“E se saudais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? (Mt 5,47)
Com estas palavras, Jesus estabelece a diferença entre o modo pagão e o modo cristão de viver o cotidiano. A “cotidianidade” de nossa vida está tecida de coisas “ordinárias”, contraposta ao que ocorre de maneira “extraordinária”.
A maioria das pessoas vive restrita ao ordinário com o anonimato que ele envolve. No entanto, no seio do ordinário pode brotar uma mudança, uma transformação. “Se, às vezes, há um fastio na rotina, não raro ela revela um mistério insondável” (Cláudio Van Balen).
Quando assumimos o nosso ordinário e o vivificamos com injeções de novidade e de criação, ele se torna o “lugar” das experiências. E a “experiência é a sabedoria da vida”. No ordinário se encontram as “pequenas práticas com sucesso”. O ordinário pode significar um avanço na aceitação do “pequeno”, das coisas mais simples... tudo tem sentido, tudo é digno de ser cuidado.
Nesse sentido, o ordinário que conserva, também pode provocar o surgimento do novo; o ordinário que aliena, também está grávido de utopia; o ordinário que nos acomoda, também pode ser o lugar da audácia e da iniciativa.
No evangelho de hoje(7º Dom TC), Jesus pergunta aos seus seguidores o que fazem de extraordinário. Isso nos leva a pensar que o cristão deve ser aquele que tem atitudes extraordinárias, comportamentos extraordinários, ações extraordinárias, etc... Portanto, esta é uma das características do cristão: ser extraordinário.
No entanto, quando pensamos em “extraordinário”, pensamos em enormes obras, coisas estrondosas, mirabolantes, etc... O que é “extraordinário”? A palavra nos sugere pensar o seguinte: “extra” + “ordinário”.
“Ordinário” é o que está na ordem do dia, nas regras, nos comportamentos ditos normais de todos, na mesmice do dia a dia. Isto é o ordinário: acordar, trabalhar, estudar, casar, comprar, consumir, morrer,…
Milhões de pessoas passam a vida fazendo o ordinário. E simplesmente “passam”.
Aqueles que fazem coisas “além desse ordinário”, ou seja, “extra”, são pessoas “extraordinárias”. Portanto, tudo aquilo que vai além da normalidade, do comportamento geral, isso é extraordinário. Dessa forma, tiramos do conceito de “extraordinário” a necessidade de “coisas enormes”. Mas, coisas mais profundas, com mais sentido, com “sabor diferente”, com “características diferenciadas”. O seguimento de Jesus é para aqueles que querem “algo mais”, que querem o “extraordinário”.
A espiritualidade é a contracorrente do ordinário. Se, de um lado, o ordinário nos arrasta para a repetição e a conservação, de outro lado, a espiritualidade nos impulsiona para a busca e a descoberta. Se permanecermos simplesmente no ordinário, então nos tornaremos medíocres e nos contentaremos com o “menos”.
A espiritualidade cristã é a espiritualidade do cotidiano, que conserva sua força transformadora, que é capaz de despertar o espanto e a admiração, apontando sempre para um horizonte mais amplo e mais rico; é a espiritualidade que reacende desejos e sonhos novos, que suscita energias em direção ao mais; é a espiritualidade que faz descobrir, escondida no ordinário, uma Presença absoluta que nos envolve; é a espiritualidade que faz saborear o eterno e o Absoluto no ritmo doméstico e cotidiano da vida... é a espiritualidade que projeta a vida a cada instante; abre espaço à ação do Espírito para que Ele nos expanda, nos alargue e nos impulsione para horizontes novos.
Uma pessoa certa vez disse: “todos nós somos chamados a sermos santos; e santo não é aquele que faz coisas extraordinárias, mas santo é aquele que faz as coisas ordinárias de forma extraordinária”. Há aqui um sentido profundo: ser uma pessoa “normal”, mas que faz tudo de forma extraordinária. Fazer bem as coisas, com responsabilidade, com ética, com respeito, com justiça…
E temos muitas pessoas extraordinárias no mundo hoje, felizmente. Ocorre que os grandes meios de comunicação, ordinários (em todos os sentidos da palavra), não divulgam o que elas vivem: não retribuem violência com violência, são capazes de entregar o manto e de não dar as costas a quem pede emprestado; amam os inimigos e rezam por aqueles que as perseguem. Vivem de maneira extraordinária. Tais pessoas fazem a diferença.
É a “mística” que nos desperta da letargia do cotidiano. E despertos, descobriremos que o cotidiano guarda segredos, novidades, energias ocultas, forças criativas... que podem sempre conferir novo sentido e brilho à vida. O Reino se revela no pequeno, no anônimo, no ordinário e não só no espetacular, no grandioso. É o cotidiano que nos prepara para as grandes decisões.
Na vida cotidiana, as pessoas correm o risco de serem apenas imitadoras ou repetidoras, pois temem se perderem na busca do novo; as respostas são confirmadas, mesmo que estas sejam velhas e desfocadas e as perguntas são silenciadas. Fechado em si mesmo o ordinário torna-se pesado, desinteressado e frustrado. As “ações cotidianas insensatas” podem ser “sensatas” (com sentido), se percebermos Deus presente nelas. Descobrir a presença divina escondida no ordinário é encontrar-nos acolhidos pelo abraço do Criador que nos envolve.
Falamos de uma cotidianidade humana, isto é, daquelas atividades de nossa vida diária que, embora irrelevantes em sua aparência, tem uma razão de ser, uma motivação e um modo de serem feitas que não se deve à mera casualidade ou a um impulso instintivo de repetição ou automatismo.
O cotidiano é o que vivemos e/ou fazemos cada dia: o conjunto de circunstâncias, atividades e relações que formam a trama da nossa vida através da qual Deus se revela presente e atuante. Com essa inspiração, o cotidiano torna-se o “lugar” das experiências.
É na realidade diária que cada cristão é chamado a viver em comunhão com Deus e a deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito que animou Jesus e o levou a inserir-se na trama humana, assumindo o risco da história. Ser cristão inserido no mundo, em meio às agitações cotidianas, é acima de tudo ter Jesus como referência de vida: suas palavras, suas ações, seu modo de relacionar-se com o Pai e com os irmãos...
Quando a vida cotidiana do cristão se torna monótona e se faz “normal”, é necessário sacudí-la com algum “detalhe não-normal”, que ajuda para revigorá-la e dar-lhe fecundidade. Neste sentido, os tempos de oração são os momentos privilegiados para que toda pessoa, consciente de sua responsabilidade social e empenhada na transformação de seu “entorno”, possa encontrar em sua vida cotidiana a fonte e sua fecundidade transformadora.
Texto bíblico: Mt 5,38-48
Na oração: O Espírito nos faz abrir os olhos às realidades novas em nossa vida cotidiana; mas nossos olhos somente se abrirão se formos fiéis à voz do Espírito nos simples atos de nossa vida cotidiana.
Suas atividades diárias formam parte do seu caminho para Deus? Você tem consciência que cada dia é um “tempo de graça”? Você “apalpa” a presença de Deus nas “rotinas diárias”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20)
É uma beatitude ter dentro de nós o desejo de um mundo melhor, no qual haja justiça. É uma beatitude não estar satisfeito com a situação presente, porque seria uma infelicidade não ver as injustiças. Aquele que tem fome e sede de justiça não permanece imóvel, está “em busca”... e a busca da justiça não pode jamais se dar por terminada. O ser humano e o mundo carregam infinitas possibilidades de crescimento. Há aí uma tarefa sem fim.
A justiça não é uma virtude como as outras. Ela é o horizonte de todas. Todo valor a supõe; toda a humanidade a requer. É aquela virtude que contém ou supõe todas as outras.
A palavra “justiça” evoca em 1º lugar uma ordem jurídica (“jus”, em latim), ou seja, o respeito à lei. A noção moral é mais ampla: a justiça dá a cada um o que lhe é devido, ou seja, refere-se a uma igualdade entre as pessoas. Mas, no sentido bíblico, “ser justo” é “ajustar-se” ao modo de ser e de agir de Deus.
A justiça adquire, então, um sentido muito mais profundo: a integridade do ser humano é o eco e o fruto da justiça soberana de Deus, da maravilhosa delicadeza com que Ele conduz o universo e cumula de dons as suas criaturas. Esta justiça de Deus coincide com sua misericórdia, sua bondade, sua santidade... Segundo os livros Sapienciais, a justiça é a sabedoria posta em prática. É a sabedoria que ensina a temperança, a prudência, a justiça e a coragem...
Para os judeus, a justiça não é tanto uma atitude passiva de imparcialidade, mas um empenho apaixonado em favor do direito das pessoas. Por isso, justiça deve ser interpretada como misericórdia criadora, na linha profética de Israel, na linha messiânica de Jesus, em forma de não violência ativa, a serviço dos últimos da terra.
A justiça entra em cena nas relações entre Deus e seu povo e entre os homens. Ela está presente nos campos jurídico, social, ético e religioso. É um conceito dinâmico, que significa mais agir do que ser. De Deus e dos homens se diz frequentemente que fazem a justiça, praticam a justiça...
A justiça divina é vista como “a mais sublime bondade” ou uma “força que salva”. A justiça de Deus, portanto, não é poder universal, mas amor aberto e libertador.
No NT, a “nova justiça do Reino” refere-se a uma justiça que se exprime na maneira de viver e na forma de proceder com os outros. É uma justiça que radicaliza a nossa vida de tal modo que nos faz participar já do Reino messiânico. A nova justiça é, antes de tudo, uma exigência de amor entre as pessoas.
Jesus recupera o sentido e o espírito da Lei e não a interpretação casuística. A Lei é mediação para expandir-se em direção aos outros e a Deus. Nela mesma, não tem sentido, desumaniza. É legalismo. Quando a Lei nos abre aos outros ela se revela carregada de humanismo; do contrário, cai-se no farisaísmo.
A preocupação de Jesus não era as minúcias da Lei, mas a prática do amor misericordioso, de modo especial em relação aos pobres e marginalizados. Com relação a isso Jesus foi radical. Na vivência do amor não podemos descuidar nem da menor lei.
Quando estava em jogo a defesa da vida, Jesus não transigia. Na relação com os outros somos chamados a ir além da Lei; não se contentar com a prática da lei em si, mas carregá-la de vida. Ela deve ser mediação para amar mais.
A vivência da lei também é processo; sempre podemos ir um pouco mais além dela. A lei em si estipula um limite: daí o perigo de acomodar-se; a lei do amor, pelo contrário, não tem limites. Jesus veio para alargar o horizonte do comportamento humano, nos libertar dos perigos do legalismo.
Quando alguém busca a vontade do Pai com a mesma paixão com que Jesus a buscava, vai sempre mais além daquilo que pedem as leis. Para caminhar em direção ao mundo mais humano que Deus deseja para todos, o importante não é contar com pessoas observantes de leis, mas com homens e mulheres que se pareçam com Ele, que se "ajustam" ao modo de agir do mesmo Deus; em outras palavras, a prática da justiça que é infinitamente superior à lei.
Aquele que não mata, cumpre a lei, mas se não arranca de seu coração a agressividade para com seu irmão, o desprezo ao outro, os insultos ou as vinganças, não se parece com Deus. Aquele que não comete adultério, cumpre a lei, mas se deseja egoisticamente a esposa de seu irmão, não se assemelha a Deus. Nestas pessoas reina a Lei, mas não Deus; são observantes, mas não sabem amar; vivem “corretamente”, mas não construirão um mundo mais humano.
A radicalidade exigida por Jesus pode, em princípio, assustar às pessoas; mas se trata de uma radicalidade que aponta para o coração. Jesus aponta diretamente para a necessidade de viver em conexão constante com o que há de melhor em nós mesmos, ou seja, ancorar nosso modo de viver nas raízes de nossa identidade profunda. Somente a partir desse “eu profundo” é possível perceber que o que brota daí tem a marca do amor. Esta forma de “ver” e de viver é mais importante que o culto. Por isso, o texto insiste em priorizar a reconciliação antes de fazer a oferenda no altar. Primeiro a justiça, depois o culto.
E essa interioridade, por sua vez, se expressa no modo de olhar, de agir. É preciso arrancar do coração todo olhar possessivo, toda ação egoísta.
Mas Jesus não fala aqui de controle, nem de medo e punição. Segundo a mentalidade oriental, olho direito é o olho consciente, é o olho masculino, que domina, avalia e julga, que quer vencer, e, às vezes, também matar, é o olhar do avarento que deseja possuir tudo.
O olho esquerdo é o olho inconsciente, o olho feminino, que aceita, admira, que observa e percebe. A mão direita é a mão do realizador, daquele que se julga capaz de conseguir tudo que deseja; a mão esquerda, por sua vez, é a mão feminina, que recebe, que é carinhosa, que toca e cura.
Aquele que vê tudo só com seu olho direito, que se apodera de tudo, alimenta uma divisão interior e acabará criando seu próprio inferno nas profundezas do seu ego; é o inferno de seu caos interior. Aquele que pensa que pode controlar tudo com sua mão direita, reprime muitos impulsos oblativos e abertos de seu coração, e acabará lançado no fogo de suas regiões reprimidas.
O decisivo é integrar e harmonizar os dinamismos interiores para que o seguimento de Jesus não desemboque numa batalha interior que desgasta e alimenta sentimentos de culpa.
Texto bíblico: Mt 5,17-37
Na oração: A oração do tato é a oração de um corpo que não se apega avidamente, que não se fecha ao outro.
Tocar a Deus ou deixar-se tocar por Ele não é sentir-se esmagado, mas sentir-se cercado de espaço. A oração é um estreitamento que nos torna livres. Não oramos com os punhos fechados, nem com garras, nem com aguilhão na ponta dos dedos. Só se pode orar com as mãos abertas...
- Diante de Deus, deixar aflorar os sinais de “farisaísmo” presentes no seu cotidiano.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Vós sois o sal da terra… Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,13-14)
O Evangelho de hoje (4º dom TC) vem imediatamente após a proclamação das Bem-aventuranças. Isto quer dizer que aquelas e aqueles que fazem das Bem-aventuranças o programa da sua vida, são chamados a uma responsabilidade real e atual, ou seja, eles/elas não vão se tornar sal da terra e luz do mundo no futuro, mas devem ser presença diferenciada no aqui e agora, humanizando as relações e comprometendo-se com a vida mais justa e plena.
Jesus diz: “Vós sois”; não diz “deveis ser”, ou “tenhais que vos converter em...” “Sois”: expressão que se refere à existência toda do(a) seguidor(a) de Jesus, em qualquer circunstância e tempo. Quem segue a Jesus Cristo, afetado por seu chamado, torna-se plenamente convertido em sal da terra e luz do mundo.
“Sal da terra…, luz do mundo”: muitas vezes estas duas imagens foram entendidas em chave proselitista, de um modo sumamente atraente para o ego e gratificante para a mente.
Ao ego lhe atrai sempre considerar-se em posse da verdade, particularmente por dois motivos: porque isso lhe traz uma sensação de segurança e porque lhe permite manter uma imagem de si “acima” daqueles que, para ele, se encontram no erro. Ao ego lhe encanta ser “especial”, brilhar, aparecer... Ao ego lhe encanta que o reconheçam como “sal” e como “luz”, já que ele não busca outra coisa a não ser sentir-se reconhecido a qualquer preço.
Se permanecermos no clima das bem-aventuranças, cairemos na conta que a pessoa que é chamada a ser sal e luz não sai publicando por aí; ela é sal e luz não por suas ideias, doutrinas ou normas morais que busca impor aos outros, mas por ela mesma, por aquilo que ela é em sua interioridade.
Concretamente, é “sal” aquela pessoa que nos ajuda a saborear a vida com mais profundidade, porque seu gosto por viver nos contagia e nos apoia para que possamos experimentar isso também. É “luz” porque, com sua presença amorosa, dissipa nossas obscuridades e facilita que percebamos o sentido luminoso de nossa existência, de nossa verdadeira identidade.
Ser “luz” e “sal”, portanto, é o mais radicalmente oposto a qualquer atitude de superioridade e de proselitismo. Nem a vaidade, nem o fanatismo trazem sabor e luz.
A vida de Jesus aparece como “sal” e como “luz” pelo que Ele era e vivia. Sua mensagem era sumamente simples, centrada no compromisso com todos e numa presença compassiva; afinal de contas, “sal” e “luz” é outro nome da compaixão. Jesus despertou um movimento humanizador, carregado de sabor e iluminação, afetando a todos que d’Ele se aproximavam. Ele não estava preocupado em fazer proselitismo, nem anunciar uma nova religião, uma doutrina mais palatável... Sua presença desvelava a luz e o sal presente em toda e qualquer pessoa.
«Vós sois o sal da terra…” “Vós sois a luz do mundo…”: constitui uma das afirmações evangélicas mais claras de que a missão dos seguidores de Jesus no mundo faz parte de sua própria identidade. Duas pequenas imagens ou afirmações para duas grandes atitudes.
As imagens do sal e da luz servem também de apoio para justificar duas formas diferentes de presença e de ação no mundo. A referência ao sal remete a uma ação invisível, pois concebe a presença dos cristãos no mundo sob a forma da encarnação, a presença silenciosa na realidade, a inserção na sociedade, deixando atuar, pelo testemunho de cada um, a força do evangelho que, como a semente, uma vez semeada, germina no campo, de dia e de noite, sem que o semeador perceba.
O específico da luz, por outro lado, é brilhar, ou seja, esta imagem realça uma forma de presença visível, através das ações comunicativas e, especialmente, do anúncio explícito, como meios para fazer chegar o evangelho ao mundo no qual o cristão é chamado a ser presença diferenciada.
De acordo com o texto, as formas de presença significadas pela luz e pelo sal são, as duas, inseparáveis. São duas formas de presença no mundo; duas formas de exercício da missão, de um modo de proceder que se dá por “contágio ativo”, caracterizado pela hospitalidade, o amor mútuo, a caridade para com os pobres, a alegria contagiante...
O símbolo da luz é ainda mais rico do que o do sal: a luz ilumina, aquece, guia, agrega, tranquiliza, reconforta. A Luz é força fecundante, princípio ativo, condição indispensável para que haja vida. Tem capacidade de purificar e regenerar. Em oposição às trevas, a Luz exalta o que belo, bom e verdadeiro.
Vivemos imersos num oceano de luz; carregamos dentro a força da luz. Ela sempre está aí, disponível; basta abrir-nos a ela com a disposição de acolhê-la e de fazer as transformações que ela inspira.
Pelo fato de ser benfazeja e criadora, a luz nos permite dizer com o poeta Thiago de Mello, no meio de impasses, ameaças e conflitos que pesam sobre nossa vida: “Faz escuro, mas eu canto”.
Há aqueles que, ao invés de serem presenças iluminadoras, estão mais preocupados em subir e ocupar a posição do candeeiro, para aparecer, para se colocar acima dos outros, serem vistos e elogiados pelas pessoas. Quem aspira estar no candeeiro revela não ter luz para iluminar os outros, mas uma luz auto-referente. O candeeiro não é para que os vejam; o candeeiro é para que a luz de suas vidas se expanda e ilumine melhor; o candeeiro não é para que estejam mais altos, mas é para que a luz de suas vidas chegue a lugares mais distantes.
O ser humano é luz quando expande seu verdadeiro ser, ou seja, quando transcende e vai mais além, desbloqueando as ricas possibilidades de humanidade. A luz, por si mesma, é expansiva.
Um fotógrafo profissional fez a seguinte afirmação: “minha profissão é escrever com a luz; muitos escrevem com letras, eu com a luz”. As fotografias dependem de como a pessoa administra a luz.
Uma preciosa motivação a buscar a luz dentro de nós mesmos, a buscar esse “retrato interior” que é movido a se expor diante dos olhares dos outros. Nossa vida pode ser apaixonante se a contemplamos e a construímos como um diálogo de vida e de luz.
O salmista utilizará um registro parecido, contemplando nosso espaço interior como uma fonte de luzes; uma fonte que deixa transparecer aquela Luz profunda que nos leva por caminhos de paz e serenidade:
“Pois em Ti está a Fonte da vida e à tua Luz vemos a luz” (Sl 36,10).
Deixemo-nos iluminar pela Luz de Deus, levemos a Luz nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos do nosso cotidiano.
Somos uma “sarça ardente” diante dos outros, consumindo-nos constantemente, no humilde serviço; somos uma lamparina humilde, brilhando na janela da nossa pobre casa, indicando aos outros o caminho da segurança e do aconchego.
Texto bíblico: Mt 5,13-16
Na oração: Sinto-me uma lâmpada com a responsabilidade de iluminar no meio da sociedade?
- Quê atitudes e comportamentos meus projetam luz para potenciar a tímida luz presente no outro?
- E quais projetam sombras, para poder erradicá-las? Na família, no trabalho, na comunidade cristã?
- Estou integrado ou devo integrar-me em alguma comunidade, grupo ou movimento eclesial, para ser luz coletivamente? A quê compromissos concretos o Espírito me impulsiona pessoalmente e à nossa comunidade para ser luz em nosso entorno?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“E Jesus começou a ensiná-los: bem-aventurados...” (Mt 5,2)
O Evangelho que nos foi confiado é um programa para alcançar a felicidade, a vida ditosa, prazerosa, bem-aventurada. Na boca de Jesus brilha sempre a palavra chave: “Felizes”.
A felicidade, proclamada aqui por Ele, é já uma realidade presente na sua pessoa e na sua missão. Todas e cada uma das bem-aventuranças são autobiográficas. Jesus viveu-as durante 30 anos antes de proclamá-las. Elas são, portanto, a expressão do que constitui o centro mesmo da sua pessoa e da sua vida, dos seus sentimentos, atitudes; numa palavra, do seu mistério. Poderíamos dizer que as bem-aventuranças são o auto-retrato de Jesus. Elas são o compêndio do ministério de Jesus. Não é lei que se impõe por si mesma; é confissão: “o Reino chegou”.
As Bem-aventuranças não são uma doutrina, mas um estilo de vida, um modo de proceder. Jesus não prega diretamente uma moral. Proclama a “irrupção” da graça, do amor, da misericórdia, da justiça de Deus na história da humanidade.
Porque tem a certeza de que chegou a “hora” de Deus intervir na história, Jesus fica feliz e proclama “fe-lizes” os até agora indefesos, oprimidos e marginalizados, mas que mantiveram viva a confiança em Deus.
Jesus fala da felicidade não no singular, mas no plural. Em outras palavras, o que Ele afirma é que a felicidade de cada um está em íntima relação com a felicidade dos outros, com quem cada um convive.
Todos sabemos que nas nossas igrejas fala-se muito mais da renúncia ao prazer, da mortificação, do sofrimento, da austeridade, do sacrifício, da suportabilidade e da resignação, ao passo que pouco se escuta sobre aquilo que deve mover as pessoas a buscar ser felizes, a deleitar-se com tudo aquilo que de bom Deus pôs no mundo e na vida, desfrutar o prazeroso, o sensível, o corporal. Não é comum encontrar pessoas que, espontaneamente, associem Deus e a religião à alegria de viver e, em geral, a tudo aquilo que nos faz sentir melhor, sentir-nos bem e ser mais felizes.
Portanto, o centro da fé cristã não está na religião com suas exigências de sacrifícios e renúncias, com suas verdades e suas normas, mas na felicidade dos seres humanos.
“A ética de Jesus é a ética do prazer de viver para todos, da felicidade compartilhada por todos, sem excluir ninguém. E isso é o que mais custa assumir e aceitar como projeto de vida, porque a ascética mais dura não é a da renúncia, mas sim da doação” (José Maria Castillo).
Os enunciados das bem-aventuranças soam à primeira vista como “idealistas”, “utópicas”, não possíveis de serem colocadas em prática no mundo em que vivemos. No entanto, pela sua provocação e questionamento, elas são a proposta mais realista, mais revolucionária e mais eficaz jamais pronunciada.
As bem-aventuranças são a exposição mais exigente e, ao mesmo tempo mais fascinante, da mensagem e da “intenção de Cristo”. Elas são a plenificação daquilo que é o mais humano em nós. Poderíamos dizer que as Bem-aventuranças são a quinta-essência do seguimento de Jesus.
De fato, percebemos uma resistência surda frente às bem-aventuranças, não porque nosso coração não se reconheça nelas, mas porque parecem tão impossíveis, tão distantes estamos delas...; vivemos mergulha-dos em tantas contradições, profundos dramas e violências que nos parecem desmenti-las. Incomoda-nos e inquieta-nos sua mensagem de humildade, de mansidão, de paz, de pureza, de misericórdia... quando, na realidade, estamos envolvidos em construir, em fomentar um mundo que é arrogante, agressivo, violento, intolerante, excludente, injusto...
Temos resistências em escutá-las porque elas nos colocam de novo frente à verdade para a qual nascemos, diante do mais original de nosso coração e de nossas entranhas humanas. A ética de Jesus nas bem-aventuranças encontra resistência para ser assumida por nós precisamente em virtude de sua desconcertante humanidade.
As bem-aventuranças nos esperam no pequeno, no cotidiano, no próximo mais próximo, e nos impul-sionam a proclamar: a paz é possível, a alegria é uma realidade, a justiça não é um luxo, a mansidão está ao alcance da mão... Elas nos dizem que nascemos para a bondade, a beleza, a compaixão...
Ao formular as bem-aventuranças, Mateus traça o perfil que caracterizará os seguidores de Jesus; elas condensam as atitudes básicas que os cristãos devem ter na relação com os outros, seguindo as pegadas do Mestre. Jesus propõe a ventura sem limites, a felicidade plena para seus seguidores. Deus não quer a dor, a tristeza, o sofrimento; Deus quer precisamente o contrário: que o ser humano se realize plenamente, que viva feliz... Jesus acreditava na vida, e queria que todos vivessem intensamente. Por isso, as bem-aventuranças podem ser escutadas como uma mensagem que brota do mais profundo da vida e que tem como finalidade apresentar a qualquer pessoa o mais humano que existe em nós.
Ao proclamar bem-aventurados os pobres, os que choram, os perseguidos, os humildes... Jesus, certamente, jamais quis sacralizar a dor humana. Ele constata a situação do povo, de pobreza, humilhação, submissão; percebe o esforço que o povo faz para mudar a situação, e o proclama feliz nesta busca, porque esta busca mora no próprio coração de Deus.
Aos olhos de Jesus nada é mais perigoso para o espírito humano do que vidas satisfeitas, acomodadas, sem desejos, sem a afeição das esperas e o desassossego das buscas; corações quietos, indolentes, medro-sos, covardes, petrificados, sensatamente contentes com aquilo que são e têm.
Como são, ao contrário, humanamente repletos de vida os que quase nada são e têm, os que ainda se encantam com as buscas, os que sonham e lutam por um mundo novo. Sua vida é penosa, sem dúvida, mas repleta de razões, criatividade, entusiasmo e vitalidade.
As diferentes ciências (psicologia, filosofia, antropologia, etc) nos fazem cair na conta de que todos os seres humanos desejam ser felizes. Também elas nos permitem compreender que a felicidade não é uma situação existencial que possamos agarrar e possuí-la. Também não é uma sucessão interminável de pra-zeres que acabam por nos esgotar, mas uma forma de ser e de viver. Ela não emana do que temos ou fazemos, mas do centro de nosso ser.
A felicidade que buscamos é o que realmente somos, e isto só se revela quando a mente se cala. Ser feliz, portanto, consiste em experimentar na existência a plenitude de nossa verdadeira identidade.
Ser feliz é deixar viver a criatura livre, alegre e simples presente dentro de cada de nós. A felicidade é, assim, o livre curso da vida, o fluxo contínuo da Vida em nós que se “entre-tece” com a vida dos outros.
Texto bíblico: Mt. 5,1-12
Na oração: O melhor modo de fazer esta oração é seguir um dos “modos de orar” proposto por S. Inácio, ou seja: “Contemplar o significado de cada palavra da oração” (EE. 249).
* Rezar as dimensões da vida que estão paralisadas, impedindo-lhe de viver a dinâmica das bem-aventuranças.
* Olhe no mais íntimo de você mesmo e pergunte-se: há um coração que deseja coisas grandes ou um coração adormecido pelas coisas? Seu coração conservou a inquietude da busca ou você tem se deixado sufo-car pelas “coisas”, que terminam por atrofiá-lo?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Eles, imediatamente deixaram as redes e o seguiram” (Mt 4,20)
Mudanças são a essência e o sabor da vida. O ser humano é um ser de mudança; só é humano quem vive em “estado de mudança”. A mudança é o elemento que traz energia, variedade, surpresa, côr e vida à vida. Trata-se de um “hábito do coração”: descobrir, examinar, purificar e substituir os hábitos inertes, os esquemas mentais fechados, as condutas petrificadas, os projetos sem horizontes...
É saudável questionar-se, abrir-se e aventurar-se a ver as coisas de maneira diferente e a responder às circunstâncias com espontaneidade nova.
Deus não nos deu um espírito de timidez, de medo, de fuga, de acomodação... mas de audácia, de criatividade, de luta, de participação... Movidos por sua força, vemos a possibilidade de questionar toda nossa atitude conformista, sacudir nossas convicções, ampliar nossos horizontes e animar nossa vida.
Toda mudança implica sair de nós mesmos, de nosso estreito mundo, de nossas práticas arcaicas, daquilo que nos protege e nos esteriliza para que possamos avançar em direção às novas fronteiras do espaço sem limites, que nos espera aberto e acolhedor.
Ser seguidor de Jesus, portanto, consiste em colocar-nos nos seus “passos”, com suficiente visão da realidade para ir adiante, e com bastante disponibilidade para mudar de caminho quando o sopro do Espírito assim nos sugerir.
O texto do evangelho de hoje nos situa diante de um denominador comum que é a mudança. O próprio Jesus vive um momento de mudança radical: rompe com sua família, com seu ambiente, afasta-se da estrutura religiosa centrada na Lei e no Templo e opta por deslocar-se para a margem social e religiosa de seu tempo (Galiléia e terra de Zabulon). Sua mudança de vida desencadeia um processo de mudanças nas pessoas, de maneira especial no grupo dos primeiros seguidores.
O olhar e o chamado de Jesus ativam um movimento na vida dos primeiros discípulos: deixam seu estreito mar e seu rotineiro trabalho para fazer caminho com o Mestre. Tudo começou às margens do mar da Galiléia... Jesus caminha e, ao passar ao longo do mar, viu aqueles homens que estavam retornando da pesca e entra no espaço vital deles. Exatamente ali, naquela vida tão normal, acontece algo novo. Jesus os chama do mar, os faz descer da barca e os convida a segui-Lo, para mergulhá-los no Seu mar, para fazê-los subir noutra barca, para atraí-los a uma vida diferente.
O seguimento só se realiza quando alguém se deixa conduzir para águas profundas num novo mar. Partindo do lugar e das coisas que representam as esperanças, as dificuldades, as decepções, os sucessos, as derrotas daqueles homens pescadores, Jesus pronuncia sua Palavra mobilizadora: “Segui-me e farei de vós pescadores de homens”, ou seja, compartilhar Sua mesma missão, “pescar” o que há de mais humano e nobre nas pessoas, ajudá-las a viver com sentido, tirando-as do mar da desumanização.
E Jesus tem a capacidade de extrair o maior bem possível do outro, de garimpar a autêntica qualidade humana de cada um, sem necessidade de dar-lhe lições ou arrastá-lo com argumentos racionais. “Eles deixaram as redes e o seguiram”: seguir Jesus é uma libertação. Na realidade, o que eles deixam não são só redes, mas tudo aquilo que aprisiona, enreda e que impede a vida ter uma dimensão maior.
Tocados pelo dinamismo de Sua voz e de sua Palavra, os pescadores se dão conta d’Aquele que estava passando: eles já tinham sido vistos, conhecidos, amados, escolhidos. Aquela Palavra que vibra forte, abre os olhos, a mente e o coração daqueles homens rudes do lago. Sentem-se chamados pelo nome, conseguem compreender melhor a si mesmos e redescobrem um sentido novo, um significado inimaginável para a própria existência. Eles descobrem o quão estreito era o seu mar cotidiano e entram no dinamismo da vida de Jesus, deslocando-se para o vasto oceano do Reino.
A experiência do encontro com a pessoa de Jesus, seu olhar compassivo e terno, a proposta ousada e desafiante que Ele nos faz... despertam dinamismos profundos e desejos nobres em nosso interior, sacodem nossa rotina e ampliam nosso atrofiado olhar.
Ao “fixar seu olhar” em cada um de nós, chamando-nos pelo nome, seremos movidos a assumir opções mais radicais e integrais pelo Reino, segundo o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus.
São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz. Ampliar os espaços do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade, solidariedade e abertura às mudanças e às novas descobertas.
Vivemos um tempo caracterizado por constantes mudanças e pelo movimento. No entanto, de uma maneira dissimulada, percebemos a presença de uma paralisia que perpassa nossa condição humana. E paralisia é o que ocorre quando algo que deveria mover-se e fluir, não se move, nem flui. Esse “algo” são processos, projetos, relações, aspirações, causas... E é essa mudança verdadeira que, quando não ocorre, nos faz sentir estancados, angustiados e sem brilho, embora aparentemente as coisas parecem andar bem.
Uma pergunta que normalmente costuma protagonizar nossas conversações com amigos e parentes é: “por quê você vai mudar?” Aumenta a curiosidade quando alguém que gosta muito do que está fazendo, sobretudo no campo profissional, decide mudar: “é verdade que você vai deixar? A gente percebia você tão feliz!”
Acontece que, às vezes, não há nada “mau” com o que estamos fazendo, mas sem entender muito bem por quê, há algo dentro de nós que nos impulsiona a sair, a ir além de nós mesmos, a levantar novo vôo. Alguém poderia nos perguntar: “Mas, se estava bem, para quê complicar-se ao começar algo novo?”.
A resposta que damos nunca poderá ser totalmente racional. Porque disso se trata: toda mudança nos leva a desatar nossa essência, isso que somos na verdade e que clama por sair.
O certo é que avançar supõe fazer opções, renunciar à comodidade do conhecido e dar lugar à mudança. Mas mudar nos dá medo e o medo, às vezes, paralisa. Temos medo de nossas próprias capacidades; tememos nossas máximas possibilidades; assusta-nos chegar a ser aquilo que vislumbramos em nossos melhores momentos. No entanto, não podemos ser “bonsais” de nós mesmos”, atrofiando nossos recursos internos e tirando o brilho de nossa vida.
Desprender-nos do antigo e dar lugar ao novo implica um processo sempre enriquecedor mas também doloroso. Muitas vezes, para escapar do sofrimento, preferimos evitar os riscos em vez de assumir o fato de que, para dar à luz algo novo, necessariamente devemos tomar a decisão de soltar o que nos mantém ancorados no nosso estreito mar e não nos permite singrar os vastos oceanos.
Texto bíblico: Mt 4,12-23
Na oração: No fundo do seu coração cheio de velhas barcas, redes inúteis, mar estreito... é aí que o Senhor passa... e com sua Palavra provocante o acorda para uma ousadia maior. Compete a você dar-lhe acolhida.
- Seguir o Desconhecido do lago significa aceitar a vida como sacramento do encontro, onde ressoa a Palavra d’Aquele que passa, vê, conhece, ama, chama pelo nome... Aos poucos você vai intuindo que a vida não é questão de certezas, mas de busca e de desejos, de caminhar com Aquele que o chama para ficar com Ele e com Ele constituir a grande comunidade de servidores.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele” (Jo 1,32)
Estamos iniciando o tempo litúrgico conhecido como “Tempo comum”; tempo para um longo e demorado olhar centrado na pessoa de Jesus: “ver” e “mirar” nos conduzem a uma identificação com Ele. Do olhar correspondido brota o seguimento.
Como seguidores(as) de Jesus, também vivemos à luz do Espírito, não à sua sombra. Nossa existência, em sintonia com o desejo de Deus para que vivamos em plenitude, é enriquecida pelos nossos desejos profundos de nos constituir como seres livres, ou seja, capacitados a tomar decisões oblativas, desafiados permanentemente por uma pluralidade de opções abertas que se apresentam diante de nós. Não somos escravos de nossa pobre condição mortal, mas o espaço livre por onde habita e transita o Espírito.
No evangelho de hoje(2º dom Tempo Comum), mais uma vez o autor do quarto Evangelho nos coloca diante da figura de João Batista, relatando a experiência dele de encontro com Jesus e revelando-o como aquele que “viu” e que “deu testemunho” de que Jesus é “o Filho de Deus”. Daí sua insistência no verbo “ver”. Não se trata de um “ver” neutro, preso à exterioridade, mas de um olhar contemplativo, capaz de distinguir e apontar quem de fato era o Messias. João não recebeu o encargo de divulgar uma ideia, uma doutrina... mas apontar uma pessoa.
Como nos evangelistas sinóticos, também o evangelista João faz do batismo de Jesus o acontecimento fundante com o qual Ele inicia sua atividade pública. Quê é que João Batista “viu”? Viu um homem cheio de Espírito. Ou seja, Jesus é aquele que, habitado pelo Espírito, se deixa conduzir pelo mesmo Espírito. Ele deixa “transparecer” esta presença do Espírito e só quem tem olhar contemplativo é capaz de perceber quem O move.
Sempre quando temos a sorte de encontrar uma pessoa “transparente” (não “perfeita”, mas humana), torna-se mais fácil reconhecer, apreciar, “ver” o Mistério que a habita. Mas não é suficiente encontrar-nos com alguém assim; é preciso também desenvolver a própria “capacidade de ver”, ou seja, um “saber olhar” que transcende para além das aparências.
Os sábios sempre foram conscientes de que existem diferentes níveis de realidade aos quais podemos ter acesso através de diferentes órgãos de conhecimento. São Boaventura fala do “olho do espírito”, ou seja o “olho da contemplação”. Empobrecemo-nos quando nos reduzimos ao “olho da carne” e também ao “olho da razão”. Precisamos ativar o “olho do espírito” que nos capacita para “ver” a realidade em sua dimensão mais profunda, para perceber o Mistério em tudo o que nos rodeia, nós incluídos. A qualidade humana, o futuro da humanidade e do planeta depende de que saibamos “ver” deste modo.
Nossa experiência do seguimento de Jesus brota da capacidade de fixar nosso olhar n’Ele. De fato, o olhar é o primeiro sentido que nos faz sentir presentes junto ao outro. E, como João Batista, ao fixar nosso olhar contemplativo na pessoa de Jesus, o que vemos é o Espírito agindo n’Ele.
E porque se deixa conduzir pelo Espírito, Jesus não suporta lugares fechados, rompe com os “espaços sagrados”, com os esquemas fechados, com as estruturas arcaicas... O Espírito é “movimento” e Jesus inicia um movimento de vida e vida plena.
Jesus, cheio do Espírito, sempre foi o homem das praças, ruas, caminhos e campos abertos... Não foi o homem dos templos, dos lugares fechados, das cidades fortificadas, mas o “homem em saída”, revelando sua mensagem e sua missão ao ar livre da vida.
A comunidade dos seus seguidores, conduzida pelo Espírito, também não se deixa atrofiar pelo lugares fechados, cheirando a incenso mofado, nem se prende a um ritualismo e religiosidade alienante, mas é aquela que sai para os espaços públicos e ali oferece o testemunho de Jesus.
Somos seguidores de Jesus nos espaços amplos da vida, sem distinção de classes, sem hierarquias, onde todos podem comunicar-se com todos, pois são habitados pelo mesmo Espírito, a força da vida.
A novidade de Jesus consiste justamente em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo. Desse modo, reconhece-se a vida como lugar privilegiado da Sua Presença. Jesus, na Galileia, encontrou os seus lugares: junto ao mar, nas estradas poeirentas, nas margens...
Depois do seu batismo e pleno do Espírito, Jesus se faz presente no lugar onde se encontram aqueles que não tem “lugar”, os “deslocados” e que são a razão de seu amor e do seu cuidado; faz-se solidário com os “sem lugares” e os convida a caminhar para um novo lugar. Na Galileia, Jesus tem suas preferências e escolhe o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles que se fazem donos dos lugares.
O(a) seguidor(a) de Jesus não é aquele que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele(a) que, movido(a) por uma radical compaixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença d’Aquele que é a Misericórdia.
Dessa forma, “habitado pelo Espírito”, experimenta que a vida é forte e formosa e que vale a pena acolhê-la e doá-la, como Jesus fez, sabendo que o tempo da opressão, da enfermidade, da morte e da condenação... não tem a última palavra. Esse é o sentido da expressão de João Batista aplicada a Jesus: “Aquele que tira o pecado do mundo”. Por isso, Jesus e os primeiros cristãos não usaram modelos de poder centralizado para cultivar a presença de Deus. Nem tiveram a preocupação de construir um novo templo, nem formatar uma nova religião, mas descobriram o Templo de Deus na vida mesma, no diálogo e no encontro das pessoas nos espaços públicos, onde sob o impulso do Espírito, buscaram inspiração e sentido para suas existências. E a vida não é um templo já construído, mas uma rede de conexões múltiplas que vão se refazendo, recriando, de um modo incessante, por obra do Espírito de Cristo.
A presença provocativa e o chamado exigente de Jesus colocam em questão nosso costume de nos refugiar no mundo asséptico das doutrinas, na tranquilidade de uma vida ordenada e legalista, satisfatória e entorpecida, na segurança de horários imutáveis e de muros de proteção, longe do rumor da vida que luta para ter um lugar ao sol, dos gritos daqueles que sofrem e morrem nas periferias deste mundo.
Escutar e seguir Seu chamado implica abandonar a estreiteza de nossos caminhos e deixar o nosso coração bater no ritmo do Espírito que nos faz romper nossos estreitos lugares e nos projeta em direção ao mundo dos doentes e marginalizados, vítimas da desumanização de nossa sociedade.
Como Igreja, temos perdido esse estilo itinerante que Jesus propõe. O caminhar dela é lento e pesado; não acertamos o passo para acompanhar a humanidade; não temos agilidade para deslocar-nos em direção à margem sofredora; agarramos ao poder e às estruturas que tiram a mobilidade; enredamos nos interesses que não coincidem com o Reinado de Deus. É preciso uma profunda conversão e voltar à essência do Evangelho: compromisso com a vida, sendo presença misericordiosa.
Texto bíblico: Jo 1,29-34
Na oração: “Fazer caminho” com Jesus implica sair pelas estradas e encruzilhadas para escutar o clamor das pessoas e para alargar a nossa vida no contato com elas. A novidade do Espírito aparece sempre fora dos lugares seguros, protegidos e convencionais.
- Não estaremos desperdiçando as nossas melhores forças para conservar atitudes arcaicas e nos deliciamos com um estilo de vida que nos atrofia?
- Não chegou, talvez, o momento de deixar de repetir aquilo que fazíamos antes, e de abrir-nos àquilo que está diante de nós, à novidade que o Espírito está criando?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“E a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles,
até parar sobre o lugar onde estava o menino” (Mt 2,9)
A “travessia” vivida pelos Magos é a mesma que todos experimentamos; somos seres “em saída”, em contínua busca. Quem busca não permanece sentado olhando o teto ou paralisado com o comando da tv na mão; hoje somos milhões de pessoas buscando permanentemente no Google, no Facebook, no WhatsApp..., sentados, parados, anestesiados...
Quem “sai” está deixando sua acomodada segurança, expondo-se ao que não conhece ou lhe dá medo conhecer. Há milhões de pessoas saindo sem pôr os pés na rua, de garagem em garagem, de centro comercial em centro comercial, viajando de metrô com os olhos fixos no celular, transitando por circuitos perfeitamente estabelecidos para não ver o que há mais além do “parque temático” que lhe é apresentado. Há muitos milhões que vivem com uma venda nos olhos, quer estejam em casa ou saiam para fazer exercícios. Quê buscam? Quê as animam a sair? O quê encontram?
O relato dos Magos não faz referência a pessoas concretas, mas a personagens. Não eram reis, mas “magos”, ou seja, sábios que investigavam os céus para entender melhor o que se passava na terra. Porque estavam buscando, descobriram, encontraram. Notemos que são os que estavam longe que descobriram, enquanto que aqueles que estavam próximos do Menino não se inteiraram de nada.
Para descobrir a presença de Deus, o único definitivo é a atitude. Ao descobrir algo surpreendente, puseram-se a caminho. Não sabiam para onde iam, mas arriscaram. No caminho que os Magos percorreram para aproximar-se de Jesus estão representadas as atitudes daqueles que buscavam a Jesus e se aproximavam das primeiras comunidades cristãs para conhecê-lo. E está também representada nossa busca.
O importante, no texto de Mateus, não é deter-nos na veracidade histórica dos Magos, mas descobrir a “pérola preciosa” que o evangelista oferece, tanto para as primeiras comunidades cristãs como para os judeus que se aproximavam para conhecer Jesus através de seu testemunho.
Como eles poderiam situar-se diante do nascimento de Jesus? Segundo o Evangelista, diante de Jesus podem ser adotadas atitudes muito diferentes. O relato dos magos nos fala da reação de três grupos de pessoas. As autoridades religiosas, que conheciam muito bem a lei judaica e sabiam o que significava Belém para a corrente profética, não souberam ler os sinais dos tempos e não puderam encontrar Jesus. A religião, quando se reduz a simples práticas rituais, atrofia a sensibilidade da pessoa, impedindo-a abrir-se às surpresas de Deus.
O poderoso rei Herodes, preocupado em preservar seu poder, só vê perigo diante de qualquer situação diferente. Nenhum poder é mediação para deixar-se provocar pelo novo. Somente alguns pagãos, guiados pela pequena luz de uma estrela, buscaram, puseram-se em marcha e encontraram Jesus.
O relato é desconcertante. Deus, escondido na fragilidade humana, não é encontrado pelos que vivem instalados no poder ou fechados na segurança religiosa, mas se revela àqueles que, guiados por pequenas luzes, buscam incansavelmente uma esperança para o ser humano, na ternura e na pobreza da vida.
Os Magos não pertenciam ao povo eleito, não conheciam o Deus vivo de Israel. Nada sabemos de sua religião nem de seu povo de origem. Só sabemos que eles viviam atentos ao mistério que se encerra no cosmos. Seu coração buscava verdade.
Em algum momento acreditaram ver uma pequena luz que apontava para um Salvador. Precisavam saber quem era e onde estava. Abriram-se à luz da estrela e rapidamente puseram-se a caminho. Seria uma perda de tempo? Valia a pena fazer a travessia? Não conheciam o itinerário preciso que deveriam seguir, não sabiam para onde a estrela os conduziria e o caminho implicava riscos. Mas em seu interior ardia a esperança de encontrar uma Luz para o mundo.
Quando os Magos se desviaram da rota de Belém e entraram em Jerusalém para perguntar onde é que estava o rei dos judeus recém-nascido, a estrela desapareceu de suas vistas, como que indicando que não é na riqueza e no luxo das cortes que a Luz de Deus brilha para os corações. A estrela também moveu os magos a que deixassem de olhar para ela; que olhassem antes para o lugar, na Terra, para onde ela apontava e sua luz iluminava. Pois é na simplicidade e pobreza de uma criança que resplandece a luz de Deus.
Os magos não caem de joelhos diante de Herodes: não encontram nele nada digno de adoração. Não entram no Templo grandioso de Jerusalém: tem acesso proibido. A pequena luz da estrela os atrai para o pequeno povoado de Belém, longe de todo centro de poder. Ao chegar ao lugar indicado, vêem somente o “menino com Maria, sua mãe”. Nada mais. Um menino sem esplendor nem poder algum. Uma vida frágil que necessita dos cuidados de uma mãe. É suficiente para despertar nos magos o assombro.
Eles prostram-se e adoram o Menino Jesus. Cena poética onde Mateus nos ajuda a romper nossos esquemas mentais. Aqueles que conheciam as escrituras de memória e sabiam interpretá-las não vão ao encontro de Jesus. Aqueles que sabem ler as estrelas são capazes de ver mais além das aparências. E o que veem nesse Menino é tão profundo que caem prostrados, tiram seus tesouros, esvaziam-se e enchem-se da nova Luz descoberta.
Foi assim que a longa jornada dos Magos começou seguindo o caminho que a luz da estrela indicava. E ao final de longa peregrinação chegaram ao lugar procurado. “Banhado pela suave luz da estrela, em meio a vacas, jumentos e palha, se encontrava um nenezinho. Eles, então, foram iluminados. Não pela luz da estrela, mas pela luz da criança. Perceberam que sua busca havia chegado ao fim. Aquilo que os adultos esqueceram e que a sabedoria busca – as crianças sabem.
Ser sábio é ser criança. O universo é um berço onde dorme uma criança. E desde aquele dia eles deixaram de olhar para as estrelas e passaram a olhar para as crianças.
Os sábios vêem o avesso. O avesso é esse: os adultos são os alunos; as crianças são os mestres. Por isso os magos, sábios, deram por encerrada a sua jornada ao encontrarem um menino numa estrebaria...
No Natal, todos os adultos rezam a reza mais sábia de todos, escrita pela Adélia Prado:
“Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande...” (Rubem Alves)
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: Inspirados nos Magos, que descobriram sinais e começaram um caminho de busca, podemos nos perguntar: quê sinais descobrimos durante o ano de 2016? Para onde nos conduzem esses sinais, como se fossem estrelas? Eles nos fazem sair de nossa “zona de conforto”, de nossas seguranças...? Eles nos ajudam a priorizar a viagem ao interior de nós mesmos?
- A estrela que seguimos nos mobiliza ter acesso à nossa “gruta” interna, onde nova vida pulsa por nascer, ou preferimos alimentar uma multidão de contatos superficiais através das redes sociais, afogando-nos nas experiências de solidão?
- Nossas “viagens” despertam o espírito solidário e nos comprometem a responder às necessidades dos mais frágeis ou permanecemos confinados em nós mesmos, “adorando” nosso “ego”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)
Natal: estamos em um tempo que nos fala do essencial: um Deus que se faz carne, o divino que se faz humano; o eterno se estremece diante do que é terno; o infinito abraça amorosamente a fragilidade... Viver este mistério é viver em Deus, compreender até onde chega a loucura de amor de um Deus que se humaniza para que nos humanizemos. “A humanidade de Cristo é a humanidade vivida à maneira de Deus, ou melhor, vivida por Deus” (José Arregi).
“Deus se humanizou”: tal expressão revela que a Misericórdia de Deus significa também ternura. Apareceu um Menino: apareceu a ternura e a doçura do Deus que salva. Na fragilidade de uma criança se esconde e se revela a grandeza divina. Uma antiga tradição religiosa afirma que a maior seriedade de Deus aconteceu quando Ele virou menino. Louca aventura amorosa de Deus! No rosto de uma criança se faz visível a Misericórdia que desce sempre mais abaixo, que nasce no ventre da terra e se faz terra fértil.
Segundo Jacob Boehme, místico medieval, Deus é uma Criança que brinca... É nessa atmosfera “infantil” que Deus se aproximou de nós. Não veio como um imperador poderoso nem como um sumo-sacerdote ou um grande filósofo. Deus pode ser encontrado não na estrada suntuosa do domínio e do poder, mas na estrada da doação, da partilha, da solidariedade... A única explicação da “descida” de Deus é seu “amor compassivo”. Ele mergulhou na nossa fragilidade fazendo-se uma criança pobre, que nasce na periferia, no meio de animais, deitada numa manjedoura... para que ninguém se sentisse distante d’Ele, para que todos pudessem experimentar o sentimento de ternura que uma criança desperta e sobre quem nos dobramos, maravilhados. Criança não infunde medo; todos se aproximam dela. Pequenino com os pequeninos, Deus nos faz proclamar silenciosamente:
“Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande...” (Adélia Prado).
É a fragilidade de uma criança que ativa em nós a atitude da expectativa, da novidade, do assombro... Cada nascimento é um sinal, um imenso milagre, uma bela promessa, um profundo chamado. Viver é milagre. Só ser já é milagre. E o maior milagre é a ternura que cuida, nutre, consola. Isso é “Deus”.
Dizia o pintor Pablo Picasso que tornar-se criança leva tempo, e poderíamos acrescentar que somente o encontro com o Deus Menino nos devolve a pureza e a inocência primordiais. Quando nos fazemos presentes junto à Criança eterna, então brota em nós o impulso para a renovação de vida, o despertar da inocência escondida, o encontro com novas possibilidades de ação que correm em direção ao futuro.
O Natal é essa ternura que ilumina a história humana, o cosmos do qual somos parte. É a confissão de que a bondade gera e sustenta a vida. É crer que tudo está eternamente movido por um pulsar profundo, criador, maior e mais poderoso que o universo, mais terno e pequeno que o coração de um recém-nascido. É a promessa de que o bem prevalecerá.
Ao recuperar o olhar de assombro e de espanto no interior da Gruta de Belém, nossa mente se abre à imaginação e ao sonho, começamos a considerar as infinitas possibilidades para ser e conviver, brota a alegria do novo, do que está nascendo a cada instante, de explorar recursos inéditos e desconhecidos.
Natal é o tempo para acolher com ternura o que é germinal, o pequeno, o que nasce nos movimentos sociais e humanitários alternativos e nos grupos eclesiais que se empenham por um mundo novo e por uma Igreja mais sintonizada com o sonho de Deus. É o momento de sair para os excluídos, para aqueles que não podem chegar até nós.
Ao entrar na gruta para contemplar o Menino-Deus, conectamos, ao mesmo tempo, com o mais profundo do coração humano, carregado de compaixão e generosidade. A bondade humana é uma faísca que pode se atrofiar, mas jamais se apagar. São necessários alguns momentos densos para que esta chama seja ativada. A vivência do Natal é um deles.
Da “Gruta de Belém” à “gruta interior”: esta é a aventura que nos leva a crescer, amar e compartilhar com os outros o dom da vida; aprender a ver nas pessoas a grande reserva de bondade, altruísmo e generosidade que carregam dentro de si; nunca conformar-nos com a injustiça e a violência, semeando cordialidade e gentileza a todos (as); e, sobretudo, ser mestres da esperança. “...porque é de infância, meu filho, que o mundo precisa” (Thiago de Mello).
O Menino Deus, em Belém, nos oferece uma maneira nova de olhar a realidade e a fragilidade de tantas pessoas. A contemplação de Jesus em seu nascimento nos ensina a contemplar a fragilidade e a exclusão humana como uma forma de presença de Deus. Deus está entre nós como fragilidade, nos excluídos, nos pobres, nas carências de todo tipo, em cada uma de nossas limitações. Por isso mesmo, sair, descer ao encontro das carências humanas, é uma forma de peregrinação para o coração do Deus mais vivo e surpreendente. Com os mesmos passos com que nos aproximamos da fragilidade dos que sofrem, também nos aproximamos de Deus.
A partir dessa debilidade podemos sentir que passa por nós a força de Deus, seu santo braço, que transforma, com nossa ajuda, toda a realidade. Se Deus correu o risco de encarnar-se, de nascer pobremente e crescer como salvação a partir da exclusão deste mundo, já não há excluídos para Ele, ninguém fica fora d’Ele. E o lugar principal para a festa é ali onde Ele aparece: nos aforas, onde não há lugar, onde tudo parece esgotar-se e é condenado a crescer em meio às ameaças e às intempéries das situações humanas.
O Nascimento de Jesus é um atrevimento, uma verdadeira ousadia, uma surpresa inimaginável...; na verdade, o Natal é a manifestação do impossível que se faz possível no coração de Deus.
“Ele é o eterno Menino, o Deus que faltava; o divino que sorri e que brinca; o menino tão humano que é divino” (Fernando Pessoa).
Agora temos um Deus menino e não um Deus juiz severo de nossos atos e da história humana. Quê alegria interior sentimos quando pensamos que seremos julgados por um Deus Menino! Ao invés de condenar-nos, ele quer conviver e entreter-se conosco eternamente.
Texto bíblico: Lc 2,1-14
Na oração: Que saibamos escutar a nossa criança interior que clama por ser amada, acolhida, curada de tanta mesquinhez, intolerância, e indiferença.
O Natal é como um poema; nele Deus se revela como uma Criança, pois nos mostra que a vida é sempre dom, novidade que destrava a humanidade para expandi-la por inteira. Que o Deus Menino que vai nascer nos mostre o caminho da verdadeira beleza da vida, e a graça de nunca perdermos a alegria de ser e viver.
Deus seja louvado!
Um abençoado Natal a todos!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em segredo”
A única coisa que o Evangelho nos diz de José é que era um homem justo. Este adjetivo, de profundas raízes bíblicas, nos quer dizer que era reto, íntegro, autêntico, bom, etc..., tudo o que podemos encontrar de positivo em uma pessoa humana. O homem justo é aquele que, como Abraão, acolhe na fé o plano de Deus e com Ele colabora. José é “justo” porque adere ao misterioso desígnio de Deus, é justo porque se “ajusta” ao modo de agir de Deus, arrisca com Deus, embora os contornos do Seu Plano permaneçam obscuros e, em certos aspectos, incompreensíveis.
José se coloca, portanto, na linha das grandes figuras da história da salvação. Sua atitude é um exemplo de silenciosa dedicação ao Reino. É o homem de uma grande nobreza de coração que, no silêncio da fé, acolhe o mistério que não compreende. Ele também teve sua “anunciação”; também teve que dar seu “sim” a Deus no mistério do desconhecido.
O “justo” José viveu no dia-a-dia a fidelidade a Deus. Mateus repete três vezes que ele se levantou para fazer o que lhe fora revelado como Vontade de Deus. José soube acolher também, na obediência e no amor despojado, a missão que Deus lhe confiou.
José é o homem do silêncio; de fato, uma das coisas que mais chama a atenção é que ele não pronuncia palavra alguma em nenhum dos relatos evangélicos nos quais aparece. Diríamos que os relatos apresentam a figura de um homem silencioso. Sua existência está atravessada pelo silêncio. José é o homem que vive e atua no silêncio.
Mas entendamos bem. Este silêncio não se deve a que José seja um homem de caráter introvertido, isolado, fechado sobre si. Pelo contrário, trata-se de um silêncio interior, intenso, grávido de conteúdo. Precisamente o que as cenas evangélicas mais destacam é que José escuta atentamente o que lhe é anunciado e ele responde instantaneamente, com gestos decididos. Poderíamos dizer que suas ações são suas palavras e suas palavras não pronunciadas se convertem em gestos eloquentes que manifestam a grandeza de sua alma.
Nos relatos de aparição de anjo, normalmente se dá um intercâmbio de palavras entre o mensageiro e a pessoa à qual é enviado. No caso de José, no entanto, nunca há diálogo. Nos três momentos em que o anjo do Senhor aparece a José dá-se o mesmo esquema: o anúncio da mensagem e a resposta decidida de José por meio da ação. José não pede explicações nem sinais confirmadores; obedece e pronto.
Quando recebe o anúncio de que Maria estava grávida por obra do Espírito Santo, imediatamente faz o que lhe havia dito o anjo do Senhor e toma consigo a sua mulher. No caso da fuga ao Egito, o anjo, além do mais, pede a José colocar-se a caminho: pede-lhe uma prontidão que o desenraiza de seu ambiente, que o desinstala de sua própria terra para viver no estrangeiro.
Quando o anjo lhe adverte da perseguição de Herodes, imediatamente se levanta, toma o menino e a sua mãe durante a noite e se retira ao Egito. O mesmo acontece quando o anjo do Senhor lhe diz que pode voltar a Israel porque tinham morrido aqueles que buscavam tirar a vida do menino.
Os textos destacam a atitude de disponibilidade obediente e prontidão confiada de José. Seu silêncio não tem nada de ingênuo, não é o silencio daquele que nada sabe ou não quer complicar sua vida. José está, sim, ciente de que sua esposa está grávida; está ciente que o menino está em perigo e, por isso, o leva ao Egito; está ciente de que seu filho se perdeu e, por isso, o busca. E como está ciente, tem medo. Não um medo que o paralisa, mas um medo inquietante, que o impulsiona a buscar soluções respeitosas para com sua esposa e lhe move a tomar decisões valentes, como a de emigrar em busca de um lugar onde refugiar-se. José se arrisca como resultado de uma reflexão, feita possível graças a um silêncio que escuta, valoriza e discerne.
Toda a vida de José é descrita pelos evangelistas em segundo plano. Esse saber estar na “sombra” para não “fazer sombra” a outros, esse escutar e discernir a vontade divina, essa preocupação pelo bem-estar dos demais, esse silêncio contemplativo e radical que lhe permitia aprofundar na realidade, essa prontidão na “obediência à fé” e essa disponibilidade sem fissuras à graça foram as qualidades com as quais José entrou em sintonia com Deus, dando sua contribuição decisiva ao mistério da salvação.
A figura silenciosa de José desvela e denuncia o “palavreado crônico” que nos esvazia. Ele nos mobiliza a viver o silêncio atento e que escuta. Quando calamos e fazemos silêncio começamos a escutar a nós mesmos e a Deus, que fala silenciosamente “em sonhos”.
Há uma diversidade de silêncios. Existe o silêncio dos mortos ou o silêncio daquele que não tem nada que dizer, porque sua vida está vazia. Existe o silêncio cheio de tristeza do desamparado, que sofre, chora e perdeu toda esperança. Existe o silêncio tenso que se estabelece quando duas pessoas que não se amam se veem obrigadas a estar em um mesmo lugar. Existe o silêncio respeitoso diante de um enfermo ou diante de uma tragédia; existe o silêncio cheio de amor que brilha no olhar daqueles que se amam. E existe o silêncio daquele que escuta atentamente o que o(a) amado(a) tem a lhe dizer.
Sem dúvida, este último silêncio é o que melhor caracteriza a José de Nazaré. Os Evangelhos o apresentam como um homem sempre pronto a escutar a voz de Deus que fala através dos acontecimentos de sua vida e da vida daqueles que foram confiados aos seus cuidados.
Carecemos do silêncio transformador neste nosso mundo. O ruído inunda as ruas, os lugares de trabalho, as casas e até os corações. O ruído atordoa, tem efeito devastador, provoca a revolta, agressividade e um estado de ânimo convulsionado. Com o barulho, o espírito humano se acomoda, se anestesia, se dopa. O funcionamento normal do cérebro fica debilitado. A pessoa não sente, não pensa, não tem serenidade para decidir. Todas as expressões de vida se atrofiam. A criatividade seca, os sonhos desaparecem e o ser humano torna-se incapaz de escutar a música harmoniosa de toda a Criação...
Num contexto de ruídos atrevidos, tanto na cidade como em nossos lugares de “repouso”, torna-se mais do que necessário uma “cultura do silêncio”, que permita redescobrir o nosso próprio interior, escutar a voz dos anjos indicando os melhores caminhos a serem trilhados.
Tony de Mello nos diz: “O silêncio não é ausência de som, mas ausência de Ego”. A carência do silêncio em nossa vida nos faz seres superficiais. Com efeito, a cultura pós-moderna decretou o fim do silêncio: vivemos imersos nos mais diferentes ruídos. E o silêncio, por sua vez, está se vingando de nós, criando vazio, superficialidade, palavras sem sentido, já não sabemos quem somos, para onde andamos e o que queremos...
É indispensável “fazer silêncio” para entrar em contato com a realidade, sobretudo para abrir espaço ao Outro dentro de nós, para acolhê-Lo, para ouví-Lo e entrar em sintonia com sua Vontade.
Nos murmúrios interiores do coração ali encontramos os sinais da presença viva de Deus.
Texto bíblico: Mt 1,18-24
Na oração: Durante a contemplação devemos deter-nos particularmente na figura de José. Ele, no seu silêncio, teve seus pensamentos próprios, suas preocupações, suas perguntas dilacerantes e suas dúvidas angustiantes. Mas Deus nunca deixou de atuar no meio das suas noites, dúvidas, provações. E, no momento oportuno, o libertou dos seus medos e lhe deu a conhecer sua Vontade.
- Neste Advento, reservar momentos de silêncio e preparar-se para acolher Aquele que, no silêncio pleno, vem fazer morada em seu interior.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo...” (Mt 11,4)
A vivência cristã depende da sensibilidade e enquanto esta sensibilidade não for evangelizada não podemos ter certeza de atuar evangelicamente na vida. É preciso “evangelizar os sentidos” para que eles encontrem seu lugar insubstituível na experiência de fé e poder reagir diante da realidade com uma sensibilidade nova, diferente, transformadora, convertida.
E só podemos descobrir o “lugar e o sentido” dos sentidos através do confronto com a “sensibilidade de Jesus”. O Advento é tempo favorável para expandir os sentidos e assim ser presença diferenciada e comprometida no contexto onde vivemos.
Vivemos numa cultura que nos assalta por todos os sentidos, através de técnicas minuciosamente estudadas para invadir-nos e instalar-se nas dimensões mais profundas de nossa afetividade, de tal maneira que vejamos e escutemos a realidade segundo seus próprios quereres e interesses. Com isso, os sentidos estão ficando atrofiados e nos lançamos desesperadamente em busca de compensações virtuais. Nossos medos estão impossibilitando os sentidos ocuparem o lugar que lhes corresponde em nossos comportamentos e atitudes.
Nossos ouvidos, assaltados pelos ruídos virtuais, se desconcertam ao descobrir o silêncio. Perdemos a sintonia dos sons naturais. É exagerado pedir que distingamos o cantar de um pássaro. A contemplação auditiva não registrada em aparatos eletrônicos nos parece uma perda de tempo. A visão que, sem dúvida, é o sentido por excelência e o mais estimulado, é, ao mesmo tempo, o mais manipulado e violentado pelo excesso de imagens virtuais. Nosso campo de visão é cada vez mais reduzido, unicamente ampliado pelas telas digitais.
Talvez a pior enfermidade que hoje padecemos seja a de ter perdido a capacidade de assombro e de agradecimento, ou seja, a capacidade de abertura aos outros e ao Outro. Talvez hoje, mais do que nunca, precisamos de uma ascese que purifique nossos sentidos de tantos estímulos que invadem nossa intimidade, nos intoxicam, nos aprisionam e deturpam nossa sensibilidade, impedindo-nos de perceber como “os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados” (vv. 5 e 6).
Somente mediante uma acolhida contemplativa do Evangelho podemos transfigurar nossos sentidos e converter nossa sensibilidade. À medida que vai se realizando esta conversão de nossa sensibilidade, nós nos fazemos capazes de estar presentes no mundo à maneira de Jesus de Nazaré, em sua terra e com sua gente.
Advento é tempo propício para reeducar os sentidos, de maneira a torná-los mais oblativos e expansivos.
Educar nossa sensibilidade “ao estilo de Jesus” implica empapar-nos de sua forma de ser e de sentir, de vibrar com tudo aquilo que lhe fazia vibrar, de rejeitar tudo aquilo que Ele rejeitava, e assim reagir frente à realidade e às pessoas do mesmo modo que Ele reagia. Buscando e desejando a identificação com Jesus, nossos sentidos aprendem d’Ele a ter ternura, visão, escuta, sabor...
O mestre de Nazaré desenvolveu a sensibilidade no seu sentido mais belo. Nele, ela se tornou mais do que uma característica de sua personalidade, mas uma arte poética. Era criativo, observador, detalhista, perspicaz, arguto, sutil. Destilava prazer nos pequenos eventos da vida e, ainda por cima, conseguia perceber os sentimentos mais ocultos naqueles que o cercavam. Conseguia ver encanto numa pobre viúva e perceber as emoções represadas numa prostituta. As dores e as necessidades dos outros mexiam com as raízes de seu ser. Conseguia mesclar a segurança com a docilidade, a ousadia com a simplicidade, a autoridade com a capacidade de apreciar os pequenos detalhes da vida. Por ser um exímio observador, o mestre da sensibilidade se tornou um excelente contador de histórias e parábolas.
Jesus não idealizou a realidade; Ele a contemplava como o Pai a contemplava, e se aproximava dela como o Pai mesmo se aproximava. Seu modo de olhar e sentir a realidade permitia-lhe captar a maneira de atuar do Pai, para poder unir-se a Ele em seu trabalho criador. “Meu Pai trabalha sempre, e eu também trabalho” (Jo 5,17). Com sua presença inspiradora e através de palavras e gestos compassivos Jesus trazia à luz a vida nova escondida e atrofiada entre os escombros da enfermidade e da exclusão. Ele revelava-se como Aquele que era o “Esperado”, Aquele que vinha aliviar o sofrimento humano, destravar a vida e abrir um horizonte de esperança aos pobres e doentes.
A contemplação e o seguimento de Jesus não nos transformam a fundo se não atravessa todas as camadas de nosso ser, começando pela nossa sensibilidade; em outras palavras, a transformação do coração exige uma renovação de nossa sensibilidade.
O(a) seguidor(a) de Jesus, com seus sentidos cristificados, não fugirá dos desafios e dos dramas da realidade, mas ali se revelará presente de maneira inspirada, buscando entrar em sintonia com Aquele que destrava todas as amarras que oprimem e desumanizam.
Olhar e escutar a partir de Jesus, olhar e escutar como Jesus, olhar e escutar a partir dos olhos daqueles que sofrem... essa é a dinâmica própria do tempo do Advento. Trata-se de um convite a iluminar nosso olhar e afinar nossos ouvidos, às vezes muito apagados pela mediocridade de nossa vida; outras vezes opacos pela falta de esperança em nossa capacidade de levar adiante a missão que Cristo nos confia.
O olhar e o escutar não são atitudes neutras, senão que há fatores que as limitam: o lugar a partir de onde se olha e se escuta condiciona o que se vê e o que se ouve. O olhar e o escutar estão, muitas vezes, marcados também pelas ideias e visões distorcidas que temos da realidade.
Jesus nos convida, no Evangelho de hoje(3º dom Advento), a fazer um exercício especial da visão e da audição; o que Ele nos pede é expandir os sentidos para entrar em sintonia com as pessoas que nos cercam, para perceber a Presença do Invisível, que se revela ao mundo como mistério e transparência.
Há um modo de ver, de ouvir, de sentir e de pensar que nos entorpece e nos isola em nosso pequeno mundo estreito e autocentrado, enquanto que há outro modo que nos abre e nos lança ao mundo, e que o vai revelando como presença e transparência de Deus. Os sentidos devem ser portas e janelas abertas que nos fazem viver na atitude de contínua “saída”.
Jesus insiste: quem não está desperto, quem não abre bem os olhos, quem não afina o ouvido..., o mistério divino lhe ficará oculto. No descobrir, no “ver” as pessoas às quais costumamos excluir de nosso campo visual cotidiano, começa o vislumbre, a visibilidade de Deus entre nós... É aí onde encontraremos sua pegada. É aí onde nos “esbarramos” n’Aquele que esperamos neste Advento.
Texto bíblico: Mt 11,2-11
Na oração: Os sentidos, cristificados na contemplação, nos impulsionam em direção ao outro e nos fazem acreditar na beleza e dignidade escondidas na fragilidade da condição humana.
- Mergulhar na realidade que nos cerca, por meio dos sentidos bem abertos e evangelizados, é deixar estremecer de vida divina a fragilidade de nossa condição humana.
- Na intimidade com Deus, ampliar bem os sentidos para tornar-se contemplativo no modo cotidiano de viver.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaicí-SP
“O machado já está na raiz das árvores, e toda árvore que não der bom fruto será cortada...” (Mt 3,10)
As leituras do domingo passado nos falavam de velar, de vigiar, de estar desperto. Hoje falam aqueles que estiveram nessa atitude de sentinelas: os profetas. Situados em posições estratégicas, descobrem no horizonte a presença de sinais de vida ou de morte. Assim se convertem em vigias e mensageiros.
Neste 2º. Domingo de Advento, os profetas Isaías e João tem a palavra. A palavra de um profeta nunca é fácil de aceitar porque move a mudar, e isso não tem muita ressonância em nosso interior.
O profeta é o homem que vê um pouco mais além, ou mais profundamente que o restante dos mortais. Essa vantagem nasce de sua atitude de discernimento; ele não se contenta ou não se conforma com o que vê ao seu redor e busca algo novo. Essa novidade ele a encontra em sua própria interioridade, e ali percebe as exigências que seu verdadeiro ser pede, para ele e para todo ser humano.
O profeta é a figura chave neste tempo de Advento. Não se trata de um adivinhador do futuro; tampouco devemos pensar em um ser humano separado dos demais, que, por eleição especial, Deus vai lhe indicando o que é preciso dizer aos outros. Profeta é todo aquele que está desperto e com os olhos bem abertos. Ele não é um porta-voz enviado a partir de fora, é sempre um explorador do “interior humano” e que tem a valentia de viver a partir das raízes profundas de seu ser.
À luz das profecias, o Advento nos revela que somos seres de enraizamento e de horizontes, de interioridade e de universalidade... O desafio consiste justamente em manter juntos o enraizamento e o horizonte. Encarnados, mas abertos à transcendência. Nesse sentido, transcender não significa fugir da própria realidade, mas mergulhar na própria condição humana; “transcender é humanizar-se”.
Somos convidados, neste tempo litúrgico, não apenas a nos expandir e a voar para o alto, mas, fundamentalmente, a descer e a buscar o chão onde nos enraizamos. Por um lado, ter horizontes nos faz romper barreiras e ultrapassar os limites, impulsionando-nos à busca permanente do novo e do inspirador. Por outro lado, vamos tomando consciência que no mais profundo de nosso ser encontram-se as raízes que devem sempre ser alimentadas e avivadas, pois são elas que sustentam o ponto de partida para o novo, para uma verdadeira mudança e conversão. É da nossa interioridade que “há-de-vir” (advento) as possibilidades e os recursos que farão nossas vidas mais abertas e oblativas, semelhantes à vida d’Aquele que “desceu” até às profundezas da condição humana.
A verdadeira nobreza do ser humano consiste nisto: há nele um desejo, uma força latente, como uma energia fundamental, que o impulsiona a viver, que o ajuda a crescer e a melhorar continuamente, que aumenta a sua capacidade de resistência, que o estimula a alcançar aquilo que é o sentido de sua própria existência: a verdade, a liberdade, o bem, o amor...
Com a presença desta força interior, a pessoa se sente guiada e sustentada no caminho da maturidade humana, proporcionando-lhe saúde física, lucidez mental e limpidez afetiva. É esta força que comanda os melhores momentos da sua vida como um princípio ativo, dinâmico, criativo... Quando esta “força vital” permanece atrofiada, a pessoa perde a direção, não desenvolve suas potencialidades e demite-se da própria vida. É decisivo saber descobrir e canalizar essas energias espontâneas, capazes de promover a integração e que são facilitadoras de mudanças frente à finalidade de sua vida.
No tempo do Advento, tomamos consciência que a raiz de nosso ser essencial constitui nossa autêntica vida. Descobri-la, alimentá-la e viver a partir dela constituem a plenitude de nossa realização.
Precisamos viver mais nas raízes de nosso ser; precisamos aprender a viver de uma maneira mais profunda e autêntica, a partir do núcleo mais íntimo de nosso ser. E viver a partir de nosso ser essencial significa integrar e harmonizar todos os níveis de nossa pessoa: corpo, mente, afetividade, coração... com a fonte de nossa vida. Trata-se de descer em profundidade, de encontrar o nosso centro, aquele ponto de gravidade por onde passa o eixo do nosso equilíbrio pessoal.
Advento, tempo das raízes! Tempo oportuno que nos mobiliza a descer ao nosso chão existencial, a olhar o mais profundo de nós mesmos e da realidade que nos cerca, para descobrir ali os ricos recursos de vida que ainda não foram ativados. O novo vem das raízes, vem de baixo, da base, do chão. A fecundidade tem lugar no oculto, nas entranhas da terra. Na vivência do Advento nos é pedido que mergulhemos os pés no “chão da vida”, como as raízes mergulham na terra de modo profundo, silencioso e lento.
Aqui, o caminho para Deus implica “descer” ao nosso próprio chão e viver em sintonia com todas as expressões de vida, numa fraternidade universal. Subimos, rumo ao Transcendente, quando descemos ao nosso chão. O movimento de enterrar profundamente as raízes possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio. A profundidade do enraizamento torna-se plataforma para poder alçar vôo e ir além dos nossos limites e interesses estreitos, rumo ao Todo infinito.
O Advento nos faz lançar raízes no mais profundo de nossa condição humana e despertar todas as energias criativas, todas as grandes motivações adormecidas, toda bondade aí presente, toda decisão de assumir-nos como cooperadores de um novo tempo. Das raízes profundas brotam as respostas mais criativas e duradouras; das entranhas abertas emergem dinamismos que nos levam a ser presença inspiradora e diferente no contesto onde vivemos.
A experiência cristã, portanto, implica “mergulhar os pés na terra”. Expressões do nosso cotidiano como “pôr os pés no chão”, “estar com os pés na terra”, significam enraizar-nos e comprometer-nos com a realidade que nos afeta. Um “chão” é sempre mais que um simples chão: cada chão revela lembranças, referências, medos, saudades...; cada chão guarda histórias, presenças e tem força de memória. Há vida, pessoas, caminhos, acontecimentos, experiências...
Chão amplo é convite a sonhar alto, a pensar grande, a aventurar-se..., ousar ir além, derrubar nosso modo arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos. “Chão humano e humanizante” porque carregado da presença divina. Cada pessoa é autêntico chão da eterna presença de Deus.
Onde nossos pés estão plantados? Onde nossas raízes existenciais buscam alimento?
Textos bíblicos: Mt 3,1-12
Na oração: “Orar com o coração” significa voltar os olhos mais para a interioridade, para poder reconstruir e reunificar as “forças” dispersas de si mesmo.
- Diante de presença de Deus desça à própria realidade interior, até atingir as raízes de seu ser, para que dali brote o novo que sustentará e dignificará o seu viver.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaicí-SP
“Por isso, também vós ficai preparados! Porque, na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá” (Mt 24,44)
Em cada ano, no tempo do Advento, a liturgia da Igreja nos mobiliza a esperar. Nem sempre caímos na conta que tenhamos a Quem esperar. Então, nos dispersamos “esperando algo”, vivendo a lenta e inevitável fila das esperas.
Como seres humanos, fomos feitos para esperar: esperar um filho, esperar um trabalho, esperar o resultado de um exame médico, esperar que as coisas melhorem, esperar que saia o sol… Trata-se de uma sucessão interminável de esperas, algumas vezes infrutíferas, indesejadas e angustiosas, outras vezes surpreendentes, plenificantes… Às vezes esperamos sem saber muito bem o quê ou quem esperamos, como os dois personagens do filme “Esperando Godot”, que nunca souberam a quem esperavam, nem por que esperavam, nem se, efetivamente, chegaria o esperado Godot.
Outras vezes, a espera se vê realizada, mas o resultado da mesma é tão pífio, tão frustrante, que os “esperantes” terminam por pensar se valeu a pena tanta mobilização. Existem também esperas doentias, que provocam ansiedade, medo e nos paralisam; esperas centradas em nós mesmos.
Esperar, para quê? a quem? de onde nasce a necessidade de esperar?
Vivemos tempos carregados de “pressas” que nos mantém tensos; queremos resultados imediatos e nos angustiamos na impaciência. Mas a vida cristã precisa de muito Advento, muita espera e paciência. No interior de nossas entranhas brota uma voz serena: “Dá prá esperar?”
Só quem é movido a “sentir o tempo” de modo novo pode habitá-lo com intensidade em todas as etapas da vida. Cada momento esconde sua pérola e é muito instigante poder descobrí-la.
A vida cristã é uma vida de espera, mas se trata de uma espera carregada de esperança. Esperar é uma forma de viver, um hábito de vida. Nós somos o que esperamos. “Só quem espera pode ver”.
Estamos no tempo litúrgico da espera, que nos motiva a esperar, mas a esperar com esperança, sabendo a Quem esperamos; mais ainda, sabemos que, Aquele que esperamos, já chegou, que já está entre nós, que as promessas esperadas já estão cumpridas. Deus vem a nós e a nossa espera ativa é a nossa maneira de ir até Ele. Aquele que esperamos já está presente, dando um sentido de eternidade à nossa espera.
Espera que nos faz criativos, intuitivos, sonhadores... Espera que nos faz sair de nós mesmos, abrir-nos à realidade que nos cerca e crescer em comunhão com tantos que nos esperam. Espera que nos descentra.
“Diga-me o que você espera e vou lhe dizer quem você é”. A espera revela nossa identidade, aponta para onde está nosso coração.
O “que” ou “quem” esperamos? Se não sabemos o que esperamos, a vida perde sabor e sentido; quem não espera, não busca, não amadurece. No supermercado da vida há muitas ofertas que pretendem preencher o vazio da espera, mas não tem consistência, não nos saciam, não nos preenchem, e não nos indicam um horizonte de sentido. O maior inimigo da espera é a dispersão, ou seja, apego ao imediato e à rotina da vida: “comer, beber, casar... como nos tempos de Noé”, Vivemos tempos de dispersão, cativados pela mídia, pelas ofertas alucinantes... Isso corrói nossa interioridade, nossa visão se atrofia e o horizonte fica obscurecido. A espera vigilante implica ampliar o olhar para além dos nossos pequenos interesses.
Advento é tempo propício para ampliar a visão. Deus não criou as fronteiras; podemos olhar mais além, lançar por terra os limites inventados, desfazer os muros que nos mantém numa vida normótica e repetitiva.
A espera vigilante pede um olhar de longo alcance e, ao mesmo tempo, um olhar que capta os pequenos sinais da Presença d’Aquele que sempre está vindo, no cotidiano da vida. Na espera corremos dois riscos: fixar-nos somente no horizonte e aguardar vindas extraordinárias, fora do normal... desviando o nosso olhar das vindas d’Aquele que se faz presente na simplicidade da vida. Outro risco é ter uma visão atrofiada, limitada ao cotidiano da vida e perdendo-nos na confusão de sinais e vozes que daí brotam. É preciso integrar os dois movimentos. É preciso ter um horizonte de sentido que nos ajude a discernir e distinguir tais sinais.
Do cotidiano aos largos horizontes (amplitude de visão e de vida) e dos largos horizontes ao cotidiano (dar sentido ao nosso chão cotidiano). “Não ter medo do máximo e caber no mínimo: isso é divino”.
Advento não é aguardar Alguém ausente; mas despertar para se fazer presente Àquele que está sempre presente. Esperar é “estar acordado”, no sentido de estar atento e também no sentido musical de “estar afinado”, sintonizado com a Presença que se “des-vela” sempre inesperada, surpreendente e provocativa.
Para dar lugar Àquele que vem sem cessar, é preciso alargar espaço em nossas vidas, expandir nosso coração, aliviar nossas agendas e realizar gestos de serviço que nos fazem crescer em comunhão. A espera de Alguém desperta nossa sensibilidade para perceber que Aquele que esperamos já está presente; nós é que estamos cegos e surdos aos sinais e vozes de sua presença.
O convite de Jesus a viver vigilantes é um chamado a refazer nossa leitura dos acontecimentos, a aprender a lê-los a partir do amor que quer abrir passagem em nós. Não estamos simplesmente “esperando Godot” para entreter o tempo e a vida. A espera não se reduz à espera mesma: ela tem conteúdo. O Salvador não cessou de vir; vem diariamente a nossos mundos (família, trabalho, relações, descanso...), vem para dar à nossa vida a profundidade e largura de seu amor, para que a Criação inteira recupere a beleza, a harmonia e a liberdade que desfrutava quando saiu das mãos do Criador.
A maneira de nos situar na vida muda quando ansiosamente esperamos Alguém: nosso coração se dilata e a vida se torna mais leve. Aquele que esteve, está e estará sempre presente, não vem para complicar nossa vida. Quantas pessoas vemos com o rosto sombrio, como se acreditassem que já não lhes aguarda nada novo, como se em suas vidas tudo estivesse pré-determinado, sem nenhuma possibilidade de mudança!
Advento quer abrir uma brecha naquilo que já conhecemos e sabemos para preparar-nos para receber a força incomparável de uma alegria que quer alcançar nossas vidas.
Esperar nos faz assumir a atitude de sentinelas que, numa posição elevada, é capaz de ler a realidade, vislumbrar o novo e assumir atitudes coerentes.
É de dentro das circunstâncias que atravessamos que Deus não cessa de nos buscar e de nos surpreender.
Texto bíblico: Mt 24,37-44
Na oração: A espera do Advento é mobilizadora, pois ativa nossas melhores energias e desata ricas possibilidades latentes em nós.
Deus vem oferecer-nos infinitas possibilidades de viver de outra maneira.
- O que espero no início deste novo tempo litúrgico: esperar atrofiado, rotineiro... ou esperar criativo e ousado?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Acima d’Ele havia um letreiro: ‘Este é o Rei dos judeus’” (Lc 23,38)
Pode nos causar espanto o fato da liturgia escolher, para a festa de Cristo Rei, a cena da morte de Jesus na Cruz. Para Lucas, o Reino de Jesus é essencialmente o Reino da reconciliação do ser humano com Deus. Em outras palavras, a reconciliação tem como centro a Cruz, ato supremo de amor e expressão visível da Misericórdia de Deus. Podemos, então, afirmar que a “A CRUZ é o lugar por excelência da revelação visível da Misericórdia de Deus”.
No mistério da Paixão do Filho se manifestou radicalmente a Misericórdia do Pai. Na Paixão encontramos a Misericórdia de um Deus que desceu e chegou até o extremo da fragilidade para manifestar a força reconstrutora de seu Amor. Se Deus “sofre”, é por seu excesso de Amor, desde o princípio.
A Cruz de Jesus expressa de maneira penetrante o Amor Misericordioso do Pai. Ela é revelação do Amor levado até às últimas consequências. Ela nos fala daquilo que Deus sente por nós. “Deus é capaz de sofrer porque é capaz de amar. Sua essência é a MISERICÓRDIA” (Moltmann). A Misericórdia torna o próprio Deus vulnerável e passível de um sofrimento livre, ativo, fecundo. Se Deus fosse impassível (incapaz de sofrer) seria também incapaz de amar.
De fato, o mistério do “amor em excesso” de Deus, revelado no silêncio junto ao sofrimento inocente, chama-se misericórdia compassiva. Só o amor é capaz desse sofrimento compassivo. Porque é Amor puro, Deus usa de paciência, de presença silenciosa, de misericórdia ativa e, assim, salva de forma compassiva toda criatura em seu seio regenerador. Só Ele é capaz de assumir para si o sofrimento e a fragilidade humana, abrindo um novo horizonte de vida.
No N.T., o mistério da Misericórdia do Pai atravessa toda a experiência de Jesus, de sua missão, mas também de sua própria paixão e de sua Páscoa. No sofrimento e morte do Filho há a dor de dilaceração, fragilidade e silêncio do Deus Pai/Mãe, como em dores de parto por uma criação que ainda precisa da compaixão e da misericórdia maternal do Criador. Se o Criador sofre em dores de parto por sua criação, nosso sofrimento está em suas mãos, em seu seio. É a maternidade divina regeneradora de sofrimentos.
Sem a Cruz seria muito difícil convencer o ser humano do amor misericordioso de Deus, e mais ainda de seu apaixonado interesse por nos salvar. Mas, a partir dela, será sempre possível dizer ao ser humano que a Cruz de Jesus tem um sentido, e que a última palavra é “salvação”.
No Jesus crucificado se encontram e se reconhecem todos os sofredores inocentes e crucificados da história; n’Ele se condensam todos os gritos da humanidade sofrida e excluída.A “kénosis” de Jesus nos ensina, portanto, a encontrar Deus nos lugares onde a vida se acha bloqueada.
Deus “desceu” às zonas mais escuras da humanidade – sofrimentos, fracassos, amarguras, pecados... – para sentir como Seu nosso sofrimento e ali falar ao nosso coração. No silêncio, Deus não apenas se solidariza, mas sofre “em sua pele”, identificado com os sofredores, aqueles que sobram...
A primeira coisa que descobrimos ao contemplar o Crucificado do Gólgota, torturado injustamente até à morte pelo poder político-religioso, é a força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da mentira. Precisamente aí, nessa vítima inocente, nós seguidores de Jesus, vemos o Deus identificado com todas as vítimas de todos os tempos. Está na Cruz do Calvário e está em todas as cruzes onde sofrem e morrem os mais inocentes.
Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos. “Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora... “Morreu de vida”: isso foi a Cruz, e isso é a Páscoa. E é por isso que tem sentido recordar Jesus, olhando as chagas de seu corpo e as pegadas de sua vida.
O Crucificado nos revela que não existe, nem existirá nunca um Deus frio, insensível e indiferente, mas um Deus que padece conosco, sofre nossos sofrimentos e morre nossa morte. A partir da Cruz, Deus não responde o mal com o mal; Ele não é o Deus justiceiro, ressentido e vingativo, pois prefere ser vítima de suas criaturas antes que verdugo. Despojado de todo poder dominador, de toda beleza estética, de todo êxito político e de toda auréola religiosa, Deus se revela a nós, no mais puro e insondável de seu mistério, como amor misericordioso.
Nós cristãos contemplamos o Crucificado para não esquecer nunca o “amor louco” de Deus para com a humanidade e para manter sempre viva a memória de todos os crucificados da história. Mais uma vez, no alto da Cruz, a Misericórdia visível em Jesus revela-se expansiva, envolvente e salvífica.
Lucas, no evangelho de hoje, destaca diferentes reações das diferentes pessoas que estavam junto à Cruz. Elas representam toda a humanidade frente à Misericórdia solidária de Jesus. Por um lado, estão aquelas pessoas que não viram no rosto de Jesus o olhar misericordioso do Pai; parece não terem entendido a proposta de vida de Jesus. Por isso zombam, desprezam, pedem sinais...
Mas, por outro lado, do meio das zombarias e escárnios, alguém, tocado pelo silêncio e inocência de Jesus, deixa escapar uma surpreendente súplica: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”. Não se trata de um discípulo nem um seguidor de Jesus, mas um dos ladrões crucificados junto a Ele. Ele só pede que Jesus não se esqueça dele. E Jesus responde prontamente: “Ainda hoje estarás comigo no paraíso”. Revela-se impactante que, dos lábios de homem derrotado e moribundo, brote uma palavra de vida, acompanhada de uma certeza que a torna eterna, em um presente sempre atual: “hoje”.
Esta cena nos indica até onde pode chegar a Misericórdia: do meio da morte ela se revela, mais uma vez, geradora de vida, e vida eterna. Agora, na Cruz, estão os dois unidos no suplício e na impotência, mas Jesus, com sua presença misericordiosa, o acolhe como companheiro inseparável. Morrerão crucificados, mas entrarão juntos no mistério de Deus.
Estamos encerrando o “Jubileu extraordinário da Misericórdia”; e a vivência da Misericórdia é a que impulsiona a Igreja para fora de si mesma, para as margens, onde acontece o sofrimento humano. Uma Igreja configurada pelo “Princípio Misericórdia” tem força e coragem para denunciar os geradores de sofrimento e morte, para desmascarar a mentira daqueles que oprimem, para animar e despertar a esperança daqueles que são as vítimas.
Quando isso ocorre, a Igreja é ameaçada, atacada e perseguida; mas isso mostra que ela se deixou conduzir pelo “Princípio Misericórdia”. A ausência de tais ameaças, ataques e perseguições significa, por sua vez, que a Igreja não está sendo fiel a esta misericórdia reconstrutora que se fez visível na Paixão e Cruz de Jesus Cristo. Se ela leva a sério a misericórdia e deixa transparecer no seu modo de se fazer presente no mundo, então ela se torna conflitiva.
Diante do supremo indicador do amor misericordioso de Jesus e do amor do Pai, abre-se para a Igreja uma inesgotável inspiração e uma referência única para ser, também ela, presença misericordiosa.
Texto bíblico: Lc 23,35-43
Na oração: recordar momentos significativos vividos neste Jubileu de Misericórdia que ora se encerra.
Mas a Misericórdia não se restringe a um jubileu, não é um evento; ela é habito de vida, pois é a marca distintiva de todo seguidor de Jesus: “Sede misericordiosos como o Pai”.
- Como deixar transparecer a Misericórdia do Deus Pai/Mãe no cotidiano de sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Haverá grandes terremotos, fomes e pestes em muitos lugares; acontecerão coisas pavorosas e grandes sinais serão vistos no céu” (Lc 21,11)
Aproxima-se o final de mais um ciclo litúrgico e a celebração eucarística deste domingo nos situa diante do último discurso de Jesus, anunciando a queda do Templo de Jerusalém e a presença das crises.
As crises são situações de passagem e fazem parte do crescimento humano, tanto pessoal como coletivo. Não há desenvolvimento sem períodos de ruptura e de descontinuidade. Mas, muitos permanecem paralisados diante do seu caráter ameaçante; acabam por retrair-se e isolar-se no medo.
No entanto, a crise revela uma excelente oportunidade para dispor-nos a avançar, dando um salto qualitativo e de crescimento. Inclusive ela pode ser ocasião propícia para ativar recursos e potencialidades latentes que em tempos de aparente harmonia ainda não tiveram chance de se manifestar. Em cada situação crítica que parece bloquear o caminho, saímos mais humanos e mais criativos.
Nas diversas sabedorias e culturas, como também na psicologia, sociologia, espiritualidade... as crises não só são inevitáveis, mas necessárias e convenientes, porque indicam a passagem de uma etapa a outra. Esta passagem é sempre incômoda, difícil e, inclusive, perigosa porque os elementos que tinham encontrado seu equilíbrio se desestabilizam. Necessita-se habilidade, coragem, tempo e paciência para que se encontre de novo a harmonia. As crises, portanto, não são acidentes de percurso, são a essência mesma do caminho.
O perigo está em permanecer nas manifestações externas e nas evidências imediatas da crise (terremotos, fomes, sinais pavorosos...), conduzindo-nos ao desespero e a sensação de perder o solo sob nossos pés. Só quem desce às profundezas de seu ser encontrará solo firme sobre o qual manter-se inabalável. O furacão revela um núcleo interior de calma e serenidade, enquanto ao seu redor espalha destruição e violência. O mar, nas suas profundezas encontra-se tranquilo, enquanto na superfície as ondas mostram-se agitadas.
A vida está atravessada por um misterioso impulso de “sempre mais”, dinamismo que caracteriza a essência do existir humano; ela está em permanente desenvolvimento e as convulsões fazem parte do processo de mudança e crescimento.
Em tempos de crise, tudo aquilo que nos dava segurança, parece desmoronar-se: o horizonte fica obscurecido, os valores perdem credibilidade, tudo passa por desestabilizações, rupturas, novas adaptações. Tal situação gera insegurança, medo, impotência e experiência de fracasso: projetos se esvaziam, a esperança se atrofia, a criatividade se petrifica..
O crescimento do ser humano não é linear senão que transcorre através de uma sucessão de rupturas.
A primeira é o nascimento, a crise maior de nossa vida, juntamente com a morte, que é a última. Nossa existência é um percurso entre duas rupturas nas quais se dá uma mudança qualitativa entre um modo de ser a outro. Nascer supõe abandonar o ventre materno para expor-se ao desafio da individualidade; morrer supõe deixar esta individualidade para entrar em outro modo de existência. Cada etapa de crescimento suporá um tipo de crise. Assim avança a vida, abrindo-se caminho sem cessar à custa de deixar os territórios familiares para adentrar-se nos inexplorados.
Atribui-se a Albert Einstein as seguintes palavras: “Não pretendamos que as coisas mudem se sempre fazemos o mesmo. A crise é a melhor benção que pode acontecer às pessoas e aos países, porque a crise traz progressos. A criatividade nasce da angústia, como o dia nasce da noite escura. É na crise onde nasce a inventividade, as descobertas e as grandes estratégias. Quem supera a crise, se supera a si mesmo sem ficar superado. Sem crises não há desafios e a vida torna-se uma rotina, uma lenta agonia”.
O Evangelho de hoje (33º Dom TC) convida a não permanecer na casca da vida. Jesus nunca fica na superfície das coisas; sempre vai às raízes. É mais fácil nadar à superfície da água que mergulhar nas profundidades.
Transitamos na casca da vida e esquecemos a verdade da vida; dá medo nos perguntar por aquilo que é essencial; preferimos, muitas vezes, permanecer no superficial, no acidental.
Quando resistimos encontrar com o essencial, afastamo-nos do nosso próprio ser original; quando fugimos do essencial vivemos no vazio. Porque, encontrar-nos com o essencial é deparar-nos com nossa verdade. E isso é doloroso. Custa-nos olhar no espelho de nossa verdade. E se temos medo da própria interioridade, ficamos à mercê dos ventos, tempestades e terremotos. Tudo parece sem solo, nada confere firmeza.
Os tempos difíceis e de crises não devem ser tempos de lamentos ou de desânimo. Não é a hora da resignação, da passividade ou da fuga. A ideia de Jesus é outra: em tempos de crise “tereis ocasião de testemunhar a vossa fé”. É então, precisamente, quando nos é oferecida a melhor ocasião de dar testemunho de nossa adesão a Ele e a seu projeto.
Pertence à crise o aspecto dramático e a sensação da perda dos pontos de orientação. Por isso se impõe a coragem de saber esperar o decantamento da água turva (“em tempo de crise não se toma decisão”).
O tempo de crise revela-se também como o momento para cultivar um estilo de vida cristã, paciente e tenaz, que nos ajude a responder às novas situações e desafios sem perder a paz nem a lucidez. É tempo de discernimento que possibilita uma nova forma de vida.
Jesus, ao falar da destruição do Templo de Jerusalém não estava interessado na destruição dos edifícios, e sim, na destruição da vaidade e do orgulho humano; não vislumbrou a ruína dos muros e das pedras, e sim a ruína da vanglória. Sua presença rompe muralhas, afasta as pedras que impediam a manifestação da Vida.
Em Jesus ocorre algo totalmente novo. Ele traz uma nova maneira de viver que não cabe nos nossos esquemas; o Evangelho é uma novidade que rompe velhas muralhas.
Dizer: “não ficará pedra sobre pedra” é o mesmo que dizer: “não ficará orgulho sobre orgulho, opressão sobre opressão, injustiça sobre injustiça…” Há muitas pessoas encerradas em seus próprios muros, fechadas em si mesmas, em seus interesses, vivendo um universo de egoísmo e exclusão. Vivem separadas dos outros e, quando encontram pessoas semelhantes, criam verdadeiras muralhas ao seu redor.
Cobrimo-nos de pedras, rodeamos nosso coração de muros, construímos muralhas que nos afastam dos outros e de Deus. É isso que somos convidados a fazer: destruir o templo de Jerusalém da solidão, fechamento, angústia, alienação, indiferença, rancor, medo e insegurança… Precisam desaparecer os templos abusivos onde adoramos o nosso “eu” e idolatramos a riqueza, o poder, o prestígio… É preciso derrubar as muralhas do preconceito, das idéias fixas, dos modos fechados de viver..., que impedem o fluir da vida. A Vida que habita em cada um de nós. Há uma força interior que quer romper a casca e transbordar numa explosão vital multiplicadora. É sobre as cinzas de nossas míseras ambições que o Reino de Deus plantará suas raízes.
Texto bíblico: Lc 21,5-19
Na oração: Para Jesus, a verdadeira beleza não está nas pedras do templo, mas na nossa interioridade, “casa de Deus e espaço de oração”. É o único lugar que permanece tranquilo e sólido diante das sacudidas existenciais provocadas pelas crises.
- Como você reage diante de suas crises: na fé, no sentido da vida, nos relacionamentos...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
ITAICI-SP
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“Esta é a vontade d’Aquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que Ele me deu, mas os ressuscite no último dia” (Jo 6,39)
Ao celebrar o “Dia de Finados”, todas as culturas e religiões, cada uma à sua maneira, intuíram o que não se pode dizer, ou o que só pode ser dito com muito recato: que a morte é passagem, travessia, nascimento; que nela entramos no processo definitivo de libertação, de transformação, de acesso à Plenitude da Vida, à Comunhão dos santos, à Santidade de Deus...
Toda expressão de vida flui para a morte. E o ser humano é o único animal que sabe que vai morrer. No entanto, inventa toda sorte de artifícios para não assumir este destino que lhe é insuportável. Mesmo estando frente à morte dos outros, pensa ainda poder escapar desta decisiva hora.
Esta é a realidade dura de aceitar nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte são expulsas da experiência humana. A morte é distante e virtual: procuramos negá-la, escondê-la, dissimulá-la. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana. Vivemos como se tivéssemos que ser imortais. Quando ela está perto, nós nos afastamos dela, ou então, ela é afastada para locais específicos.
No entanto, a vida marcada pelo medo da morte é uma vida “em terra de sombras”, que contradiz nossa vocação cristã de ser filhos(as) do dia e da luz.
O medo da morte impede viver adequadamente o presente. Mais grave ainda, o medo da morte pode chegar a escravizar-nos e angustiar-nos a ponto de impedir-nos viver a vida com sentido, qualidade e prazer. Ela nos golpeia em dimensões muito sensíveis e frágeis de nossa experiência humana.
A negação da morte sempre cobra um preço – nossa vida interior se trava, nossa visão se encolhe, nossa razão se esconde, nossos sonhos se atrofiam... No final, o auto-engano toma conta de nós.
Todos morremos, mas há mortes e mortes. Na cultura da “pós-modernidade líquida” a morte se apresenta como termo, ruptura e aniquilação. Somente os que não viveram seriamente, os que esbanjaram sua vida em caprichos e superficialidades, os que semearam dor e morte ao seu redor, os que asfixiaram a vida e não se importaram com os outros, tem medo de morrer.
Os que aceitaram sua vida e se atreveram a vivê-la seriamente, os que a viveram como dom que se entrega, aceitam sua morte e a esperam de modo sereno e livre, como o descanso devido depois de uma jornada trabalhosa e fecunda. Assim como uma missão cumprida devidamente dá alegria ao sonho, uma vida bem vivida dá alegria à morte. Porque a vida valeu a pena, também vale a pena morrer.
A experiência cristã nos revela que, como criaturas, somos mortais e dotados de liberdade; é por isso que nós nos interrogamos sobre o sentido da vida; somos capazes de viver a vida como um projeto expansivo e inspirador e que podemos transformar a morte no último e supremo ato de nosso viver.
E a morte só pode ter um sentido e significado se a vida também os tiver; quando alguém sabe “para quê e para quem vive”, realizando sua original missão, pode morrer em paz. Aqueles que vivem intensamente enfrentam com grande serenidade seu envelhecimento e a proximidade da morte, vendo nela mais uma etapa no processo normal de seu amadurecimento e de sua realização. Aquele(a) que é conscientes de ter vivido por alguma causa, de ter levado uma vida plena, pode dar sentido e significado espontâneos ao último ato de sua existência, a morte. É o modo como alguém vive que qualifica a morte. Há mortes que, para além da inevitável dor que causam aos familiares e amigos, provocam paz, agradecimento, vontade de viver seriamente, de se levantar da superficialidade e da mediocridade.
Para a fé cristã, a morte é travessia para a comunhão plena. Último passo. Por isso, não pode ser escondida; antes, preparada. A fé desvela a morte como momento em que a pessoa se abre para dimensões nunca antes imaginadas. Assim ela nos dá maior responsabilidade diante da nossa própria vida.
Diante da memória dos entes queridos que já fizeram a “travessia pascal”, a morte se transforma em “boa notícia”, pois eles(elas) se atreveram a viver como Jesus viveu. Viveram para dar vida e morreram para defendê-la. Viveram a vida como entrega e sua morte foi uma conseqüência lógica de seu modo de viver. Levaram a existência até os limites de suas possibilidades e fizeram dela uma semente permanente de vida. A lembrança da vida e da morte dessas pessoas continua semeando vontade de viver com autenticidade. Elas derrotaram a morte.
De fato, o modo de viver de Jesus recebeu o sim definitivo de Deus e nos mostra que a vida entregue para dar vida é o caminho para derrotar a morte e continuar vivendo. No acontecimento infinitamente doloroso da morte de Jesus se revela e se promete o sentido último do viver e do morrer humano. “Recordar” (visitar de novo com o coração) aqueles(as) que estão no coração de Deus é abrir-se para a vida, não somente para aquela vida plena do mundo futuro, mas também para uma mais profunda qualidade desta vida presente.
Nesse sentido, afirmar a ressurreição não é consolo ilusório, nem evasão do compromisso com a história e com a vida. É decisão firme de continuar o projeto de Jesus, de defender a vida onde quer que esteja ameaçada, de arriscar-se pelos mais fracos e excluídos para que tenham vida, de viver dando morte à morte, curando feridas, levantando corações, semeando esperanças... A ressurreição nos faz compreender que a travessia por este mundo não consiste em outra coisa senão no tempo da gestação concedido a cada um de nós para que, dentro desse imenso ventre cósmico, possamos aprender a viver de amor e contemplar a obra d’Aquele que é Fonte e Destino final da vida.
A vida e a morte não são, portanto, inimigas que se destroem; elas são amigas, irmãs inseparáveis. Morre-se ao longo da vida. Este é o caminho normal de morrer.
A vida é o lento amadurecer da morte. Morre-se na vida, durante a vida, na medida em que a morte é fruto maduro das opções de toda a vida. As decisões fazem e farão a nossa morte. A morte nos ronda e nós rondamos a morte. “Começamos a morrer no dia em que nascemos”.
A experiência cristã nos revela o caminho de uma morte preparada ao longo da vida, porque a entende em relação com a vida e a vida em relação com a morte. Viver sem morrer é viver menos; tira a seriedade da vida (L. Boff). Só assumida em liberdade e ativamente, a morte se humaniza. Na fé, cristianiza-se. Por isso, celebrar “Finados” nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ao mesmo tempo, aumenta a consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida intensa e plenamente.
Essa abordagem da morte leva a um compromisso maior para com a vida, saboreando a preciosidade de cada momento e o simples prazer de existir. Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos vivem, porque incapazes de reinventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
Texto bíblico: Jo 6,37-40
Na oração: revisitar e entrar em comunhão com aquelas pessoas que “morreram de tanto viver”; “encantadas” no coração de Deus elas continuam sendo inspiração e referência para poder assumir a vida com mais paixão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7)
A liturgia deste domingo nos motiva a fazer memória dos Santos e Santas, aquelas pessoas que, conhecidas ou anônimas, são presenças inspiradoras para nós que buscamos viver o seguimento de Jesus Cristo com mais autenticidade. Ao mesmo tempo, esta festa vem nos recordar a vocação à qual todos somos chamados: vocação à santidade. E santidade significa, na sua essência, ser presença misericordiosa.
Para Jesus, a Santidade é fundamentalmente a atitude e o modo de agir que deixa fluir os mesmos sentimentos e a mesma ação de Deus Pai: “Sejam misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc 6,36).
O chamado a prolongar o proceder misericordioso de Deus (sua Santidade), sempre tem um “mais” de amor, de paz, de mansidão, de justiça, de consolação..., recebido e vivido na relação com os outros, dentro do acontecer cotidiano e imprevisível da vida.
Portanto, é nas bem-aventuranças que encontramos um “modo de proceder” que nos faz crescer na direção da Santidade de Deus. É na vivência das bem-aventuranças que deixamos transparecer o que há de mais divino em nós; ao mesmo tempo, elas fazem emergir o que há de mais humano em nossas vidas.
A plenitude do humano só se alcança no divino, que já está presente em nós. Ser santo(a) é aspirar ser mais humano a cada dia, destravando e expandindo o amor que Deus derramou em nosso interior.
Quando acreditamos que para ser santo(a) temos de anular os sentidos, reprimir os sentimentos, submeter a vontade, centrar a vida nas renúncias e sacrifícios… nós estaremos nos desumanizando.
Quando colocamos a santidade no extraordinário, estamos nos afastando da referência evangélica. Se cremos que santo é aquele que faz o que ninguém é capaz de fazer, ou deixa de fazer aquilo que todos fazem, já caímos na armadilha do ideal de perfeição. E a perfeição não justifica e nem salva o ser humano. Não fomos chamados para sermos “perfeitos” mas para sermos “santos”; e a santidade é vivida em meio às fragilidades e limitações da vida cotidiana, inspirando-se sempre na santidade de Deus.
É na medida que nos fazemos mais humanos que mais nos santificamos. Ser santo(a) é ser humano(a) por excelência.
As bem-aventuranças desvelam o verdadeiro rosto do(a) santo(a). Quem é ditoso(a)? Quem é bem aventurado(a)? Quem é feliz? Dizer que são felizes os pobres, os que choram, os mansos, os misericordiosos, os que tem fome e sede de justiça, os perseguidos... é um contra-senso para o nosso contexto social, onde ditoso é aquele que mais acumula bens, que tem mais poder, mais prestígio..., sem se preocupar com a situação dos outros.
Só conhecendo a intenção de Jesus é que poderemos descobrir o sentido das bem-aventuranças. Só descobrindo o que há de Deus em nós, poderemos cair na conta do verdadeiro sentido da santidade. Não bastam os meros sentimentos interiores, mas é preciso atitudes práticas que nos fazem sair de nós mesmos e nos movem ativamente ao encontro do outro.
Poderíamos dizer que as Bem-aventuranças são a quinta-essência do seguimento de Jesus.
Jesus, ao subir o monte das bem-aventuranças, promulga seu programa de “felicidade e ventura”.
Ele compreendeu que o meio mais eficaz e mais direto para nos aproximar de Deus, e para que cada um se realize como ser humano que é, não é estabelecer proibições, mas fazer propostas que mais e melhor se harmonizem com nossa condição humana, com aquilo que mais desejamos.
O Evangelho, a “boa notícia”, é o tesouro que enche o ser humano de uma felicidade indescritível. Com efeito, a primeira característica que aparece nas bem-aventuranças é que o programa de vida que Jesus nos confiou é um programa para alcançar a felicidade, a vida ditosa, prazerosa, bem-aventurada. Na boca de Jesus brilha sempre a palavra chave: “Felizes”.
As bem-aventuranças não são leis para simplesmente evitar o mal, mas o potencial humano que, quando ativado, espalha criativamente, por todos os lugares, a Bondade e a Beleza divinas. Expressam, de modo conciso e explícito, o coração mesmo de Jesus e seu desejo ardente de contagiar a todos os que se encontravam com Ele. A felicidade proclamada era já uma realidade presente na Sua pessoa e na Sua missão.
Jesus nos convida a viver uma felicidade que já está em marcha. A vida é movimento e as bem-aventuranças possibilitam a passagem de uma vida suportada para uma vida plenamente assumida.
Nelas, Jesus nos desperta para sairmos de nossa paralisia e fixação, colocando-nos em marcha através de nossa fome e sede de justiça, através dos lutos que temos de superar e das oposições que temos de enfrentar, através da mansidão, da busca da paz…
O núcleo do ensinamento de Jesus está na quarta e quinta bem-aventuranças. A atitude central do discípulo do Reino é a misericórdia e a fome de justiça; uma fome de justiça que brota da misericórdia, e uma misericórdia que se expande não no mero assistencialismo, mas na fome e sede de justiça. Convertidas em principio de felicidade, a misericórdia e a fome de justiça são o dinamismo e o motor de toda verdadeira humanização; esta é a nota fundante do Evangelho, o princípio de todo amor cristão, entendido de forma universal, como amor que cria, ajuda, pacifica, eleva..., enfim, abre um horizonte de sentido.
As demais bem-aventuranças são como círculos concêntricos que nascem em torno à atitude fundamental da misericórdia e da fome de justiça.
A terceira e a sexta bem-aventuranças: de um lado uma pessoa aflita, condoída, sofredora, com um pesar pela situação do mundo, pela dor das vítimas; ou seja, a fome e sede de justiça e a misericórdia lhe deixam um certo entristecimento, compatível com muitas alegrias. De outro lado, essa dor faz com que, aquele que reage com misericórdia e fome e sede de justiça, tenha o coração limpo: a fome de justiça vivida com esse tipo de dor limpa o coração. E os corações limpos encontram a Deus.
A segunda e a sétima bem-aventuranças: aqueles que tem misericórdia e fome de justiça são mansos. A mera indignação pode torná-los violentos, mas a misericórdia os faz mansos, não violentos. E também, precisamente por essa mansidão, serão atores de paz, serão pacificadores.
E chegamos ao último círculo desta atitude central: quê acontece com aqueles que adotam esta atitude? Tornam-se “pobres com espírito”. A fome de justiça e a misericórdia aproxima-os dos pobres, despoja-os de muitas coisas... Esses são os pobres pelo Espírito. Eles tem o coração desprendido; por isso se tornam pobres e, em paralelismo com isso, são perseguidos por causa da justiça.
Texto bíblico: Mt 5,1-12
Na oração: Marcado pelo espírito das Bem-aventuranças, movido por um olhar novo e um coração ardente, entre em comunhão com a realidade tal como ela é; sinta o mundo como “sacramento de Deus” e seja capaz de descobrir e apontar os sinais de esperança ali presentes; revele uma presença afetiva, marcada pela ternura, compaixão e por isso geradora de misericórdia; presença comprometida solidariamente com o Projeto de Jesus, na vivência da mansidão e na busca a paz...
- Reze as dimensões da vida que estão paralisadas, impedindo-o viver a dinâmica das bem-aventuranças.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“...hoje preciso ficar em sua casa” (Lc 19,5)
Os protagonistas da cena do Evangelho de hoje (31º Dom Tempo Comum), Jesus e Zaqueu, são duas pessoas completamente diferentes entre si, diametralmente opostas; porém, procuram-se mutuamente. Ao redor deles, encontra-se uma multidão, que parece desordenada e crítica, que até se torna obstáculo: de um lado, impede Zaqueu de ver, e de outro, murmura contra Jesus, contestando-o por estar do lado “errado” ou com quem já estava perdido.
Zaqueu é a uma das poucas pessoas que, nos quatro Evangelhos, toma a iniciativa de encontrar-se com o Mestre gratuitamente: nada tem a dizer e nada tem a pedir. Zaqueu não sabe o que deseja de Jesus, nem o que Jesus deseja dele; esta é a graça: encontrar-se com o “Mistério”, deixar-se “interpelar”... Ele não tinha uma ideia formada, consistente, sobre Jesus. Brota nele, talvez por curiosidade, uma decisão de simplesmente se encontrar com Ele. No seu interior palpita um desejo estranho. Diz o texto que desejava “ver quem era Jesus”. Mas Zaqueu é obrigado a “sair de si”, deixar seu “lugar”; não pode “trazer a si”, “mandar vir”... é forçado a se deslocar.
E, talvez pela primeira vez, esbarra-se de encontro ao muro da impotência. Não podia ver Jesus porque era de estatura baixa e havia muitas pessoas em volta do Mestre. Provavelmente não foi apenas a quantidade de gente que o impediu de aproximar-se d’Ele; foi a sua condição de pessoa rejeitada pela multidão. Zaqueu, pequeno em estatura, baixo em ideais, atrofiado em seus sonhos..., alimentava dentro de si um grande desejo de “querer ver”; tal atitude desvela a busca pela verdade, pelo bem, pela vida verdadeira, que reina latente no coração de cada ser humano.
Jesus se coloca, precisamente, neste espaço, fazendo brotar no interior de Zaqueu o que era novo, surpreendente, enfim, a “hora” da salvação. Não faltava segurança econômica e nem social para Zaqueu. Porém, no fundo, talvez fosse um homem solitário, triste, marginalizado. Sentiu em seu coração um vazio profundo, que se transformou em desejo atormentador, ou seja, uma urgente necessidade de mudança.
Sentiu que não podia continuar indiferente diante da pessoa de Jesus. A agitação, a pressa e o entusiasmo, com os quais se pôs à procura do Mestre, indicam a clara demonstração de que surgira nele uma estranha inquietude. O nome e a pessoa de Jesus tiraram o véu que encobria o vazio de seu coração, a solidão na qual se encontrava, a insignificância de seus próprios dias.
O encontro de ambos acontece na estrada, onde transitam, onde ocorrem os acontecimentos do dia-a-dia, onde a vida transcorre, onde passam os dias e os anos...Zaqueu não se preocupa com mais nada: nem com a boa imagem ou com o que a multidão pensaria ao vê-lo sobre uma árvore; o respeito humano, o bom senso, o status social e o “bom nome” não lhe interessam mais. Enfrenta a limitação de sua baixa estatura, esquece a condição de ser um homem rico, “respeitável”, e sobe numa árvore, da qual pensa ver Jesus sem ser visto.
Jesus passa pelo caminho arborizado e vê Zaqueu em seu observatório, e o convida a descer:
“Desce depressa, porque hoje preciso ficar em sua casa”.
Não é uma visita passageira; é o amigo que deseja permanecer em sua casa. Não vai para deixar alguma coisa, vai para ser o próximo de Zaqueu. O próximo entra como amigo, sem impor condições, sem fazer pesar-lhe a sua situação de pecador. Chama-o finalmente pelo nome: “Zaqueu”. Olham-se e entendem-se. O olhar profundo de Jesus, seu amor exagerado, seu convite inesperado, sua voz penetrante, transformam de imediato a vida daquele pequeno homem. E, nada mais foi como antes!
Mas o verdadeiro encontro entre os dois se dá em casa, entre as paredes da vida cotidiana. Jesus quer a mesa de Zaqueu; não lhe importa a sua estatura. O “Senhor”, como dom gratuito e inesperado, entra na casa e no coração de Zaqueu, à busca de quem estava perdido.
Somente depois daquele encontro, fulminado pelo olhar e pelas palavras de Jesus, com o coração transbordante de alegria, Zaqueu se sente renovado e tudo, ao seu redor, lhe parece novo e diferente. Durante a refeição, partilhando do mesmo pão e do mesmo vinho, ambos se conhecem melhor. Não há perguntas, não há conselhos, nem muito menos repreensões, mas apenas uma conversa amigável, sentimentos manifestados, experiências confrontadas.
Jesus não pede nada a Zaqueu: é seu hóspede e se contenta de estar perto dele, partilhar com ele uma refeição. Contudo, o vinho novo de Jesus arrebenta os odres velhos de Zaqueu. Assim, o chefe dos publicanos se torna transbordante, apaixonado, protagonista de uma vida nova. Ele passa da solidão à partilha, da tristeza à alegria...
Zaqueu não está mais sozinho e não se sente mais uma pessoa insignificante. O olhar d’Aquele homem encheu-lhe o coração; a sua casa, agora, não está mais vazia; a tristeza não o sufoca mais. Finalmente, ele descobriu a luz de um olhar e experimentou a ternura de ser procurado e amado.
Zaqueu foi amado “excessivamente” e decide corresponder com a mesma moeda, sem medidas. Ele viu, por um instante, a sua vida na nova visão: “Senhor, vou dar a metade dos meus bens aos pobres; e se roubei alguém, vou devolver quatro vezes mais”. E o hóspede sela esta jornada, iluminando o acontecimento e interpretando-o no seu significado de graça, de libertação: “Hoje, a salvação entrou nesta casa”.
O encontro com Jesus significou para Zaqueu abrir-se aos pobres, partilhando seus bens com eles. Tal encontro faz Zaqueu alargar seu espaço interior para se encontrar com os outros; ou melhor, amplia seu coração para deixar os outros entrarem em sua vida. Um encontro que desencadeia outros encontros.
Jesus é a única porta, e esta não dá para o vazio; esta porta dá para os outros que possuem um nome, uma identidade, uma história... Os “outros” conseguiram tirar Zaqueu do bloqueio da sua solidão e começou a ver e a ouvir, a caminhar em direção deles e com eles. Este é o sinal claro e evidente de que o próximo foi acolhido.
Em Zaqueu aconteceu uma mudança de perspectiva decisiva, radical. Anteriormente contemplava os outros a partir do observatório do próprio ego. Agora que se encontrou com o Senhor e que saiu de si para conhecê-lo e acolhê-lo, enxerga os outros a partir da perspectiva de Jesus.
Ele sente que não apenas a sua casa está habitada, mas, sobretudo a sua morada interior, onde o seu “eu” tem vivido como um estranho, onde jamais encontrou segurança.
Não bastou descer da árvore: “Não, Zaqueu! Desce! Desce mais! Até o fundo de ti mesmo!”
Texto bíblico: Lc 19,1-10
Na oração: No fundo de nosso pobre coração, entulhado de ídolos, como um quarto de despejo, é aí que o Senhor ajeita um cantinho para sentar-se e ficar à nossa espera.
É dentro do nosso próprio coração que Deus nos espera. Compete a cada um alimentar o desejo do encontro com Ele.
- Desce ao mais profundo de você mesmo e ali, diante da presença misericordiosa do Senhor, estabelece um diálogo íntimo com Ele.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O fariseu de pé, rezava assim em seu íntimo: ‘Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens...,
nem como este cobrador de impostos” (Lc 18,11)
Nesta parábola, mais uma vez Jesus desvela a presença de dois personagens em nosso interior: o fariseu, expressão máxima do legalismo, do moralismo, do perfeccionismo, e o publicano, expressão máxima daquele que se reconhece pecador, necessitado da misericórdia divina. Ambos vão ao templo (coração) para orar, e, na oração, cada um deles revela seu rosto e sua identidade. Qual deles prevalece em nosso interior? Qual deles alimentamos?
De fato, é na oração que o ser humano exprime aquilo que é mais íntimo e mostra como ele se relaciona com os outros e com Deus. Jesus nos apresenta o fariseu como protótipo da pessoa que se sente segura de si mesma, e que tem essa segurança porque cumpre minuciosamente com as observâncias religiosas. Não pode ver nem reconhecer suas imperfeições, mesmo estando dentro dos muros de um lugar sagrado. Em sua oração, ele não pede nada, mas informa a Deus sobre sua perfeição: na realidade não é Deus o centro da sua existência, mas seu eu. Ele dá graças por sua conduta perfeita e exemplar.
Não só é perfeito diante de seus olhos, mas quer também mostrar-se perfeito aos olhos de Deus. A tendência à perfeição favorece um egocentrismo refinado.
Na sua oração, o fariseu se considera “justo” e pensa agradar a Deus com suas observâncias e práticas legais. Ocorre que não é nada elegante alguém se apresentar a Deus com as credenciais de “justo”, pois o fariseu se esquece que só Deus pode justificar o ser humano. A autoglorificação impede sua humanização. Petrifica-se em seu legalismo e perfeccionismo.
Ele está cego e não vê que também é pecador, dependente da misericórdia de Deus. Não reconhece sua realidade pobre e limitada e, em sua oração, está ausente o pedido de perdão. Incapaz de olhar intimamente para si, cobre com um véu os próprios pecados, fazendo de conta que eles não existem. Incensurável, respeitador e cumpridor de todas as leis – porém cheio de si -, o fariseu voltou para casa com um pecado a mais. A consequência é vida dupla: a fachada externa perfeita que esconde um interior frio e insensível, resistente a perceber a própria fragilidade.
Na sua autossuficiência, o fariseu pensa que pode “ficar de pé” diante de Deus e à frente de todos; sobe o pedestal da “perfeição” e do “legalismo” e distancia-se do amor e da misericórdia de Deus; com isso, cai no orgulho religioso e é incapaz de ouvir a Deus no seu íntimo.
Na prática, a oração do fariseu significa submeter Deus a si mesmo, cobrando o prêmio pelas boas ações. Agradece porque é sem vícios, não porque se sinta amado por Deus. Seu louvor e agradecimento são apenas um pretexto para louvar a si próprio, inflar o próprio ego; na sua oração Deus não tem o lugar que lhe é devido; a oração passa a ser um monólogo vazio e presunçoso de quem “celebra” seu “eu” e seus méritos diante de Deus. E como fala só consigo mesmo, encontra-se só com seus méritos e suas pretensões. O seu monólogo é um palavreado crônico, exibicionismo enganoso de um “eu” que não tem outro “deus” além de si mesmo. Ele tem méritos e nada deve a Deus; ao contrário, Deus é quem lhe deve: a enumeração de suas boas obras implica a pretensão de uma recompensa.
Por considerar-se “justo”, apresenta a Deus uma lista de pessoas indesejáveis, censurando e condenando a todo mundo. O perfeccionista não pode prescindir da comparação. Tem necessidade de um ponto de referência que destaque sua grande estatura legalista. Por isso o fariseu observa a presença de um pecador com quem se compara e diante de quem se sente superior.
Não há perfeccionista que não seja inquisidor, nem inquisidor que não seja perfeccionista. A tendência à perfeição oprime a pessoa até sufocá-la; sendo excessivamente exigente, oprime e sufoca também os outros. Por isso, a tendência à perfeição é uma doença do espírito, um eu em conflito consigo mesmo. O perfeccionista vive uma batalha interior, uma batalha que jamais se vence; sua vida torna-se estreita, ele se desumaniza e mergulha nos escrúpulos.
Quem se deixa guiar pela ideia de perfeição, cedo se dará conta de que não poderá abraçar a vida. Permanecerá confinado num eu inchado e vazio, que caminha sobre pernas de pau. O “fariseu” que todos hospedamos em nosso interior realiza seu trabalho em silêncio, mas com uma eficácia impressionante: torna o nosso coração impermeável à experiência divina e petrifica nossa compaixão na relação com os outros.
Jesus destrói o conceito de “justificação” rabínica, baseada no cumprimento da lei, quando, na pessoa do publicano, mostra que Deus salva quem julga nada ter a apresentar, sente a necessidade de se converter e de se entregar. Consciente de sua indigência e fragilidade, o publicano prostra-se diante de Deus, volta-se para a o chão, reconhece seu pecado, abre-se à misericórdia de Deus, de quem espera o perdão. Esta humildade é a porta de abertura para sair de um coração fechado em si mesmo, de um coração autossuficiente e perfeccionista, onde tudo gira em torno do próprio eu, onde não há espaço para o Outro e os outros, onde a Misericórdia não tem como agir para poder transforar a pessoa.
Jesus sabia que a pessoa consciente das suas imperfeições é mais disponível ao anúncio do Reino. Sabemos que as escolhas de Jesus não caíram sobre os perfeitos. As pessoas com quem Ele entrou em contato não eram conhecidas por suas boas maneiras nem pelas boas ações, antes, eram pecadoras públicas.
O publicano não tinha esperanças: reconhecendo-se pecador diante de si mesmo, diante de Deus e dos outros, sabia que a única esperança era a misericórdia de Deus. Diante da grandeza e transcendência de Deus, sente uma necessidade instintiva de retirar-se, de deter-se, quase pedindo desculpas por ousar entrar no templo. Ele nada tem para apresentar a Deus, nada de que se orgulhar e nada para exigir. Só lhe resta a pobre oração dos excluídos e dos pecadores assumidos, dos desmoralizados e humildes.
Nesta parábola, Jesus revela também um Deus desprovido de dogmatismos, de controle e de poder. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, impor, verificar... Basta-lhe a misericórdia, a compaixão...
A misericórdia torna o Deus de Jesus acessível a tudo que é imperfeito, limitado, humano... A misericórdia constitui a resposta à indigência do ser humano. Ela oferece a possibilidade de pôr de lado o julgamento e a condenação. O passado de erros e fracassos é substituído pelo presente de aceitação e perdão. Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano.
A misericórdia é a resposta de Deus ao delírio do ser humano de querer ser perfeito; é a única força capaz de deter o ser humano naquele processo de autodivinização, própria do fariseu. Jesus propõe um modo de ser humano inseparável da misericórdia do Pai:
“Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc. 6,36)
Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado convite e a mensagem mais profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a si mesmo e aos outros.
Texto bíblico: Lc 18,9-14
Na oração: * Fazer leitura compassiva das atitudes petrificadas em sua vida.
* Sua vida cotidiana gira em torno da perfeição farisaica ou da misericórdia divina?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” Lc 18,8)
Na parábola de hoje, dois personagens ocupam a cena. Um juiz que “não teme a Deus” e “não respeita as pessoas”; é um homem surdo à voz de Deus e indiferente aos sofrimentos dos oprimidos. De outro lado, a parábola fala de uma viúva que tem fé e que protesta, pedindo justiça, apesar da insensibilidade do juiz.
Quê ressonâncias pode encontrar hoje em nós este relato dramático que nos lembra tantas vítimas abandonadas injustamente à própria sorte? Na tradição bíblica, a viúva é, junto com o órfão e o estrangeiro, o símbolo por excelência da pessoa indefesa que vive desamparada, a mais pobre dos pobres. A “viúva” é uma mulher sozinha, sem a proteção de um esposo e sem apoio social algum. Só tem adversários que abusam dela.
A pobre viúva, no evangelho de hoje(29º Dom TC), longe de resignar-se, clama por justiça; ela não tem outra coisa a não ser sua voz para gritar e reivindicar seus direitos. Toda sua vida se transforma num grito de protesto: “faze-me justiça!”. Seu pedido é o de todos os oprimidos injustamente. Um grito que vai ao encontro daquilo que Jesus dizia aos seus seguidores: “Buscai o Reino de Deus e sua justiça”.
De fato, se observarmos bem o conteúdo do relato e a conclusão do mesmo Jesus, vemos que a chave da parábola é a “sede de justiça”. A expressão “fazer justiça” é repetida quatro vezes. A viúva do relato é exemplo admirável de uma mulher corajosa que luta pela justiça em meio a uma sociedade corrupta que explora os mais fracos.
Contrariamente àqueles que pensam que não vale a pena sair às ruas e gritar (no plano social e religioso, político e eclesial), o evangelho de hoje nos coloca diante do exemplo da fé e do grito de protesto da viúva, capaz de alterar a ordem injusta do sistema social. Muitas vezes resta só um grito, mas um grito que é mais profundo e eficaz que todas as vozes opressoras, ocas, prepotentes... daqueles que corrompem e exploram os mais pobres. O problema está em que a maioria se cala ou se dobra diante da realidade injusta, pedindo míseras migalhas, subsídios, esmolas... para que tudo continue igual. No fundo, querem que os enganem, e assim compactuam com a submissão alienante.
O que acontece é que, muitas vezes, aqueles que deveriam protestar, como a viúva, preferem ajustar-se ao sistema “por um prato de lentilhas”: preferem fazer pacto com o juiz, com o opressor. Essa tem sido a atitude de grande parte das comunidades cristãs, daqueles que dizem que nada podem mudar. No fundo, é a atitude daqueles que não creem em Deus.
Pois bem, contrariamente a isso, esta viúva grita, em gesto de manifestação radical. Não se resigna, não se curva. Com indignação, eleva-se diante do juiz, que representa todos os “podres poderes” deste mundo. Ela, a viúva do grito, é mais forte que os próprios juízes.
Certamente tem razão o teólogo J. B. Metz quando denuncia que na vivência cristã há demasiados cânticos e poucos gritos de indignação, demasiada complacência e pouca aspiração por um mundo mais humano, demasiado consolo e pouca fome de justiça. É preciso somar gritos!
Esta parábola não trata de uma situação particular, mas recolhe a experiência mais profunda da Bíblia, desde os hebreus no Egito que gritam e Deus os escuta. Para que a realidade se transforme, continua sendo necessário o grito das viúvas, a voz de todos os oprimidos do mundo, que clamam diante de Deus e diante dos homens.
Esta é a fé fundamental, a fé da viúva que grita e pede justiça. Esta é a fé na força do protesto. Esta é a fé que se eleva e se opõe ao sistema injusto.
A fé não é “algo” que alguns possuem e outros não; da mesma forma, a fé não se reduz a uma aceitação doutrinal, prática de obrigações religiosas e obediência e uma disciplina. A fé é uma vida que se desperta, cresce, se expande..., vai se renovando a cada dia e tem implicações na construção de um mundo mais justo.
A constância e a insistência de uma pobre viúva põe em cheque a um autossuficiente juiz que se considera mais valente. A constância é como a gota de água que pouco a pouco vai perfurando a pedra; a constância é capaz de dobrar o mais duro coração.
A viúva “crê” (tem fé) na força de sua insistência pedindo justiça. Numa dimensão mais profunda, o grito dos marginalizados e das viúvas ressoa na mente daqueles que se beneficiam do sistema social injusto. Trata-se não de resignar-se, de não aceitar simplesmente o mundo como está, mas de protestar... Esta viúva é o símbolo das vozes de todos aqueles que gritam e protestam.
Se todas as viúvas do mundo gritassem, se todos os pobres gritassem, se todos os que se sentem enganados por esta sociedade elevassem a voz, o sistema social tremeria diante do grito da vida. O resultado final não estaria no triunfo dos mais fortes e poderosos, nem no poder do dinheiro, mas no grito incessante, de não-violência ativa. O grito dos que clamam diante de Deus e diante dos homens tem uma força infinita; trata-se da onipotência daqueles que gritam.
Vivemos em um mundo que parece dominado pela voz daqueles que vivem para se impor, pela propa-ganda de um sistema que quer silenciar todos os gritos e enganar-nos a todos com o circo midiático das mentiras organizadas. Pois bem, contra tudo isso, temos que nos comprometer a elevar nossa voz proféti-ca, como tantos homens e mulheres de nosso tempo.
Humanamente falando, essa voz parece muito fraca. Como comparar-se com as potentes vozes do império da mídia ou com a injustiça organizada dos “juízes” do mundo? Externamente o grito da viúva parece muito pouco; não é nada e, no entanto, essa voz foi e continua sendo mais poderosa que todas as armas e dinheiro do sistema.
Esta é a pressão popular, esta é a revolução de todas as viúvas do mundo, ou seja, de todos os injustiçados, uma revolução que tem que começar, a partir do Evangelho. Assim foi a voz de Jesus que gritou contra as injustiças, a favor da justiça do Reino, mas foi assassinado. É evidente que não conseguiram calar sua voz, pois esta continua ressonando e perturbando a vida de muitos acomodados. Assim deve ser nossa voz, nosso grito, contra a ordem econômica injusta, contra uma sociedade que engana para manter privilégios, e inclusive contra as religiões que nos obrigam a ficar em silêncio.
Texto bíblico: Lc 18,1-8
Na oração: É nossa oração um grito a Deus, mobilizando-nos a lutar pela justiça em favor dos pobres deste mundo, ou será que a substituímos por outra, onde o centro está ocupado pelos interesses do nosso “ego” ?
- Por que nossa comunicação com Deus não nos torna sensíveis para escutar o clamor daqueles que sofrem injustamente? Muitas vezes alimentamos nossas devoções particulares, esquecendo os que vivem sofrendo.
- Continuamos orando a Deus para pô-lo a serviço de nossos interesses, sem nos importar muito com as injustiças que há no mundo. Muitas vezes, em nossas comunidades cristãs, o centro de nossas preocupações não é o sofrimento dos últimos, e sim a vida moral e religiosa dos cristãos.
- Em nossas liturgias ressoa a voz daqueles que clamam por justiça ou elas são ritos vazios de vida que nos mantém anestesiados e alienados frente aos dramas da humanidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
(imagem das vitimas do furacão no Haiti em outubro 2016)
“...atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra e lhe agradeceu; e este era um samaritano”
A tradição judaica transmite este ensinamento: “Aquele que desfruta de um bem qualquer neste mundo sem dizer antes uma oração de gratidão ou uma benção, comete uma injustiça”.
A ação de graças está no coração mesmo da liturgia e da oração cristãs. A sorte e a felicidade do cristão consistem em poder dar graças a Alguém. O maior drama vivido por um ateu é não ter a Quem agradecer. A pessoa compreende que “tudo é dom e graça de Deus” e esquecer de agradecer é passar ao lado daquilo que constituí a beleza da vida. Agradecer é muito mais que dar graças. Implica reconhecimento e correspondência. “Ali onde não há gratidão, o dom fica perdido” (Bruno Forte).
Lucas situa o relato de hoje no caminho de subida a Jerusalém, no limite entre Galileia e Samaria, lugar chave de disputas religiosas. Os leprosos que saem ao encontro de Jesus e gritam de longe pedindo-lhe que os cure, são dez. Significativamente, a lepra não distingue entre judeus e gentios, galileus e samaritanos. Todos são irmãos na miséria.
No relato podemos identificar os mesmos componentes presentes em outras narrações semelhantes de curas: apresentação da situação de enfermidade (“dez leprosos vieram ao seu encontro”), petição de cura (“Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!”), intervenção de Jesus (“Ide apresentar aos sacerdotes”), cura (“enquanto caminhavam, aconteceu que ficaram curados”) e reação diante do milagre.
É este último elemento que está mais desenvolvido na cena, e nele enfatiza-se o contraste da atitude de um dos leprosos (um samaritano que volta para agradecer a Jesus) com a dos outros nove. Na realidade, os outros nove leprosos curados não fazem senão cumprir as instruções de Jesus: ir e apresentar-se aos sacerdotes. Mas só um tem a suficiente finura espiritual para reconhecer profundamente o dom recebido e, deixando de lado as prescrições legais, dá primazia à expressão de agradecimento.
A gratidão parece apresentar-se aqui como um plus, como algo que deveria brotar com naturalidade nas relações humanas e na vida de fé, e não como uma atitude estatisticamente minoritária (um entre dez).
O samaritano sente que para ele começa uma vida nova; de agora em diante, tudo será diferente: poderá viver de maneira mais digna e ditosa. Sabe a quem ele deve isso. Precisa encontrar-se com Jesus.
Esta é a fé do samaritano que confia em Jesus, que crê no agradecimento mais que nas leis do sistema religioso. O agradecimento como atitude vital parece requerer, pois, uma especial sensibilidade espiritual, precisamente essa que encontramos nos santos e santas. Caberia perguntar-nos quais são as razões que nos dificultam esta vivência da gratidão, quando esta deveria brotar de modo espontâneo e natural frente a tanto bem recebido.
No início de uma carta de S. Inácio a um de seus primeiros companheiros, Simão Rodrigues, lemos isto:
“À luz da divina bondade me parece que, embora outros possam pensar de modo diferente, a ingratidão é o mais abominável dos pecados aos olhos de nosso Criador e Senhor, e de todas as criaturas capazes de aproveitar-se em sua divina e eterna glória. Já que é esquecimento das graças, bens e bênçãos recebidas; e além disso aqui se encontra a causa e começo de todos os pecados e desgraças. Pelo contrário, a gratidão que reconhece as bênçãos e bens recebidos é estimada e amada não só na terra senão também no céu” (18 de março – 1542).
Na vivência cristã, a gratidão nasce com naturalidade e espontaneidade nos corações humildes, nas pessoas conscientes de que aquilo que recebem não é por mérito ou retribuição. Tudo é gratuidade.
Elas adquirem a fina percepção de que tudo é Graça, tudo é “de graça”, são “agraciadas”, “cheias de graça”... Precisamente porque perceberam suas vidas como um presente, voltam-se para Deus, entregando-lhe “tudo o que tem e possuem”.
Marcada pela gratidão, a pessoa deseja sempre corresponder o melhor, rejeitando todo tipo de mediocridade na entrega e no serviço. O agradecimento é uma atitude fundante e fecunda que possibilita viver o cotidiano com outro “sabor”, com outro “ar”. Do agradecimento brota um estado interior de consolação, de disponibilidade, de agilidade em dar resposta às demandas da vida, de uma sensibilidade mais viva para perceber tudo aquilo que a vida cotidiana tem de dom e sem ansiedade por não receber compensações ou recompensas.
O agradecimento é a experiência humana que mais ativa a generosidade como atitude vital de nossa existência de criaturas amadas e presenteadas por Deus.
O agradecimento como atitude básica na vida é a tomada de consciência daquilo que estamos recebendo, a acolhida dos bens que nos são dados e das pessoas que nos vem ao encontro; é viver não tanto dependente daquilo que cremos que merecemos e não nos dão, quanto daquilo que, sem haver merecido, nem esperado, nem pedido, recebemos e continuamos recebendo no dia-a-dia.
Esse “agradecer” de fundo, esse viver “agradecidamente” não nos é favorecido pela cultura consumista que nos incita a estar sempre mais dependentes daquilo que não temos que daquilo que nos é dado com abundância; uma cultura que fomenta e aviva uma eterna insatisfação, matando a capacidade de “recordar tantos benefícios recebidos pela criação, redenção e dons particulares” (S. Inácio).
O que é que se encontra “de graça”? Onde? Quem pratica essa aventura da “mão aberta”, da largueza de coração? Há aqueles que não conhecem a palavra “gratuito” e, por isso, são petrificados frente à gratidão. São surdos e mudos para o “muito obrigado”.
A gratidão é alegria, a gratidão é amor. É por isso que ela se aproxima da caridade, que seria como uma gratidão sem causa, uma gratidão incondicional. Que virtude mais leve, mais luminosa, mais humilde, mais feliz!!! Gratidão = desfrutar a eternidade no cotidiano da vida.
Texto bíblico: Lc 17,11-19
Na oração: É importante cuidar de nossa gratidão, mantê-la viva e ativa. Não é natural que percamos a memória, a consciência do muito que temos recebido e continuamos recebendo, como possibilidades de vida e de sentido, como dons e capacidades, como criatividade e sonhos...
Cabe a nós, como seguidores de Jesus, pensar e falar agradecidamente, ter gestos de gratuidade. Ser agradecido se aprende agradecendo e tudo se pacifica quando o gratuito marca nosso ser por inteiro. A vida nova vem da Vida recebida e partilhada; ela nos coloca acima do êxito e do fracasso, pois está no nível da gratuidade.
- Diante d’Aquele de quem tudo procede, faça memória de todos os dons recebidos, deixando brotar do seu coração uma atitude de contínua ação de graças.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Somos simples servidores; fizemos o que devíamos fazer” (lc 17,10)
O evangelho de hoje nos propõe uma atitude que, à primeira vista, parece inaceitável: o empregado não deve reclamar quando, depois de todo o serviço no campo, em vez de ganhar elogio, ele ainda deve servir o jantar. Ele é um simples servidor do Reino, tem de fazer seu serviço, sem discutir.
Mas a intenção de Jesus é outra: Ele aponta para a dedicação integral no servir. A parábola desmascara a atitude daquele que, no serviço do Reino, busca seus próprios interesses, alimenta sua vaidade e busca ser o centro das atenções. Quem não gosta de receber elogios pelo seu serviço ao Reino?
No entanto, trabalhar para buscar o louvor, o interesse próprio, o lucro, o reconhecimento, a fama, o poder... esvaziam o sentido da missão em favor da evangelização, pois são próprios de uma mentalidade calculista e materialista da sociedade em que vivemos, que procura compensação em tudo o que se faz. Na perspectiva de Deus, o fundamental é ativar o espírito de serviço e disponibilidade, que nunca poderá ser pago. Quem vive no espírito de comunhão nunca achará que está fazendo demais para os outros.
Generosidade, gratuidade, doação: palavras quase desconhecidas do nosso vocabulário e em nosso contexto social. Mas são elas que nos levam em direção aos outros, libertando-nos de nosso pequeno eu. São elas que nos afastam da mesquinhez, da vaidade, do egoísmo, da busca do “próprio amor, querer e interesse”. Por serem mais afetivas, mais espontâneas, ligadas ao coração, elas revelam-se na ação, não em função de um mandato, de uma lei, de um interesse..., mas unicamente de acordo com as exigências do amor, da solidariedade...
São elas que alargam o nosso coração até dilatar-nos às dimensões do universo, rompendo nossos estreitos limites e lançando-nos a compromissos mais profundos. Sentimo-nos livres para qualquer desafio e cada nova entrega é uma libertação maior: são novas oportunidades de serviço, de maior aproximação d’Aquele que veio, não para ser servido, mas para servir e para dar sua vida pelo mundo.
“Somos simples servidores”. Em algumas traduções da bíblia encontramos: “Somos servos inúteis”. Tal tradução é muito limitada, pois fomenta a acomodação, além de contraditória, pois servo inútil não serve. Servindo com simplicidade, não em função de compensações egoístas, mas em função da retidão, da fidelidade e da gratuidade, seremos indispensáveis para o projeto de Deus.
Esta é a grandeza e recompensa do servidor no grande trabalho que realiza em favor do Reino: ultrapassar-se sempre, mas no amor; o êxito? entregue-o a Deus! Afinal, é o Senhor quem realiza em nós o querer e o fazer, para além de nossa boa disposição (Fil. 2,13).
A grandeza, a dignidade, a capacidade redentora de toda atividade em favor dos outros provém do fato de ser vivido numa profunda união pessoal com Cristo e com o desejo intenso de que nossa ação esteja em sintonia com a vontade e a glória do Pai, e não com as nossas buscas de compensações.
O chamado de Jesus é para “colaborar”, para trabalhar com Ele; e deste chamado ninguém é excluído, porque Ele abriu essa possibilidade para todos (“chama todos e cada um em particular”). Qualquer que seja o trabalho , ele se define pelo afeto pessoal a Jesus, pela identificação com seu projeto libertador. Por isso, é decisivo algumas indicações que contribuem para fazer do serviço ao Reino uma “experiência espiritual”: a pureza de motivações (por que faço isso? para quem faço?), a capacidade de “contemplar”, o crescer em gratuidade e a relativização de compensações, o deixar-se ajudar, a capacidade de agradecer...
A atitude de gratidão (consciência viva daquilo que cada dia nos é dado gratuitamente) nos motiva a viver o trabalho como serviço, libertando-o radicalmente de suas dimensões de rotina, de carga, e esvaziando-o de toda pretensão egoísta.
Quando vivemos nosso trabalho a partir da gratidão, o esforço que o mesmo trabalho exige brota de um modo mais natural, mais espontâneo...; por isso, “cansa” menos, “desgasta” menos...
Se vivemos a partir da gratidão, ficamos menos “dependentes” da compensação que os outros poderiam dar à nossa entrega ou ao nosso serviço. Como dizia S. Inácio aos estudantes de Coimbra, “são outros os soldos” que nos compensam.
Uma tentação sutil, presente em todos nós, é esperar reconhecimento e até elogios das pessoas pelo serviço prestado. Quem cai nesta tentação, passa a necessitar deste tipo de gratificação para manter seu entusiasmo e seu élan apostólico. Fica a impressão que, no apostolado, ao invés de buscar agradar a Deus, busca-se recompensas humanas. Quando não há elogios e reconhecimentos explícitos, interpreta-se isso como uma ingratidão e uma falta de valorização, provocando uma baixa na própria motivação e entrega.
A verdadeira maturidade espiritual coincide com o sentido da gratuidade, ou seja, ajustar-se ao modo de agir de Deus, superando todo autocentramento e todo voluntarismo; quem assim vive experimenta o consolo de sentir-se amado, perdoado e chamado por Deus, pois “o ser humano é fundamentalmente um ser de gratuidade”.
A gratuidade só pode ser vivida equilibradamente em toda sua profundidade e intensidade por aquele que é plenamente consciente de sua pobreza e indignidade radical, por aquele que, por ter-se sentido pecador e amado ao mesmo tempo, não deseja ser nem melhor nem mais perfeito, senão mais filho(a) de Deus pelo compromisso e doação.
E, precisamente movido pelo amor filial, deseja ativar todos os seus talentos e recursos, até o extremo de suas possibilidades, com o desejo de só agradar a Deus que tanto lhe ama. A gratuidade, portanto, é o fruto maduro, resultado espontâneo do consolo do perdão e do amor, que habilita o ser humano a entrar no fluxo da ação salvífica do próprio Deus.
E esta conversão à gratuidade possui uma dupla dimensão:
- é abandono da confiança em si mesmo e esvaziamento do culto ao próprio eu.
A pessoa que confia em seu próprio esforço para se projetar e brilhar, sem abrir espaço à graça de Deus, vê-se condenada à esterilidade, experimenta a aridez interior, a insatisfação de quem se empenha inútilmente, a angústia de quem se esforça sem conseguir a alegria da comunhão, e o desamparo de quem se vê triste, só e desolado.
Eis o que significa “gratuidade”: cair na conta de que tudo é dom e graça de Deus, que as boas obras, por mínimas que sejam, são um presente que Deus lhe concede poder realizá-las, que todo trabalho que se faça (mais ou menos importante, mais público ou mais escondido, com ou sem compensações...) é uma maneira pessoal de co-laborar com Aquele que fez de sua vida uma entrega por pura gratuidade.
Texto bíblico: Lc. 17, 5-10
Na oração: “Quantas dádivas! Sobrevivemos e crescemos graças a um cem número de valiosos dons; e a natureza é um canto permanente ao Criador que nela se anuncia e espelha – ela é desdobramento de um amor sem limites.
Ao ver-se beneficiado, há quem exclame: “Não precisava tanto!”
Seja você assim. Você participa dessa misteriosa gratuidade. Abra os olhos para essa diversidade a lembrar que as portas para ser e amar estão sempre abertas. Familiarizado com a dádiva, seja eco permanente da gratidão” (Frei Cláudio Van Balen).
- Seu “serviço apostólico” na comunidade: pura gratuidade ou busca de compensações e elogios?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
ITAICI-SP
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