“Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas...; chamou os doze discípulos” (Mt 9,36)
Uma pessoa que se define tem força para despertar, para arrastar, para mobilizar os outros. Jesus é o homem que se definiu. Por isso, Ele nos inspira e nos impulsiona. Inspirar e impulsionar, impulsionar a partir da inspiração: isso é seduzir no melhor sentido da palavra. Jesus não nos seduz simplesmente para provar sua condição divina ou a veracidade de sua mensagem. Ele nos seduz porque foi um homem de carne e osso como nós, e porque alcançou um grau de humanidade, de compaixão e liberdade, de sensibilidade e compromisso..., que está em nossas mãos alcançar.
A grande novidade e originalidade de Jesus (sua subversão) começou em sua maneira de olhar a realidade e de deixar-se afetar por ela. A “subversão” da vida começa pela subversão do olhar e vice-versa. O coração sente de acordo com o que os olhos veem, mas os olhos veem de acordo com o que sente o coração. A realidade subverte o olhar, e o olhar subverte a realidade. Olhos que não veem, coração que não sente. Mas os olhos não veem quando o coração não sente.
Os olhos de Jesus viram muita dor, miséria, violência..., e suas entranhas se comoveram. Viu o seu povo despojado da terra, dos direitos mais elementares... Jesus viu e se compadeceu; compadeceu-se e indignou-se; indignou-se e se comprometeu na transformação daquela realidade dolente; comprometeu-se porque seus olhos viram mais a fundo, mais além, outro mundo possível. Na raiz de sua atividade terapêutica e inspirando toda sua atuação junto aos enfermos está sempre seu amor compassivo. Jesus se aproxima dos que sofrem, alivia sua dor, toca os leprosos, liberta os possuídos por espíritos malignos, os resgata da marginalização e os devolve à convivência.
O que move a vida de Jesus é a compaixão e a compaixão é expansiva, tem impacto profundo naqueles(as) que estão ao seu redor. Compaixão desperta compaixão pois ela é mobilizadora dos sentimentos mais nobres presentes no interior de cada um. No calor da compaixão ativada brota o chamado de Jesus e a resposta dos seus(suas) seguidores(as). Sem compaixão, a resposta ao chamado se esvazia, o serviço se burocratiza, o seguimento vira lei.
Jesus não nos chama para seguir uma religião, uma doutrina, nem faz proselitismo... Ele desencadeia um movimento e nos convoca a segui-Lo, ou seja, identificar-nos com Ele e com sua proposta de vida. O horizonte do chamado e do envio não é outro que o compromisso em favor da vida e das pessoas, frente àquelas forças que tendem a travar e danificar a mesma vida. A partir desta perspectiva, a “missão” pode reencontrar seu verdadeiro sentido. Enviados(as) em favor da Vida, seus(suas) seguidores(as) sabem muito bem qual é o encargo que Jesus lhes confia. Nunca O viram governando a ninguém; sempre O conheceram curando feridas, aliviando o sofrimento, regenerando vidas, destravando os medos, contagiando confiança em Deus.
A novidade de Jesus consiste justamente em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo, pela pompa dos ritos e pela observância estrita das leis. Desse modo, reconhece-se a vida como lugar privilegiado da Sua Presença.
O(a) seguidor(a) de Jesus não é aquele(a) que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele(a) que, movido por uma radical compaixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença d’Aquele que é a Misericórdia.
É aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o seu Reinado, trabalhando cada dia como amigos(as) de Jesus que passam, se compadecem, curam, ajudam, transformam, multiplicam os esforços humanos. Apaixonados(as) por Deus, apaixonam-se pelo mundo que, em sua diversidade, riqueza, profundidade, fragilidade, sabedoria... lhes fala e lhe revela o rosto misericordioso do Deus que se humanizou para humanizar nossas vidas.
Jesus não fundou o clero nem quis instituir um corpo ou estamento de “homens sagrados”, uma espécie de funcionários do templo, constituindo-se numa “classe superior”. O que Jesus quis foi “discípulos/as” que lhe “seguissem”, ou seja, que vivessem como Ele viveu: dedicados a curar enfermidades, aliviar sofrimentos, acolher as pessoas mais perdidas e extraviadas. Assim nasceu o “movimento de Jesus”.
Jesus, o “rosto misericordioso do Pai”, continua passando diante de cada um de nós, parando e fazendo um chamado que desperta comoção e compaixão. Sua presença provocativa e seu chamado exigente colocam em questão nosso costume de nos refugiar no mundo asséptico das doutrinas, na tranqüilidade de uma vida ordenada, satisfatória e entorpecida, na segurança de horários imutáveis e de muros de proteção, longe do rumor da vida que luta para ter um lugar ao sol, dos gritos daqueles que sofrem e morrem nas periferias deste mundo.
Escutar e seguir Seu chamado implica abandonar a estreiteza de nossos caminhos e deixar o nosso coração bater no ritmo dos doentes e marginalizados, vítimas da desumanização de nossa sociedade. O importante não é pôr em marcha novas atividades e estratégias, senão desprender-nos de costumes, estruturas e dependências que estão nos impedindo ser livres para contagiar o essencial do Evangelho, com verdade e simplicidade.
Como evitar que a aventura, na qual um dia nos embarcamos, nascida de uma paixão pelo Senhor e pelo seu Reino, transforme-se num tedioso cumprimento de normas e costumes? Estamos, talvez, experimentando a frustração de não ter acertado na rota da busca da vida plena e transbordante na qual quisemos investir as nossas melhores energias: sentimo-nos cansados(as) de palavras sem significado e sentimos fome de proximidade, de presença, de compromisso.
Como Igreja, nem sempre temos adotado o estilo itinerante que Jesus propõe. Nosso caminhar torna-se lento e pesado; não acertamos o passo para acompanhar a humanidade; não temos agilidade para deslocar-nos em direção à margem sofredora; agarramos ao poder e às estruturas que tiram a mobilidade; enredamos nos interesses que não coincidem com o Reinado de Deus.
Não estaremos desperdiçando as nossas forças para conservar atitudes arcaicas e nos deliciamos com um estilo de vida que nos atrofia? Não chegou, talvez, o momento de deixar de repetir aquilo que fazíamos antes, e de abrir-nos àquilo que está diante de nós, à novidade que o Espírito está criando?
Para Jesus, o ideal de sua mística é “viver com um pé levantado”, isto é, sempre pronto para responder às oportunidades que são oferecidas pela vida. O(a) seguidor(a) de Jesus vive a aventura enquanto capacidade de estar “na frente” de situações desafiantes, superando o medo de romper paradigmas, potencializando talentos e fomentando a criatividade... Tem a ousadia de inovar, a coragem de arriscar e a vontade de realizar mudanças importantes. Para isso é preciso despojar-nos de hábitos arraigados, pré-juizos, ideias fixas, modos fechados de viver e abandonar a atitude do “sempre fizemos assim”. Estes são os vícios que impedem uma resposta diferente e sedutora num mundo em transformação.
A compaixão deve configurar tudo o que constitui nossa vida: nossa maneira de olhar as pessoas e de ver o mundo; nossa maneira de nos relacionar e de estar na sociedade, nossa maneira de entender e de viver a fé cristã...
Texto bíblico: Mt 9,36-10,8
Na oração: Jesus, foi o homem que se definiu, tinha claro qual era sua missão; por isso, nos apresenta uma causa muito nobre e, com seu chamado, rompe nosso estreito mundo e desperta em nós ricas possibilidades, reacende o que de mais nobre há em cada um(a) e amplia nosso horizonte de vida.
Seguir Jesus Cristo é aderir a Ele incondicionalmente, é “entrar” no seu caminho, recriá-lo a cada momento e percorrê-lo até o fim. Seguir é deixar-nos “configurar”, isto é, movimento pelo qual vamos sendo modelados(as) à imagem de Jesus Cristo.
- Sua vivência do Seguimento de Jesus é marcada pelo “olhar compassivo e comprometido” ou por práticas piedosas alienadas, que não o(a) projetam em direção aos mais sofredores?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (Jo 6,51)
O corpo humano está no centro da revelação cristã, já que se trata de algo assumido pelo mesmo Deus na Encarnação de seu Filho Jesus Cristo; Ele se faz corpo humano e habita entre nós. Este gesto divino eleva e engrandece a corporeidade humana e a resgata para sempre, já que a divindade abraça a “carne”, assumindo sua fragilidade para dentro de Si mesmo.
Deus se revela encarnando-se, assumindo um corpo que sente, que vibra, que tem prazer e que sofre, uma carne que treme, vulnerável ao frio e ao calor, à fome e à sede. Corpo que comunga com nossa mortalidade, padecendo dor, agonia e morte, sendo sepultado no ventre da terra como toda criatura.
Segundo os Evangelhos, Jesus de Nazaré foi Aquele que soube ser feliz transitando com sabedoria e amor o caminho do próprio corpo. Ele não tinha uma mentalidade dualista: sua visão do mundo não era dicotômica nem hierarquizada, nem separava entre sagrado e profano. Essa mentalidade que contaminou o cristianismo não procede d’Ele, mas de filosofias posteriores.
Jesus não se apresentou como inimigo do corpo, do prazer e da festa, nem foi um asceta como João; pelo contrário, escandalizou por sua forma festiva, prazerosa e livre de viver seu corpo e suas relações. Desfrutou de banquetes em companhia de gente excluída e marginalizada por diversas razões, e isso foi motivo de espanto. O fato de ter sido acusado de “comilão, beberrão, amigo dos publicanos e pecadores” é a melhor expressão de sua liberdade relacional e sua maneira de viver reconciliado com seu corpo ao permitir-se prazeres corporais: comer, beber, dormir, descansar, desfrutar dos sentidos... a vista, o sabor, o olfato, o tato.
Nem ele nem seus discípulos guardavam o jejum, participando de casamentos, banquetes, refeições festivas com “gente de má fama”, para escândalo dos considerados “puros”.
Além disso, Jesus viveu seu corpo como um lugar para a relação sem medos nem tabus: tocou e se deixou tocar com profunda liberdade, escandalizou os seus discípulos desfrutando do contato amoroso com Maria de Betânia, que derramou sobre Ele um caríssimo perfume, num gesto de total gratuidade e marcada somente pelo desejo de compartilhar amor e gratidão. Olhou o corpo das mulheres de um modo muito diferente daquele dos seus contemporâneos; para Ele, elas nunca foram lugar de tentação ou seres inferiores dos quais não tinha nada que aprender: foram amigas, companheiras, discípulas, mestras em muitos momentos.
Empenhou-se por praticar um amor operativo e, sobretudo, centrado nos corpos enfermos, desgarrados, desnudos, famintos, encurvados, paralisados, cegos, coxos, leprosos...; além disso, deixou claro a quem quisesse escutá-lo, que isso era o fundamental para entrar no Reino: passar pela vida como tera-peuta/sanador e não como juiz que acusa; abraçar e acolher a carne sofredora dos outros e não manter uma prudente distância do corpo vulnerado de Jesus. E, se com sua vida não tivesse ficado suficientemente claro, quis, num momento solene, recordar a todos que a verdade última sobre o que é ganhar a vida ou perdê-la definitivamente está no fato como tratamos os corpos de nossos irmãos que sofrem. O amor não é algo etéreo: ou passa pelo corpo ou é apenas um bom desejo e nada mais.
Na festa de “Corpus Christi” fazemos memória deste mistério: o único recurso de que Jesus dispunha antes de ser preso e sofrer a paixão era seu próprio corpo. Não teve outra riqueza nem outro dom a nos oferecer. Esse Corpo que era sua própria vida; sentia-se abençoado em sua totalidade, sem deixar nada fora. Agradeceu por isso e fez dele um gesto definitivo: entregou-se por inteiro, sem nada reservar para si. A partir de então, torna-se um Corpo expansivo que se deixa tomar pelas nossas mãos e saborear pela nossa boca, na maior proximidade e no mais íntimo contato. De agora em diante, será nos corpos vulnerados, nos corpos que sofrem, resistem e curam, onde Ele quer permanecer expressamente presente, com uma presença imediata que não deixa lugar a dúvidas: “Todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes”.
Na festa de Corpus Christi, há um grande perigo de alimentar a devoção à presença real de Jesus na Eucaristia desvinculado da realidade de sua Encarnação, ou seja, esquecer que Ele se fez corpo, viveu intensamente seu ser corporal e comprometeu-se com os corpos desfigurados e sofredores dos outros, recriando-os e impulsionando-os a uma vida mais plena. Portanto, “Corpus Christi” é festa do corpo de Jesus e de todos os corpos. Festa do pão e do vinho, frutos da terra e da comunhão de todos os seres. A Terra é um grande organismo vivente; o universo, com suas estrelas e galáxias é um imenso corpo. Da mesma forma, cada átomo é um corpo no qual se movimenta o universo do imensamente pequeno.
Sempre foi verdade a afirmação de que “somos corpo”, e não a afirmação de que “temos corpo”; mas durante muito tempo a espiritualidade cristã esqueceu esta verdade, considerando o corpo como algo acidental ao ser humano, olhando-o com suspeita e inclusive como seu inimigo. Identificada com uma mentalidade dualista que desconecta corpo de espírito, material de espiritual, terra de céu..., a espiritualidade cristã manteve a questão do corpo um tanto exilada e silenciada.
Atualmente caímos no perigo extremo: somos somente corpo, como se o corpo fosse o único centro de atenção da vida. Na cultura pós-moderna, o corpo está se convertendo em extensão da imagem de nosso ego, ao invés de ser expressão de nossa história pessoal e de uma vida aberta à plenitude de Deus. Desconectado de sua intimidade, o corpo vive como objeto dos olhares exteriores e por isso se coisifica e se tecnifica como se fosse uma mercadoria.
“Somos corpo” em relação com tudo o que é. Somos nuvem, água, ar, terra. Carregamos todo o universo dentro de nós. Somos Terra que sente, canta, pensa, ama. Somos partículas de matéria aberta, fonte inesgotável de possibilidades. Somos corpo, somos espírito, somos alma, somos afeto, somos relação… Somos milagre.
Celebremos o Corpus Christi de outra forma; celebremos nosso corpo, tão maravilhoso e vulnenável. Cuidemos do corpo, sem torturá-lo com nossas obsessões, sem submetê-lo à escravidão de nossas modas e medos. Respeitemos como sagrado o corpo do outro, sem apropriar-nos dele. Sintamos como próprio o corpo do faminto, do excluído, do refugiado, da mulher violentada, maltratada, da criança abandonada...
É nosso corpo. É o Corpo de Jesus. É o Corpo de Deus. Celebremos, cuidemos, sejamos Corpo de Deus, epifania carnal da Ternura infinita.
Texto bíblico: Jo 6,51-58
Na oração: Seu corpo, que é você mesmo, tão efêmero mas habitado pelo Infinito, o Eterno. Você também, como Jesus, em comunhão com todo o universo em movimento e evolução, é “corpo de Deus”. O Infinito se manifesta e emerge de seu interior. Acolha seu mistério, deixe-se acolher pelo Infinito em você, deixe que suba desde o mais profundo de você a Voz que lhe diz: “Isto é o meu corpo”.
- Que a festa de “Corpus Christi” anime você a viver sua vida cotidiana buscando fazer de seu corpo um lugar de encontro, de vida, de amor, sem medos nem tabus. Você será mais feliz e, ao mesmo tempo, será agente de felicidade em seu entorno.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
A festa da Trindade nos mobiliza para uma nova maneira de viver e de nos relacionar com o Deus Comunhão de Pessoas, cuja presença preenche o cosmos, irrompe na vida, habita decididamente no interior de cada um de nós e é vivido em comunidade.
A Trindade “desvela” a maneira de ser de Deus, como Amor que se expande, em si e fora de si, de uma maneira “redentora”, inserindo-se na história da humanidade. Deus é Amor e só amor. Diante da presença e da ação do Deus Trinitário, afogam-se as palavras, desfalecem as imagens e mor-rem as especulações. Só nos restam o silêncio, a ado-ração e a contemplação.
Para facilitar tal atitude, vamos ativar nossos sentidos interiores para que se deixem impactar pelo Icone de Rublev: da Trindade pensada à Trindade adorada.
A Trindade não é fácil de ser representada. Aqui o artista representou-a na figura de três anjos peregrinos, assentados à mesa de Abraão. O quê vemos neste ícone? Três anjos, reconhecidos por suas asas, estão assentados em torno de uma mesa. Os três sustentam um cajado na mão (Trindade Peregrina).
Trata-se de uma representação do relato da hospitalidade de Abraão, que se encontra em Gen. 18, quando o Senhor apareceu ao patriarca na planície de Mambré, sob a forma de três jovens. Abraão os convidou a descansar e lhes ofereceu uma refeição. A tradição patrística viu nesses visitantes uma figura das três pessoas divinas.
Podemos nos aproximar do ícone a partir da beleza; num primeiro olhar, a divindade aparece revelando-se como uma grande luz que atrai e purifica. A ausência de sombras no ícone quer fazer refletir a luz divina em tudo, situa-nos diante da santidade de Deus e nos convida a participar da luz da vida trinitária. Tudo está no mesmo plano, o plano celestial; e, num olhar de fé, detrás da beleza de sua realidade sensível, o ícone nos remete mais além do visível, para a beleza das realidades divinas que representa e transmite; a razão emudece, o coração admira. Ou seja, não é a imagem em si mesma que nos eleva pelo que representa, mas aquilo para o qual ela aponta: o mistério trinitário ou o “excesso de Deus”.
Observe, em primeiro lugar, o ritmo ou movimento circular que parece invadir todos os elementos do ícone, convidando-nos a entrar no mistério de Deus. O movimento que, partindo do Pai, passa pelo Filho e se consuma no Espírito, é um movimento de amor sem fim. Aqui, o ícone deixa transparecer o amor que une às três Pessoas divinas. Trindade é mistério de comunhão. É uma comunidade perfeita.
O ícone, através da reciprocidade dos olhares, evoca o eterno movimento de amor que une as três Pessoas divinas, no sentido de que nenhuma delas esgota em si mesma a existência, nem vive por si mesma, senão que subsiste num mistério de total compenetração que ao mesmo tempo as une e as diferencia. Isso é sugerido também pelo movimento circular do rosto inclinado dos 3 anjos, eternamente jovens, sentados à mesa do universo, em torno ao alimento divino; rostos que são semelhantes sem ser realmente idênticos. A linha triangular dos rostos e o círculo dos corpos estilizados indicam um mistério de diversidade na unidade. Fundidos num êxtase que fala de unidade e de harmonia, os três rostos já dizem tudo.
Pouco importa se o Pai é sugerido pelo anjo do centro ou se, antes, há um movimento que vai da esquerda à direita: o personagem da esquerda indica ser o Pai; o do centro, o Filho; e o da direita, o Espírito Santo. As figuras do centro e da direita olham com rosto respeitoso e humilde para a da esquerda, que se mantém mais erguida que as outras duas, posto que o Pai é origem e princípio de tudo. Os três, com efeito, tem a mesma atitude de abertura, de respeito, de súplica e de invocação. Deles emana um mistério de eternidade, de amor, de quietude, de paz, de serenidade.
Esse movimento se manifesta igualmente ao fundo do quadro. A árvore se inclina para a esquerda do orante como se fosse submetida ao sopro de um vento forte. Ainda à esquerda se inclinam os planos cortados do teto do edifício. Tudo está em movimento, porque a vida é sair de si mesmo, é doar-se. Esse ritmo exprime a circulação e a comunhão da mesma Vida divina entre as Três pessoas.
Mas a Trindade não se fecha em si mesma. O movimento expansivo expressa adoção, efusão, dom, generosidade e graça, que admite, convida o ser humano ao círculo divino. Tudo se orienta, na fé, para o mistério, para o encontro D’Aquele que vem. Curvando a árvore, o movi-mento circular da vida divina atinge a natureza. Inclinando o teto do edifício, atinge a humanidade orante, a humanidade no que ela tem de mais elevado. O mundo todo constitui, de certo modo, a periferia; as Três Pessoas divinas permanecem no centro.
Fixemo-nos, agora, nos traços das três pessoas. Elas não tem idade e, no entanto, transmitem uma im-pressão de juventude. Elas não tem gênero, no entanto elas unem o vigor à graciosidade. As fisionomias e os gestos não foram “construídos” em vista do charme e, no entanto o charme que se desprende é imenso. Rublev soube expressar de uma maneira única a eterna juventude e a eterna beleza das três pessoas.
Cada um dos três anjos leva nas mãos um cajado alongado e muito fino. É que cada pessoa divina é um viajante, um peregrino. O quadro ressalta a participação de toda a Santíssima Trindade no mistério da salvação. Os três cajados constituem uma declaração e uma promessa. Eles declaram que os três já vie-ram fazer morada na humanidade. Eles prometem que os três continuam, através da presença expansiva, a conduzir tudo para a plenitude. O quadro evoca, pois, o conselho das Três Pessoas divinas em vista da redenção do gênero humano.
O artista, com sua obra, não pretendia sugerir pensamentos, mas uma oração. A perspectiva do ícone é orante, pois nos predispõe para “entrar” no mistério de Deus; também nos convida a abandonar a lógica cotidiana do útil, para poder entrar na lógica da gratuidade, do espaço místico e cultual, do diálogo com Deus, até os cumes da adoração.
O ícone da Trindade de Rublev nos recorda que não se trata de entender, ou de pensar e estudar o Misté-rio da Santa Trindade. O decisivo é viver o mistério a partir da adoração e da partilha fraterna. É Deus quem toma a iniciativa de se aproximar dos seres humanos. Como foram até Abraão, a Trindade quer se aproximar também de cada um de nós. Dentro de nós habitam um Abraão e uma Sara.
Que a contemplação deste quadro nos coloque em contato mais profundo com as Três pessoas divinas para poder repetir, prostrados, as palavras de Abraão aos divinos visitantes na planície de Mambré:
“Meu Senhor, se mereci teu favor, peço-te, não prossigas viagem sem parar junto a mim, teu servo”.
E se acolhermos as Três pessoas de todo coração, poderemos, como Abraão, receber de sua boca a certeza de que essa experiência abençoada, longe de ser um episódio isolado, nos será concedida de novo: “passarei de novo pela tua casa”. Só assim sentiremos Vida brotar em nossas vidas, como irrompeu no seio de Sara. Não mais seremos velhos, estéreis e infecundos. A fé faz rejuvenescer.
Que a contemplação do belo e do Santo faça brotar em nós a imagem de Deus que é Pai-Filho-Espírito. Amem!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22)
De Jesus e do Pai fazemos muitas representações; do Espírito, muito mais que falar dele, invocamos a relação com Ele: “vem!”. Invocamos para vir Aquele que já está presente, o Realizador das transformações, o Possibilitador de toda relação, o Aumentador da vida.
O fogo, o vento, a água viva, são os símbolos mais potentes com os quais a Bíblia tenta dizer algo dessa Presença Possibilitadora de tudo o que vive, de sua força criadora e criativa, de sua imprevisibilidade, de sua capacidade para gerar sabedoria, saúde e beleza. São símbolos do movimento constante e do fluir silencioso dos processos que gestam a vida.
No relato da Criação, “a Ruah de Deus (em hebraico, Ruah é feminino) pairava sobre as águas”: trata-se de uma bela imagem da matriz ou útero originário fecundo de tudo quanto existe; tudo é amorosamente acolhido, fecundado, gestado, carregado neste grande ventre cósmico que podemos chamar divino: “Deus”. Alento, sopro, vento, respiração, força, fogo... com nome feminino que fala de maternidade e de ternura, de vitalidade e carícia. Seu calor gera harmonia no caos, realça a beleza e originalidade de cada criatura, dando a cada uma seu lugar, o espaço que necessita para potencializar seu ser. Nessa relação adequada, cada erva, cada montanha, cada ser que vive, tem seu lugar e seu sentido.
“O Espírito pairava sobre as águas” (Gen. 1,1). “Pairava” pode ser traduzido também por “vibrava”. Tudo vibra no universo: vibram as partículas e vibram os átomos, vibram as estrelas e vibram as galáxias, vibram os seres humanos, vibram o canto e a dança. Cada som é vibração e também o silêncio é vibração. O coração de cada ser, pequeno ou grande, pedra, planta ou animal está vibrando. A vida é vibração.
O Espírito que “pairava” sobre as águas é a imagem da vibração divina que habita e se move no coração de tudo quanto existe. O Espírito é a respiração universal. Tudo é energia, movimento, relação, e daí brotam maravilhosamente todas as formas de todos os seres, como de uma misteriosa matriz materna.
E o Espírito sempre está ali silenciosamente presente, como Aquele que vincula e une, como Tecedora constante de redes que fazem crescer, como Reparadora de todos os tecidos que um dia se rasgaram e se separaram do pano único de onde confluem todos os fios da vida.
Hildegar von Bingen dizia que o Espírito é “vida da vida de toda criatura”. Cada dia é o primeiro dia da Criação; cada instante é o princípio. A Criação está acontecendo e renovando-se a cada instante e uma Energia profunda e criativa nos acompanha, nos anima e nos move. Estamos sendo criados; não estamos prontos e abandonados, não estamos condenados a um plano predeterminado e frio. Em tempos de Pentecostes é bom recordar e dizer a nós mesmos: “Somos criaturas, estamos sendo amorosamente criados(as) e impulsionados(as) a criar. Há esperança”.
Contemplar deste modo a realidade, nos move a confiar, esperar, respirar. Contemplemo-la assim: a realidade inteira alentada e fecundada sem cessar pelo Espírito materno; a realidade inteira carregada de infinitas e novas possibilidades, carregada de Infinito. Podemos esperar.
Hoje somos conscientes e podemos agradecer essa presença do Espírito nos perfumes que a humanidade exala: no seu empenho pela paz e pela justiça, na contribuição à integridade da criação, na sua cumplicidade com os ciclos que favorecem a vida, no potencial de ternura, de cuidado e de resistência frente a todas aquelas situações e forças que desintegram a vida, na ação colaborativa, na interdependência, no diálogo e na abertura às diferentes culturas e às diversas tradições espirituais, maneiras novas e necessárias de situar-nos no mundo. Tudo isso é sinal do movimento do Espírito.
Desde o momento em que entramos no mundo, nascemos formando parte de uma rede de relações. Este tecido relacional vai nos expandindo ao longo do crescimento. “Ao final de minha vida abrirei meu coração cheio de nomes” (Pedro Casaldáliga). O Espírito é o que escreve os nomes que vão conformando nossa vida, nos quais fizemos experiência do que significa isso que chamamos amor e que está gravado em nossa origem e em nosso destino, como nossa fome maior e como nosso dom mais apreciado.
A imagem do “soprar sobre eles”, no evangelho de hoje, contém uma riqueza elegante: significa compartilhar o que é mais “vital” de uma pessoa, sua própria respiração, seu mesmo espírito, todo seu dinamismo. É uma imagem que nos faz reconhecer o Espírito como o Alento último, o Dinamismo vital que pulsa em todas as formas de vida que podemos ver e que nelas se manifesta. Não há nada onde não possamos percebê-lo, nada que não nos fale d’Ele. Por isso, a comunidade dos seguidores de Jesus, ao compartilhar com Ele o mesmo Sopro, torna-se uma “comunidade conspiratória”, ou seja, “conspirar”, “com-inspirar”, “respirar juntos”; ao soprar o Espírito Jesus e os discípulos respiram o mesmo ar, o mesmo sonho, a mesma utopia do Reino...
Não é estranho que, com o Espírito, Jesus se refira à missão: é o mesmo Espírito – seu sopro – Aquele que O conduziu e quer conduzir a nós também. O Espírito e nós não somos dois. Somos “seres espirituais vivendo uma aventura humana” (Teilhard de Chardin). Quando tomamos consciência desta realidade profunda, realizam-se em nós as palavras de Jesus: a unidade de tudo morando em nós, no Amor – outro nome do Espírito -, como única realidade que tudo sustenta e constitui.
Mais ainda, o Espírito habita nosso ser profundo, sustenta nossas energias sadias, aumenta nossas forças, compromete-nos a crescer de forma autônoma. Ele age como um “princípio dinâmico” e como um “energético ativo”, que reforça as atividades criativas do eu. Temos de viver a partir do Espírito, transformando e vitalizando nossos gestos, pensamentos, compromissos, encontros.
Por isso, Pentecostes não acontece até que, reconhecendo o Espírito como nossa Identidade mais profunda, nos deixemos guiar por Ele, ou melhor, viver a partir d’Ele, conscientemente conectados com a Fonte Primeira. Falar do Espírito e celebrar Pentecostes é, portanto, celebrar a festa, a vida e a Identidade última de tudo o que é e existe: é nossa festa.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração: “O Espírito urge!” Para abrir-nos a este “Sopro”, de modo que possamos experimentá-Lo no nosso “eu” mais profundo, precisamos calar a mente, abrir-nos diretamente ao que é, e perceber, com prazer, que podemos descansar sempre nisso. “Descanso” é outro nome do Espírito.
No silêncio da mente o Espírito se revela a nós, não como uma presença separada, mas como presença interna de tudo o que é: Cuidado, Descanso, Dinamismo... Vida em plenitude. E isso é o que somos todos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Os onze discípulos foram para a Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado” (Mt 28,16)
Hoje culmina o tempo de páscoa com a celebração da festa da Ascensão de Jesus. “Ressurreição”, “Ascensão”, “sentar-se à direita de Deus”, “envio do Espírito Santo”, são todas realidades pascais; constituem um só “mistério” que está fora do alcance dos sentidos e do nosso conhecimento.
O mistério pascal é tão rico que não podemos abarcá-lo com uma única imagem; por isso temos que desdobrá-lo para ir aprofundando calmamente e expressá-lo no nosso modo de viver o seguimento de Jesus. Os três dias para a Ressurreição, os quarenta dias para a Ascensão, os cinquenta dias para a vinda do Espírito Santo, não são tempos cronológicos, mas teológicos. Eles nos revelam a maneira de ser de Deus, não o tempo em que Ele atua.
A Ascensão nos faz refletir sobre um aspecto do mistério pascal. Trata-se de descobrir que a posse da Vida por parte de Jesus é total. Participa da mesma Vida de Deus e, portanto, está no mais alto do “céu”.
Segundo o relato de Mateus, indicado para a festa deste ano, não há ascensão propriamente dita, mas revelação e presença do Senhor Jesus na Montanha da Galileia, com sua palavra, sua presença e seu envio missionário.
Esta eleição da Galileia é muito provocativa. Galileia remete à vida histórica de Jesus. No centro da Galileia se eleva a montanha da nova e definitiva revelação de Deus em Jesus Cristo; essa montanha é coração e centro permanente da terra. O evangelista Mateus quer ressaltar que a Judeia (Jerusalém) havia rejeitado Jesus e já não era o lugar onde alguém devia encontrar-se com o Ressuscitado.
Jesus não ressuscita nem triunfa em Jerusalém, mas na “montanha da Galileia”, ou seja, naqueles que foram os lugares e paisagens de sua vida. Jesus foi a Jerusalém para dar testemunho e manter seu projeto, sendo ali assassinado. Por isso, o evangelho não pode começar em Jerusalém, com seu templo, sacerdotes, soldados, mas na Galileia, o lugar das pessoas que sofrem e que são excluídas, que buscam e escutam a Palavra.
Galileia significa a terra da história de Jesus: ali sua palavra é escutada, ali sua mensagem é vivida. Mas, ao mesmo tempo, Galileia aparece nesta passagem como ponto de partida de um caminho que deve dirigir-se ao conjunto dos povos. Assim, desde a obscura província de Jesus, se expandirá um caminho salvador universal que está fundado na experiência de sua Páscoa.
"Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima dos céus para plenificar o universo com sua presença". (Ef 4, 10) A citação de S. Paulo vem desfazer certa tendência a considerar Jesus na Ascensão como alguém que partiu, que nos deixou, que está mais acima, “no céu”, enquanto que nós ficamos aqui “gemendo e chorando neste vale de lágrimas”. Não é assim. Não podemos continuar pensando em um Jesus subindo fisicamente para além das nuvens.
Para poder entender a festa da Ascensão, devemos voltar ao tema central da Páscoa. Estamos celebrando a Vida, essa Vida que não está sujeita ao tempo e ao espaço, que é plenitude, eterna e imutável. Jesus não vai a nenhum lugar, senão que permanece com os seus (“estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo”). Isso significa que Ele ressuscita e atua em seus amigos e amigas, naqueles que vivem e espalham, com suas vidas, a Grande Mensagem de vida.
Na Ascensão, Jesus nem partiu nem se ausentou; não nos deixou órfãos nem solitários. Ele permanece para sempre entre nós pelo seu Espírito Santo: no céu, na terra e em todo lugar. E principalmente conosco e em cada um de nós; não só está ao nosso lado, mas também dentro de nós, “fazendo morada em nós”.
Recordemos as experiências das Aparições do Ressuscitado, onde Jesus foi nos ensinando como nos encontrar com Ele e a estar com Ele: na “Palavra”, na “fração do pão”, na “Eucaristia”, compartilhando nossa vida, como pão de vida para os outros, no “perdão salvador”, no “serviço”, nos “sacramentos”, no “próximo”, na “missão evangelizadora e apostólica”, na “construção do Reino”, no mundo e na realidade social na qual vivemos, praticando a fraternidade e justiça social, segundo “os sinais dos tempos”, etc.
Na Ascensão, não se trata tanto de “vir e regressar”. Os espaços não existem para Deus. Trata-se de diferentes modos de presença. Mais que “subida” e afastamento, a Ascensão de Jesus é “descida e presença”. Sua presença expansiva alcança uma profundidade e uma longitude que sua presença física não pudera alcançar. Assim podemos encontrá-Lo em todos os lugares e em todas as pessoas.
Jesus desce com os seus da montanha do evangelho para estender entre todos os povos sua presença. Está com os seus, neles, com eles... Esta é sua Ascensão, sua grande “descida”. Ele não permanece na Montanha para construir ali uma pirâmide ou templo, uma grande corte pascal, mas para reunir os seus e enviá-los, e descer/estar com eles em todo o mundo.
Estes “onze” da Ascensão são (somos) todos, homens e mulheres na Montanha do Evangelho, para começar de novo, desde a periferia do mundo, como humanidade nova, como grupo, unidos no amor, todos e todas formando a grande comunidade da nova montanha da vida.
A tarefa fundamental que Ele nos confia é clara: “fazer discípulos” seus todos os povos. Não se trata de ensinar doutrinas, nem ritos, nem normas morais, mas de ativar em todos uma maneira alternativa de viver, centrada no modo de proceder do próprio Jesus, ou seja, trabalhar para que no mundo haja homens e mulheres que vivam como discípulos e discípulas d’Ele, seguidores(as) que aprendam a viver como Ele; que o acolham como Mestre e não deixem nunca de aprender a ser livres, justos, solidários, construtores de um mundo mais humano.
“Homens da Galileia, porque ficais aqui parados, olhando para o céu” (At 1,11) É como se dissesse: “olhem a terra e todas as pessoas, vejam suas lágrimas e angústias”, assumam tudo como algo próprio dos discípulos e discípulas de Jesus; ocupem-se em transformar toda a realidade com os valores do Reino, inspirem homens e mulheres a serem presença do amor e da justiça junto àqueles que mais sofrem, despertem a vida atrofiada e escondida naqueles que perderam o sentido de sua existência, prolonguem em suas vidas aquela presença original de Jesus...
De fato, Ascensão significa o início da missão da nova comunidade ressuscitada. Na Ascensão, enquanto Jesus “sobe” ao Pai, nós “descemos” à realidade para transformá-la, tornando presente o Reino. Quando amamos, cuidamos, servimos... também nos elevamos. E o que nos eleva está em nosso interior: nós nos elevamos à medida que descemos em direção à humanidade.
Como Jesus, a única maneira de alcançar a meta é descendo até o mais fundo. Aquele que mais “desceu”, é também Aquele que mais alto “subiu”. Muitas vezes preferimos seguir um Jesus no “céu”, distante, glorificado, a quem rendemos honras. Descobri-Lo dentro de nós mesmos, nos outros e no mundo é demasiado exigente e comprometedor. Muito mais cômodo é continuar “olhando para o céu...” e não nos sentir implicados naquilo que está acontecendo ao nosso redor.
Texto bíblico: Mt 28,16-20
Na oração: No seguimento de Jesus vivemos em estado de constante ascensão. Ascendemos na medida em que “descemos” e nos fazemos presentes na realidade cotidiana, através do serviço, do compromisso. O Ressuscitado nos espera na vida cotidiana (nossa Galileia) quando vivemos a partir do amor e da doação.
- faça “memória” dos lugares e situações que que você vive experiências de ascensão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Vós o conheceis, porque Ele permanece junto de vós e estará dentro de vós” (Jo 14,17)
O evangelho de João nos oferece diversas imagens de Páscoa: vida, pastor e porta, morada de Deus… O evangelho deste domingo(6º Dom Páscoa) nos apresenta a Páscoa como promessa e esperança do Espírito Santo, o “Paráclito” (defensor/consolador) dos(as) seguidores(as) de Jesus. Jesus mesmo tinha sido o Paráclito de seus discípulos, mas agora envia seu Espírito para que seja presença interior e companhia.
A Páscoa apresenta-se, assim, como experiência de Presença, Deus em nós. Esta é a grande promessa que sustenta o caminho do seguimento na história, tantas vezes obscuro e angustiante para o ser humano. Presença que desvela nossa identidade e nossa verdade mais profunda: filhos(as) amados(as) do Pai.
O Evangelho de João é uma verdadeira catequese do Espírito, que se revela como “Espírito da verdade”, pois atua justamente na intimidade das pessoas, desvelando sua originalidade interior e comunicando-lhes luz e força para expandir suas vidas na direção do serviço aos outros.
Este “Espírito da verdade” não deve ser confundido com uma doutrina. Esta “verdade” não deve ser buscada nos livros dos teólogos nem nos documentos da hierarquia. É algo muito mais profundo. Jesus diz que “ela vive conosco e está dentro de nós”. É alento, força, luz, amor... que nos chega do mistério último de Deus. Devemos acolhê-la com um coração simples e confiante.
Este “Espírito da verdade” está no interior de cada um de nós, defendendo-nos de tudo o que nos pode afastar de Jesus. Convida a nos abrir com simplicidade ao mistério de um Deus, Amigo da vida. Quem busca a este Deus com honradez e verdade não está longe dele.
A sociedade pós-moderna apostou pelo “exterior” e se distanciou da dimensão essencial da vida humana: a interioridade. Tudo nos convida a viver a partir de fora; tudo nos pressiona a mover-nos com pressa, sem nos deter em nada nem em ninguém; a paz já não encontra espaços para morar em nosso coração; vivemos quase sempre na superfície da vida; estamos esquecendo o que significa saborear a vida a partir de dentro. Vivemos a globalização da dispersão e da superficialidade.
E o ser humano “disperso e superficial” é um ser “desordenado”, ou seja, vive seduzido por estímulos ambientais, envolvido por apelos vindos de fora, cativado pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizado por ofertas alucinantes... E então, ele se esvazia, se dilui, perde a interioridade e... se desumaniza.
A exterioridade absorve a interioridade humana. A pessoa foge de si mesma, tem medo de encontrar-se. Por isso, acompanha o ritmo dos outros, repete a linguagem dos outros, adota os critérios dos outros..., e acaba sendo influenciada e dominada por pressões e hábitos externos.
Quê pode dizer a espiritualidade do Evangelho ao ser humano deste 3º. milênio? Um aspecto decisivo que emerge, entre tantos outros, é este: o valor do interior, ou seja, tudo o que se refere à dimensão do coração, das intenções profundas, das decisões que partem das raízes internas.
Para “desbloquear” nosso interior, fechado e petrificado, Jesus Cristo promete o envio do Espírito Santo, presença que examina e purifica as trilhas do coração humano, pois nosso interior é lugar da intimidade com Deus, espaço de contemplação, ambiente de discernimento e construção de decisões.
Nesse sentido, ser seguidor(a) de Jesus significa ser um aprendiz do Espírito, deixando-nos conduzir por Ele em direção à fronteira da interioridade, do nosso próprio “eu profundo”. Presença que desvela regiões não contaminadas em nosso coração, onde tudo começa a ser percebido como novo, de onde brotam esperanças adormecidas e desejos ocultos.
É próprio do ser humano mergulhar e experimentar sua interioridade-profundidade. Auscultando a si mesmo, percebe que brotam de seu “eu profundo” apelos de compaixão, de amorização e de identificação com os outros e com o grande Outro (Deus). Dá-se conta de uma Presença que sempre o acompanha, de um Centro ao redor do qual se organiza a vida interior e a partir do qual se elaboram os grandes sonhos e as significações últimas da vida.
Essa interioridade é um modo de ser, uma atitude de base a ser vivida em cada momento e em todas as circunstâncias. Mesmo nas atividades cotidianas mais simples, a pessoa que criou espaço para a profundidade e para a interioridade mostra-se centrada, serena e cumulada de paz, caminhando junto com os outros na mesma direção que aponta para a Fonte de vida e de eternidade.
Sabe-se e sente-se habitada por um Maior que é uma Fonte irradiante de ternura e de amor. Irradia vitalidade e entusiasmo, porque carrega Deus dentro de si, carrega o Sentido do universo, de cada coisa. Acolhe e interioriza experiencialmente esse Mistério sem nome e permite que Ele ilumine sua vida; dialoga e entra em comunhão com Ele, pois o detecta e o sente em cada detalhe da realidade.
Toda experiência espiritual significa um encontro com um rosto novo e desafiador de Deus, que emerge dos grandes desafios da realidade histórica. Esta “vida interior” é, ao mesmo tempo, a terra onde a pessoa planta suas raízes e a fonte onde ela pode apagar sua sede.
A partir da interioridade, tudo se transfigura, tudo tem sentido, tudo vem carregado de veneração e sacralidade. Viver a interioridade é desenvolver a nossa capacidade de contemplação, de compaixão, de assombro, escuta das mensagens e dos valores presentes no mundo à nossa volta.
Sem interioridade, Deus parece distante, o Cristo permanece no passado, o Evangelho torna-se lei, a Igreja uma simples organização, a autoridade transforma-se em poder, a missão em propaganda, o seguimento se burocratiza, a liturgia vira ritualismo...
É triste perceber que as comunidades cristãs não sabem cuidar e promover a vida interior. Muitos não sabem o que é o silêncio do coração, não se ensina a viver a fé a partir de dentro. Privados de experiência interior, sobrevive-se esquecendo essa dimensão mais original: escuta-se palavras com os ouvidos e pronuncia-se orações com os lábios, enquanto o coração está ausente.
Com isso, no coração de muitos cristãos está se apagando a experiência interior de Deus.
Quê sentido pode ter a Igreja de Jesus se deixamos que se perca em nossas comunidades o “Espírito da verdade”? Quem poderá salvá-la do auto-engano, dos desvios e da mediocridade? Quem anunciará a Boa Notícia de Jesus em uma sociedade tão necessitada de alento e esperança?
Texto bíblico: Jo 14,15-21
Na oração: A oração é o caminho interior que nos faz chegar até o nosso próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável...; este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde mergulhamos no silêncio, à escuta de todo o nosso ser.
Se a nossa oração for um autêntico “deixar-nos conduzir pelo Espírito”, ela deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser. O Espírito liberará em nós as melhores possibilidades, recursos desconhecidos, capacidades, intuições... e nos fará descobrir em nós mesmos(as), nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis...
Das raízes profundas brotarão as respostas mais criativas e duradouras que terão impacto na realidade onde nos encontramos, desencadeando um movimento de profundas mudanças.
- Busque, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de seu ser, o núcleo original de sua personalidade, a verdade de sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Vou preparar um lugar para vós..., a fim de que onde eu estiver estejais também vós” (Jo. 14,3)
O evangelho deste domingo (5º Dom Pásscoa), tomado de João, não descreve uma aparição do Ressuscitado, mas é o mesmo Ressuscitado que se apresenta e fala para a comunidade dos seus seguidores.
Trata-se de um texto pós-pascal, pois à medida que vamos entrando no texto caímos na conta que Aquele que fala é o Vivente. A sua voz não é aquela de um morto que apareceu, mas a Voz da Vida. O contexto deste evangelho é o discurso de despedida de Jesus na Última Ceia. Nos versículos anteriores, Ele havia anunciado a traição de Judas, a negação de Pedro, o anúncio da partida. Tudo isso deixou os discípulos desconcertados, abatidos e com medo.
Jesus sente a tristeza e a perturbação dos seus discípulos; esquecendo-se de si mesmo e do que lhe espera, dirige-lhes palavras para animá-los na esperança, fortalecê-los no meio da angústia, devolver-lhes o horizonte de vida. E uma das imagens que Jesus usa para pacificá-los é a da “morada” ou “estâncias” no coração do Pai; imagem que pode oferecer o sentimento de proteção e acolhimento. Uma morada significa muito mais que uma presença. Uma pessoa pode estar presente em seu local de trabalho, na rua..., mas a morada, a habitação ela a tem em sua casa. E Deus quis ter uma morada e uma habitação em nosso interior. Somos sua casa!
“Na casa do Pai há muitas moradas”; há lugar para todos, talvez de formas diferentes, por caminos diversos, mas há lugar abundante. A casa de Deus é ampla, é a casa de todos os seres humanos, casa de reconciliação e justiça, aberta antes de tudo para aqueles que foram e são oprimidos. Aqueles que não cabem na casa deste mundo (os que foram expulsos de suas casas) podem entrar na casa da Vida de Jesus.
Jesus Cristo, durante seu ministério, construiu com suas palavras uma morada para as pessoas, na qual estas se sentiram seguras. Ele falou de tal forma que as pessoas encontraram harmonia consigo mesmas. E elas tinham o sentimento de poder habitar em suas palavras, e por meio de suas palavras, encontrar uma pátria n’Ele. De fato, o ser humano sempre aspirou viver em um espaço onde pudesse se sentir seguro, em paz; um espaço humanizador que lhe permitisse ativar todas as suas potencialidades de vida e deixasse transpare-cer a própria identidade; um espaço onde pudesse se “sentir em casa”.
É da nossa condição humana buscar um espaço, um lugar hospitaleiro e acolhedor, o lugar onde nos situamos no mundo e onde podemos ser encontrados; esse espaço nos ajuda a fazer contato com nossas “moradas interiores”: lugar de intimidade com Deus, espaço de contemplação, ambiente de discernimen-to e construção de decisões. Nesse sentido, a morada interior já é antecipação da nossa morada eterna, no coração do Pai.
Um dos dramas vivido pelo ser humano no atual contexto social pós-moderno é que ele perdeu não somente seu lar exterior, mas também se afastou de sua morada interior. Comprovamos hoje um “déficit de interioridade”. As pessoas perderam o caminho da direção do seu coração; vivem fora de si mesmas e não conseguem colocar as grandes perguntas existenciais: “de onde venho? Quem sou? Para onde vou?...”. Elas já não sabem mais quem são.
Muitas já não conseguem mais recolher-se e voltar para “dentro de sua morada” para recuperar o centro gravitacional de suas vidas, o ponto de equilíbrio interior; já não são capazes de velejar nas águas da interioridade, passando a viver uma vida superficial e sem sentido. Elas se percebem sem o sentimento de acolhida e proteção, pois perderam seu sentido de pertença, além de não mais saberem o que as sustenta. Não sabem mais onde poderão encontrar segurança e acolhimento.
O que é “estar em casa” para nós hoje, num mundo estranho e em constante mutação? O que significa “morada” para nós atualmente? Que tipo de sentimento está conectado a ela? Onde nos sentimos de verdade em casa?
“A infelicidade do ser humano moderno consiste em que ele não é mais capaz de permanecer em sua cela” (Pascal). “O ser humano só está em casa no mistério de Deus” (Clemenz Schmeing). Nas palavras de Jesus na Última Ceia, Ele deixa transparecer que, só quando cremos que o mistério de Deus habita em nós, é que podemos nos sentir em casa; só podemos permanecer em nós mesmos porque o próprio Deus já está em nós e nos mantém. Nós podemos fazer morada em nós, porque Deus mesmo já fez morada em nós.
Nossa morada interior é o espaço no qual Deus mesmo habita em nós. Ali, nós somos plenamente nós mesmos, salvos e íntegros. Verdadeiramente em casa. Nós precisamos apenas olhar para dentro. O céu está em nós e ali, no céu interior, está a verdadeira pátria que ninguém pode nos roubar ou pode destruir. E ali, as nossas próprias preocupações e temores não tem nenhum acesso. Ninguém pode nos ferir ali.
Aspiramos um espaço onde possamos ser nós mesmos. Espaço no qual podemos entrar em contato com algo que nos plenifica e nos expande. Vivemos das forças e da energia que emanam da nossa casa interior. Desejamos encontrar-nos conosco mesmos, desenvolver nossas possibilidades, descobrir e clarificar nossa identidade. O sentimento de ser totalmente nós mesmos nos dá a sensação de ter encontrado o suporte numa torrente de vida e de amor. Desse modo, em meio às incertezas deste mundo, podemos experimentar um ambiente de tranquilidade e de acolhimento.
Num mundo de muita superficialidade, onde a imposição do imediato, da rapidez, da produtividade e da eficácia se apresentam como deveres imperiosos, somos chamados, como seguidores(as) de Jesus, a “ser pessoas de interioridade”. Diante da “cultura líquida” na qual vivemos, é urgente gerar espaços que facilitem reabrir as vias da interioridade, possibilitar o retorno à “morada interior”, onde é gestada a nossa identidade e as nossas opções mais sólidas.
Precisamos, sob a ação da Graça, destravar nossa “morada viva e sempre inédita”, de tal maneira que dali brote a novidade que tudo renova e dá sentido à nossa existência.
Texto bíblico: Jo 14,1-12
Na oração: Existe uma crise de moradia muito mais grave que a falta de casas: é a escassez de pessoas interiormente acolhedo-ras e disponíveis para seus irmãos.
Casa: lugar do lava-pés, do mandamento novo; lugar da Ressurreição e Pentecostes.
Lugar do encontro com o Senhor; Ele vem. Sua presença causa mudança.
Deixe ressoar a voz do Senhor: “Eu quero, em tua casa, celebrar a Minha Ceia!”.
Como me sinto em minha casa? Preciso abri-la, arejá-la? Modificá-la? Iluminá-la? É acolhedora? Humanizadora?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Eu sou a Porta das ovelhas” (Jo 10,7)
Todos os anos, o 4º. Domingo de Páscoa inspira-se na imagem do “Bom Pastor”. Embora o Evangelho deste domingo não fale de “aparições” do Ressuscitado, não nos afastamos do tema pascal, pois Jesus afirma expressamente: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”. A “Vida” é o verdadeiro tema pascal.
E imagem pascal deste 4º. Domingo da Páscoa é a Porta da Liberdade, que possibilita uma vida sempre expansiva. A Vida verdadeira implica saída de nossos espaços, muitas vezes atrofiados e de curto horizonte: por isso precisamos de uma porta, de uma saída. Não podemos, não devemos permanecer fechados, pois isso atrofia nossas possibilidades de vida, sobretudo se estamos reclusos no egocentrismo.
Equivocadamente distraídos por alguma complacência ou comodidade interna, nem sempre caímos na conta de que vivemos fechados; não percebemos o perigo letal da asfixia existencial; não sentimos as amarras da dependência ou os vícios que a vontade fragilizada já não consegue romper.
Nesse sentido, podemos entender a imagem da “Porta” enquanto espaço aberto que permite a vida fluir. Porque vida é, antes de mais nada, espaçosa, amplitude ilimitada que tudo abarca e que se expressa em infinidade de formas, todas elas habitadas pela mesma e única Vida.
Precisamos nos libertar, nos desatar, sair; precisamos de uma porta!
Escutemos Jesus que diz “Eu sou a Porta”. E é verdade, porque Jesus, “ressuscitado dentre os mortos”, abriu um espaço no hermético ventre da morte. Com seu próprio corpo e sua vida Jesus se transformou em Porta da Vida verdadeira e com a força do seu Espírito Ele nos liberta, nos desata para sair dos espaços atrofiados e passar para a vida ampla do amor, para a vida com os outros.
“Eu sou a porta”: aqui Jesus não se refere àquela peça de madeira que gira para fechar ou abrir, mas ao espaço por onde se tem acesso a um recinto. Por isso Ele diz que é a porta das ovelhas, não do redil. Todos aqueles que vieram antes dele não deram liberdade e asfixiaram a verdadeira vida.
Em Jesus, todo(a) seguidor(a) pode alcançar a verdadeira liberdade; “poderá entrar e sair”, terá liberdade de movimento. Jesus não busca seu próprio proveito nem o de Deus. Seu único interesse está em que cada ovelha alcance sua própria plenitude e viva intensamente.
A característica do Bom Pastor é que põe toda sua vida a serviço das ovelhas para que vivam, sem limitação alguma. Ao fazer isto, põe em evidência a qualidade de Vida que possui e abre a possibilidade para que todos os que lhe seguem tenham acesso a essa mesma Vida.
Uma porta aberta. Jesus se compara a uma porta... aberta! Somos impactados pela luz que vem de fora e pelo ar vivificante. Nós ouvimos sua voz. Ele se dirige a cada um e à sua voz nos colocamos em marcha. O oxigênio que aí respiramos é o Sopro do próprio Deus.
Jesus é uma Porta grande e aberta que favorece a circulação com toda a liberdade Entrar por essa Porta é o mesmo que “aproximar-nos d’Ele”, “escutar sua voz”, “identificar-nos com Ele”. Passar pela Porta implica também desvelar nossa verdadeira identidade enquanto “portas abertas”.Cada um de nós é um mundo, dentro do Mundo. Este contato se estabelece pelos sentidos: saímos ao Mundo e entramos em nosso mundo através dessas cinco portas.
Por essas portas dos sentidos saímos de nós mesmos para o Mundo, ao mesmo tempo que o Mundo entra em nós. Tomar consciência do como transitamos por estas portas é essencial para crescer em um modo transparente de existir. Porque há um modo de entrar e sair por elas que pode ser feita de maneira autocentrada e depredadora ou de maneira agradecida e geradora de comunhão.
Há um modo de ver, ouvir, saborear, tocar, sentir... que nos atrofia e nos isola em nosso pequeno mundo opaco e estreito, enquanto há outro modo que nos abre e nos expande em direção ao Mundo, e que vai se revelando como presença e transparência de Deus.
Expandir os cinco sentidos nos capacita sentir Deus como Presença primeira e constitutiva da Realidade, pulsando em todas as coisas. Porque, em definitiva, o que nossos olhos querem ver, o que nossos ouvidos querem ouvir, o que nosso tato quer apalpar... é o Rosto-mais-além-dos-rostos que se manifesta através dos outros. Assim, os sentidos não são somente portas entre nosso mundo interno e o Mundo exterior, mas umbrais que abrem ao Transcendente, que pulsa no mundo e ao qual só se pode chegar através do mesmo mundo.
O contexto social no qual vivemos nos revela que há uma doença que nos afeta praticamente a todos: em nossas vidas, há muito mais espelhos que nos isolam do que portas que nos universalizam.
No espelho nós nos vemos; e o que vemos não é o que somos, mas o que aparentamos ser. Desta percepção não saímos. A contemplação narcisista de nosso rosto atrofia o horizonte de nossa vida; o horizonte perceptivo é mínimo. O espelho é incapaz de revelar a verdade de nosso ser e de ampliar nosso mundo afetivo e relacional, não facilita a acolhida, o encontro... O centro do espelho somos nós mesmos.
As portas abertas, por sua vez, permitem ampliar nosso horizonte. Através delas purifica-se o ar denso e irrespirável do nosso interior, que geramos quando nos fechados em nós mesmos. Elas nos abrem à comunhão com a natureza, com os outros, com a realidade que nos cerca. Elas nos humanizam, pois servem para nos revelar aos outros quem somos, que eles fazem parte de nossa casa e que, abertas, indicam que eles podem entrar e sair livremente em nossas vidas.
Como seguidores(as) de Jesus, habitando em casas construídas sobre a rocha do Evangelho, deveríamos nos preocupar mais com as portas e janelas e menos com os espelhos. Outros rostos precisamos descobrir: concretamente, rostos feridos, excluídos, carentes de proximidade e abraço.
Muitas vezes, as portas nos protegem da diversidade, blindam nossa individualidade e parecem itens indispensáveis à sobrevivência. Assim, seremos prisioneiros de nossa estreita visão de mundo e faremos de nossa casa uma couraça que enclausura. Melhor a viagem que nos faz vulneráveis do que a segurança que nos rouba o horizonte. Melhor enfrentar o impacto do diferente e usufruir da liberdade do que inventar portas seguras que nos fazem cativos e solitários.
Texto bíblico: Jo 10,1-10
Na oração: Seja uma porta sempre aberta: “entrada franca”.
- Nada de “cachorros” que atemorizem o visitante: seu orgulho, seu egoísmo, sua inveja, sua ironia, sua rudeza, seu preconceito.
- Nada de longas esperas que desanimam: esteja sempre atento, nem que seja para um cumprimento, um sorriso, um aperto de mãos, caso você não tenha tempo para uma conversa.
Uns instantes de intensa atenção bastam para acolher o outro.
- Nada de móveis que impeçam a circulação; mantenha sua casa disponível. Não imponha seus gostos, suas ideias, seus pontos de vista. Nada de retribuições que custam caro: se você oferece alguma coisa, faça-o gratuitamente e nada espere em troca.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles” (Lc 24,15)
O relato dos discípulos de Emaús revela-nos que o conhecimento de Jesus Cristo, a amizade com Ele, a inserção na comunidade dos seus seguidores(as) e o testemunho de sua ressurreição são progressivos. Para conhecer o Senhor, é necessário caminhar com Ele, escutar longa e atentamente sua Palavra, deixar-se cativar por Ele, sentar-se à mesa com Ele e deixar que Ele parta e reparta o pão da vida. E, depois de reconhecê-lo, é necessário realizar imediatamente o “caminho de volta” para a comunidade, para partilhar com os outros a experiência do encontro com o Senhor, professar juntos a fé comum e realizar as obras do Reino.
Lucas gosta de apresentar Jesus a caminho. No relato do Evangelho deste domingo, os termos “caminhar, caminho” aparecem no início, no meio e no fim. No livro dos Atos, a palavra “caminho” designará a identidade e o modo de vida das comunidades cristãs. É essa experiência que, em última instância, muda nosso modo de pensar, de sentir e de agir. É essa experiência que nos converte em seus (suas) discípulos(as) e seguidores(as).
A graça de Deus pode nos atingir nos caminhos mais variados e inesperados: passando pelas fendas de nossa existência, pelas brechas abertas em nós pelas grandes decepções, ou soprando as últimas brasas que, sob as cinzas da desilusão, ainda permanecem acesas. Os caminhos que levam ao encontro com Jesus podem ser os mais diversos e mais ou menos longos, mas a experiência do encontro pessoal com Ele é imprescindível para conhecê-Lo.
Fazer o caminho com os discípulos de Emaús é uma privilegiada oportunidade para recuperar o lugar e o sentido da conversação nas nossas diferentes relações pessoais. De fato, vivemos num mundo hiperconectado; o uso dos aplicativos de mensagens cresceu assustadoramente. O mundo, nossa vida, se converteu num “chat” contínuo.
Na verdade, não é coerente traduzir a expressão “chat” por conversação, porque estamos assistindo a um preocupante paradoxo: em meio a este “chat universal”, a conversação emudeceu; nem é tumulto nem é sussurro. Grande parte de nossas “conversações” fica prisioneira das telas (celulares, tablets, computadores, smarths...). Corremos o risco de reduzir a comunicação à conexão. Banalizam-se os conteúdos, mas também são amputadas dimensões fundamentais da experiência humana da comunicação, sobretudo a presença física.
Sem essa presença, sem o encontro pessoal, há um empobrecimento da verdadeira comunicação dialógica cara a cara, diante do olhar do outro; fora desta comunicação vivente com o outro, já não é possível autentificar a experiência do nosso próprio eu pois nos falta a relação primordial com um tu. O processo mesmo da conversação produz mudanças em nós: uma determinada frase, dita ou escutada, uma experiência de vida que tocou nosso coração, uma pergunta que nos tirou de nossa maneira habitual de pensar… são sementes para transformações posteriores.
No caminho de Emaús, Jesus, como mestre sábio na arte da conversão, parte da situação existencial em que os dois discípulos se encontravam naquele momento: provoca-os para que falem à vontade das causas de sua tristeza. No fundo do coração dos discípulos há um grande vazio que, inconscientemente, querem preencher “conversando e discutindo entre si”.
A pergunta de Jesus sobre o problema que causava tamanho sofrimento neles foi o ponto de partida para encontrar a resposta que, no fim do itinerário, iria esclarecê-los, iluminá-los e devolver-lhes a alegria e a esperança perdidas.
A pergunta de Jesus (“o que ides conversando pelo caminho?”) faz com que os discípulos levantem os olhos do chão e olhem para o rosto do peregrino desconhecido. Sem perceber começam a sair de seu fechamento e a alegrar-se porque alguém está interessado em saber quais são as causas de sua tristeza e quer escutá-los.
A pedagogia amorosa de Jesus deu certo: eles abrem o coração e contam “o que aconteceu a Jesus de Nazaré”. No entanto, o que aconteceu com Jesus não é contado por um coração ardente e exultante, mas por um coração ferido, desiludido e triste. A resposta dos discípulos é um resumo do querigma cristão; mas esse conteúdo é relatado como uma tragédia irreparável.
Depois de um longo diálogo com o peregrino, os discípulos não discutem mais entre si, mas unânimes, insistem para que ele permaneça com eles naquela noite. O pedido “permanece conosco”, em Lucas, expressa o desejo de ser discípulo de Jesus. Depois que Jesus aceitou o convite, a casa de Emaús, em vez de tornar-se um lugar de fuga e fechamento, como os discípulos pretendiam, tornou-se um lugar de acolhida e de partilha, de iluminação e ponto de partida para a retomada da comunhão com a comunidade dos demais companheiros.
Foi durante a “fração do pão”, que os olhos dos discípulos se abriram e reconheceram Jesus. A fração do pão continua a ser para os discípulos de Jesus de todos os tempos o “sinal por excelência da presença do Ressuscitado, o lugar onde eles podem e devem descobrir essa presença e a partir do qual poderão dar testemunho da Ressurreição” (J. Dupont).
O diálogo é consubstancial ao cristianismo. Deus é Palavra criadora e geradora de vida, mas em Jesus ela se manifesta como uma grande conversação. Sua presença junto aos discípulos de Emaús, é que possibilita a passagem de uma “conversa e discussão” marcada pela tristeza, dor e fuga a uma nova conversação, cheia de sentido e alegria. Os dois discípulos viveram uma verdadeira “páscoa”, isto é, passaram da discussão ao reconhecimento, do fechamento à abertura, do lamento ao agradecimento, do desânimo ao entusiasmo. Em resumo, a “passagem” do coração vazio e duro para o coração transbordante e abrasado.
A nova conversação os arranca da solidão e os faz retornar à comunidade para relatar a boa nova da experiência que fizeram. Conversação expansiva, desencadeadora de outros relatos vitais. E assim, os laços são reatados.
Sabemos que, a partir de uma posição conservadora, estática, rígida, é muito difícil que haja uma verdadeira conversação. É preciso sair de si mesmo, colocar-se em marcha. Só nesse deslocamento é onde podemos nos abrir às novas experiências e reconhecer a presença do outro.
O modo eminente de conversação entre as pessoas é aquele no qual se dá uma mútua atualidade da presença, e, portanto, um modo de comunicação no qual toda a pessoa se expressa, com gestos e palavras, e tem um caráter pascal, ou seja, a passagem para a comunhão, a paz, a iluminação...
Texto bíblico: Lc 24,13-35
Na oração: em um mundo permanentemente conectado, com um medo cada vez mais difuso de perder/esquecer seu celular, ou de “ficar sem bateria”, o aprender a “desconectar”, a gerir a solidão, o encontro consigo mesmo, é um dos grandes desafios, sobretudo para os chamados “nomofóbicos digitais”.
- Reservar tempos de deserto para viver a experiência de uma conexão interior é altamente humanizador; somente esta conexão profunda possibilita ter acesso à reservas interiores de compaixão, bondade, amor.
- O “ofício da palavra”, para além de designar isto ou aquilo, é um ato de amor: criar presença.
- Suas conversas cotidianas: são carregadas de calor humano ou marcadas pela frieza das telas digitais?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Imagem: A Ceia de Emaús, Caravaggio (1571-1610)
“Depois dessas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos
se alegraram por verem o Senhor” (Jo 20,20).
As Aparições são a maneira mais convincente de transmitir a vivência daquilo que Jesus Cristo significou para os(as) primeiros(as) seguidores(as), depois da desoladora experiência de Sua paixão e morte. O que a primitiva comunidade quis transmitir foi a experiência de que Jesus Vive e, além disso, continua comunicando-lhes aquela mesma Vida da qual tantas vezes Ele lhes havia falado. E, ao tomarem consciência de que possuíam a verdadeira Vida, o medo da morte não lhes preocupava mais. A Vida que o Cristo Ressuscitado lhes comunicou, permanece. Esta é a mensagem de Páscoa.
Com o conceito de Ressurreição quer-se expressar, então, a mensagem de que a morte de Jesus não foi o final. Sua morte não foi a meta, senão que sua meta foi a Vida, uma Vida em Deus, a mesma Vida de Deus, como nos diz João: “O Pai que vive me enviou e eu vivo pelo Pai”.
Jesus não volta à vida. Está já na vida. Por isso os relatos pascais insistem em que Jesus não é uma recordação do passado, mas que está vivo e ativo entre os seus.
João usa o verbo “soprar sobre eles” para expressar a comunicação do dom da Vida, através do Espírito do Ressuscitado. É o mesmo verbo que aparece em Gen. 2,7: com aquele sopro o ser humano de barro se transformou em ser vivente. Agora Jesus lhes transmite o Espírito que dá verdadeira Vida. Trata-se de uma nova criação do ser humano. Sem essa Vida que vai mais além da vida, nada daquilo que diz o Evangelho teria sentido.
O Espírito recebido é o critério para discernir as atitudes e as ações que derivam dessa Vida. Essa nova Vida é capacidade de amar como Jesus amou; é “passar pela vida fazendo o bem” (At. 10,38); é força que arranca de tudo aquilo que desumaniza e oprime; é impulso para “estar entre os seus como aquele que serve” (Lc. 22,27).
Dando seu Espírito, Jesus quer que seu Projeto seja também realizado por todos os seus(suas) seguido-res(as). Ele desvela no ser humano todas as suas possibilidades: transcender-se a si mesmo e ativar todas as potencialidades de vida ainda latentes.
“Viver como ressuscitados” implica esvaziar-nos do “ego”, para deixar transparecer o que há de mais divino em nosso interior. É preciso destravar portas e janelas de nossos estreitos lugares para que o novo Sopro do Ressuscitado areje nossa interioridade, ainda envolvida na sombra e no medo. Todos nós temos de passar e superar o mesmo processo vivido pelos discípulos e discípulas, se quisermos entrar na dinâmica da experiência Pascal. A fé no Ressuscitado não significa nada se nós mesmos continuamos vivendo uma vida atrofiada e sem horizontes.
Quem se experimenta a si mesmo como “Vida” é já uma pessoa “ressuscitada”. Nós vivemos já ressuscitados porque o Ressuscitado está em nosso meio, através do seu Espírito que dá a Vida. A Vida definitiva já está alentando nossa vida.
A Ressurreição de Jesus nos convida e nos convoca a um sentido maior de nossa existência e uma maior qualidade de vida em nossas relações. Há “sinais” de Ressurreição perpassando todas as experiências humanas. Da mesma forma como há sinais de morte, também há inúmeros sinais de vida saltando por todos os lados. Cabe a nós, portanto, prestar atenção a esses “sinais” para deixar-nos impactar por eles.
Os sinais da Ressurreição não são diferentes daqueles da Paixão, mas os mesmos: os cravos e a lança. Não nos enganemos, trata-se do Crucificado; Ele é o Ressuscitado. Não há outro modo de encontrá-lo e verificá-lo a não ser tocando a marca dos cravos e o seu lado traspassado. Só que agora quem o vê e o toca, sente a força que o Crucificado/Ressuscitado tem para libertar e curar, para sanar e levantar, para dar vida e vencer a morte. Suas cicatrizes são curativas e sanam aqueles que O contemplam e O descobrem no cotidiano da história. “Tocar” no Ressuscitado é “tocar” a carne dos feridos e excluídos de nosso meio.
Jesus Ressuscitado continua carregando em suas mãos, pés e lado, a ferida da história; não só as chagas dos cravos e o corte da lança em seu próprio corpo, mas a chaga dos enfermos e expulsos, dos famintos e oprimidos... e de todos aqueles que continuam sofrendo ao nosso lado.
Experimentamos a Ressurreição quando somos capazes de acreditar que a boa semente precisa morrer para dar frutos, isto é, que a vida bem vivida é aquela que está a serviço e que deve ser bem cuidada. A Ressurreição acontece quando alimentamos a pequena chama que ainda fumega nos corações desanimados, mas esperançosos; quando acreditamos no ser humano e em suas possibilidades de mudança; quando transformamos escuridão em luz, choro em dança, sofrimento em crescimento.
Vivemos a Ressurreição quando ajudamos os outros a encontrar razões para viver e alimentamos os sonhos por dias melhores, com pão na mesa de todos e com dignidade garantida. A Ressurreição acontece nos pequenos e simples gestos de partilha, de perdão sincero e de confiança alegre. Ela está presente nos corações que mantêm viva a novidade da vida. E se revela na capacidade de ver o mundo e as pessoas com olhar de misericórdia, que reconstrói a existência fragmentada.
Eis por que é fundamental o exercício do olhar transparente, da escuta atenta, da sensibilidade antenada... Importa contemplar o amor entre as pessoas, o cuidado do planeta, o sorriso das crianças, o sofrimento e as limitações humanas, a festa e a alegria, os rostos marcados pelo desgaste do caminho, bem como as lutas e as conquistas cotidianas. Tudo é mensagem, tudo se reveste de sentido.
A Ressurreição de Jesus toca nossa existência e nos possibilita experimentar o céu enquanto caminhamos pela terra, viver o divino misturado com o humano. Assim, o bem, a bondade e a solidariedade nos colocam na perspectiva do paraíso. A Ressurreição nos eleva e nos orienta para o Transcendente e para os valores mais altos, sem perder a simplicidade e complexidade de cada dia.
Ao entrarmos no mistério das coisas, pessoas e acontecimentos, somos banhados pela onda vital que emana de Deus. Dessa maneira, a vida nova resplandece e ilumina a escuridão da humanidade. A perspectiva da Ressurreição nos permite, portanto, dar um salto em direção à vida plena, ainda que marcada pela dor, pela cruz e pelos sinais de derrota.
Para os semeadores do bem, a vida é recompensa e fruto. E tem a última palavra...
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: * Preste atenção aos sinais de vida ao seu redor: gestos simples, iniciativas de pessoas e comunidades, posturas éticas e coerentes na política e na Igreja, solidariedade, perdão, acolhimento, voluntariado, cuidado de pessoas e do meio ambiente, etc...
* Faça, diariamente, uma “leitura orante” dos acontecimentos pessoais, sociais, ecle-siais...
* Quê mensagem de Ressurreição você encontra neles? Quê apelos você reconhece nessas experiências?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“De repente, houve um grande tremor de terra: o anjo do Senhor desceu do céu e, aproximando-se, retirou a pedra e sentou-se nela” (Mt 28,2)
Iniciamos o Tempo Quaresmal sendo convocados a refletir sobre os “biomas brasileiros e defesa da vida”. Tal como Jesus, a natureza é também lugar do padecido, da harmonia quebrada, da bondade violentada, da beleza ferida... “A criação geme em dores de parto” (Rom 8,22). Jesus e a Criação carregam a Cruz às costas até o Gólgota.
Há uma crise ecológica que se alastra rapidamente, quebrando o equilíbrio vital que sustenta a natureza toda. O uso desordenado dos recursos naturais e o “descuido” como modo habitual de viver, faz sofrer tanto o ser humano como a própria natureza.
No entanto, a novidade do universo é expressa pelo Apocalipse:
“Eis que faço novas todas as coisas”- 21,5).
A Ressurreição de Jesus nos oferece uma perspectiva para ver essa novidade , enquanto a “comunidade de vida” se desenvolve e caminha em direção ao “Grande Mar Cósmico”.
“Na verdade, o ventre da Terra contraiu-se, a natureza gemeu em dores de parto.
O túmulo rompeu-se e a pedra rolou. De repente a Vida!” (Zé Vicente)
O “mistério pascal” é o salto para a novidade, para a beleza, para a transcendência. Imersos na natureza, a Ressurreição nos faz descobrir a verdadeira extensão da Vida.
A luz da Ressurreição ilumina toda a Criação: a vida de Cristo na vida da Terra nos traz alegria e esperança. O universo inteiro é o “habitat” do Cristo Cósmico.
A aparição de Jesus Ressuscitado no primeiro dia da semana foi entendida como a aurora do “primeiro dia” da Nova Criação de todas as coisas. À luz deste “novo dia” de Deus, Cristo aparece como o primogênito de toda a Criação, que reconcilia todas as coisas no céu e na terra.
O “primogênito entre os mortos” é também o “primogênito de toda criatura”, por quem todas as coisas foram criadas. A Ressurreição pulsa em nós e na natureza com o coração de Deus.
Em Cristo, todas as criaturas apontam para o Criador. Elas também apontam para além de si mesmas, para o futuro da redenção, para sua forma verdadeira e permanente no Reino de Deus. À luz da Ressurreição compreendemos a Criação como “criação de Deus”, porque confiamos na fidelidade de seu Criador, e percebemos a capacidade que ela tem de se transformar, em vista de sua plenitude.
A Ressurreição é colocada no grande contexto da Criação em que o próprio ser humano participa. A Ressurreição é encontro com a vida plena, em um processo da Criação que chega a seu desfecho. Pela Ressurreição, romperam-se todas as amarras do espaço e do tempo. Cristo ganhou uma dimensão cósmica. A evolução se transformou numa verdadeira revolução.
O Gólgota remete aos gemidos de parto, e o túmulo vazio representa a concretização do parto. Nova história, nova criação está iniciada. O Cristo cósmico surge então como motor da evolução, como seu libertador e seu plenificador.
A salvação é salvação de toda a Criação e de todas as criaturas, e não pode ficar restrita à “salvação da alma humana” nem à bem-aventurança da existência humana. A “ressurreição dos mortos” ocorre nesta terra e leva os que receberam a vida para uma “nova terra onde mora a justiça, de acordo com sua promessa” (2Pd. 3,13). O Reino de Deus não é um reino “no” céu, mas ele vem “assim na terra como no céu”. Ressurreição e vida eterna são promessas de Deus para os todos os seres desta terra. Por isso, também a ressurreição da natureza há de levar não para o Além, mas para o Aquém da nova criação de todas as coisas. Não é para o céu que Deus salva sua Criação, mas Ele renova a terra.
A terra é o palco da vinda do Reino de Deus, por isso a ressurreição para o Reino de Deus é a esperança desta terra. Sobre esta terra embebida em sangue esteve a Cruz de Cristo, por isso Deus lhe permanece fiel e afastará dela toda dor, sofrimento e morte, para Ele mesmo nela vir morar.
“O Reino de Deus é o reino da ressurreição na terra” (Bonhoeffer).
Somos já “seres ressuscitados”: sentimos hoje a urgência de seguir os caminhos de uma ética ecológica para que possamos nos situar, na Criação, numa atitude participativa e de cuidado responsável. Cresce um novo modo de pensar e de conceber o universo enquanto “teia de relações”. Isto significa que há uma unidade fundamental e uma vasta rede de inter-relações, conectados a todos os elementos da natureza.
Todos os seres, vivos e não vivos, são parceiros numa verdadeira “dança cósmica”, numa grande comunhão universal. Fazemos parte de uma “rede” de relações múltiplas e recíprocas, nas quais o próprio Cristo Ressuscitado se faz presente, como fonte de vida. Para chegar a viver o Novo Céu e a Nova Terra é preciso renovar radicalmente este céu tantas vezes opaco e esta terra tão violada.
Se não houver uma “salvação da natureza”, também não poderá haver uma salvação definitiva do ser humano, pois os seres humanos são seres da natureza. Isto obriga a todos os que esperam a ressurreição a permanecerem fiéis à terra, a respeitá-la, cuidá-la e amá-la como a si mesmos.
Na perspectiva da natureza, a ressurreição de Cristo significa que com Ele teve início a universal “destruição da morte” (1Cor. 15,26), e que se torna visível o futuro da Nova Criação, quando a morte deixar de existir.
A ressurreição dos mortos, a destruição da morte e a ressurreição da natureza constituem os pressupostos para a eterna Criação que participa da habitação do Deus vivo e eterno.
A Criação “no princípio” está orientada para este fim. De acordo com isto “toda a Criação geme conosco” e esta é a verdadeira ressurreição da natureza.
Este é o lado cósmico da esperança da ressurreição. As forças do pecado e da morte, destrutivas e contrárias a Deus, são expulsas da criação, que é boa, e na presença do Deus vivo esta se transformará em uma criação eternamente viva.
O Deus que ressuscita os mortos é o mesmo Deus que chamou todas as coisas do nada à existência; Aquele que ressuscitou Jesus dos mortos é o Criador do novo ser de todas as coisas.
Ressurreição e Criação constituem, portanto, uma unidade, pois a ressurreição dos mortos e a destruição da morte são a completude da criação original.
Texto bíblico: Mt 28,1-10
Na oração: Fico maravilhado com a nova comunidade universal de vida que emerge da Noite Pascal. A Luz da Ressurreição integra tudo.
Considero como nosso Senhor ressuscitado revela toda a vida futura do universo como uma comunidade em evolução de esplendor e diversidade crescentes. Reflito como Cristo nos leva a evoluir para uma humanidade em plenitude, vivendo uma relação plena com todas as criaturas.
Fraternizo com todas as criaturas e me faço humano em toda minha plenitude.
Páscoa: um salto para a transcendência... para o Novo Céu e Nova terra
Uma inspirada Páscoa a todos(as)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
O Sábado Santo é um dia “não-normal”, porque a morte de Jesus na Cruz deixa o silêncio, o vazio e a obscuridade. É preciso considerar o Sábado Santo como um tempo de luto e pranto: depois da dor intensa da Sexta-feira Santa dá-se lugar a uma dor silenciosa, contida, como a terra que vai se empapando até suas entranhas com a água caída torrencialmente sobre a superfície.
É preciso saber acolher este silêncio surdo, que marca a passagem entre duas experiências intensas: a Sexta-feira de dor e o Domingo de Ressurreição.
A pedra do sepulcro impôs silêncio no Calvário. Também impôs silêncio nos corações doloridos. É um silêncio de dor e solidão. É um silêncio do vazio provocado pela morte.
A pedra que fecha o sepulcro é como o último gesto do morrer. Enquanto o morto está sendo velado, dá a impressão de que, de alguma maneira, ainda está presente. Quando se fecha o sepulcro tudo parece que terminou. O Sábado Santo parece um sábado vazio. Cala a Liturgia. Cala a Igreja. Calam os corações.
O desconcerto diante da Sexta-feira Santa pode ser tão intenso que já não resta mais esperança, nem razão para a missão. Nesse sentido, o Sábado não teria nada de “santo”, mas só sábado de sepultura.
Sabemos que a vida da Igreja, como também a nossa vida pessoal, é feita de longos sábados santos, nos quais nem a dor da Paixão nem o consolo da festa Pascal marcam significativamente nossos dias e nossas noites, mas simplesmente a dura e paciente espera, na fé mais despojada, de um Senhor, que se faz esperar tanto que parece que já não vai chegar mais.
Como seguidores(as) de Jesus tivemos nosso advento, natal, quaresma, páscoa, pentecostes...; também nossa sexta-feira santa. Hoje nos encontramos no Sábado Santo.
O Sábado Santo é um dia sem liturgia, em silêncio, não passa nada, não sucede nada, recorda a solidão do sepulcro, a tristeza das mulheres e dos discípulos, a desilusão diante do fracasso.
“O Rei dorme”, comenta uma antiga homilia sobre o Sábado Santo. O povo recita o “Shabat mater”, acompanha a Virgem dolorosa, espera com ela, em silêncio, a aurora pascal.
Este é o dia das mulheres discípulas, que cuidam do corpo morto e o ungem com aromas; dia do desconcerto dos discípulos masculinos que, com o gosto amargo do fracasso, retornam à Galileia ou a Emaús.
E, no entanto, segundo o credo cristão mais primitivo, conservado fielmente sobretudo na Igreja Oriental, o Sábado Santo recorda a “descida de Jesus aos infernos”, o que equivale dizer: experimentar até o fundo o poder da morte e, portanto, a força do silêncio, da obscuridade e do vazio.
Jesus desce ao lugar da morte e das sombras, a uma dimensão fechada e murada, da qual não havia saída. E, ao entrar no lugar da morte, Jesus rompe os ferrolhos, libera da prisão os encarcerados, ilumina aqueles que viviam nas sombras da morte, vence o poder do mal.
Na “descida” de Jesus somos movidos a viver esta jornada como um tempo no qual é possível experimentar a ausência, o silêncio ou o vazio (quando, por exemplo, é provocado pela perda de um ente querido).
É muito duro viver em um Sábado Santo tão prolongado, é duro o inverno social e eclesial. Mas, às vezes, em meio ao silêncio do Sábado de nossa história, ouvem-se algumas vozes de mulheres que falam de anjos que anunciam que o Senhor ressuscitou. Certamente podemos fechar-nos em nosso pessimismo e pensar que estas mulheres são umas insensatas, exageradas e aloucadas. Mas, e se estas mulheres tiverem razão? Então, não teríamos também que “descer aos infernos” de nosso mundo de hoje para libertar os que estão nas sombras da morte e anunciar-lhes que o Senhor venceu a morte?
Então, talvez, o Sábado Santo poderia converter-se em um tempo de esperança germinal.
Sábado Santo é tempo não só de espera, mas de esperança, é deixar que o grão de trigo morto comece a germinar, é tempo de um inverno que tornará possível as flores da primavera, é tempo de imaginar, de criar, de abrir-se a algo novo e inesperado, de sonhar um mundo melhor e uma Igreja mais nazarena.
O vazio da morte de Jesus nos deixa sem alento. Sua ausência nos deixa sem palavras. Que podemos dizer se Ele não está presente? Quando já não está presente a Palavra, que podem dizer as palavras? Por isso, o Sábado Santo, é o sábado das ausências.
Em nosso mundo violento, onde a destruição da vida é tão forte e as feridas da humanidade e da criação são exibidas, é difícil tolerar a experiência de Deus como uma ausência purificadora e manter abertos nossos corações para preparar o novo caminho de vida, de forma reverente e paciente.
No entanto, em todo caminho espiritual é preciso passar pela “noite”, pela “ausência”, pelo “silêncio”, para amadurecer. É inevitável experimentar, durante algum tempo, alguma forma desconcertante de sentir a presença-ausência de Deus.
Deus está “além” de nosso coração e de nossa mente, “além” de nossos sentimentos e de nossos pensamentos, “além” de nossas expectativas e de nossos desejos, “além” de todas as experiências que fazem parte da vida. E, ao mesmo tempo, está no “centro” de tudo isso.
Sua ausência, por outro lado, muitas vezes é sentida tão profundamente, que leva a um novo sentido de sua presença. Isto está expresso no Sl. 22,1-5.
Este espaço de silêncio não é de morte senão de vida germinal, é noite que aponta à aurora, são as noites escuras da vida que desembocam na alegria da alvorada; é tempo de fé e de esperança, é momento de semear, mesmo que não vejamos os resultados, é tempo de crer que o Espírito do Senhor, criador e doa-dor de vida, está fecundando a história e a terra para seu amadurecimento pascal e escatológico, para a chegada da “nova terra nova e do novo céu”.
Vivemos no “sábado santo” da nossa sociedade dividida, preconceituosa, violenta...; somos terra de penumbra. Mas nela se antecipa a esperança do dia de Páscoa. Como as mulheres, vamos ao sepulcro, levando aromas. As orações são aromas que o Espírito recolhe em sua taça. A esperança é aroma que faz esquecer o mau-cheiro do cadáver. Na noite do sábado santo nos mobilizamos a levantar bem cedo porque “algo novo” vai acontecer. O Abbá ausente vai revelar sua nova presença; o Espírito ficou sem Palavra, mas já sussurra; a voz do silêncio dá seus primeiros gemidos. Algo grande já se prepara.
As discípulas e os discípulos de Jesus estão à espera, reunidos em torno a Maria, orando com ela, a transparência feminina do Espírito.
Esta terrível Noite Escura do Sábado Santo corresponde a um incontestável estágio espiritual, como dura mas inevitável “passagem” (Páscoa) para a Luz do Domingo.
Só atravessando a prova, a Noite Amarga se transforma em Noite Amável.
Textos bíblicos: Mc. 15,42-47 Jo. 19,38-42
Na oração: recordar os grandes silêncios da vida (perdas, fracassos, crises...) onde não há razões, não há uma lógica..., mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres” (Laudato si´n. 49)
A Campanha da fraternidade deste ano, com o tema sobre os “biomas brasileiros”, nos oferece uma com-preensão aprofundada do sofrimento de Jesus, que inclui sua união com todos os membros da comunida-de de vida. Somos chamados a contemplar o cosmos como uma epifania, ou seja, como manifestação de um mistério, que pede reverência e respeito para quem dele se aproxima.
O mistério Pascal constitui o núcleo central da fé cristã, ou seja, a morte e ressurreição de Jesus de Nazaré e a efusão do Espírito sobre toda a Criação.
Este mistério pascal se estende também a todo o povo crucificado, ou seja, a esta grande maioria da humanidade que vive explorada e marginalizada, vítima dos interesses de uma minoria. Por isso, crer no Crucificado implica fazer descer da Cruz todos os que estão dependurados nela. Mas a imagem da crucifixão se aplica também à situação de nossa Terra, uma terra explorada, deser-tificada, contaminada, com a biodiversidade destruída e os oceanos transformados em cemitérios.
Por sua atitude de arrogância e de autosuficiência, o ser humano explorou exaustivamente a Terra herdada e a destruiu, depredou, aniquilou, tomou posse dela... Assim, não foi respeitoso para com o Criador que a ele reservou a missão de cuidar do seu jardim e de compartilhar os seus frutos.
Há um clamor generalizado que emerge da realidade desafiante enfrentada pela humanidade: o planeta Terra está gravemente enfermo. As conseqüências trágicas estão presentes por toda parte: degradação do meio ambiente, diminuição acelerada das fontes de água potável, desertificação, degelo das calotas polares com a conseqüente elevação do nível do mar, grande incidência de furacões e de queimadas, extinção de milhares de espécies de animais, escassez de alimento, proliferação de doenças, migrações forçadas... Enfim, o desequilíbrio dos ecossistemas pode comprometer, de forma irreversível, todas as formas de vida sobre a terra. Estamos diante da “Terra crucificada”.
E aqui já não podemos repetir as palavras de Jesus na cruz “eles não sabem o que fazem”: todos somos conscientes de que a atitude prepotente e dominadora em nome do progresso e do consumismo causa danos irreversíveis à Terra. A terra geme em dores de parto, um parto que hoje se revela abortivo. A Criação é também lugar do padecido, da vulnerabilidade afetada, da beleza ferida... A utilização desor-denada dos recursos da natureza faz sofrer tanto ao ser humano como à própria natureza, conclamando portanto à solidariedade, à partilha, à compaixão, à reconciliação na sua dimensão maior.
Perguntaram ao monge zen Tich Nhat Hanh o que é que precisamos fazer para salvar o mundo. Ele respondeu: “O que precisamos é, antes de tudo, escutar em nosso interior o grito da Terra”. Como cristãos, este grito o entendemos como o grito de Jesus na Cruz, que condensa todos os gritos da humanidade explorada e da natureza expoliada. Na Paixão, buscamos experimentar, com Jesus, o sofrimento da Terra. Experimentamos Jesus sofrendo nas regiões marcadas pela seca, na terra cheia de cicatrizes pelas explorações do solo e das florestas, na contaminação do ar e da água...
Para Jesus, toda tragédia de sofrimento inocente e absurdo se concentrou n’Ele. Em sua pessoa estão o lamento e o desamparo da vítima inocente. Jesus, na Cruz, expira num grande brado, tão abismal que jamais será ultrapassado; n’Ele se encontram e se reconhecem todos os sofredores inocentes; n’Ele se condensam todos os gritos da humanidade sofredora e da natureza destruída.
Na contemplação de Jesus que sofre e é abandonado, revela-se o mistério maior de Deus frente a todo o mistério do mal. Na fraqueza e no sofrimento inocente de Jesus estão a fragilidade e o sofrimento do próprio Deus. Este é o mistério maior do silêncio e da “kénosis”: com o despojamento de divindade do Filho, o Pai, sem utilizar o revide de vingança e de poder, acolhe o mistério do mal em seu mistério maior de amor.
Disposição de todo o meu ser para o mistério - Leio Mc. 14,26-42 Mc. 15,33-41
Trago à memória todas as criaturas que sofrem por causa da cegueira e da avareza suicida do ser humano. Milhões de anos de história da evolução estão sendo apagados da face da terra, ao mesmo tempo que as áreas desérticas do mundo crescem rapidamente.
Diante da Árvore da Cruz, sinto-me aniquilado pela agonia que Jesus suporta silenciosamente enquanto destruímos biomas, poluímos rios e mares, devastamos florestas junto com a imensa quantidade de comunidades de vidas que há nelas.
Com a imaginação, permaneço junto à Cruz, cheio de aflição e amor por tudo aquilo que Ele está suportando por mim e por todas as criaturas. Vejo como esta Vida pura, inocente, está se desfazendo na Cruz, diante de mim. Esta Vida que assumiu a matéria para poder estar entre suas amadas criaturas. Estou sobressaltado diante deste mistério: Ele assume livremente dar sua vida para plenificar a vida de todos os seres.
O desejo de meu coração
Peço alcançar a graça de ter um conhecimento profundo do sofrimento da humanidade de Cristo, que continua nas comunidades de vida marginalizadas e exploradas, que gemem em seu sofrimento.
Peço sentir tristeza e aflição, dor interior e lágrimas com Cristo, enquanto Ele experimenta o mal trato imposto à sua amada Terra, e como eu ainda ignoro sua preocupação pessoal e sua vinculação física com sua comunidade universal de vida. Minhas atitudes de avareza e exclusão feriram e humilharam penosamente a sua amada Criação.
Diante da agonia de Jesus, fazer memória da agonia da Terra
A Natureza está sendo vergonhosamente atacada e dizimada pela implacável crueldade humana. Arrancaram suas vestes e a desnudaram. Suas matas e florestas estão sendo destruídas, adulteradas e saqueadas.
A desolação estendeu-se sobre seu corpo; lançaram fogo sobre suas vestes... Poucos correm para socorrê-la. Muitos estão cegos e insensíveis. Observam-na agonizando, enquanto contam seus lucros insaciáveis.
A Terra já não consegue respirar como outrora; sente-se sufocada, febril e doente. Detritos e gases asfixiam-na. Ela sente-se sozinha e indefesa.
Ouço o grito de Jesus na Cruz; ouço os últimos gritos da mãe Terra.
Na oração: Estou assombrado diante da revelação das Três Pessoas Divinas no Gólgota, humilhando-se para dar à luz um novo cosmos de espaço, tempo e matéria.
Penso com espanto na Trindade humilhando-se ao dar completa liberdade ao seu amado cosmos, em vez de impor um controle total.
Maravilho-me diante de Seu amor, demonstrado em sua própria doação e expresso através de toda a evolução ao fazer com que as criaturas fossem adquirindo cada vez maior liberdade, culminando na liberdade humana, capaz de dirigir toda mudança futura.
Ao pé da Cruz, comovo-me no mais profundo de meu ser diante do poder misericordioso de Deus, muito mais efetivo através da doação que através do uso da força.
Dou graças a Jesus na Cruz por ter-me revelado agora que todas as lutas do cosmos durante todas as eras foram experimentadas pela Trindade bondosa. Reflito com espanto que a verdadeira história da vida de Deus inclui toda a agonia da evolução: extinções em massa de espécies, a necessidade cruel da cadeia de alimentação, parasitas, epidemias, bosques arrasados, guerras, crianças famintas, o horror da avareza e a indiferença da humanidade...
Colóquio
Falo com Jesus, meu amigo e irmão, e permaneço presente com Ele, junto à sua Cruz.
Termino com a oração que Jesus nos ensinou.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
"Fazei isto em memória de mim”
Nesta Quinta-feira Santa, celebramos o Amor até o extremo de Jesus, a radicalidade de sua ternura que se faz cuidado até o ponto assumir todo o sofrimento da humanidade mais excluída e da criação mais ferida. Jesus é a misericórdia em ação, a misericórdia em relação, vivida no corpo a corpo com as pessoas mais oprimidas e exploradas. N’Ele se faz carne e se revela o rosto do Deus todo cuidadoso da Criação, que vela pela dignidade de toda criatura, que “não quebra o ramo já machucado, não apaga o pavio já fraco de chama” (Is. 42,3).
Mais uma vez, durante o tempo quaresmal deste ano, a Igreja do Brasil (CNBB) nos alertou para os perigos da devastação do meio-ambiente, além de despertar a atenção de todo povo cristão para o cuidado e proteção da Criação de Deus que nos foi confiada.
Com o tema “Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da vida” e o lema: “Cultivar e guardar a criação” o objetivo foi dar destaque à diversidade da cada bioma e criar relações respeitosas com a vida e a cultura dos povos que nele habitam.
“Cultivar e guardar” nascem da admiração. A beleza que impacta nosso coração faz com que nos inclinemos com reverência diante da Criação. Como discípulos(as) do Senhor, temos a missão de sermos servidores(as) no amor, dentro das relações vividas no cotidiano de nossa realidade.
Tocados pela bondade e diversidade dos biomas, somos conduzidos a uma grande ação de graças. E a Eucaristia é o momento privilegiado para isso.
Em Jesus, Deus se revelou encarnado na história e, por sua atuação, morte e ressurreição, fica claro que Ele fez do universo seu corpo. A presença real de Jesus, no pão e vinho da Eucaristia, nos desperta a reconhecê-Lo presente no coração do Cosmos e da História.
Céu e Terra estão integrados; o finito se faz espaço e revelação do Infinito, e Deus acontece nas relações humanas interpessoais e nos cuidados por tudo que diz respeito à harmonia neste mundo.
Pela Eucaristia, valorização definitiva do universo através da comunhão, somos confrontados com a presença transformadora de Deus em tudo e em todos.
A Eucaristia nos educa no respeito e cuidado para com tudo aquilo que nos cerca. Tudo e todos são sinais do divino, que rejeita toda forma de dominação e exclusão, exploração e divisão, substituindo-a pelo respeito e cuidado que integra a natureza, promove a vida e confraterniza a convivência. A Eucaristia clarifica e atualiza a Vontade do Pai: “E a vontade d’Aquele que me enviou é esta: que não perca nenhum dos que Ele me deu, mas os ressuscite no último dia” (Jo. 6,39).
É o papa Francisco quem, em sua importante encíclica “Laudato si´” (n. 236), alude a esta dimensão cósmica da eucaristia. Porque no pão e no vinho da se concentra toda a essência da Criação, a exube-rante riqueza de seus recursos, a fecundidade inesgotável dos biomas, a beleza deslumbrante de suas fontes e rios, de suas matas, de suas montanhas...
“A Criação encontra sua maior elevação na Eucaristia.(…) O Senhor, no apogeu do mistério da encarnação, quis chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo no nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito, a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico. Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar de uma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo. A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no Pão eucarístico, a criação está orientada para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador. Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e motivação para as nossas preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da criação inteira”.
O texto acima é, sem dúvida de uma grande densidade teológica. Os dons eucarísticos, o pão e o vinho, por sua condição material e terrena e por sua vinculação com o trabalho humano, são parte da criação, são algo nosso, “um pedaço de matéria”; pertencem à nossa condição mais própria e íntima.
Tudo isto aponta para a convicção de que, no insondável mistério eucarístico, os dons apresentados são uma representação do cosmos inteiro. Todo o universo cósmico é assumido e se faz visível na Eucaristia. Desde modo a Eucaristia acaba se convertendo no centro do cosmos, no “centro vital do universo”.
Quem come do Pão e bebe do Vinho, entrega-se ao dinamismo da Ressurreição, comprometendo-se com a luta contra as forças da morte: egoísmo, violência, indiferença, omissão política, desonestidade na gerência dos bens, descuido nas relações afetivas, isolamento no medo, destruição do meio-ambiente, poluição...
Simbolicamente, na Eucaristia, o pão é partido para significar a doação de Jesus; e ao comermos deste pão, aceitamos ser como o grão de trigo que, caído no chão da história, produz frutos para o bem de todos. Essa presença mística de Cristo em nós, dinamizada pela Eucaristia, consagra irmãos solidários, cidadãos do mundo. Aqui está o fundamento da espiritualidade ecológica que nos faz sensíveis para guardar e cuidar todas as expressões de vida, reveladas nos diferentes biomas de nosso país.
Cultivar a “memória de Jesus”, de tudo que celebrou na Última Ceia, é tornar viva e atual Sua presença nas diferentes refeições junto ao seu povo. Consciente da missão que o Pai lhe confiara, Ele despertava as pessoas para seu próprio valor, para a dignidade e originalidade de cada um...
Nessa perspectiva, Ele as libertava da banalidade do medo, do poder excludente, da ansiedade, da culpa e da passividade na submissão, para um sentido superior de ser e conviver.
Na prática do amor, Jesus se fez presente-doação em todas as situações de exclusão e marginalidade, envolvendo a todos com a solicitude misericordiosa do Pai. Tal doação-entrega atingiu o cume na partilha do pão e do vinho, na celebração da Eterna Aliança.
O dom eucarístico, portanto, tal como a humanidade de Jesus, não pode ser reduzido a um simples objeto desligado das demais relações envolventes (com Deus, com os outros e com toda a Criação). “Como o pão é um só e o mesmo, formamos todos um só corpo” (1Cor. 10, 14-22).
Texto bíblico: Jo 13,1-15
Na oração: Nem sempre estamos preparados para assumir a tarefa tão humilde do Lava-pés, porque esta tarefa implica prostrar-se, descer ao húmus, entrar em contato com a terra, o barro, a poeira… Lava-pés é o gesto humilde que não nos humilha, mas nos humaniza e nos faz viver a comunhão com toda a Criação. Não é evento, mas hábito de vida, um “modo de proceder” que mais nos identifica com Aquele que mais “cultivou e guardou a Criação”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quando Jesus entrou em Jerusalém, a cidade inteira ficou alvoroçada, e diziam: ‘Quem é este?’”
A Paixão de Jesus teve causas históricas concretas e foi o desenlace final de uma vida que entrou em conflito com o sistema religioso-político estabelecido na sociedade daquele tempo. Sua vida e sua mensagem revelaram uma novidade de tal magnitude que rompeu com as estruturas que atentavam contra a vida. De fato, Jesus apostou na vida de todos os seres humanos e por isso não se deixou subornar por nenhum poder destruidor de vidas.
O conflito de Jesus foi o conflito com o poder, mas o poder levado até sua raiz última. Por isso, Jesus compreendeu que, para mudar o comportamento dos dirigentes da cidade de Jerusalém, a primeira coisa a fazer era desmontar o “ídolo” que legitimava o poder autoritário daqueles que oprimiam o povo indefeso. Jesus desmontou o “seu deus” e atirou por terra “seus podres poderes”. Foi exatamente isso que provocou o enfrentamento, que desembocou na sua morte.
Este confronto com o poder religioso e político ficou evidente na cena da “entrada de Jesus em Jerusa-lém”. A subida a Jerusalém foi, sem dúvida, uma decisão meditada, mas também profundamente radical.
A chegada de Jesus com seus discípulos e discípulas à cidade santa, formando parte da comitiva dos pere-grinos que vinham dos quatro cantos do mundo conhecido, para celebrar a Páscoa, se converteu numa procissão festiva. O Mestre, evocando a profecia de Zacarias, não entrou em Jerusalém como um rei, guerreiro triunfador, na garupa de um possante cavalo, mas montado em um burrinho, entre sinais de natureza e de concórdia (palmas, ramos, cantos de alegria e de paz), mostrando-se assim como o enviado humilde de um Deus cujo poder é o amor.
Jesus, que havia anunciado a novidade do Reino, rompe com os esquemas e paradigmas. O povo o quer identificar como um messias que vai triunfar e tomar o poder, como um novo Davi, mas Jesus procura fazer descobrir que o poder nunca é mediação para a libertação do ser humano. Nem o poder econômico, nem o político, nem o religioso solucionam as desigualdades e injustiças humanas, nem sequer criam esperanças libertadoras.
Este é o momento definitivo de atuação de Jesus: subiu a Jerusalém na festa principal dos judeus. Com seu gesto Ele atinge o centro do poder político e religioso, encarnado na cidade de Jerusalém. Até então seus gestos foram libertadores das pessoas. Agora Ele arremessa diretamente contra a cidade que exclui e mata. Aquele “dia de Ramos” foi uma autêntica manifestação de desafio.
Jesus rompe o silêncio e entra na cidade de Jerusalém de maneira impactante, como Messias cheio de autoridade, mas faz isso de forma pacífica, sem armas nem soldados, anunciando o reino de Deus para o pobres e a partir dos pobres. Não optou por empregar violência externa, nem prepotência ou domínio (religioso, militar, econômico) de uns sobre os outros, porque o Reino de Deus não se manifesta com violência, nem se mantém por meio do poder ou da sacralidade sacerdotal. Até então Jesus havia se movimentado mais na clandestinidade, esperando o momento oportuno, a “sua hora”. E essa foi a “sua hora”: desmascarar a manipulação e extorsão daqueles que com poder autoritário tinham oprimido o povo. Por isso, sua vinda, nesse tempo de Páscoa, não foi um gesto privado; veio de um modo público, pois queria a transformação ou conversão da cidade de Jerusalém.
Para alguns, esse gesto de cruzar os umbrais da cidade foi altamente provocativo e quiseram frear o entusiasmo que Jesus despertava pela sua passagem. Ele se tornou um perigo que deveria ser eliminado. Os dirigentes religiosos e os líderes do povo judeu deram-se conta de que aquele homem, Jesus o Nazareno, questionava, da maneira mais radical, o sistema no qual eles se sustentavam para continuar exercendo um poder ao qual não estavam dispostos a renunciar.
A festa da entrada de Jesus na cidade de Jerusalém revela-se uma ocasião privilegiada para considerações sobre nossa presença e o nosso habitar nas grandes cidades de hoje. Às vezes, a grande cidade pode nos parecer um lugar estranho e hostil; ela se revela complexa e confusa como um labirinto, perigosa e traiçoeira como o deserto, espessa e impermeável como uma floresta. De fato, nas cidades existem situações que dificultam ou impedem a descoberta de Deus e a vivência de relações mais humanas: a violência, a pobreza, a discriminação sexual, a intolerância, o racismo e muitas outras atitudes e práticas que separam, excluem e oprimem. As ofensas contra a pessoa humana, sua digni-dade e seus direitos, são impedimentos para reconhecer e descobrir a presença do reinado de Deus.
Assim, no domingo de Ramos, abrimos espaço para entrar na nossa cidade com Jesus, com sua força, com sua presença crítica; só assim, nos manteremos lúcidos nessa mesma cidade tão distante da proposta de vida apresentada pelo evangelho. Somos enviados a todas as fronteiras de nossas cidades não para impor a fé e o Evangelho, mas para dialogar com aqueles que não pensam como nós, com aqueles que não creem, com aqueles que estão muito distantes, marginalizados...
Desde aquele dia de Ramos sabemos que Deus mesmo habita em nossa cidade, para além dos limites da Igreja; Ele deixa marcas de sua presença em tudo e em todos. Só aquele que vive “em saída” pode entrar em sintonia com a ação do Senhor e ser presença de luz no próprio espaço urbano.
“A fé nos ensina que Deus vive na cidade, em meio a suas alegrias, desejos e esperanças, como também em meio a suas dores e sofrimentos” (Doc. Aparecida, 514).
Jesus “entrou” em Jerusalém para que também nós entremos em nossas cidades de maneira inspiradora e provocativa, buscando e construindo a nova cidade, feita de paz e de concórdia, rompendo com tudo aquilo que desumaniza e trava os espaços de convivência. Somos chamados a construir pontes e não muros de separação, a ser presença reconciliadora e não de divisão.
A experiência de uma pastoral urbana nos capacita a descobrir e potenciar a presença real do Deus que revela seus rosto nas pessoas, casas, bairros, povos, cidades e metrópoles. “O coração dos povos é o santuário de Deus”. Trata-se de “passear com o Absoluto pelas ruas da cidade” (Michelstaeder).
O Deus presente nas cidades é um Deus que nos chama e interpela a partir do reverso da história, a partir dos lugares ocultos, dos ‘outros-espaços” de exclusão... e a nos comprometer na construção da Jerusalém justa e fraterna.
Texto bíblico: Mt 21,1-11
Na oração: rezar sobre minha presença na cidade: participativa? Questionadora? Inspiradora?...
Ou presença alienada, fechada em condomínio, apartamento... sem contato com a dura realidade e com o mundo da exclusão daqueles que são vítimas de uma cidade desumana?
- O que significa “morar” numa sociedade virtual?
- A “Jerusalém terrena” é expressão da “Jerusalém interna”: minha cidade interna é espaço de paz, de concórdia, um espaço onde Deus mesmo mora em mim? Ali me sinto verdadeiramente “em casa”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Lázaro, vem para fora!”
Os relatos evangélicos do 3º., 4º. e 5º. domingo da Quaresma do Ciclo A, tomados do evangelista João, apresentam Jesus como Fonte de Água viva (samaritana), Luz do mundo (cego de nascença) e Vida (ressurreição de Lázaro). Três símbolos de nossas necessidades humanas mais fortes (água, luz e vida) e que só o encontro com Jesus pode preenchê-las.
A Quaresma termina com um chamado à vida. Não qualquer vida, mas a Vida verdadeira, a Vida que deseja ser despertada para romper com tudo aquilo que a limita. Por isso, o relato da ressurreição de Lázaro é toda uma catequese sobre o encontro com Aquele que é Vida e que é fonte de vida em crescente amplitude. Jesus não vem prolongar a vida biológica, vem comunicar a Vida de Deus que Ele mesmo possui pelo Espírito e da qual pode dispor.
Em Jesus acontece algo totalmente novo; Ele traz uma nova maneira de viver e de comunicar vida que não cabe nos nossos esquemas. É justamente isso o que mais atrai em sua pessoa. Quem entra em comunhão de vida com Ele, conhece uma vida diferente, de qualidade nova, expansiva... Nesse sentido, a experiência do Seguimento de Jesus é uma verdadeira “escola de vida”, cujo aprendizado nos leva ao âmago do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração da Trindade, dele haurir a seiva da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus. Nada mais contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores...
Para o evangelista João, a “vida” é uma totalidade, ou seja, a vida presente, a vida atual, possui tal plenitude que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida eterna”; uma vida com tal força e tão sem limites, que nem a morte mesma terá poder sobre ela. A “vida eterna”, então, não é um prolongamento ao infinito de nossa vida biológica. É a dimensão inesgotável e decisiva de nossa existência. Ela torna-se “eterna” desde já.
Precisamos adquirir uma consciência mais profunda da vida do Espírito, perceber as pulsações desta vida eterna que está em nós, do mesmo modo que, prestando atenção, percebemos as batidas do coração de toda a criação. Nesse sentido, a vida tem a dimensão do milagre e até na morte anuncia o início de algo novo; ela carrega no seu interior o destino da ressurreição. “Minha vida é uma sucessão de milagres interiores” (Etty Hillesum).
Vida plena prometida por Jesus: “Eu vim para que tenham a vida e vida em abundância” (Jo 10,10)
Nem sempre sabemos viver de maneira intensa: conformamo-nos com uma vida estreita, estéril, fechada ao novo, carregada de “murmurações”, atada com faixas. O dinamismo do Seguimento de Jesus, no entanto, é gerar vida, possibilitar que o(a) discípulo(a) viva a partir da verdade mais profunda de si mesmo; ou seja, viver a partir do coração, do “ser profundo”.
A imagem de Jesus, presente junto às vidas feridas e bloqueadas, nos ajuda a conhecer nossa própria interioridade e desperta nossa vida, arrancando-a de seu fatal “ponto morto”, de seus limites estreitos e constituindo-a como vida expansiva em direção a novos horizontes.
O seguimento proporciona vigor inesgotável, nossa vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa, é convocação...
“Lázaro” representa a humanidade ferida e amada, com dimensões de sua vida necrosadas, amarradas, presas nos sepulcros. Nós mesmos podemos perceber parcelas de nossa vida paralisadas e atrofiadas. Mas Lázaro, que está presente em cada um, não está morto, apenas dorme. As fontes da alegria, as fontes da criatividade e da confiança, as fontes do agradecimento e das bem-aventuranças... não estão mortas; estão adormecidas e necessitadas de que alguém tire os escombros e afaste a pedra que bloqueia o impulso da vida. E cabe a nós, como seguidores(as) de Jesus, despertá-las com a voz, com os gestos, com o olhar, com as mãos.
O primeiro passo é remover a pedra. Quem jaz atrás da pedra está fechado a qualquer tipo de relação. Quando a pedra é removida, Jesus ora e diz: “Lázaro, vem para fora!”. Chama seu amigo, e suas palavras de amizade e amor ressoam dentro da sepultura para levantá-lo, despertá-lo e insistir para sair por seus próprios pés. A palavra de amizade de Jesus o alcança inclusive naquilo que está necrosado em Lázaro.
“Lázaro vem para fora”: “Ele tinha as mãos e os pés amarrados com faixas e um pano em volta do rosto”. Ainda não está livre; está preso pelas faixas. Algumas ligaduras podem ser bloqueios internos, dependências, medos, inseguranças, carências...
Diante do túmulo, Jesus mobiliza a todos: para ressuscitar a Lázaro pede a uns que afastem a pedra, a outros que estendam as mãos e desatem as faixas, a outros que o ajudem a pôr-se de pé.
Como podemos crescer em uma corresponsabilidade que nos faça a todos e cada um extrair o melhor de nós mesmos para contribuir com a vida, para que entre luz em nossas relações humanas, para construir entre todos os seus seguidores que caminham, livres das amarras, ao ritmo do Espírito?
“Lázaro, vem para fora!”. Não é este o grito diário de Deus em nossas vidas? Este apelo “vem para fora” é para todos. Todos somos portadores de um sepulcro que nos fecha, nos isola e nos asfixia, privando-nos de nossa liberdade. É preciso dar asas à vida, soltá-la em direção à imensidão do universo.
“Lázaro, vem para fora!” Esta palavra é preciso dizê-la desde agora, com Jesus. Venhamos todos para fora, de maneira que não vivamos mais de morte, que não permaneçamos na letargia, envolvidos em sudários e faixas, compactuando com a violência e a injustiça, dando cobertura àqueles que matam.
Temos de sair de um mundo no qual, de um modo ou de outro, nos habituamos com a morte e nos sentimos impotentes: “Senhor, já cheira mal: é o quarto dia”
Cada dia Deus nos tira do sepulcro e nos devolve a vida sempre enriquecida e iluminada. É um milagre que cada dia possamos amanhecer com vida. Ninguém vive só de momentos extraordinários e de grandes festas; o que mais influi em nossas vidas é a alegria de cada dia, a festa de cada dia, a vida de cada dia, o amor de cada dia, a esperança de cada dia.
Jesus nos oferece a oportunidade de deixar-nos amar pelo Deus da vida, que gera vida, proximidade e abertura, fraternidade profunda e sincera. Podemos fazer isso porque carregamos ricas potencialidades de vida dentro de nós e que, muitas vezes, permanecem atadas, impedindo-nos viver a comunhão e a convivência com os outros. Vir para fora do túmulo significa viver para a vida, na justiça e solidariedade, condenando toda violência que atrofia a vida.
A comunhão de vida com Cristo nos faz ter um “caso de amor com a vida”.
Texto bíblico: Jo 11,1-45
Na oração: “Vem para fora!”, não te feches em ti mesmo, sai de tudo o que há de morte em tua vida; sai de teu individualismo, de teu orgulho, de tua indiferença! Sai de tua insensibilidade à dor dos outros! sai da vulgaridade e superficialidade de tua vida e vive a elegância da santidade!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Vai lavar-te na piscina de Siloé. O cego foi, lavou-se e voltou enxergando” (Jo 9,7)
Jesus afasta-se do Templo, fugindo dos fariseus que queriam apedrejá-lo por ter dito: “Eu sou a luz do mundo”. Ele vai repetir isso e demonstrar com atos, dando ao cego a capacidade da visão. Não conhecemos o nome deste cego. Só sabemos que é um mendigo, cego de nascimento, que pede esmola nas proximidades do templo. Não tem experiência da luz, não a conhece, nunca a viu. Estava sentado, não podia caminhar nem orientar-se por si mesmo; estava imóvel, dependendo sempre dos outros. Sua vida transcorria nas trevas. Nunca poderia conhecer uma vida digna.
Também não se menciona que era sábado, somente ao longo da narração. Jesus não leva em conta essa circunstância à hora de fazer bem ao ser humano. “Amassar barro” estava explicitamente proibido pela interpretação farisaica da lei. O amassar o barro no sétimo dia, prolonga o sexto dia da criação. Jesus termina a criação do ser humano.
Este ponto de partida é chave para ressaltar o ponto de chegada. Jesus vai ativar no cego a mobilidade e a independência, vai lhe devolver a capacidade de ver, vai reconstruí-lo como ser humano por inteiro. Jesus vê na cegueira uma ocasião para a manifestação da atividade salvífica de Deus. As obras que Deus realiza consistem em libertar o ser humano de sua inatividade e dar-lhe capacidade de ação.
“Enquanto é dia, temos de realizar as obras d’Aquele que me enviou”.
Jesus não consulta ao cego se ele quer ficar curado, pois sendo cego de nascimento não tem experiência da luz e não a pode desejar de maneira especial. Mas a cura não acontece automaticamente; o cego tem de aceitar a luz e optar livremente por ela. Jesus não lhe tira a liberdade: oferece-lhe a oportunidade e coloca diante dos seus olhos o projeto de Deus sobre o ser humano. A decisão de recuperar a vista fica nas mãos do cego: ela se manifesta no fato de ir à piscina de Siloé por sua própria iniciativa, de caminhar livremente, de poder sair do seu lugar, lavar-se na piscina, para chegar a ser ele mesmo.
Jesus passa à ação. João usa dois verbos para indicar a aplicação do barro nos olhos: aqui untar-ungir tem relação com o título de Jesus “Messias” (que significa o “ungido”). Mais adiante dirá simplesmente “aplicar”. Aquí está a chave de todo o relato. O cego é agora um “ungido”, como Jesus. O homem ferido na sua cegueira foi transformado pelo Espírito.
A reação das pessoas (parentes, vizinhos...) sobre a identidade do cego manifesta a novidade que o Espírito realiza. Sendo o mesmo, é outro. O que era cego revela a nova identidade de homem reconstruído pelo Espírito: ele agora é um ungido, encontrou-se a si mesmo – “Ele afirmava: sou eu”.
Ao “ungir-lhe os olhos”, Jesus convida o cego a ser homem “acabado, reconstruído, restaurado...”
Os outros personagens continuam em sua cegueira: fariseus, conterrâneos, pais… são símbolos da dificuldade de aceitar a luz quando esta ilumina o que não se quer ver.
Há uma grande diferença entre o cego sem iniciativa, sem liberdade no início da cena, e o homem livre depois da cura. Daí que ele utilize as mesmas palavras que tantas vezes, no evangelho de João, Jesus utilizava para identificar-se: “Sou eu”. Esta fórmula deixa transparecer a identidade do ser humano recriado pelo Espírito; descobre a transformação que se realizou em sua pessoa e quer que os outros a vejam.
O cego opta livremente pela luz. Segue o caminho apontado por Jesus e chega à meta indicada. Ele, que era só limitação, recupera sua autonomia e deixa-se conduzir pelo Espírito. O que de verdade importa é que este homem estava limitado e carecia de toda liberdade antes de encontrar-se com Jesus. Agora descobre o que significa ser pessoa e se sente completamente realizado. O Espírito o capacitou para desatar todas as possibilidades de ser “humano”.
Sua vida, escondida e dependente, está agora cheia de sentido. Perde o medo e começa a ser ele mesmo, não só em seu interior mas diante dos outros. O horizonte que se abre para ele é indescritível. O mundo mudou radicalmente; agora ele poderá dar orientação à própria vida: não dependerá mais que os outros o conduzam.
O relato do evangelho de hoje é, sobretudo, uma catequese cristológica. Como aparece Jesus nele? Em primeiro lugar, Jesus é Aquele que vê. Na cena do “cego de nascença”, onde os discípulos viam um pecador, Jesus via um ser humano. Seu olhar não se detinha na máscara, mas contemplava um rosto.
O “cego de nascença” encontra em Jesus um olhar encorajador, compreensivo, que acredita nele e lhe inspira confiança; um olhar que não se prende ao passado, mas abre uma nova possibilidade de vida. Um olhar que ativa nele a capacidade de olhar a própria vida de maneira diferente. Por isso, Jesus aparece também como Aquele que faz ver. É o mestre que vai curando a cegueira e trazendo luz, para que a pessoa, descobrindo sua identidade, possa dizer como o cego curado: “sou eu”.
Neste tempo quaresmal, sentimos a urgência de uma conversão do nosso olhar; é preciso purificar o olhar, cristificá-lo. Olhar com os “olhos cristificados”. Não se trata de qualquer olhar. É o olhar limpo, diáfano, gratuito e desinteressado, que destrava e expande a vida do outro numa nova direção. Contemplar o rosto do outro é sentir sua presença, sem pré-conceitos e pré-juízos..., vendo nele o sinal da ternura de Deus. Passar da contemplação à acolhida: este é o movimento da oração dos olhos.
O “olhar contemplativo” está perdendo sua força criativa no contexto atual; marcado pela ansiedade de querer “ver” tudo ao mesmo tempo, o ser humano já não é mais capaz de fazer uma “pausa” para se deixar “ver” pela realidade. Sob o peso do olhar do racionalismo, ele tudo examina, compara, esquadrinha, mede, analisa, separa... mas nunca “exprime”. Daí o olhar reprimido, desviado, insensível, frio, duro, ríspido...
Este é o pecado contra o olhar: olhar supérfluo e imediatista, olhar esquizofrênico e narcisista, olhar morno, sem vibração, sem brilho, sem assombro... Nesse olhar não há lugar para a admiração, nem para a acolhida e a presença do outro. Só existe o olhar que “fixa”, escraviza e aliena.
A arte de viver consiste, fundamentalmente, em chegar a ver tudo com o coração. Só o coração descobre em tudo as pegadas da Presença Última, que olha a partir do rosto de cada pessoa, a partir da beleza de cada criatura. O amor nos abraça em tudo quanto vemos.
Texto bíblico: Jo 9,1-41
Na oração: Ver mais além, a partir do coração, transcender, despertar nossa visão interna e intuitiva das coisas e das pessoas, tirar as cataratas de nossos olhos e abrir-nos a Deus.
- Abro os olhos para olhar de outra maneira.
- Quê há de fechamento, de intransigência, de superficialidade, de rotina em minha vida, que não quero ver?
- Estou aberto a acolher a Luz da verdade, do amor, da justiça, da gratuidade... venha de onde vier?
- Creio ter a posse da verdade ou me deixo questionar pelos outros?
- Em quê aspectos de minha vida pessoal e relacional preciso abrir-me à luz do Evangelho?
- Sou luz que ajudo os outros a verem?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede...” (Jo 4,15)
Comprovamos hoje uma atrofia ou um “déficit de interioridade”, pois a volatilidade das sensações passageiras nos dificulta ter acesso à nossa própria identidade. Continuamente chegam até nós, sensações inteligentes e sedutoras elaboradas pelos técnicos da publicidade em laboratórios e ilhas de edição e semeadas na nossa afetividade subconsciente. Estamos rodeados por telas iluminadas (tvs, smart, tablets, computadores...) que emitem uma mensagem “interessada” e nos forçam a permanecer na superfície de nós mesmos, esvaziando-nos de toda densidade humana. Precisamos redescobrir uma pedagogia que nos conduza até o mais profundo de nossa intimidade, onde o Espírito alimenta a originalidade de nosso ser único, através de uma fonte que nunca se esgota. Precisamos, sob a ação da Graça, destravar nosso centro vivo e sempre inédito, de tal maneira que brote a novidade que tudo renova e plenifica nossa existência.
Vamos, pois, buscar inspiração no encontro instigante de Jesus com a Samaritana, junto a um poço.
Assim como a água, necessária para a vida, é preciso extraí-la do fundo da terra, também a água do Espírito é preciso tirá-la das profundezas de si mesmo.
No início do relato vemos uma mulher caminhando em direção ao poço de Siquém em busca de água; ela vive um “eu fragmentado”, perdida em sua solidão, sedenta de um sentido para sua existência... Tinha graves problemas, estava confusa, em toda sua vida havia buscando o grande amor. No entanto, seus casamentos fracassados continuavam a perturbá-la. Era uma mulher que havia se perdido no caminho: tantos cântaros quebrados, tantos pedaços para recolher.
Jesus rompe com as fronteiras culturais e religiosas, assenta-se junto ao poço de Jacó e, através de um diálogo provocativo, ajuda a mulher samaritana a encontrar, dentro dela mesma, esse centro de onde mana sem cessar uma água que mata a sede, e não buscá-la em tantos poços secos ou rachados. Com sua presença instigante, Jesus ajuda a mulher a integrar suas rupturas existenciais, reconstruindo-a como pessoa, a partir de sua própria interioridade.
O encontro com Jesus fez a samaritana viver uma verdadeira “páscoa”, passando de uma vida trivial e dispersa à missão de anunciar aos outros Aquele com quem se havia encontrado. Como uma água “que jorra para a vida eterna”, uma torrente de gratuidade percorre a cena e transfigura a mulher. Ela foi sendo conduzida até sua própria interioridade através de um paciente processo que a fez passar da dispersão à unificação, da exterioridade à interioridade, da desarmonia à unidade interior, da solidão à comunhão com os outros.
Ela entra em cena como “uma mulher da Samaria” e sai dela como conhecedora do manancial de “água viva”, consciente de ser buscada pelo Pai para fazer dela uma adoradora. Sua identidade transformada a converte em uma evangelizadora que consegue, através de seu testemunho, que muitos se aproximem de Jesus e creiam nele. Aquela que falava de “tirar água” como uma tarefa de esforço e trabalho, abandona agora seu cântaro: Jesus a fez descobrir um dom que lhe é entregue gratuitamente.
Na realidade, ela passou a ter a sensação de estar nascendo pela primeira vez e que Deus a amava. Caíam as etiquetas. Tudo o que tinha sido, a samaritana, filha de sangues misturados e de religião meio pagã, a mulher com uma vida afetiva fracassada, a amante que, depois de compartilhar sua vida com seis homens, duvidava de ter sido amada de verdade alguma vez... tudo aquilo parecia deixar de existir.
Os véus que cobriam o verdadeiro rosto da mulher do cântaro vazio, foram levados pelo vento. Ela se tornou “pessoa”.
Estamos, aqui, diante de uma vida em processo. Ao longo do relato assistimos a tentativa da mulher de permanecer em um nível superficial e mover-se em seu diálogo com Jesus no âmbito da superficialidade. Uma e outra vez ela procura escapar e desviar a conversação para terrenos que não permitem descer em sua profundidade e que não a deixam enfrentar-se com a verdade de sua existência.
Mas ela não contava com a tenacidade de Jesus e com sua determinação de alargar aquela vida atrofiada. Ao longo do encontro, Ele é o verdadeiro protagonista, o condutor da cena e aquele que marca as estratégias da conversação.
Como hábil pescador, Jesus joga suas redes e lança seus anzóis para tirar a mulher, com quem dialoga, das águas enganosas da trivialidade e do desejo de auto-justificação que a afogam.
Como bom pastor que conhece suas ovelhas, Jesus a faz sair do deserto da superficialidade, vai guiando-a para a profundidade e autenticidade, para a terra do dom da água viva. Como amigo que busca criar relações pessoais, em nenhum momento emite juízos morais de desaprovação ou condenação: em lugar de acusar, prefere dialogar e propor, emprega uma linguagem dirigida ao coração da mulher.
Como “expert” em humanidade, Jesus mostra-se profundamente atento e interessado pela interioridade de sua interlocutora e lhe faz descobrir o manancial que pode brotar do mais profundo dela mesma. Revela-lhe também a interioridade de Deus como Pai que busca adoradores em espírito e em verdade.
Jesus desperta a samaritana a cair na conta que é preciso abrir-se a um “manancial” novo, que lhe vem através d’Ele e que “brota em seu interior” de um modo permanente. Ele é o manancial e com sua presença desperta o manancial interior da samaritana, entupido.
“Dá-me um pouco de sede porque estou morrendo de água!”
Eis o clamor da nossa geração que tendo quase tudo, parece que não consegue descobrir o sentido da própria existência. Morre de sede junto ao poço de água viva.
A sede se refere à busca de sentido presente em todo ser humano, busca daquilo que traz definitivamente a paz: a “água viva” que coincide com o “dom de Deus”. Por isso, o relato se situa intencionadamente em chave de oferta: “se conhecesses o dom de Deus...”. Acabou-se o tempo dos templos; a adoração passa pelo coração, é interior e verdadeira, corresponde a uma vida em fidelidade.
A experiência acontece quando escutamos em nosso interior o “eco” que a água viva produz, saciando nossos desejos mais plenos. “Uma água viva murmura dentro de mim e me diz: Venha para o Pai” (S. Inácio de Antioquia)
Como a samaritana, também diante de nós se apresenta uma alternativa: continuar buscando água viva e justificação em poços secos e esgotados ou eleger “vida eterna” e deixar-nos arrastar pela oferta de transformação proposta pelo Jesus que nos busca, porque deseja ampliar nossa existência e comunicar-nos alegria e plenitude.
Texto bíblico: Jo 4
Na oração: A cena do encontro de Jesus com a samaritana nos remete à experiência fundante de nossa vida. Tal experiência significa abertura, dilatação do coração, expansão da consciência ao ver que tudo parte de Deus (Fonte do rio da vida) e tudo volta para Deus (rio que mergulha no Mar).
A experiência de oração junto ao nosso poço nos conduz à outra fonte, aquela que brota do coração, e que estava ressequida, impedindo-nos de reconhecer o murmúrio da água viva.
De quê tenho sede? Onde busco saciar minha sede?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Este é o meu filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o” (Mt 17,5)
O “mistério de Deus” sempre nos supera. Parece que Ele se faz menos acessível pelos caminhos da razão. É na vida pessoal ou coletiva onde Deus se revela presente e manifesta sua Voz. Esta foi a experiência do povo de Israel; esta foi a experiência do próprio Jesus e dos seus primeiros discípulos.
Mateus, no seu relato da Transfiguração, quer transmitir algo da experiência original de poder conhecer a Jesus de uma “outra” maneira e usa expressões intensas: “alta montanha”, “seu rosto brilhou como sol”, “suas vestes ficaram brancas como a luz”, “Moisés e Elias, conversando com Jesus”, “uma nuvem luminosa os cobriu”, e uma “voz”, saindo da nuvem, revelou a verdadeira identidade d’Ele: “Este é meu Filho amado, escutai-o”. São expressões vigorosas que comunicam a emoção de haver descoberto o “outro rosto” de um amigo.
O Evangelho de hoje nos propõe precisamente isso: uma atenção desperta capaz de detectar o pulsar da vida e a presença do Senhor que a habita; uma teimosa convicção de que toda realidade esconde em suas entranhas o poder de resplandecer, de “revelar-se outra”; e uma escuta expectante que nos permite ouvir, em meio o alvoroço de tantas vozes, a Voz que se dirige a cada um de nós e nos sussurra as palavras que possuem o poder de transfigurar-nos: “Tu és meu(minha) filho(a) amado(a)”.
A experiência da Transfiguração é isso: Deus entra no nosso espaço vital, no meio daqueles movimentos difíceis e repetitivos e nos faz deslocar para o alto da montanha. Exatamente ali, naquela visão tão ampla, acontece algo novo. Aqui não estamos no templo, nem num dia sagrado.
No grande silêncio da natureza, ouviremos o sussurro de Sua voz, e nos daremos conta d’Aquele que está passando, pois desde sempre já nos viu, nos conheceu, nos amou e nos escolheu.
Aquela Voz amplia nossos olhos, abre nossa mente e alarga o nosso coração. Sentimo-nos chamados pelo nome e compreendemos melhor a nós mesmos; sentimo-nos envolvidos por uma Presença que nos faz únicos e redescobrimos um sentido novo, um significado inimaginável para nossa própria existência. Voz mobilizadora, que nos arranca de nossas tentativas de acomodação (“façamos aqui três tendas...”) e nos faz descer em direção ao vale do compromisso e do serviço.
O olhar e a voz de Deus nos atraem para a verdade da nossa própria vida: mergulhados na Luz, descobriremos a luz e compreenderemos para onde devemos ir. Finalmente, não nos sentiremos mais sozinhos.
Quaresma é tempo para afinar nossos ouvidos e deixar-nos impactar pela Voz, única e original, que vem de Deus. Voz que “toca” e desperta forças desconhecidas do nosso interior; Voz que ativa nossa identidade; Voz que nos faz voltar ao nosso ser essencial; Voz que reconstrói nossa dignidade e nos ajuda a conectar com o nosso ser mais profundo.
Quanto aspira nosso coração escutar uma Voz que desate em nós forças libertadoras! Livres do domínio de nossas compulsões, livres para amar sem defesas, livres para sermos nós mesmos e poder entrar numa relação nova com a realidade, com os outros e com Aquele que continuamente sussurra sua Voz como uma brisa reconfortante.
Quanto precisamos ouvir uma Voz que toque nossas superfícies endurecidas e atinja nossa fibras mais profundas! Quanto desejamos uma voz que nos liberte de tantas ataduras que não nos deixam respirar com profundidade, nem olhar compassivamente, nem considerar a beleza da diversidade e da diferença!
Presença e voz que nos arrancam do nosso ambiente, da nossa rotina... e nos lançam em direção a novos desafios. Tudo pode começar no alto da Montanha... um encontro.
Neste tempo Quaresmal, “subir a Montanha” requer um ritmo pessoal, fazer o próprio caminho, vencer os obstáculos, vivenciar o silêncio, apurar a escuta interior para captar as “vozes” do coração. É no silêncio que a Voz de Deus ressoa com mais intensidade. Voz que desperta as “cordas” do coração para podermos entrar em “sintonia” com o próprio Criador. Voz que integra e pacifica nosso ser dividido, estabelecendo uma harmonia em meio aos sons dissonantes do nosso interior.
Dizem que há pessoas capazes de serem curadas por uma voz, pela sonoridade de uma voz determinada. São vozes que “tocam” e despertam forças desconhecidas. Certas vozes nos devolvem ao nosso “eu original”, ativam recursos ainda latentes.
Somos seres de palavras e somos também seres de silêncio. Neste mundo de “palavreado crônico” temos esvaziado o dom da palavra e as vozes se fazem estridentes e agressivas... Por isso, precisamos educar nossa voz no calor do silêncio, porque só o silêncio restaura a força mobilizadora de toda voz. Só assim nossa voz poderá curar, elevar, comunicar vida... Voz que realça a dignidade a cada pessoa, remetendo-a a si mesma, ajudando-a a conectar-se com o que há de melhor em seu interior.
Todos os grandes personagens bíblicos fizeram uma experiência de montanha (lugar de intimidade com Deus; lugar onde a Voz divina ressoou com mais intensidade; lugar da bênção e do envio...). Foi no alto da montanha que Deus se revelou no meio das nuvens e somente aqueles que se fizeram “simples e despojados” puderam encontrá-Lo e escutar sua Voz. Sentiram-se transfigurados. A partir do impacto interior da Voz de Deus, tais personagens educaram suas vozes para que elas fossem portadoras de vida, vozes que fizeram emergir a nobreza original das pessoas.
A Montanha é o lugar do encontro íntimo com o Senhor e encontro com o melhor de nós mesmos (nossa identidade); o silêncio da Montanha nos des-vela e nos re-vela quem “somos nós”. A experiência de Montanha significa experiência de “transfiguração”, ou seja, nos revela nosso ser essencial, nos faz ir além de nossa aparência para captar nossa riqueza interior, nosso “eu original”.
Além disso, os “momentos” de Montanha nos fazem perceber qual é a direção de nossa vida, nos apontam qual é o caminho a seguir, qual é a opção a viver... Caminhando por trilhas desconhecidas, poderemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer “vozes novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões ainda desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes que dão sentido e consistência ao nosso viver.
Texto bíblico: Mt. 17, 1-9
Na oração: O que aconteceu a Viktor Flankl depois de sua libertação em Auschwitz pode também acontecer conosco: “Em primeiro lugar se soltava a língua e vários dias depois estalava algo que se escondia no fundo de nós mesmos”.
- A escuta da Voz divina no mais profundo de nosso ser é o meio para transformar-nos e descobrir nossa verdadeira identidade de filhos(as) de Deus.
- No fundo do nosso coração é aí que o Senhor passa... e com sua Voz provocante nos acorda para uma ousadia maior. Compete a cada um dar-lhe acolhida e entrar no movimento expansivo do próprio Deus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Naquele tempo, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo” (Mt 4,1)
O deserto é um lugar instigante na vida humana. Apresenta-se como o lugar da tentação e também como o lugar onde o Senhor nos fala ao coração. O interior não se expande sem períodos de deserto. Há desertos que são buscados, e há também desertos que a vida nos traz, surpreendendo-nos. Sempre aprofundam e alargam em nós uma dimensão do amor que nosso ego fechado quer roubar-nos.
Os evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) colocam o relato das tentações de Jesus no início de sua atividade pública. Talvez com isso eles estão querendo dizer que, antes de começar uma missão libertadora, é necessário enfrentar-se com os próprios “demônios interiores”.
“Demônios interiores” é tudo aquilo que nos divide (“dia-bolum” – o que divide), que alimentam nosso ego-centrismo, rompendo a comunhão com os outros, com Deus e com suas criaturas; são forças que permanecem ocultas, mas bem ativas em nós, conduzindo-nos aonde não queríamos ir.
O “dia-bolum” não quer que reconheçamos o Criador, e muito menos que lhe honremos nos outros. Ele gosta dos verbos que afirmam o ego: possuir, conquistar, adular, mandar, competir, destacar, impor... E lhe causa repugnância aqueles verbos que nos fazem sintonizar com outros: doar, servir, colaborar, agradecer, suscitar, partilhar...
Os “demônios”, dos quais os relatos sinóticos nos falam, são três e caracterizam bem o nosso ego: o ter, o poder e a aparência (vaidade). É neles onde o ego se entrincheira e onde se apega para sentir-se que é “algo”. Bens materiais, poder e influência, imagem e prestígio: eis aí os interesses do ego.
Em outras palavras, o que o ego busca nesses apegos é uma só coisa: segurança. Precisamente por isso, a maneira de “lidar” com esses demônios interiores é reconhecer e des-velar (tirar o véu) as carências pen-dentes em nossas vidas e descobrir a falsidade de suas promessas. Fica claro que são “tendências narci-sistas”, próprias de um ego imaturo, que buscam um lugar ao sol e que desencadeiam um processo de auto-centramento e ruptura de aliança com tudo e todos.
Des-velar as “vozes dia-bólicas” de nosso interior pode nos ajudar a compreender que a segurança que elas prometem são vazias: todo o dinheiro do mundo, todo o poder e toda a fama são incapazes de conferir segurança e plenitude. Não só isso: aquelas vozes nos confundem e nos fazem distanciar de nossa verdadeira identidade. Cedo ou tarde reconheceremos que o futuro do ego não tem fundamento e que, como dizia Jesus, viver para ele é “perder a vida”.
A segurança não se encontra ao alcance do ego. Por isso, ele se desespera ao perceber que, por mais esforço que faça, não pode tê-la sob seu controle. Tampouco se encontra fora de nós, em outro lugar ou no futuro; nem sequer podemos situá-la em nossas ideias ou crenças.
Porque, o que ardentemente aspiramos não é “algo” que imediatamente nos complete. Aspiramos nada menos que o Absoluto (“adorarás ao Senhor, teu Deus, e somente a Ele prestarás culto”), mas não como “algo” ou “alguém” separado, mas essa Presença intima e amorosa que nos habita. Essa Presença é segurança e constitui o núcleo de quem somos; ela é o “objeto” de nossa sede e de nossa busca porque é reveladora de nossa verdadeira identidade. Onde a estávamos buscando?
Jesus, também tentado, nos ajuda quando tentados. Ele também “foi provado em tudo como nós” (Heb. 4,15). Ele precisou superar a “divisão interna”, própria do ser humano, para poder viver a densidade humana, aberta e oblativa. No tempo do deserto viveu um processo de humanização profundíssimo, deixando-se pacificar e conduzir pelo Espírito, reencontrando, na própria história, pontos de referência fundamentais que vão situá-lo na condição de Filho de Deus. As tentações não foram um momento da vida de Jesus, mas uma “sombra escura” que o acompanhou ao longo de toda sua vida. Frente ao ídolo do poder e do ter, Ele se mantém de pé, despojado; frente ao desejo de utilizar sua condição de Filho em seu próprio benefício, elege o caminho da obediência sintonizada no Pai; frente ao discurso do êxito e da fama, Ele elege o do serviço.
As tentações são expressão do conflito permanente de sua vida e de sua obra. No deserto, Jesus tomou uma consciência tão plena de sua condição de Filho, a Palavra do Pai lhe deu tanta segurança e iluminou de tal maneira sua vida, que já se torna impossível confundir Deus com os falsos ídolos que o tentador lhe apresenta: um “deus” contaminado pelas piores pretensões da condição humana: possuir, fazer ostentação de prestígio, exercer domínio.
Jesus não veio para que os anjos esvoaçantes o carregassem, mas para carregar sobre seus ombros a ovelha perdida; não veio para converter as pedras em pães, mas para entregar-se Ele mesmo como Pão de vida; suas mãos não se fecham possessivas sobre as riquezas porque Ele precisa delas livres para levantar caídos, sarar feridos ou lavar os pés cansados do caminho; não veio para trocar a pérola preciosa do Reino que o Pai lhe confiou por outros reinos que o tentador lhe mostrou a partir do monte.
Neste tempo quaresmal, identificados com Jesus na estadia do deserto, vamos “des-velando” nossos dinamismos “dia-bólicos” que se instalam em nosso interior, atrofiam nossas forças criativas e nos dis-tanciam da comunhão com tudo e com todos.
O mundo em que vivemos nos condiciona a viver em torno do ter, do poder, da ambição do prestígio, da idolatria... Jesus nos ensina a pedirmos ao Pai que não nos deixe cair nessas tentações que destroem o projeto de um mundo fraterno e igualitário.
A tentação é a que promete o bem e nos conduz ao mal; aquilo que parece atrativo e inclusive bom, mas nos afasta de Deus e dos outros; aquilo que parece algo evidente, inevitável em nossa vida quando na realidade não é; aquilo que, com enganos, nos mata aos poucos.
Do nosso interior, esta força do mal se encarna nas nossas atividades, instituições, estruturas (externalizado), provocando violência, gerando tensões, injustiças... e criando uma sociedade opressiva, dividida, conflituosa, preconceituosa... Esta situação, com suas seduções e ilusões se constitui em permanente tentação coletiva para o egoísmo, a insensibilidade e a ruptura da fraternidade.
Viver humanamente consistirá em deixar o Espírito circular livremente por todos os cômodos de nossa morada, arejando-os, ventilando-os, religando-os, dando-lhes vida, reorientando-os. A missão do Espírito é ajudar-nos a fazer a travessia do deserto interior, tanto nas sombras como nas zonas de luz, até ao centro de nós mesmos. O Espírito procura entrar para fecundar, recolocar em ordem, restaurar, unificar.
Precisamos nos abrir para uma verdade maior quanto à nossa humanidade, ou seja, que todos os nossos recantos merecem ser visitados, olhados, ouvidos e abraçados; que cada aspecto de nossa vida contém uma dádiva maior do que podemos enxergar e cada sentimento merece uma expressão saudável.
Texto bíblico: Mt 4,1-11
Na oração: A oração sobre as “tentações de Jesus” nos ajuda a tomar consciência das alianças e cumplicidades nas quais podemos cair em nossas relações com o mundo e com aqueles elementos que de modo mais decisivo põe em perigo nossa liberdade: as riquezas, o poder, o prestígio. Nessa "embriaguez existencial" a alteridade desaparece, a abertura a Deus se atrofia e a gratidão frente aos bens se esvazia.
- Dar nomes aos “demônios interiores” que desumanizam.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serdes vistos por eles”
Todos os anos, vivemos um curioso itinerário: “passamos” do Carnaval à Quarta-feira de Cinzas. Trata-se de uma das expressões coletivas onde a tradição, a cultura, a história e a fé se encontram para deixar transparecer, com assombrosa claridade, um de nossos contrastes profundos. Assim somos nós, às vezes escondidos detrás de máscaras, ou envolvidos em plumagens brilhantes. E outras vezes, necessitados de nos desfazer de capas e envoltórios para poder contemplar nossa autêntica identidade, profunda e frágil ao mesmo tempo.
Algo disto acontece no Carnaval. É uma espécie de apoteose do sonho, do espelhismo, da vaidade. No carnaval não há nada mais que a fachada que alguém quer mostrar.
É uma curiosa metáfora de como, às vezes, podemos viver. Disfarçamo-nos de forte quando sabemos que somos vulneráveis; aparentamos ser resistentes quando, na realidade, estamos quebrados por dentro; manifestamos coragem quando o medo bloqueia o fluir da nossa vida; escondemos as inquietudes cotidianas, os desgostos ou as feridas, os fracassos e a falta de sentido na vida...
Vivemos a cultura da “civilização do espetáculo”. A humanidade passa por uma etapa de progressiva atrofia da interioridade, na qual a vida deixou de ser vivida para ser representada. As pessoas, como os atores que representam em um cenário o nas telas, vivem para mostrar-se para fora, carecem de sedimento interno. Através das redes sociais não há nada mais oculto, e o que é mostrado ao exterior está enfermo de superficialidade. As pessoas mais inventivas e criativas, que antes perseguiam ideais e causas mobilizadoras, agora já não conseguem senão representar uma farsa; nada escapa à banalização generalizada imposta por uma cultura focada na imagem pública.
É cada vez mais difícil a criação de um espaço interior, em sintonia e bem integrado com o mundo exterior. É cada vez mais difícil o caminho para a autenticidade, a esforçada vida que aposta pela profundidade pessoal e pelo compromisso. Pode-se dizer que a civilização na qual nos movemos converte em árdua a aspiração evangélica do “escondido” e “oculto”, porque com a multiplicação de presenças superficiais – celular, tablets, face-book, whatsApp – nossa civilização trivializou e banalizou a intimidade.
“Vestir-se de saco e cobrir-se de cinzas” seria a outra face dessa mesma moeda. É como quem tira a maquiagem frente a um espelho, para encontrar-se com a pele desnuda, como quem vai se despojando de camadas de roupas e vai ficando desprotegido.
Neste tempo de Cinzas a liturgia insiste para que possamos ver nossa verdade sem adornos; contemplar-nos e saber quem somos; aceitar nossa fragilidade, reconhecer os dons e os limites; descobrir as fendas por onde a vida se esvai, para ver se há algo a fazer com elas; confiar no Deus que nos conhece melhor que nós mesmos; e, ao “sair do próprio amor, querer e interesse”, poder partilhar este nosso ser no compromisso com os outros.
Buscar a Deus onde Ele quer ser buscado e como quer ser buscado significa confrontar nossa própria interioridade, com toda sua complexidade de desejos contrapostos, e desmontar fantasias enganosas sobre nós mesmos e nossos objetivos na vida.
A experiência quaresmal significa: caminhar para a vivência de um Evangelho mais autêntico, lutar contra uma cultura que premia a exibição, mergulhar no “oculto” de modo que se dilate em nós um espaço interior, pois é no oculto e no escondido onde vai ser possível um encontro com o Deus verdadeiro.
A Quarta-feira de Cinzas se abre com o conhecido texto de Mateus sobre a esmola, a oração e o jejum. Tais “práticas quaresmais” são uma mediação para reaprender o caminho de volta ao coração, desvelando (tirando o véu ou as máscaras) nossa interioridade para poder viver com mais verdade e coerência.
Mateus caricaturiza, exagera e amplifica o comportamento errôneo daqueles que vivem o “complexo do pavão”. O texto não critica que se dê esmola ou se faça oração e jejum, mas o “por quê” e o “para quê” de tudo isso: “para chamar a atenção”, “para serem elogiados pelos outros”, “para serem vistos”. Ou seja, faz-se da oração-esmola-jejum uma autocelebração ou exibição de si mesmo.
Somos convidados a viver a Quaresma como um tempo de libertação. Neste tempo litúrgico teremos a oportunidade de experimentar um modo de viver, onde a verdadeira liberdade terá a chance de se expressar. Quaresma pode ser escola de vida para o restante do ano.
Não se trata de estar olhando nosso próprio umbigo: se queremos mudar as estruturas injustas, se queremos enfrentar o mal sistêmico, se cremos que outro mundo é possível, temos que começar por nós mesmos. Jejuar, dar esmola e orar... três simples propostas para sermos melhores e mais humanos.
A oração: um tempo para tomar consciência que minha vida passa diante dos olhos do Senhor e saber o que Ele vê nela; somente diante do olhar compassivo do Senhor posso ativar os melhores recursos presentes em meu interior. Orar para conhecer mais o Senhor, para conectar com o que Ele deseja para mim e desejar, também eu, com Ele. Oportunidade de sentir sua presença em meu dia-a-dia, no cotidiano, e de reconhecer que, às vezes, Ele não passa: não o deixo passar. Tempo também de agradecer o bem que Ele realiza em minha vida e na das pessoas que me rodeiam. A oração é um encontro necessário, especial, insubstituível, para prestar-lhe toda minha atenção. E como em toda aprendizagem, persistir.
Como é minha oração? Deixo espaço suficiente à ação surpreendente de Deus?
O jejum: deixar de lado o que causa dano, para afirmar o que merece um espaço em minha vida. O Senhor me chama a jejuar de pré-juizos, de incompreensão, de intolerância, de egoísmo, de soberba, de mentiras... Jejuar de desculpas que me impedem olhar a realidade de frente, e optar por assumi-la com toda sua dureza e sua riqueza. Distanciar-me da vida superficial-consumista e eleger a vida plena, profunda, comprometida. Aprender a jejuar, não como sacrifício vazio, mas por amor; abraçar a renúncia que me abre a uma vida nova.
De que jejuar em minha realidade de hoje? A quê renunciar para ativar a vida?
A esmola: chamado a partilhar o muito ou o pouco que tenho, a descentrar-me, a fazer da minha vida uma contínua saída em direção aos outros, sobretudos os mais pobres e excluídos. Praticar a esmola libera os braços para acolher, alarga o coração para ser mais compassivo, movimenta os pés para uma maior prontidão no serviço, desperta uma presença inspiradora junto àqueles que estão abatidos...
Esta generosidade, à qual sou chamado, é a atitude central na escola da quaresma e da vida. Seus frutos: a liberdade, a justiça, a Páscoa.
Dar esmola é fazer tudo aquilo que me leva a sair ao encontro do outro em suas necessidades: ser mais consciente da injustiça e da violência, servir os outros, visi-ar o enfermo, estancar feridas afetivas, encontrar tempo para falar com a família, deter-me naquilo que é mais positivo nos outros, ser membro ou voluntário de uma ONG...
Qual é a “esmola” que o Senhor me chama a entregar?
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Qual é minha verdade, diante de Deus, de mim mesmo, diante dos outros?
Quê máscaras costumo usar, e em quê circunstâncias?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
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