submetê-lo à escravidão de nossas modas e medos. Respeitemos como sagrado o corpo do outro, sem apropriar-nos dele. Sintamos como próprio o corpo do faminto, do excluído, do refugiado, da mulher violentada, maltratada, da criança abandonada...
É nosso corpo. É o Corpo de Jesus. É o Corpo de Deus. Celebremos, cuidemos, sejamos Corpo de Deus, epifania carnal da Ternura infinita.
Texto bíblico: Jo 6,51-58
Na oração: Seu corpo, que é você mesmo, tão efêmero mas habitado pelo Infinito, o Eterno. Você também, como Jesus, em comunhão com todo o universo em movimento e evolução, é “corpo de Deus”. O Infinito se manifesta e emerge de seu interior. Acolha seu mistério, deixe-se acolher pelo Infinito em você, deixe que suba desde o mais profundo de você a Voz que lhe diz: “Isto é o meu corpo”.
- Que a festa de “Corpus Christi” anime você a viver sua vida cotidiana buscando fazer de seu corpo um lugar de encontro, de vida, de amor, sem medos nem tabus. Você será mais feliz e, ao mesmo tempo, será agente de felicidade em seu entorno.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
A festa da Trindade nos mobiliza para uma nova maneira de viver e de nos relacionar com o Deus Comunhão de Pessoas, cuja presença preenche o cosmos, irrompe na vida, habita decididamente no interior de cada um de nós e é vivido em comunidade.
A Trindade “desvela” a maneira de ser de Deus, como Amor que se expande, em si e fora de si, de uma maneira “redentora”, inserindo-se na história da humanidade. Deus é Amor e só amor. Diante da presença e da ação do Deus Trinitário, afogam-se as palavras, desfalecem as imagens e mor-rem as especulações. Só nos restam o silêncio, a ado-ração e a contemplação.
Para facilitar tal atitude, vamos ativar nossos sentidos interiores para que se deixem impactar pelo Icone de Rublev: da Trindade pensada à Trindade adorada.
A Trindade não é fácil de ser representada. Aqui o artista representou-a na figura de três anjos peregrinos, assentados à mesa de Abraão. O quê vemos neste ícone? Três anjos, reconhecidos por suas asas, estão assentados em torno de uma mesa. Os três sustentam um cajado na mão (Trindade Peregrina).
Trata-se de uma representação do relato da hospitalidade de Abraão, que se encontra em Gen. 18, quando o Senhor apareceu ao patriarca na planície de Mambré, sob a forma de três jovens. Abraão os convidou a descansar e lhes ofereceu uma refeição. A tradição patrística viu nesses visitantes uma figura das três pessoas divinas.
Podemos nos aproximar do ícone a partir da beleza; num primeiro olhar, a divindade aparece revelando-se como uma grande luz que atrai e purifica. A ausência de sombras no ícone quer fazer refletir a luz divina em tudo, situa-nos diante da santidade de Deus e nos convida a participar da luz da vida trinitária. Tudo está no mesmo plano, o plano celestial; e, num olhar de fé, detrás da beleza de sua realidade sensível, o ícone nos remete mais além do visível, para a beleza das realidades divinas que representa e transmite; a razão emudece, o coração admira. Ou seja, não é a imagem em si mesma que nos eleva pelo que representa, mas aquilo para o qual ela aponta: o mistério trinitário ou o “excesso de Deus”.
Observe, em primeiro lugar, o ritmo ou movimento circular que parece invadir todos os elementos do ícone, convidando-nos a entrar no mistério de Deus. O movimento que, partindo do Pai, passa pelo Filho e se consuma no Espírito, é um movimento de amor sem fim. Aqui, o ícone deixa transparecer o amor que une às três Pessoas divinas. Trindade é mistério de comunhão. É uma comunidade perfeita.
O ícone, através da reciprocidade dos olhares, evoca o eterno movimento de amor que une as três Pessoas divinas, no sentido de que nenhuma delas esgota em si mesma a existência, nem vive por si mesma, senão que subsiste num mistério de total compenetração que ao mesmo tempo as une e as diferencia. Isso é sugerido também pelo movimento circular do rosto inclinado dos 3 anjos, eternamente jovens, sentados à mesa do universo, em torno ao alimento divino; rostos que são semelhantes sem ser realmente idênticos. A linha triangular dos rostos e o círculo dos corpos estilizados indicam um mistério de diversidade na unidade. Fundidos num êxtase que fala de unidade e de harmonia, os três rostos já dizem tudo.
Pouco importa se o Pai é sugerido pelo anjo do centro ou se, antes, há um movimento que vai da esquerda à direita: o personagem da esquerda indica ser o Pai; o do centro, o Filho; e o da direita, o Espírito Santo. As figuras do centro e da direita olham com rosto respeitoso e humilde para a da esquerda, que se mantém mais erguida que as outras duas, posto que o Pai é origem e princípio de tudo. Os três, com efeito, tem a mesma atitude de abertura, de respeito, de súplica e de invocação. Deles emana um mistério de eternidade, de amor, de quietude, de paz, de serenidade.
Esse movimento se manifesta igualmente ao fundo do quadro. A árvore se inclina para a esquerda do orante como se fosse submetida ao sopro de um vento forte. Ainda à esquerda se inclinam os planos cortados do teto do edifício. Tudo está em movimento, porque a vida é sair de si mesmo, é doar-se. Esse ritmo exprime a circulação e a comunhão da mesma Vida divina entre as Três pessoas.
Mas a Trindade não se fecha em si mesma. O movimento expansivo expressa adoção, efusão, dom, generosidade e graça, que admite, convida o ser humano ao círculo divino. Tudo se orienta, na fé, para o mistério, para o encontro D’Aquele que vem. Curvando a árvore, o movi-mento circular da vida divina atinge a natureza. Inclinando o teto do edifício, atinge a humanidade orante, a humanidade no que ela tem de mais elevado. O mundo todo constitui, de certo modo, a periferia; as Três Pessoas divinas permanecem no centro.
Fixemo-nos, agora, nos traços das três pessoas. Elas não tem idade e, no entanto, transmitem uma im-pressão de juventude. Elas não tem gênero, no entanto elas unem o vigor à graciosidade. As fisionomias e os gestos não foram “construídos” em vista do charme e, no entanto o charme que se desprende é imenso. Rublev soube expressar de uma maneira única a eterna juventude e a eterna beleza das três pessoas.
Cada um dos três anjos leva nas mãos um cajado alongado e muito fino. É que cada pessoa divina é um viajante, um peregrino. O quadro ressalta a participação de toda a Santíssima Trindade no mistério da salvação. Os três cajados constituem uma declaração e uma promessa. Eles declaram que os três já vie-ram fazer morada na humanidade. Eles prometem que os três continuam, através da presença expansiva, a conduzir tudo para a plenitude. O quadro evoca, pois, o conselho das Três Pessoas divinas em vista da redenção do gênero humano.
O artista, com sua obra, não pretendia sugerir pensamentos, mas uma oração. A perspectiva do ícone é orante, pois nos predispõe para “entrar” no mistério de Deus; também nos convida a abandonar a lógica cotidiana do útil, para poder entrar na lógica da gratuidade, do espaço místico e cultual, do diálogo com Deus, até os cumes da adoração.
O ícone da Trindade de Rublev nos recorda que não se trata de entender, ou de pensar e estudar o Misté-rio da Santa Trindade. O decisivo é viver o mistério a partir da adoração e da partilha fraterna. É Deus quem toma a iniciativa de se aproximar dos seres humanos. Como foram até Abraão, a Trindade quer se aproximar também de cada um de nós. Dentro de nós habitam um Abraão e uma Sara.
Que a contemplação deste quadro nos coloque em contato mais profundo com as Três pessoas divinas para poder repetir, prostrados, as palavras de Abraão aos divinos visitantes na planície de Mambré:
“Meu Senhor, se mereci teu favor, peço-te, não prossigas viagem sem parar junto a mim, teu servo”.
E se acolhermos as Três pessoas de todo coração, poderemos, como Abraão, receber de sua boca a certeza de que essa experiência abençoada, longe de ser um episódio isolado, nos será concedida de novo: “passarei de novo pela tua casa”. Só assim sentiremos Vida brotar em nossas vidas, como irrompeu no seio de Sara. Não mais seremos velhos, estéreis e infecundos. A fé faz rejuvenescer.
Que a contemplação do belo e do Santo faça brotar em nós a imagem de Deus que é Pai-Filho-Espírito. Amem!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22)
De Jesus e do Pai fazemos muitas representações; do Espírito, muito mais que falar dele, invocamos a relação com Ele: “vem!”. Invocamos para vir Aquele que já está presente, o Realizador das transformações, o Possibilitador de toda relação, o Aumentador da vida.
O fogo, o vento, a água viva, são os símbolos mais potentes com os quais a Bíblia tenta dizer algo dessa Presença Possibilitadora de tudo o que vive, de sua força criadora e criativa, de sua imprevisibilidade, de sua capacidade para gerar sabedoria, saúde e beleza. São símbolos do movimento constante e do fluir silencioso dos processos que gestam a vida.
No relato da Criação, “a Ruah de Deus (em hebraico, Ruah é feminino) pairava sobre as águas”: trata-se de uma bela imagem da matriz ou útero originário fecundo de tudo quanto existe; tudo é amorosamente acolhido, fecundado, gestado, carregado neste grande ventre cósmico que podemos chamar divino: “Deus”. Alento, sopro, vento, respiração, força, fogo... com nome feminino que fala de maternidade e de ternura, de vitalidade e carícia. Seu calor gera harmonia no caos, realça a beleza e originalidade de cada criatura, dando a cada uma seu lugar, o espaço que necessita para potencializar seu ser. Nessa relação adequada, cada erva, cada montanha, cada ser que vive, tem seu lugar e seu sentido.
“O Espírito pairava sobre as águas” (Gen. 1,1). “Pairava” pode ser traduzido também por “vibrava”. Tudo vibra no universo: vibram as partículas e vibram os átomos, vibram as estrelas e vibram as galáxias, vibram os seres humanos, vibram o canto e a dança. Cada som é vibração e também o silêncio é vibração. O coração de cada ser, pequeno ou grande, pedra, planta ou animal está vibrando. A vida é vibração.
O Espírito que “pairava” sobre as águas é a imagem da vibração divina que habita e se move no coração de tudo quanto existe. O Espírito é a respiração universal. Tudo é energia, movimento, relação, e daí brotam maravilhosamente todas as formas de todos os seres, como de uma misteriosa matriz materna.
E o Espírito sempre está ali silenciosamente presente, como Aquele que vincula e une, como Tecedora constante de redes que fazem crescer, como Reparadora de todos os tecidos que um dia se rasgaram e se separaram do pano único de onde confluem todos os fios da vida.
Hildegar von Bingen dizia que o Espírito é “vida da vida de toda criatura”. Cada dia é o primeiro dia da Criação; cada instante é o princípio. A Criação está acontecendo e renovando-se a cada instante e uma Energia profunda e criativa nos acompanha, nos anima e nos move. Estamos sendo criados; não estamos prontos e abandonados, não estamos condenados a um plano predeterminado e frio. Em tempos de Pentecostes é bom recordar e dizer a nós mesmos: “Somos criaturas, estamos sendo amorosamente criados(as) e impulsionados(as) a criar. Há esperança”.
Contemplar deste modo a realidade, nos move a confiar, esperar, respirar. Contemplemo-la assim: a realidade inteira alentada e fecundada sem cessar pelo Espírito materno; a realidade inteira carregada de infinitas e novas possibilidades, carregada de Infinito. Podemos esperar.
Hoje somos conscientes e podemos agradecer essa presença do Espírito nos perfumes que a humanidade exala: no seu empenho pela paz e pela justiça, na contribuição à integridade da criação, na sua cumplicidade com os ciclos que favorecem a vida, no potencial de ternura, de cuidado e de resistência frente a todas aquelas situações e forças que desintegram a vida, na ação colaborativa, na interdependência, no diálogo e na abertura às diferentes culturas e às diversas tradições espirituais, maneiras novas e necessárias de situar-nos no mundo. Tudo isso é sinal do movimento do Espírito.
Desde o momento em que entramos no mundo, nascemos formando parte de uma rede de relações. Este tecido relacional vai nos expandindo ao longo do crescimento. “Ao final de minha vida abrirei meu coração cheio de nomes” (Pedro Casaldáliga). O Espírito é o que escreve os nomes que vão conformando nossa vida, nos quais fizemos experiência do que significa isso que chamamos amor e que está gravado em nossa origem e em nosso destino, como nossa fome maior e como nosso dom mais apreciado.
A imagem do “soprar sobre eles”, no evangelho de hoje, contém uma riqueza elegante: significa compartilhar o que é mais “vital” de uma pessoa, sua própria respiração, seu mesmo espírito, todo seu dinamismo. É uma imagem que nos faz reconhecer o Espírito como o Alento último, o Dinamismo vital que pulsa em todas as formas de vida que podemos ver e que nelas se manifesta. Não há nada onde não possamos percebê-lo, nada que não nos fale d’Ele. Por isso, a comunidade dos seguidores de Jesus, ao compartilhar com Ele o mesmo Sopro, torna-se uma “comunidade conspiratória”, ou seja, “conspirar”, “com-inspirar”, “respirar juntos”; ao soprar o Espírito Jesus e os discípulos respiram o mesmo ar, o mesmo sonho, a mesma utopia do Reino...
Não é estranho que, com o Espírito, Jesus se refira à missão: é o mesmo Espírito – seu sopro – Aquele que O conduziu e quer conduzir a nós também. O Espírito e nós não somos dois. Somos “seres espirituais vivendo uma aventura humana” (Teilhard de Chardin). Quando tomamos consciência desta realidade profunda, realizam-se em nós as palavras de Jesus: a unidade de tudo morando em nós, no Amor – outro nome do Espírito -, como única realidade que tudo sustenta e constitui.
Mais ainda, o Espírito habita nosso ser profundo, sustenta nossas energias sadias, aumenta nossas forças, compromete-nos a crescer de forma autônoma. Ele age como um “princípio dinâmico” e como um “energético ativo”, que reforça as atividades criativas do eu. Temos de viver a partir do Espírito, transformando e vitalizando nossos gestos, pensamentos, compromissos, encontros.
Por isso, Pentecostes não acontece até que, reconhecendo o Espírito como nossa Identidade mais profunda, nos deixemos guiar por Ele, ou melhor, viver a partir d’Ele, conscientemente conectados com a Fonte Primeira. Falar do Espírito e celebrar Pentecostes é, portanto, celebrar a festa, a vida e a Identidade última de tudo o que é e existe: é nossa festa.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração: “O Espírito urge!” Para abrir-nos a este “Sopro”, de modo que possamos experimentá-Lo no nosso “eu” mais profundo, precisamos calar a mente, abrir-nos diretamente ao que é, e perceber, com prazer, que podemos descansar sempre nisso. “Descanso” é outro nome do Espírito.
No silêncio da mente o Espírito se revela a nós, não como uma presença separada, mas como presença interna de tudo o que é: Cuidado, Descanso, Dinamismo... Vida em plenitude. E isso é o que somos todos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Os onze discípulos foram para a Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado” (Mt 28,16)
Hoje culmina o tempo de páscoa com a celebração da festa da Ascensão de Jesus. “Ressurreição”, “Ascensão”, “sentar-se à direita de Deus”, “envio do Espírito Santo”, são todas realidades pascais; constituem um só “mistério” que está fora do alcance dos sentidos e do nosso conhecimento.
O mistério pascal é tão rico que não podemos abarcá-lo com uma única imagem; por isso temos que desdobrá-lo para ir aprofundando calmamente e expressá-lo no nosso modo de viver o seguimento de Jesus. Os três dias para a Ressurreição, os quarenta dias para a Ascensão, os cinquenta dias para a vinda do Espírito Santo, não são tempos cronológicos, mas teológicos. Eles nos revelam a maneira de ser de Deus, não o tempo em que Ele atua.
A Ascensão nos faz refletir sobre um aspecto do mistério pascal. Trata-se de descobrir que a posse da Vida por parte de Jesus é total. Participa da mesma Vida de Deus e, portanto, está no mais alto do “céu”.
Segundo o relato de Mateus, indicado para a festa deste ano, não há ascensão propriamente dita, mas revelação e presença do Senhor Jesus na Montanha da Galileia, com sua palavra, sua presença e seu envio missionário.
Esta eleição da Galileia é muito provocativa. Galileia remete à vida histórica de Jesus. No centro da Galileia se eleva a montanha da nova e definitiva revelação de Deus em Jesus Cristo; essa montanha é coração e centro permanente da terra. O evangelista Mateus quer ressaltar que a Judeia (Jerusalém) havia rejeitado Jesus e já não era o lugar onde alguém devia encontrar-se com o Ressuscitado.
Jesus não ressuscita nem triunfa em Jerusalém, mas na “montanha da Galileia”, ou seja, naqueles que foram os lugares e paisagens de sua vida. Jesus foi a Jerusalém para dar testemunho e manter seu projeto, sendo ali assassinado. Por isso, o evangelho não pode começar em Jerusalém, com seu templo, sacerdotes, soldados, mas na Galileia, o lugar das pessoas que sofrem e que são excluídas, que buscam e escutam a Palavra.
Galileia significa a terra da história de Jesus: ali sua palavra é escutada, ali sua mensagem é vivida. Mas, ao mesmo tempo, Galileia aparece nesta passagem como ponto de partida de um caminho que deve dirigir-se ao conjunto dos povos. Assim, desde a obscura província de Jesus, se expandirá um caminho salvador universal que está fundado na experiência de sua Páscoa.
"Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima dos céus para plenificar o universo com sua presença". (Ef 4, 10) A citação de S. Paulo vem desfazer certa tendência a considerar Jesus na Ascensão como alguém que partiu, que nos deixou, que está mais acima, “no céu”, enquanto que nós ficamos aqui “gemendo e chorando neste vale de lágrimas”. Não é assim. Não podemos continuar pensando em um Jesus subindo fisicamente para além das nuvens.
Para poder entender a festa da Ascensão, devemos voltar ao tema central da Páscoa. Estamos celebrando a Vida, essa Vida que não está sujeita ao tempo e ao espaço, que é plenitude, eterna e imutável. Jesus não vai a nenhum lugar, senão que permanece com os seus (“estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo”). Isso significa que Ele ressuscita e atua em seus amigos e amigas, naqueles que vivem e espalham, com suas vidas, a Grande Mensagem de vida.
Na Ascensão, Jesus nem partiu nem se ausentou; não nos deixou órfãos nem solitários. Ele permanece para sempre entre nós pelo seu Espírito Santo: no céu, na terra e em todo lugar. E principalmente conosco e em cada um de nós; não só está ao nosso lado, mas também dentro de nós, “fazendo morada em nós”.
Recordemos as experiências das Aparições do Ressuscitado, onde Jesus foi nos ensinando como nos encontrar com Ele e a estar com Ele: na “Palavra”, na “fração do pão”, na “Eucaristia”, compartilhando nossa vida, como pão de vida para os outros, no “perdão salvador”, no “serviço”, nos “sacramentos”, no “próximo”, na “missão evangelizadora e apostólica”, na “construção do Reino”, no mundo e na realidade social na qual vivemos, praticando a fraternidade e justiça social, segundo “os sinais dos tempos”, etc.
Na Ascensão, não se trata tanto de “vir e regressar”. Os espaços não existem para Deus. Trata-se de diferentes modos de presença. Mais que “subida” e afastamento, a Ascensão de Jesus é “descida e presença”. Sua presença expansiva alcança uma profundidade e uma longitude que sua presença física não pudera alcançar. Assim podemos encontrá-Lo em todos os lugares e em todas as pessoas.
Jesus desce com os seus da montanha do evangelho para estender entre todos os povos sua presença. Está com os seus, neles, com eles... Esta é sua Ascensão, sua grande “descida”. Ele não permanece na Montanha para construir ali uma pirâmide ou templo, uma grande corte pascal, mas para reunir os seus e enviá-los, e descer/estar com eles em todo o mundo.
Estes “onze” da Ascensão são (somos) todos, homens e mulheres na Montanha do Evangelho, para começar de novo, desde a periferia do mundo, como humanidade nova, como grupo, unidos no amor, todos e todas formando a grande comunidade da nova montanha da vida.
A tarefa fundamental que Ele nos confia é clara: “fazer discípulos” seus todos os povos. Não se trata de ensinar doutrinas, nem ritos, nem normas morais, mas de ativar em todos uma maneira alternativa de viver, centrada no modo de proceder do próprio Jesus, ou seja, trabalhar para que no mundo haja homens e mulheres que vivam como discípulos e discípulas d’Ele, seguidores(as) que aprendam a viver como Ele; que o acolham como Mestre e não deixem nunca de aprender a ser livres, justos, solidários, construtores de um mundo mais humano.
“Homens da Galileia, porque ficais aqui parados, olhando para o céu” (At 1,11) É como se dissesse: “olhem a terra e todas as pessoas, vejam suas lágrimas e angústias”, assumam tudo como algo próprio dos discípulos e discípulas de Jesus; ocupem-se em transformar toda a realidade com os valores do Reino, inspirem homens e mulheres a serem presença do amor e da justiça junto àqueles que mais sofrem, despertem a vida atrofiada e escondida naqueles que perderam o sentido de sua existência, prolonguem em suas vidas aquela presença original de Jesus...
De fato, Ascensão significa o início da missão da nova comunidade ressuscitada. Na Ascensão, enquanto Jesus “sobe” ao Pai, nós “descemos” à realidade para transformá-la, tornando presente o Reino. Quando amamos, cuidamos, servimos... também nos elevamos. E o que nos eleva está em nosso interior: nós nos elevamos à medida que descemos em direção à humanidade.
Como Jesus, a única maneira de alcançar a meta é descendo até o mais fundo. Aquele que mais “desceu”, é também Aquele que mais alto “subiu”. Muitas vezes preferimos seguir um Jesus no “céu”, distante, glorificado, a quem rendemos honras. Descobri-Lo dentro de nós mesmos, nos outros e no mundo é demasiado exigente e comprometedor. Muito mais cômodo é continuar “olhando para o céu...” e não nos sentir implicados naquilo que está acontecendo ao nosso redor.
Texto bíblico: Mt 28,16-20
Na oração: No seguimento de Jesus vivemos em estado de constante ascensão. Ascendemos na medida em que “descemos” e nos fazemos presentes na realidade cotidiana, através do serviço, do compromisso. O Ressuscitado nos espera na vida cotidiana (nossa Galileia) quando vivemos a partir do amor e da doação.
- faça “memória” dos lugares e situações que que você vive experiências de ascensão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Vós o conheceis, porque Ele permanece junto de vós e estará dentro de vós” (Jo 14,17)
O evangelho de João nos oferece diversas imagens de Páscoa: vida, pastor e porta, morada de Deus… O evangelho deste domingo(6º Dom Páscoa) nos apresenta a Páscoa como promessa e esperança do Espírito Santo, o “Paráclito” (defensor/consolador) dos(as) seguidores(as) de Jesus. Jesus mesmo tinha sido o Paráclito de seus discípulos, mas agora envia seu Espírito para que seja presença interior e companhia.
A Páscoa apresenta-se, assim, como experiência de Presença, Deus em nós. Esta é a grande promessa que sustenta o caminho do seguimento na história, tantas vezes obscuro e angustiante para o ser humano. Presença que desvela nossa identidade e nossa verdade mais profunda: filhos(as) amados(as) do Pai.
O Evangelho de João é uma verdadeira catequese do Espírito, que se revela como “Espírito da verdade”, pois atua justamente na intimidade das pessoas, desvelando sua originalidade interior e comunicando-lhes luz e força para expandir suas vidas na direção do serviço aos outros.
Este “Espírito da verdade” não deve ser confundido com uma doutrina. Esta “verdade” não deve ser buscada nos livros dos teólogos nem nos documentos da hierarquia. É algo muito mais profundo. Jesus diz que “ela vive conosco e está dentro de nós”. É alento, força, luz, amor... que nos chega do mistério último de Deus. Devemos acolhê-la com um coração simples e confiante.
Este “Espírito da verdade” está no interior de cada um de nós, defendendo-nos de tudo o que nos pode afastar de Jesus. Convida a nos abrir com simplicidade ao mistério de um Deus, Amigo da vida. Quem busca a este Deus com honradez e verdade não está longe dele.
A sociedade pós-moderna apostou pelo “exterior” e se distanciou da dimensão essencial da vida humana: a interioridade. Tudo nos convida a viver a partir de fora; tudo nos pressiona a mover-nos com pressa, sem nos deter em nada nem em ninguém; a paz já não encontra espaços para morar em nosso coração; vivemos quase sempre na superfície da vida; estamos esquecendo o que significa saborear a vida a partir de dentro. Vivemos a globalização da dispersão e da superficialidade.
E o ser humano “disperso e superficial” é um ser “desordenado”, ou seja, vive seduzido por estímulos ambientais, envolvido por apelos vindos de fora, cativado pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizado por ofertas alucinantes... E então, ele se esvazia, se dilui, perde a interioridade e... se desumaniza.
A exterioridade absorve a interioridade humana. A pessoa foge de si mesma, tem medo de encontrar-se. Por isso, acompanha o ritmo dos outros, repete a linguagem dos outros, adota os critérios dos outros..., e acaba sendo influenciada e dominada por pressões e hábitos externos.
Quê pode dizer a espiritualidade do Evangelho ao ser humano deste 3º. milênio? Um aspecto decisivo que emerge, entre tantos outros, é este: o valor do interior, ou seja, tudo o que se refere à dimensão do coração, das intenções profundas, das decisões que partem das raízes internas.
Para “desbloquear” nosso interior, fechado e petrificado, Jesus Cristo promete o envio do Espírito Santo, presença que examina e purifica as trilhas do coração humano, pois nosso interior é lugar da intimidade com Deus, espaço de contemplação, ambiente de discernimento e construção de decisões.
Nesse sentido, ser seguidor(a) de Jesus significa ser um aprendiz do Espírito, deixando-nos conduzir por Ele em direção à fronteira da interioridade, do nosso próprio “eu profundo”. Presença que desvela regiões não contaminadas em nosso coração, onde tudo começa a ser percebido como novo, de onde brotam esperanças adormecidas e desejos ocultos.
É próprio do ser humano mergulhar e experimentar sua interioridade-profundidade. Auscultando a si mesmo, percebe que brotam de seu “eu profundo” apelos de compaixão, de amorização e de identificação com os outros e com o grande Outro (Deus). Dá-se conta de uma Presença que sempre o acompanha, de um Centro ao redor do qual se organiza a vida interior e a partir do qual se elaboram os grandes sonhos e as significações últimas da vida.
Essa interioridade é um modo de ser, uma atitude de base a ser vivida em cada momento e em todas as circunstâncias. Mesmo nas atividades cotidianas mais simples, a pessoa que criou espaço para a profundidade e para a interioridade mostra-se centrada, serena e cumulada de paz, caminhando junto com os outros na mesma direção que aponta para a Fonte de vida e de eternidade.
Sabe-se e sente-se habitada por um Maior que é uma Fonte irradiante de ternura e de amor. Irradia vitalidade e entusiasmo, porque carrega Deus dentro de si, carrega o Sentido do universo, de cada coisa. Acolhe e interioriza experiencialmente esse Mistério sem nome e permite que Ele ilumine sua vida; dialoga e entra em comunhão com Ele, pois o detecta e o sente em cada detalhe da realidade.
Toda experiência espiritual significa um encontro com um rosto novo e desafiador de Deus, que emerge dos grandes desafios da realidade histórica. Esta “vida interior” é, ao mesmo tempo, a terra onde a pessoa planta suas raízes e a fonte onde ela pode apagar sua sede.
A partir da interioridade, tudo se transfigura, tudo tem sentido, tudo vem carregado de veneração e sacralidade. Viver a interioridade é desenvolver a nossa capacidade de contemplação, de compaixão, de assombro, escuta das mensagens e dos valores presentes no mundo à nossa volta.
Sem interioridade, Deus parece distante, o Cristo permanece no passado, o Evangelho torna-se lei, a Igreja uma simples organização, a autoridade transforma-se em poder, a missão em propaganda, o seguimento se burocratiza, a liturgia vira ritualismo...
É triste perceber que as comunidades cristãs não sabem cuidar e promover a vida interior. Muitos não sabem o que é o silêncio do coração, não se ensina a viver a fé a partir de dentro. Privados de experiência interior, sobrevive-se esquecendo essa dimensão mais original: escuta-se palavras com os ouvidos e pronuncia-se orações com os lábios, enquanto o coração está ausente.
Com isso, no coração de muitos cristãos está se apagando a experiência interior de Deus.
Quê sentido pode ter a Igreja de Jesus se deixamos que se perca em nossas comunidades o “Espírito da verdade”? Quem poderá salvá-la do auto-engano, dos desvios e da mediocridade? Quem anunciará a Boa Notícia de Jesus em uma sociedade tão necessitada de alento e esperança?
Texto bíblico: Jo 14,15-21
Na oração: A oração é o caminho interior que nos faz chegar até o nosso próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável...; este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde mergulhamos no silêncio, à escuta de todo o nosso ser.
Se a nossa oração for um autêntico “deixar-nos conduzir pelo Espírito”, ela deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser. O Espírito liberará em nós as melhores possibilidades, recursos desconhecidos, capacidades, intuições... e nos fará descobrir em nós mesmos(as), nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis...
Das raízes profundas brotarão as respostas mais criativas e duradouras que terão impacto na realidade onde nos encontramos, desencadeando um movimento de profundas mudanças.
- Busque, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de seu ser, o núcleo original de sua personalidade, a verdade de sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Vou preparar um lugar para vós..., a fim de que onde eu estiver estejais também vós” (Jo. 14,3)
O evangelho deste domingo (5º Dom Pásscoa), tomado de João, não descreve uma aparição do Ressuscitado, mas é o mesmo Ressuscitado que se apresenta e fala para a comunidade dos seus seguidores.
Trata-se de um texto pós-pascal, pois à medida que vamos entrando no texto caímos na conta que Aquele que fala é o Vivente. A sua voz não é aquela de um morto que apareceu, mas a Voz da Vida. O contexto deste evangelho é o discurso de despedida de Jesus na Última Ceia. Nos versículos anteriores, Ele havia anunciado a traição de Judas, a negação de Pedro, o anúncio da partida. Tudo isso deixou os discípulos desconcertados, abatidos e com medo.
Jesus sente a tristeza e a perturbação dos seus discípulos; esquecendo-se de si mesmo e do que lhe espera, dirige-lhes palavras para animá-los na esperança, fortalecê-los no meio da angústia, devolver-lhes o horizonte de vida. E uma das imagens que Jesus usa para pacificá-los é a da “morada” ou “estâncias” no coração do Pai; imagem que pode oferecer o sentimento de proteção e acolhimento. Uma morada significa muito mais que uma presença. Uma pessoa pode estar presente em seu local de trabalho, na rua..., mas a morada, a habitação ela a tem em sua casa. E Deus quis ter uma morada e uma habitação em nosso interior. Somos sua casa!
“Na casa do Pai há muitas moradas”; há lugar para todos, talvez de formas diferentes, por caminos diversos, mas há lugar abundante. A casa de Deus é ampla, é a casa de todos os seres humanos, casa de reconciliação e justiça, aberta antes de tudo para aqueles que foram e são oprimidos. Aqueles que não cabem na casa deste mundo (os que foram expulsos de suas casas) podem entrar na casa da Vida de Jesus.
Jesus Cristo, durante seu ministério, construiu com suas palavras uma morada para as pessoas, na qual estas se sentiram seguras. Ele falou de tal forma que as pessoas encontraram harmonia consigo mesmas. E elas tinham o sentimento de poder habitar em suas palavras, e por meio de suas palavras, encontrar uma pátria n’Ele. De fato, o ser humano sempre aspirou viver em um espaço onde pudesse se sentir seguro, em paz; um espaço humanizador que lhe permitisse ativar todas as suas potencialidades de vida e deixasse transpare-cer a própria identidade; um espaço onde pudesse se “sentir em casa”.
É da nossa condição humana buscar um espaço, um lugar hospitaleiro e acolhedor, o lugar onde nos situamos no mundo e onde podemos ser encontrados; esse espaço nos ajuda a fazer contato com nossas “moradas interiores”: lugar de intimidade com Deus, espaço de contemplação, ambiente de discernimen-to e construção de decisões. Nesse sentido, a morada interior já é antecipação da nossa morada eterna, no coração do Pai.
Um dos dramas vivido pelo ser humano no atual contexto social pós-moderno é que ele perdeu não somente seu lar exterior, mas também se afastou de sua morada interior. Comprovamos hoje um “déficit de interioridade”. As pessoas perderam o caminho da direção do seu coração; vivem fora de si mesmas e não conseguem colocar as grandes perguntas existenciais: “de onde venho? Quem sou? Para onde vou?...”. Elas já não sabem mais quem são.
Muitas já não conseguem mais recolher-se e voltar para “dentro de sua morada” para recuperar o centro gravitacional de suas vidas, o ponto de equilíbrio interior; já não são capazes de velejar nas águas da interioridade, passando a viver uma vida superficial e sem sentido. Elas se percebem sem o sentimento de acolhida e proteção, pois perderam seu sentido de pertença, além de não mais saberem o que as sustenta. Não sabem mais onde poderão encontrar segurança e acolhimento.
O que é “estar em casa” para nós hoje, num mundo estranho e em constante mutação? O que significa “morada” para nós atualmente? Que tipo de sentimento está conectado a ela? Onde nos sentimos de verdade em casa?
“A infelicidade do ser humano moderno consiste em que ele não é mais capaz de permanecer em sua cela” (Pascal). “O ser humano só está em casa no mistério de Deus” (Clemenz Schmeing). Nas palavras de Jesus na Última Ceia, Ele deixa transparecer que, só quando cremos que o mistério de Deus habita em nós, é que podemos nos sentir em casa; só podemos permanecer em nós mesmos porque o próprio Deus já está em nós e nos mantém. Nós podemos fazer morada em nós, porque Deus mesmo já fez morada em nós.
Nossa morada interior é o espaço no qual Deus mesmo habita em nós. Ali, nós somos plenamente nós mesmos, salvos e íntegros. Verdadeiramente em casa. Nós precisamos apenas olhar para dentro. O céu está em nós e ali, no céu interior, está a verdadeira pátria que ninguém pode nos roubar ou pode destruir. E ali, as nossas próprias preocupações e temores não tem nenhum acesso. Ninguém pode nos ferir ali.
Aspiramos um espaço onde possamos ser nós mesmos. Espaço no qual podemos entrar em contato com algo que nos plenifica e nos expande. Vivemos das forças e da energia que emanam da nossa casa interior. Desejamos encontrar-nos conosco mesmos, desenvolver nossas possibilidades, descobrir e clarificar nossa identidade. O sentimento de ser totalmente nós mesmos nos dá a sensação de ter encontrado o suporte numa torrente de vida e de amor. Desse modo, em meio às incertezas deste mundo, podemos experimentar um ambiente de tranquilidade e de acolhimento.
Num mundo de muita superficialidade, onde a imposição do imediato, da rapidez, da produtividade e da eficácia se apresentam como deveres imperiosos, somos chamados, como seguidores(as) de Jesus, a “ser pessoas de interioridade”. Diante da “cultura líquida” na qual vivemos, é urgente gerar espaços que facilitem reabrir as vias da interioridade, possibilitar o retorno à “morada interior”, onde é gestada a nossa identidade e as nossas opções mais sólidas.
Precisamos, sob a ação da Graça, destravar nossa “morada viva e sempre inédita”, de tal maneira que dali brote a novidade que tudo renova e dá sentido à nossa existência.
Texto bíblico: Jo 14,1-12
Na oração: Existe uma crise de moradia muito mais grave que a falta de casas: é a escassez de pessoas interiormente acolhedo-ras e disponíveis para seus irmãos.
Casa: lugar do lava-pés, do mandamento novo; lugar da Ressurreição e Pentecostes.
Lugar do encontro com o Senhor; Ele vem. Sua presença causa mudança.
Deixe ressoar a voz do Senhor: “Eu quero, em tua casa, celebrar a Minha Ceia!”.
Como me sinto em minha casa? Preciso abri-la, arejá-la? Modificá-la? Iluminá-la? É acolhedora? Humanizadora?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Eu sou a Porta das ovelhas” (Jo 10,7)
Todos os anos, o 4º. Domingo de Páscoa inspira-se na imagem do “Bom Pastor”. Embora o Evangelho deste domingo não fale de “aparições” do Ressuscitado, não nos afastamos do tema pascal, pois Jesus afirma expressamente: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”. A “Vida” é o verdadeiro tema pascal.
E imagem pascal deste 4º. Domingo da Páscoa é a Porta da Liberdade, que possibilita uma vida sempre expansiva. A Vida verdadeira implica saída de nossos espaços, muitas vezes atrofiados e de curto horizonte: por isso precisamos de uma porta, de uma saída. Não podemos, não devemos permanecer fechados, pois isso atrofia nossas possibilidades de vida, sobretudo se estamos reclusos no egocentrismo.
Equivocadamente distraídos por alguma complacência ou comodidade interna, nem sempre caímos na conta de que vivemos fechados; não percebemos o perigo letal da asfixia existencial; não sentimos as amarras da dependência ou os vícios que a vontade fragilizada já não consegue romper.
Nesse sentido, podemos entender a imagem da “Porta” enquanto espaço aberto que permite a vida fluir. Porque vida é, antes de mais nada, espaçosa, amplitude ilimitada que tudo abarca e que se expressa em infinidade de formas, todas elas habitadas pela mesma e única Vida.
Precisamos nos libertar, nos desatar, sair; precisamos de uma porta!
Escutemos Jesus que diz “Eu sou a Porta”. E é verdade, porque Jesus, “ressuscitado dentre os mortos”, abriu um espaço no hermético ventre da morte. Com seu próprio corpo e sua vida Jesus se transformou em Porta da Vida verdadeira e com a força do seu Espírito Ele nos liberta, nos desata para sair dos espaços atrofiados e passar para a vida ampla do amor, para a vida com os outros.
“Eu sou a porta”: aqui Jesus não se refere àquela peça de madeira que gira para fechar ou abrir, mas ao espaço por onde se tem acesso a um recinto. Por isso Ele diz que é a porta das ovelhas, não do redil. Todos aqueles que vieram antes dele não deram liberdade e asfixiaram a verdadeira vida.
Em Jesus, todo(a) seguidor(a) pode alcançar a verdadeira liberdade; “poderá entrar e sair”, terá liberdade de movimento. Jesus não busca seu próprio proveito nem o de Deus. Seu único interesse está em que cada ovelha alcance sua própria plenitude e viva intensamente.
A característica do Bom Pastor é que põe toda sua vida a serviço das ovelhas para que vivam, sem limitação alguma. Ao fazer isto, põe em evidência a qualidade de Vida que possui e abre a possibilidade para que todos os que lhe seguem tenham acesso a essa mesma Vida.
Uma porta aberta. Jesus se compara a uma porta... aberta! Somos impactados pela luz que vem de fora e pelo ar vivificante. Nós ouvimos sua voz. Ele se dirige a cada um e à sua voz nos colocamos em marcha. O oxigênio que aí respiramos é o Sopro do próprio Deus.
Jesus é uma Porta grande e aberta que favorece a circulação com toda a liberdade Entrar por essa Porta é o mesmo que “aproximar-nos d’Ele”, “escutar sua voz”, “identificar-nos com Ele”. Passar pela Porta implica também desvelar nossa verdadeira identidade enquanto “portas abertas”.Cada um de nós é um mundo, dentro do Mundo. Este contato se estabelece pelos sentidos: saímos ao Mundo e entramos em nosso mundo através dessas cinco portas.
Por essas portas dos sentidos saímos de nós mesmos para o Mundo, ao mesmo tempo que o Mundo entra em nós. Tomar consciência do como transitamos por estas portas é essencial para crescer em um modo transparente de existir. Porque há um modo de entrar e sair por elas que pode ser feita de maneira autocentrada e depredadora ou de maneira agradecida e geradora de comunhão.
Há um modo de ver, ouvir, saborear, tocar, sentir... que nos atrofia e nos isola em nosso pequeno mundo opaco e estreito, enquanto há outro modo que nos abre e nos expande em direção ao Mundo, e que vai se revelando como presença e transparência de Deus.
Expandir os cinco sentidos nos capacita sentir Deus como Presença primeira e constitutiva da Realidade, pulsando em todas as coisas. Porque, em definitiva, o que nossos olhos querem ver, o que nossos ouvidos querem ouvir, o que nosso tato quer apalpar... é o Rosto-mais-além-dos-rostos que se manifesta através dos outros. Assim, os sentidos não são somente portas entre nosso mundo interno e o Mundo exterior, mas umbrais que abrem ao Transcendente, que pulsa no mundo e ao qual só se pode chegar através do mesmo mundo.
O contexto social no qual vivemos nos revela que há uma doença que nos afeta praticamente a todos: em nossas vidas, há muito mais espelhos que nos isolam do que portas que nos universalizam.
No espelho nós nos vemos; e o que vemos não é o que somos, mas o que aparentamos ser. Desta percepção não saímos. A contemplação narcisista de nosso rosto atrofia o horizonte de nossa vida; o horizonte perceptivo é mínimo. O espelho é incapaz de revelar a verdade de nosso ser e de ampliar nosso mundo afetivo e relacional, não facilita a acolhida, o encontro... O centro do espelho somos nós mesmos.
As portas abertas, por sua vez, permitem ampliar nosso horizonte. Através delas purifica-se o ar denso e irrespirável do nosso interior, que geramos quando nos fechados em nós mesmos. Elas nos abrem à comunhão com a natureza, com os outros, com a realidade que nos cerca. Elas nos humanizam, pois servem para nos revelar aos outros quem somos, que eles fazem parte de nossa casa e que, abertas, indicam que eles podem entrar e sair livremente em nossas vidas.
Como seguidores(as) de Jesus, habitando em casas construídas sobre a rocha do Evangelho, deveríamos nos preocupar mais com as portas e janelas e menos com os espelhos. Outros rostos precisamos descobrir: concretamente, rostos feridos, excluídos, carentes de proximidade e abraço.
Muitas vezes, as portas nos protegem da diversidade, blindam nossa individualidade e parecem itens indispensáveis à sobrevivência. Assim, seremos prisioneiros de nossa estreita visão de mundo e faremos de nossa casa uma couraça que enclausura. Melhor a viagem que nos faz vulneráveis do que a segurança que nos rouba o horizonte. Melhor enfrentar o impacto do diferente e usufruir da liberdade do que inventar portas seguras que nos fazem cativos e solitários.
Texto bíblico: Jo 10,1-10
Na oração: Seja uma porta sempre aberta: “entrada franca”.
- Nada de “cachorros” que atemorizem o visitante: seu orgulho, seu egoísmo, sua inveja, sua ironia, sua rudeza, seu preconceito.
- Nada de longas esperas que desanimam: esteja sempre atento, nem que seja para um cumprimento, um sorriso, um aperto de mãos, caso você não tenha tempo para uma conversa.
Uns instantes de intensa atenção bastam para acolher o outro.
- Nada de móveis que impeçam a circulação; mantenha sua casa disponível. Não imponha seus gostos, suas ideias, seus pontos de vista. Nada de retribuições que custam caro: se você oferece alguma coisa, faça-o gratuitamente e nada espere em troca.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles” (Lc 24,15)
O relato dos discípulos de Emaús revela-nos que o conhecimento de Jesus Cristo, a amizade com Ele, a inserção na comunidade dos seus seguidores(as) e o testemunho de sua ressurreição são progressivos. Para conhecer o Senhor, é necessário caminhar com Ele, escutar longa e atentamente sua Palavra, deixar-se cativar por Ele, sentar-se à mesa com Ele e deixar que Ele parta e reparta o pão da vida. E, depois de reconhecê-lo, é necessário realizar imediatamente o “caminho de volta” para a comunidade, para partilhar com os outros a experiência do encontro com o Senhor, professar juntos a fé comum e realizar as obras do Reino.
Lucas gosta de apresentar Jesus a caminho. No relato do Evangelho deste domingo, os termos “caminhar, caminho” aparecem no início, no meio e no fim. No livro dos Atos, a palavra “caminho” designará a identidade e o modo de vida das comunidades cristãs. É essa experiência que, em última instância, muda nosso modo de pensar, de sentir e de agir. É essa experiência que nos converte em seus (suas) discípulos(as) e seguidores(as).
A graça de Deus pode nos atingir nos caminhos mais variados e inesperados: passando pelas fendas de nossa existência, pelas brechas abertas em nós pelas grandes decepções, ou soprando as últimas brasas que, sob as cinzas da desilusão, ainda permanecem acesas. Os caminhos que levam ao encontro com Jesus podem ser os mais diversos e mais ou menos longos, mas a experiência do encontro pessoal com Ele é imprescindível para conhecê-Lo.
Fazer o caminho com os discípulos de Emaús é uma privilegiada oportunidade para recuperar o lugar e o sentido da conversação nas nossas diferentes relações pessoais. De fato, vivemos num mundo hiperconectado; o uso dos aplicativos de mensagens cresceu assustadoramente. O mundo, nossa vida, se converteu num “chat” contínuo.
Na verdade, não é coerente traduzir a expressão “chat” por conversação, porque estamos assistindo a um preocupante paradoxo: em meio a este “chat universal”, a conversação emudeceu; nem é tumulto nem é sussurro. Grande parte de nossas “conversações” fica prisioneira das telas (celulares, tablets, computadores, smarths...). Corremos o risco de reduzir a comunicação à conexão. Banalizam-se os conteúdos, mas também são amputadas dimensões fundamentais da experiência humana da comunicação, sobretudo a presença física.
Sem essa presença, sem o encontro pessoal, há um empobrecimento da verdadeira comunicação dialógica cara a cara, diante do olhar do outro; fora desta comunicação vivente com o outro, já não é possível autentificar a experiência do nosso próprio eu pois nos falta a relação primordial com um tu. O processo mesmo da conversação produz mudanças em nós: uma determinada frase, dita ou escutada, uma experiência de vida que tocou nosso coração, uma pergunta que nos tirou de nossa maneira habitual de pensar… são sementes para transformações posteriores.
No caminho de Emaús, Jesus, como mestre sábio na arte da conversão, parte da situação existencial em que os dois discípulos se encontravam naquele momento: provoca-os para que falem à vontade das causas de sua tristeza. No fundo do coração dos discípulos há um grande vazio que, inconscientemente, querem preencher “conversando e discutindo entre si”.
A pergunta de Jesus sobre o problema que causava tamanho sofrimento neles foi o ponto de partida para encontrar a resposta que, no fim do itinerário, iria esclarecê-los, iluminá-los e devolver-lhes a alegria e a esperança perdidas.
A pergunta de Jesus (“o que ides conversando pelo caminho?”) faz com que os discípulos levantem os olhos do chão e olhem para o rosto do peregrino desconhecido. Sem perceber começam a sair de seu fechamento e a alegrar-se porque alguém está interessado em saber quais são as causas de sua tristeza e quer escutá-los.
A pedagogia amorosa de Jesus deu certo: eles abrem o coração e contam “o que aconteceu a Jesus de Nazaré”. No entanto, o que aconteceu com Jesus não é contado por um coração ardente e exultante, mas por um coração ferido, desiludido e triste. A resposta dos discípulos é um resumo do querigma cristão; mas esse conteúdo é relatado como uma tragédia irreparável.
Depois de um longo diálogo com o peregrino, os discípulos não discutem mais entre si, mas unânimes, insistem para que ele permaneça com eles naquela noite. O pedido “permanece conosco”, em Lucas, expressa o desejo de ser discípulo de Jesus. Depois que Jesus aceitou o convite, a casa de Emaús, em vez de tornar-se um lugar de fuga e fechamento, como os discípulos pretendiam, tornou-se um lugar de acolhida e de partilha, de iluminação e ponto de partida para a retomada da comunhão com a comunidade dos demais companheiros.
Foi durante a “fração do pão”, que os olhos dos discípulos se abriram e reconheceram Jesus. A fração do pão continua a ser para os discípulos de Jesus de todos os tempos o “sinal por excelência da presença do Ressuscitado, o lugar onde eles podem e devem descobrir essa presença e a partir do qual poderão dar testemunho da Ressurreição” (J. Dupont).
O diálogo é consubstancial ao cristianismo. Deus é Palavra criadora e geradora de vida, mas em Jesus ela se manifesta como uma grande conversação. Sua presença junto aos discípulos de Emaús, é que possibilita a passagem de uma “conversa e discussão” marcada pela tristeza, dor e fuga a uma nova conversação, cheia de sentido e alegria. Os dois discípulos viveram uma verdadeira “páscoa”, isto é, passaram da discussão ao reconhecimento, do fechamento à abertura, do lamento ao agradecimento, do desânimo ao entusiasmo. Em resumo, a “passagem” do coração vazio e duro para o coração transbordante e abrasado.
A nova conversação os arranca da solidão e os faz retornar à comunidade para relatar a boa nova da experiência que fizeram. Conversação expansiva, desencadeadora de outros relatos vitais. E assim, os laços são reatados.
Sabemos que, a partir de uma posição conservadora, estática, rígida, é muito difícil que haja uma verdadeira conversação. É preciso sair de si mesmo, colocar-se em marcha. Só nesse deslocamento é onde podemos nos abrir às novas experiências e reconhecer a presença do outro.
O modo eminente de conversação entre as pessoas é aquele no qual se dá uma mútua atualidade da presença, e, portanto, um modo de comunicação no qual toda a pessoa se expressa, com gestos e palavras, e tem um caráter pascal, ou seja, a passagem para a comunhão, a paz, a iluminação...
Texto bíblico: Lc 24,13-35
Na oração: em um mundo permanentemente conectado, com um medo cada vez mais difuso de perder/esquecer seu celular, ou de “ficar sem bateria”, o aprender a “desconectar”, a gerir a solidão, o encontro consigo mesmo, é um dos grandes desafios, sobretudo para os chamados “nomofóbicos digitais”.
- Reservar tempos de deserto para viver a experiência de uma conexão interior é altamente humanizador; somente esta conexão profunda possibilita ter acesso à reservas interiores de compaixão, bondade, amor.
- O “ofício da palavra”, para além de designar isto ou aquilo, é um ato de amor: criar presença.
- Suas conversas cotidianas: são carregadas de calor humano ou marcadas pela frieza das telas digitais?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Imagem: A Ceia de Emaús, Caravaggio (1571-1610)
“Depois dessas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos
se alegraram por verem o Senhor” (Jo 20,20).
As Aparições são a maneira mais convincente de transmitir a vivência daquilo que Jesus Cristo significou para os(as) primeiros(as) seguidores(as), depois da desoladora experiência de Sua paixão e morte. O que a primitiva comunidade quis transmitir foi a experiência de que Jesus Vive e, além disso, continua comunicando-lhes aquela mesma Vida da qual tantas vezes Ele lhes havia falado. E, ao tomarem consciência de que possuíam a verdadeira Vida, o medo da morte não lhes preocupava mais. A Vida que o Cristo Ressuscitado lhes comunicou, permanece. Esta é a mensagem de Páscoa.
Com o conceito de Ressurreição quer-se expressar, então, a mensagem de que a morte de Jesus não foi o final. Sua morte não foi a meta, senão que sua meta foi a Vida, uma Vida em Deus, a mesma Vida de Deus, como nos diz João: “O Pai que vive me enviou e eu vivo pelo Pai”.
Jesus não volta à vida. Está já na vida. Por isso os relatos pascais insistem em que Jesus não é uma recordação do passado, mas que está vivo e ativo entre os seus.
João usa o verbo “soprar sobre eles” para expressar a comunicação do dom da Vida, através do Espírito do Ressuscitado. É o mesmo verbo que aparece em Gen. 2,7: com aquele sopro o ser humano de barro se transformou em ser vivente. Agora Jesus lhes transmite o Espírito que dá verdadeira Vida. Trata-se de uma nova criação do ser humano. Sem essa Vida que vai mais além da vida, nada daquilo que diz o Evangelho teria sentido.
O Espírito recebido é o critério para discernir as atitudes e as ações que derivam dessa Vida. Essa nova Vida é capacidade de amar como Jesus amou; é “passar pela vida fazendo o bem” (At. 10,38); é força que arranca de tudo aquilo que desumaniza e oprime; é impulso para “estar entre os seus como aquele que serve” (Lc. 22,27).
Dando seu Espírito, Jesus quer que seu Projeto seja também realizado por todos os seus(suas) seguido-res(as). Ele desvela no ser humano todas as suas possibilidades: transcender-se a si mesmo e ativar todas as potencialidades de vida ainda latentes.
“Viver como ressuscitados” implica esvaziar-nos do “ego”, para deixar transparecer o que há de mais divino em nosso interior. É preciso destravar portas e janelas de nossos estreitos lugares para que o novo Sopro do Ressuscitado areje nossa interioridade, ainda envolvida na sombra e no medo. Todos nós temos de passar e superar o mesmo processo vivido pelos discípulos e discípulas, se quisermos entrar na dinâmica da experiência Pascal. A fé no Ressuscitado não significa nada se nós mesmos continuamos vivendo uma vida atrofiada e sem horizontes.
Quem se experimenta a si mesmo como “Vida” é já uma pessoa “ressuscitada”. Nós vivemos já ressuscitados porque o Ressuscitado está em nosso meio, através do seu Espírito que dá a Vida. A Vida definitiva já está alentando nossa vida.
A Ressurreição de Jesus nos convida e nos convoca a um sentido maior de nossa existência e uma maior qualidade de vida em nossas relações. Há “sinais” de Ressurreição perpassando todas as experiências humanas. Da mesma forma como há sinais de morte, também há inúmeros sinais de vida saltando por todos os lados. Cabe a nós, portanto, prestar atenção a esses “sinais” para deixar-nos impactar por eles.
Os sinais da Ressurreição não são diferentes daqueles da Paixão, mas os mesmos: os cravos e a lança. Não nos enganemos, trata-se do Crucificado; Ele é o Ressuscitado. Não há outro modo de encontrá-lo e verificá-lo a não ser tocando a marca dos cravos e o seu lado traspassado. Só que agora quem o vê e o toca, sente a força que o Crucificado/Ressuscitado tem para libertar e curar, para sanar e levantar, para dar vida e vencer a morte. Suas cicatrizes são curativas e sanam aqueles que O contemplam e O descobrem no cotidiano da história. “Tocar” no Ressuscitado é “tocar” a carne dos feridos e excluídos de nosso meio.
Jesus Ressuscitado continua carregando em suas mãos, pés e lado, a ferida da história; não só as chagas dos cravos e o corte da lança em seu próprio corpo, mas a chaga dos enfermos e expulsos, dos famintos e oprimidos... e de todos aqueles que continuam sofrendo ao nosso lado.
Experimentamos a Ressurreição quando somos capazes de acreditar que a boa semente precisa morrer para dar frutos, isto é, que a vida bem vivida é aquela que está a serviço e que deve ser bem cuidada. A Ressurreição acontece quando alimentamos a pequena chama que ainda fumega nos corações desanimados, mas esperançosos; quando acreditamos no ser humano e em suas possibilidades de mudança; quando transformamos escuridão em luz, choro em dança, sofrimento em crescimento.
Vivemos a Ressurreição quando ajudamos os outros a encontrar razões para viver e alimentamos os sonhos por dias melhores, com pão na mesa de todos e com dignidade garantida. A Ressurreição acontece nos pequenos e simples gestos de partilha, de perdão sincero e de confiança alegre. Ela está presente nos corações que mantêm viva a novidade da vida. E se revela na capacidade de ver o mundo e as pessoas com olhar de misericórdia, que reconstrói a existência fragmentada.
Eis por que é fundamental o exercício do olhar transparente, da escuta atenta, da sensibilidade antenada... Importa contemplar o amor entre as pessoas, o cuidado do planeta, o sorriso das crianças, o sofrimento e as limitações humanas, a festa e a alegria, os rostos marcados pelo desgaste do caminho, bem como as lutas e as conquistas cotidianas. Tudo é mensagem, tudo se reveste de sentido.
A Ressurreição de Jesus toca nossa existência e nos possibilita experimentar o céu enquanto caminhamos pela terra, viver o divino misturado com o humano. Assim, o bem, a bondade e a solidariedade nos colocam na perspectiva do paraíso. A Ressurreição nos eleva e nos orienta para o Transcendente e para os valores mais altos, sem perder a simplicidade e complexidade de cada dia.
Ao entrarmos no mistério das coisas, pessoas e acontecimentos, somos banhados pela onda vital que emana de Deus. Dessa maneira, a vida nova resplandece e ilumina a escuridão da humanidade. A perspectiva da Ressurreição nos permite, portanto, dar um salto em direção à vida plena, ainda que marcada pela dor, pela cruz e pelos sinais de derrota.
Para os semeadores do bem, a vida é recompensa e fruto. E tem a última palavra...
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: * Preste atenção aos sinais de vida ao seu redor: gestos simples, iniciativas de pessoas e comunidades, posturas éticas e coerentes na política e na Igreja, solidariedade, perdão, acolhimento, voluntariado, cuidado de pessoas e do meio ambiente, etc...
* Faça, diariamente, uma “leitura orante” dos acontecimentos pessoais, sociais, ecle-siais...
* Quê mensagem de Ressurreição você encontra neles? Quê apelos você reconhece nessas experiências?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“De repente, houve um grande tremor de terra: o anjo do Senhor desceu do céu e, aproximando-se, retirou a pedra e sentou-se nela” (Mt 28,2)
Iniciamos o Tempo Quaresmal sendo convocados a refletir sobre os “biomas brasileiros e defesa da vida”. Tal como Jesus, a natureza é também lugar do padecido, da harmonia quebrada, da bondade violentada, da beleza ferida... “A criação geme em dores de parto” (Rom 8,22). Jesus e a Criação carregam a Cruz às costas até o Gólgota.
Há uma crise ecológica que se alastra rapidamente, quebrando o equilíbrio vital que sustenta a natureza toda. O uso desordenado dos recursos naturais e o “descuido” como modo habitual de viver, faz sofrer tanto o ser humano como a própria natureza.
No entanto, a novidade do universo é expressa pelo Apocalipse:
“Eis que faço novas todas as coisas”- 21,5).
A Ressurreição de Jesus nos oferece uma perspectiva para ver essa novidade , enquanto a “comunidade de vida” se desenvolve e caminha em direção ao “Grande Mar Cósmico”.
“Na verdade, o ventre da Terra contraiu-se, a natureza gemeu em dores de parto.
O túmulo rompeu-se e a pedra rolou. De repente a Vida!” (Zé Vicente)
O “mistério pascal” é o salto para a novidade, para a beleza, para a transcendência. Imersos na natureza, a Ressurreição nos faz descobrir a verdadeira extensão da Vida.
A luz da Ressurreição ilumina toda a Criação: a vida de Cristo na vida da Terra nos traz alegria e esperança. O universo inteiro é o “habitat” do Cristo Cósmico.
A aparição de Jesus Ressuscitado no primeiro dia da semana foi entendida como a aurora do “primeiro dia” da Nova Criação de todas as coisas. À luz deste “novo dia” de Deus, Cristo aparece como o primogênito de toda a Criação, que reconcilia todas as coisas no céu e na terra.
O “primogênito entre os mortos” é também o “primogênito de toda criatura”, por quem todas as coisas foram criadas. A Ressurreição pulsa em nós e na natureza com o coração de Deus.
Em Cristo, todas as criaturas apontam para o Criador. Elas também apontam para além de si mesmas, para o futuro da redenção, para sua forma verdadeira e permanente no Reino de Deus. À luz da Ressurreição compreendemos a Criação como “criação de Deus”, porque confiamos na fidelidade de seu Criador, e percebemos a capacidade que ela tem de se transformar, em vista de sua plenitude.
A Ressurreição é colocada no grande contexto da Criação em que o próprio ser humano participa. A Ressurreição é encontro com a vida plena, em um processo da Criação que chega a seu desfecho. Pela Ressurreição, romperam-se todas as amarras do espaço e do tempo. Cristo ganhou uma dimensão cósmica. A evolução se transformou numa verdadeira revolução.
O Gólgota remete aos gemidos de parto, e o túmulo vazio representa a concretização do parto. Nova história, nova criação está iniciada. O Cristo cósmico surge então como motor da evolução, como seu libertador e seu plenificador.
A salvação é salvação de toda a Criação e de todas as criaturas, e não pode ficar restrita à “salvação da alma humana” nem à bem-aventurança da existência humana. A “ressurreição dos mortos” ocorre nesta terra e leva os que receberam a vida para uma “nova terra onde mora a justiça, de acordo com sua promessa” (2Pd. 3,13). O Reino de Deus não é um reino “no” céu, mas ele vem “assim na terra como no céu”. Ressurreição e vida eterna são promessas de Deus para os todos os seres desta terra. Por isso, também a ressurreição da natureza há de levar não para o Além, mas para o Aquém da nova criação de todas as coisas. Não é para o céu que Deus salva sua Criação, mas Ele renova a terra.
A terra é o palco da vinda do Reino de Deus, por isso a ressurreição para o Reino de Deus é a esperança desta terra. Sobre esta terra embebida em sangue esteve a Cruz de Cristo, por isso Deus lhe permanece fiel e afastará dela toda dor, sofrimento e morte, para Ele mesmo nela vir morar.
“O Reino de Deus é o reino da ressurreição na terra” (Bonhoeffer).
Somos já “seres ressuscitados”: sentimos hoje a urgência de seguir os caminhos de uma ética ecológica para que possamos nos situar, na Criação, numa atitude participativa e de cuidado responsável. Cresce um novo modo de pensar e de conceber o universo enquanto “teia de relações”. Isto significa que há uma unidade fundamental e uma vasta rede de inter-relações, conectados a todos os elementos da natureza.
Todos os seres, vivos e não vivos, são parceiros numa verdadeira “dança cósmica”, numa grande comunhão universal. Fazemos parte de uma “rede” de relações múltiplas e recíprocas, nas quais o próprio Cristo Ressuscitado se faz presente, como fonte de vida. Para chegar a viver o Novo Céu e a Nova Terra é preciso renovar radicalmente este céu tantas vezes opaco e esta terra tão violada.
Se não houver uma “salvação da natureza”, também não poderá haver uma salvação definitiva do ser humano, pois os seres humanos são seres da natureza. Isto obriga a todos os que esperam a ressurreição a permanecerem fiéis à terra, a respeitá-la, cuidá-la e amá-la como a si mesmos.
Na perspectiva da natureza, a ressurreição de Cristo significa que com Ele teve início a universal “destruição da morte” (1Cor. 15,26), e que se torna visível o futuro da Nova Criação, quando a morte deixar de existir.
A ressurreição dos mortos, a destruição da morte e a ressurreição da natureza constituem os pressupostos para a eterna Criação que participa da habitação do Deus vivo e eterno.
A Criação “no princípio” está orientada para este fim. De acordo com isto “toda a Criação geme conosco” e esta é a verdadeira ressurreição da natureza.
Este é o lado cósmico da esperança da ressurreição. As forças do pecado e da morte, destrutivas e contrárias a Deus, são expulsas da criação, que é boa, e na presença do Deus vivo esta se transformará em uma criação eternamente viva.
O Deus que ressuscita os mortos é o mesmo Deus que chamou todas as coisas do nada à existência; Aquele que ressuscitou Jesus dos mortos é o Criador do novo ser de todas as coisas.
Ressurreição e Criação constituem, portanto, uma unidade, pois a ressurreição dos mortos e a destruição da morte são a completude da criação original.
Texto bíblico: Mt 28,1-10
Na oração: Fico maravilhado com a nova comunidade universal de vida que emerge da Noite Pascal. A Luz da Ressurreição integra tudo.
Considero como nosso Senhor ressuscitado revela toda a vida futura do universo como uma comunidade em evolução de esplendor e diversidade crescentes. Reflito como Cristo nos leva a evoluir para uma humanidade em plenitude, vivendo uma relação plena com todas as criaturas.
Fraternizo com todas as criaturas e me faço humano em toda minha plenitude.
Páscoa: um salto para a transcendência... para o Novo Céu e Nova terra
Uma inspirada Páscoa a todos(as)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
O Sábado Santo é um dia “não-normal”, porque a morte de Jesus na Cruz deixa o silêncio, o vazio e a obscuridade. É preciso considerar o Sábado Santo como um tempo de luto e pranto: depois da dor intensa da Sexta-feira Santa dá-se lugar a uma dor silenciosa, contida, como a terra que vai se empapando até suas entranhas com a água caída torrencialmente sobre a superfície.
É preciso saber acolher este silêncio surdo, que marca a passagem entre duas experiências intensas: a Sexta-feira de dor e o Domingo de Ressurreição.
A pedra do sepulcro impôs silêncio no Calvário. Também impôs silêncio nos corações doloridos. É um silêncio de dor e solidão. É um silêncio do vazio provocado pela morte.
A pedra que fecha o sepulcro é como o último gesto do morrer. Enquanto o morto está sendo velado, dá a impressão de que, de alguma maneira, ainda está presente. Quando se fecha o sepulcro tudo parece que terminou. O Sábado Santo parece um sábado vazio. Cala a Liturgia. Cala a Igreja. Calam os corações.
O desconcerto diante da Sexta-feira Santa pode ser tão intenso que já não resta mais esperança, nem razão para a missão. Nesse sentido, o Sábado não teria nada de “santo”, mas só sábado de sepultura.
Sabemos que a vida da Igreja, como também a nossa vida pessoal, é feita de longos sábados santos, nos quais nem a dor da Paixão nem o consolo da festa Pascal marcam significativamente nossos dias e nossas noites, mas simplesmente a dura e paciente espera, na fé mais despojada, de um Senhor, que se faz esperar tanto que parece que já não vai chegar mais.
Como seguidores(as) de Jesus tivemos nosso advento, natal, quaresma, páscoa, pentecostes...; também nossa sexta-feira santa. Hoje nos encontramos no Sábado Santo.
O Sábado Santo é um dia sem liturgia, em silêncio, não passa nada, não sucede nada, recorda a solidão do sepulcro, a tristeza das mulheres e dos discípulos, a desilusão diante do fracasso.
“O Rei dorme”, comenta uma antiga homilia sobre o Sábado Santo. O povo recita o “Shabat mater”, acompanha a Virgem dolorosa, espera com ela, em silêncio, a aurora pascal.
Este é o dia das mulheres discípulas, que cuidam do corpo morto e o ungem com aromas; dia do desconcerto dos discípulos masculinos que, com o gosto amargo do fracasso, retornam à Galileia ou a Emaús.
E, no entanto, segundo o credo cristão mais primitivo, conservado fielmente sobretudo na Igreja Oriental, o Sábado Santo recorda a “descida de Jesus aos infernos”, o que equivale dizer: experimentar até o fundo o poder da morte e, portanto, a força do silêncio, da obscuridade e do vazio.
Jesus desce ao lugar da morte e das sombras, a uma dimensão fechada e murada, da qual não havia saída. E, ao entrar no lugar da morte, Jesus rompe os ferrolhos, libera da prisão os encarcerados, ilumina aqueles que viviam nas sombras da morte, vence o poder do mal.
Na “descida” de Jesus somos movidos a viver esta jornada como um tempo no qual é possível experimentar a ausência, o silêncio ou o vazio (quando, por exemplo, é provocado pela perda de um ente querido).
É muito duro viver em um Sábado Santo tão prolongado, é duro o inverno social e eclesial. Mas, às vezes, em meio ao silêncio do Sábado de nossa história, ouvem-se algumas vozes de mulheres que falam de anjos que anunciam que o Senhor ressuscitou. Certamente podemos fechar-nos em nosso pessimismo e pensar que estas mulheres são umas insensatas, exageradas e aloucadas. Mas, e se estas mulheres tiverem razão? Então, não teríamos também que “descer aos infernos” de nosso mundo de hoje para libertar os que estão nas sombras da morte e anunciar-lhes que o Senhor venceu a morte?
Então, talvez, o Sábado Santo poderia converter-se em um tempo de esperança germinal.
Sábado Santo é tempo não só de espera, mas de esperança, é deixar que o grão de trigo morto comece a germinar, é tempo de um inverno que tornará possível as flores da primavera, é tempo de imaginar, de criar, de abrir-se a algo novo e inesperado, de sonhar um mundo melhor e uma Igreja mais nazarena.
O vazio da morte de Jesus nos deixa sem alento. Sua ausência nos deixa sem palavras. Que podemos dizer se Ele não está presente? Quando já não está presente a Palavra, que podem dizer as palavras? Por isso, o Sábado Santo, é o sábado das ausências.
Em nosso mundo violento, onde a destruição da vida é tão forte e as feridas da humanidade e da criação são exibidas, é difícil tolerar a experiência de Deus como uma ausência purificadora e manter abertos nossos corações para preparar o novo caminho de vida, de forma reverente e paciente.
No entanto, em todo caminho espiritual é preciso passar pela “noite”, pela “ausência”, pelo “silêncio”, para amadurecer. É inevitável experimentar, durante algum tempo, alguma forma desconcertante de sentir a presença-ausência de Deus.
Deus está “além” de nosso coração e de nossa mente, “além” de nossos sentimentos e de nossos pensamentos, “além” de nossas expectativas e de nossos desejos, “além” de todas as experiências que fazem parte da vida. E, ao mesmo tempo, está no “centro” de tudo isso.
Sua ausência, por outro lado, muitas vezes é sentida tão profundamente, que leva a um novo sentido de sua presença. Isto está expresso no Sl. 22,1-5.
Este espaço de silêncio não é de morte senão de vida germinal, é noite que aponta à aurora, são as noites escuras da vida que desembocam na alegria da alvorada; é tempo de fé e de esperança, é momento de semear, mesmo que não vejamos os resultados, é tempo de crer que o Espírito do Senhor, criador e doa-dor de vida, está fecundando a história e a terra para seu amadurecimento pascal e escatológico, para a chegada da “nova terra nova e do novo céu”.
Vivemos no “sábado santo” da nossa sociedade dividida, preconceituosa, violenta...; somos terra de penumbra. Mas nela se antecipa a esperança do dia de Páscoa. Como as mulheres, vamos ao sepulcro, levando aromas. As orações são aromas que o Espírito recolhe em sua taça. A esperança é aroma que faz esquecer o mau-cheiro do cadáver. Na noite do sábado santo nos mobilizamos a levantar bem cedo porque “algo novo” vai acontecer. O Abbá ausente vai revelar sua nova presença; o Espírito ficou sem Palavra, mas já sussurra; a voz do silêncio dá seus primeiros gemidos. Algo grande já se prepara.
As discípulas e os discípulos de Jesus estão à espera, reunidos em torno a Maria, orando com ela, a transparência feminina do Espírito.
Esta terrível Noite Escura do Sábado Santo corresponde a um incontestável estágio espiritual, como dura mas inevitável “passagem” (Páscoa) para a Luz do Domingo.
Só atravessando a prova, a Noite Amarga se transforma em Noite Amável.
Textos bíblicos: Mc. 15,42-47 Jo. 19,38-42
Na oração: recordar os grandes silêncios da vida (perdas, fracassos, crises...) onde não há razões, não há uma lógica..., mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres” (Laudato si´n. 49)
A Campanha da fraternidade deste ano, com o tema sobre os “biomas brasileiros”, nos oferece uma com-preensão aprofundada do sofrimento de Jesus, que inclui sua união com todos os membros da comunida-de de vida. Somos chamados a contemplar o cosmos como uma epifania, ou seja, como manifestação de um mistério, que pede reverência e respeito para quem dele se aproxima.
O mistério Pascal constitui o núcleo central da fé cristã, ou seja, a morte e ressurreição de Jesus de Nazaré e a efusão do Espírito sobre toda a Criação.
Este mistério pascal se estende também a todo o povo crucificado, ou seja, a esta grande maioria da humanidade que vive explorada e marginalizada, vítima dos interesses de uma minoria. Por isso, crer no Crucificado implica fazer descer da Cruz todos os que estão dependurados nela. Mas a imagem da crucifixão se aplica também à situação de nossa Terra, uma terra explorada, deser-tificada, contaminada, com a biodiversidade destruída e os oceanos transformados em cemitérios.
Por sua atitude de arrogância e de autosuficiência, o ser humano explorou exaustivamente a Terra herdada e a destruiu, depredou, aniquilou, tomou posse dela... Assim, não foi respeitoso para com o Criador que a ele reservou a missão de cuidar do seu jardim e de compartilhar os seus frutos.
Há um clamor generalizado que emerge da realidade desafiante enfrentada pela humanidade: o planeta Terra está gravemente enfermo. As conseqüências trágicas estão presentes por toda parte: degradação do meio ambiente, diminuição acelerada das fontes de água potável, desertificação, degelo das calotas polares com a conseqüente elevação do nível do mar, grande incidência de furacões e de queimadas, extinção de milhares de espécies de animais, escassez de alimento, proliferação de doenças, migrações forçadas... Enfim, o desequilíbrio dos ecossistemas pode comprometer, de forma irreversível, todas as formas de vida sobre a terra. Estamos diante da “Terra crucificada”.
E aqui já não podemos repetir as palavras de Jesus na cruz “eles não sabem o que fazem”: todos somos conscientes de que a atitude prepotente e dominadora em nome do progresso e do consumismo causa danos irreversíveis à Terra. A terra geme em dores de parto, um parto que hoje se revela abortivo. A Criação é também lugar do padecido, da vulnerabilidade afetada, da beleza ferida... A utilização desor-denada dos recursos da natureza faz sofrer tanto ao ser humano como à própria natureza, conclamando portanto à solidariedade, à partilha, à compaixão, à reconciliação na sua dimensão maior.
Perguntaram ao monge zen Tich Nhat Hanh o que é que precisamos fazer para salvar o mundo. Ele respondeu: “O que precisamos é, antes de tudo, escutar em nosso interior o grito da Terra”. Como cristãos, este grito o entendemos como o grito de Jesus na Cruz, que condensa todos os gritos da humanidade explorada e da natureza expoliada. Na Paixão, buscamos experimentar, com Jesus, o sofrimento da Terra. Experimentamos Jesus sofrendo nas regiões marcadas pela seca, na terra cheia de cicatrizes pelas explorações do solo e das florestas, na contaminação do ar e da água...
Para Jesus, toda tragédia de sofrimento inocente e absurdo se concentrou n’Ele. Em sua pessoa estão o lamento e o desamparo da vítima inocente. Jesus, na Cruz, expira num grande brado, tão abismal que jamais será ultrapassado; n’Ele se encontram e se reconhecem todos os sofredores inocentes; n’Ele se condensam todos os gritos da humanidade sofredora e da natureza destruída.
Na contemplação de Jesus que sofre e é abandonado, revela-se o mistério maior de Deus frente a todo o mistério do mal. Na fraqueza e no sofrimento inocente de Jesus estão a fragilidade e o sofrimento do próprio Deus. Este é o mistério maior do silêncio e da “kénosis”: com o despojamento de divindade do Filho, o Pai, sem utilizar o revide de vingança e de poder, acolhe o mistério do mal em seu mistério maior de amor.
Disposição de todo o meu ser para o mistério - Leio Mc. 14,26-42 Mc. 15,33-41
Trago à memória todas as criaturas que sofrem por causa da cegueira e da avareza suicida do ser humano. Milhões de anos de história da evolução estão sendo apagados da face da terra, ao mesmo tempo que as áreas desérticas do mundo crescem rapidamente.
Diante da Árvore da Cruz, sinto-me aniquilado pela agonia que Jesus suporta silenciosamente enquanto destruímos biomas, poluímos rios e mares, devastamos florestas junto com a imensa quantidade de comunidades de vidas que há nelas.
Com a imaginação, permaneço junto à Cruz, cheio de aflição e amor por tudo aquilo que Ele está suportando por mim e por todas as criaturas. Vejo como esta Vida pura, inocente, está se desfazendo na Cruz, diante de mim. Esta Vida que assumiu a matéria para poder estar entre suas amadas criaturas. Estou sobressaltado diante deste mistério: Ele assume livremente dar sua vida para plenificar a vida de todos os seres.
O desejo de meu coração
Peço alcançar a graça de ter um conhecimento profundo do sofrimento da humanidade de Cristo, que continua nas comunidades de vida marginalizadas e exploradas, que gemem em seu sofrimento.
Peço sentir tristeza e aflição, dor interior e lágrimas com Cristo, enquanto Ele experimenta o mal trato imposto à sua amada Terra, e como eu ainda ignoro sua preocupação pessoal e sua vinculação física com sua comunidade universal de vida. Minhas atitudes de avareza e exclusão feriram e humilharam penosamente a sua amada Criação.
Diante da agonia de Jesus, fazer memória da agonia da Terra
A Natureza está sendo vergonhosamente atacada e dizimada pela implacável crueldade humana. Arrancaram suas vestes e a desnudaram. Suas matas e florestas estão sendo destruídas, adulteradas e saqueadas.
A desolação estendeu-se sobre seu corpo; lançaram fogo sobre suas vestes... Poucos correm para socorrê-la. Muitos estão cegos e insensíveis. Observam-na agonizando, enquanto contam seus lucros insaciáveis.
A Terra já não consegue respirar como outrora; sente-se sufocada, febril e doente. Detritos e gases asfixiam-na. Ela sente-se sozinha e indefesa.
Ouço o grito de Jesus na Cruz; ouço os últimos gritos da mãe Terra.
Na oração: Estou assombrado diante da revelação das Três Pessoas Divinas no Gólgota, humilhando-se para dar à luz um novo cosmos de espaço, tempo e matéria.
Penso com espanto na Trindade humilhando-se ao dar completa liberdade ao seu amado cosmos, em vez de impor um controle total.
Maravilho-me diante de Seu amor, demonstrado em sua própria doação e expresso através de toda a evolução ao fazer com que as criaturas fossem adquirindo cada vez maior liberdade, culminando na liberdade humana, capaz de dirigir toda mudança futura.
Ao pé da Cruz, comovo-me no mais profundo de meu ser diante do poder misericordioso de Deus, muito mais efetivo através da doação que através do uso da força.
Dou graças a Jesus na Cruz por ter-me revelado agora que todas as lutas do cosmos durante todas as eras foram experimentadas pela Trindade bondosa. Reflito com espanto que a verdadeira história da vida de Deus inclui toda a agonia da evolução: extinções em massa de espécies, a necessidade cruel da cadeia de alimentação, parasitas, epidemias, bosques arrasados, guerras, crianças famintas, o horror da avareza e a indiferença da humanidade...
Colóquio
Falo com Jesus, meu amigo e irmão, e permaneço presente com Ele, junto à sua Cruz.
Termino com a oração que Jesus nos ensinou.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
"Fazei isto em memória de mim”
Nesta Quinta-feira Santa, celebramos o Amor até o extremo de Jesus, a radicalidade de sua ternura que se faz cuidado até o ponto assumir todo o sofrimento da humanidade mais excluída e da criação mais ferida. Jesus é a misericórdia em ação, a misericórdia em relação, vivida no corpo a corpo com as pessoas mais oprimidas e exploradas. N’Ele se faz carne e se revela o rosto do Deus todo cuidadoso da Criação, que vela pela dignidade de toda criatura, que “não quebra o ramo já machucado, não apaga o pavio já fraco de chama” (Is. 42,3).
Mais uma vez, durante o tempo quaresmal deste ano, a Igreja do Brasil (CNBB) nos alertou para os perigos da devastação do meio-ambiente, além de despertar a atenção de todo povo cristão para o cuidado e proteção da Criação de Deus que nos foi confiada.
Com o tema “Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da vida” e o lema: “Cultivar e guardar a criação” o objetivo foi dar destaque à diversidade da cada bioma e criar relações respeitosas com a vida e a cultura dos povos que nele habitam.
“Cultivar e guardar” nascem da admiração. A beleza que impacta nosso coração faz com que nos inclinemos com reverência diante da Criação. Como discípulos(as) do Senhor, temos a missão de sermos servidores(as) no amor, dentro das relações vividas no cotidiano de nossa realidade.
Tocados pela bondade e diversidade dos biomas, somos conduzidos a uma grande ação de graças. E a Eucaristia é o momento privilegiado para isso.
Em Jesus, Deus se revelou encarnado na história e, por sua atuação, morte e ressurreição, fica claro que Ele fez do universo seu corpo. A presença real de Jesus, no pão e vinho da Eucaristia, nos desperta a reconhecê-Lo presente no coração do Cosmos e da História.
Céu e Terra estão integrados; o finito se faz espaço e revelação do Infinito, e Deus acontece nas relações humanas interpessoais e nos cuidados por tudo que diz respeito à harmonia neste mundo.
Pela Eucaristia, valorização definitiva do universo através da comunhão, somos confrontados com a presença transformadora de Deus em tudo e em todos.
A Eucaristia nos educa no respeito e cuidado para com tudo aquilo que nos cerca. Tudo e todos são sinais do divino, que rejeita toda forma de dominação e exclusão, exploração e divisão, substituindo-a pelo respeito e cuidado que integra a natureza, promove a vida e confraterniza a convivência. A Eucaristia clarifica e atualiza a Vontade do Pai: “E a vontade d’Aquele que me enviou é esta: que não perca nenhum dos que Ele me deu, mas os ressuscite no último dia” (Jo. 6,39).
É o papa Francisco quem, em sua importante encíclica “Laudato si´” (n. 236), alude a esta dimensão cósmica da eucaristia. Porque no pão e no vinho da se concentra toda a essência da Criação, a exube-rante riqueza de seus recursos, a fecundidade inesgotável dos biomas, a beleza deslumbrante de suas fontes e rios, de suas matas, de suas montanhas...
“A Criação encontra sua maior elevação na Eucaristia.(…) O Senhor, no apogeu do mistério da encarnação, quis chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo no nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito, a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico. Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar de uma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo. A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no Pão eucarístico, a criação está orientada para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador. Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e motivação para as nossas preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da criação inteira”.
O texto acima é, sem dúvida de uma grande densidade teológica. Os dons eucarísticos, o pão e o vinho, por sua condição material e terrena e por sua vinculação com o trabalho humano, são parte da criação, são algo nosso, “um pedaço de matéria”; pertencem à nossa condição mais própria e íntima.
Tudo isto aponta para a convicção de que, no insondável mistério eucarístico, os dons apresentados são uma representação do cosmos inteiro. Todo o universo cósmico é assumido e se faz visível na Eucaristia. Desde modo a Eucaristia acaba se convertendo no centro do cosmos, no “centro vital do universo”.
Quem come do Pão e bebe do Vinho, entrega-se ao dinamismo da Ressurreição, comprometendo-se com a luta contra as forças da morte: egoísmo, violência, indiferença, omissão política, desonestidade na gerência dos bens, descuido nas relações afetivas, isolamento no medo, destruição do meio-ambiente, poluição...
Simbolicamente, na Eucaristia, o pão é partido para significar a doação de Jesus; e ao comermos deste pão, aceitamos ser como o grão de trigo que, caído no chão da história, produz frutos para o bem de todos. Essa presença mística de Cristo em nós, dinamizada pela Eucaristia, consagra irmãos solidários, cidadãos do mundo. Aqui está o fundamento da espiritualidade ecológica que nos faz sensíveis para guardar e cuidar todas as expressões de vida, reveladas nos diferentes biomas de nosso país.
Cultivar a “memória de Jesus”, de tudo que celebrou na Última Ceia, é tornar viva e atual Sua presença nas diferentes refeições junto ao seu povo. Consciente da missão que o Pai lhe confiara, Ele despertava as pessoas para seu próprio valor, para a dignidade e originalidade de cada um...
Nessa perspectiva, Ele as libertava da banalidade do medo, do poder excludente, da ansiedade, da culpa e da passividade na submissão, para um sentido superior de ser e conviver.
Na prática do amor, Jesus se fez presente-doação em todas as situações de exclusão e marginalidade, envolvendo a todos com a solicitude misericordiosa do Pai. Tal doação-entrega atingiu o cume na partilha do pão e do vinho, na celebração da Eterna Aliança.
O dom eucarístico, portanto, tal como a humanidade de Jesus, não pode ser reduzido a um simples objeto desligado das demais relações envolventes (com Deus, com os outros e com toda a Criação). “Como o pão é um só e o mesmo, formamos todos um só corpo” (1Cor. 10, 14-22).
Texto bíblico: Jo 13,1-15
Na oração: Nem sempre estamos preparados para assumir a tarefa tão humilde do Lava-pés, porque esta tarefa implica prostrar-se, descer ao húmus, entrar em contato com a terra, o barro, a poeira… Lava-pés é o gesto humilde que não nos humilha, mas nos humaniza e nos faz viver a comunhão com toda a Criação. Não é evento, mas hábito de vida, um “modo de proceder” que mais nos identifica com Aquele que mais “cultivou e guardou a Criação”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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