O Sábado Santo é um dia “não-normal”, porque a morte de Jesus na Cruz deixa o silêncio, o vazio e a obscuridade. É preciso considerar o Sábado Santo como um tempo de luto e pranto: depois da dor intensa da Sexta-feira Santa dá-se lugar a uma dor silenciosa, contida, como a terra que vai se empapando até suas entranhas com a água caída torrencialmente sobre a superfície.
É preciso saber acolher este silêncio surdo, que marca a passagem entre duas experiências intensas: a Sexta-feira de dor e o Domingo de Ressurreição.
A pedra do sepulcro impôs silêncio no Calvário. Também impôs silêncio nos corações doloridos. É um silêncio de dor e solidão. É um silêncio do vazio provocado pela morte.
A pedra que fecha o sepulcro é como o último gesto do morrer. Enquanto o morto está sendo velado, dá a impressão de que, de alguma maneira, ainda está presente. Quando se fecha o sepulcro tudo parece que terminou. O Sábado Santo parece um sábado vazio. Cala a Liturgia. Cala a Igreja. Calam os corações.
O desconcerto diante da Sexta-feira Santa pode ser tão intenso que já não resta mais esperança, nem razão para a missão. Nesse sentido, o Sábado não teria nada de “santo”, mas só sábado de sepultura.
Sabemos que a vida da Igreja, como também a nossa vida pessoal, é feita de longos sábados santos, nos quais nem a dor da Paixão nem o consolo da festa Pascal marcam significativamente nossos dias e nossas noites, mas simplesmente a dura e paciente espera, na fé mais despojada, de um Senhor, que se faz esperar tanto que parece que já não vai chegar mais.
Como seguidores(as) de Jesus tivemos nosso advento, natal, quaresma, páscoa, pentecostes...; também nossa sexta-feira santa. Hoje nos encontramos no Sábado Santo.
O Sábado Santo é um dia sem liturgia, em silêncio, não passa nada, não sucede nada, recorda a solidão do sepulcro, a tristeza das mulheres e dos discípulos, a desilusão diante do fracasso.
“O Rei dorme”, comenta uma antiga homilia sobre o Sábado Santo. O povo recita o “Shabat mater”, acompanha a Virgem dolorosa, espera com ela, em silêncio, a aurora pascal.
Este é o dia das mulheres discípulas, que cuidam do corpo morto e o ungem com aromas; dia do desconcerto dos discípulos masculinos que, com o gosto amargo do fracasso, retornam à Galileia ou a Emaús.
E, no entanto, segundo o credo cristão mais primitivo, conservado fielmente sobretudo na Igreja Oriental, o Sábado Santo recorda a “descida de Jesus aos infernos”, o que equivale dizer: experimentar até o fundo o poder da morte e, portanto, a força do silêncio, da obscuridade e do vazio.
Jesus desce ao lugar da morte e das sombras, a uma dimensão fechada e murada, da qual não havia saída. E, ao entrar no lugar da morte, Jesus rompe os ferrolhos, libera da prisão os encarcerados, ilumina aqueles que viviam nas sombras da morte, vence o poder do mal.
Na “descida” de Jesus somos movidos a viver esta jornada como um tempo no qual é possível experimentar a ausência, o silêncio ou o vazio (quando, por exemplo, é provocado pela perda de um ente querido).
É muito duro viver em um Sábado Santo tão prolongado, é duro o inverno social e eclesial. Mas, às vezes, em meio ao silêncio do Sábado de nossa história, ouvem-se algumas vozes de mulheres que falam de anjos que anunciam que o Senhor ressuscitou. Certamente podemos fechar-nos em nosso pessimismo e pensar que estas mulheres são umas insensatas, exageradas e aloucadas. Mas, e se estas mulheres tiverem razão? Então, não teríamos também que “descer aos infernos” de nosso mundo de hoje para libertar os que estão nas sombras da morte e anunciar-lhes que o Senhor venceu a morte?
Então, talvez, o Sábado Santo poderia converter-se em um tempo de esperança germinal.
Sábado Santo é tempo não só de espera, mas de esperança, é deixar que o grão de trigo morto comece a germinar, é tempo de um inverno que tornará possível as flores da primavera, é tempo de imaginar, de criar, de abrir-se a algo novo e inesperado, de sonhar um mundo melhor e uma Igreja mais nazarena.
O vazio da morte de Jesus nos deixa sem alento. Sua ausência nos deixa sem palavras. Que podemos dizer se Ele não está presente? Quando já não está presente a Palavra, que podem dizer as palavras? Por isso, o Sábado Santo, é o sábado das ausências.
Em nosso mundo violento, onde a destruição da vida é tão forte e as feridas da humanidade e da criação são exibidas, é difícil tolerar a experiência de Deus como uma ausência purificadora e manter abertos nossos corações para preparar o novo caminho de vida, de forma reverente e paciente.
No entanto, em todo caminho espiritual é preciso passar pela “noite”, pela “ausência”, pelo “silêncio”, para amadurecer. É inevitável experimentar, durante algum tempo, alguma forma desconcertante de sentir a presença-ausência de Deus.
Deus está “além” de nosso coração e de nossa mente, “além” de nossos sentimentos e de nossos pensamentos, “além” de nossas expectativas e de nossos desejos, “além” de todas as experiências que fazem parte da vida. E, ao mesmo tempo, está no “centro” de tudo isso.
Sua ausência, por outro lado, muitas vezes é sentida tão profundamente, que leva a um novo sentido de sua presença. Isto está expresso no Sl. 22,1-5.
Este espaço de silêncio não é de morte senão de vida germinal, é noite que aponta à aurora, são as noites escuras da vida que desembocam na alegria da alvorada; é tempo de fé e de esperança, é momento de semear, mesmo que não vejamos os resultados, é tempo de crer que o Espírito do Senhor, criador e doa-dor de vida, está fecundando a história e a terra para seu amadurecimento pascal e escatológico, para a chegada da “nova terra nova e do novo céu”.
Vivemos no “sábado santo” da nossa sociedade dividida, preconceituosa, violenta...; somos terra de penumbra. Mas nela se antecipa a esperança do dia de Páscoa. Como as mulheres, vamos ao sepulcro, levando aromas. As orações são aromas que o Espírito recolhe em sua taça. A esperança é aroma que faz esquecer o mau-cheiro do cadáver. Na noite do sábado santo nos mobilizamos a levantar bem cedo porque “algo novo” vai acontecer. O Abbá ausente vai revelar sua nova presença; o Espírito ficou sem Palavra, mas já sussurra; a voz do silêncio dá seus primeiros gemidos. Algo grande já se prepara.
As discípulas e os discípulos de Jesus estão à espera, reunidos em torno a Maria, orando com ela, a transparência feminina do Espírito.
Esta terrível Noite Escura do Sábado Santo corresponde a um incontestável estágio espiritual, como dura mas inevitável “passagem” (Páscoa) para a Luz do Domingo.
Só atravessando a prova, a Noite Amarga se transforma em Noite Amável.
Textos bíblicos: Mc. 15,42-47 Jo. 19,38-42
Na oração: recordar os grandes silêncios da vida (perdas, fracassos, crises...) onde não há razões, não há uma lógica..., mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres” (Laudato si´n. 49)
A Campanha da fraternidade deste ano, com o tema sobre os “biomas brasileiros”, nos oferece uma com-preensão aprofundada do sofrimento de Jesus, que inclui sua união com todos os membros da comunida-de de vida. Somos chamados a contemplar o cosmos como uma epifania, ou seja, como manifestação de um mistério, que pede reverência e respeito para quem dele se aproxima.
O mistério Pascal constitui o núcleo central da fé cristã, ou seja, a morte e ressurreição de Jesus de Nazaré e a efusão do Espírito sobre toda a Criação.
Este mistério pascal se estende também a todo o povo crucificado, ou seja, a esta grande maioria da humanidade que vive explorada e marginalizada, vítima dos interesses de uma minoria. Por isso, crer no Crucificado implica fazer descer da Cruz todos os que estão dependurados nela. Mas a imagem da crucifixão se aplica também à situação de nossa Terra, uma terra explorada, deser-tificada, contaminada, com a biodiversidade destruída e os oceanos transformados em cemitérios.
Por sua atitude de arrogância e de autosuficiência, o ser humano explorou exaustivamente a Terra herdada e a destruiu, depredou, aniquilou, tomou posse dela... Assim, não foi respeitoso para com o Criador que a ele reservou a missão de cuidar do seu jardim e de compartilhar os seus frutos.
Há um clamor generalizado que emerge da realidade desafiante enfrentada pela humanidade: o planeta Terra está gravemente enfermo. As conseqüências trágicas estão presentes por toda parte: degradação do meio ambiente, diminuição acelerada das fontes de água potável, desertificação, degelo das calotas polares com a conseqüente elevação do nível do mar, grande incidência de furacões e de queimadas, extinção de milhares de espécies de animais, escassez de alimento, proliferação de doenças, migrações forçadas... Enfim, o desequilíbrio dos ecossistemas pode comprometer, de forma irreversível, todas as formas de vida sobre a terra. Estamos diante da “Terra crucificada”.
E aqui já não podemos repetir as palavras de Jesus na cruz “eles não sabem o que fazem”: todos somos conscientes de que a atitude prepotente e dominadora em nome do progresso e do consumismo causa danos irreversíveis à Terra. A terra geme em dores de parto, um parto que hoje se revela abortivo. A Criação é também lugar do padecido, da vulnerabilidade afetada, da beleza ferida... A utilização desor-denada dos recursos da natureza faz sofrer tanto ao ser humano como à própria natureza, conclamando portanto à solidariedade, à partilha, à compaixão, à reconciliação na sua dimensão maior.
Perguntaram ao monge zen Tich Nhat Hanh o que é que precisamos fazer para salvar o mundo. Ele respondeu: “O que precisamos é, antes de tudo, escutar em nosso interior o grito da Terra”. Como cristãos, este grito o entendemos como o grito de Jesus na Cruz, que condensa todos os gritos da humanidade explorada e da natureza expoliada. Na Paixão, buscamos experimentar, com Jesus, o sofrimento da Terra. Experimentamos Jesus sofrendo nas regiões marcadas pela seca, na terra cheia de cicatrizes pelas explorações do solo e das florestas, na contaminação do ar e da água...
Para Jesus, toda tragédia de sofrimento inocente e absurdo se concentrou n’Ele. Em sua pessoa estão o lamento e o desamparo da vítima inocente. Jesus, na Cruz, expira num grande brado, tão abismal que jamais será ultrapassado; n’Ele se encontram e se reconhecem todos os sofredores inocentes; n’Ele se condensam todos os gritos da humanidade sofredora e da natureza destruída.
Na contemplação de Jesus que sofre e é abandonado, revela-se o mistério maior de Deus frente a todo o mistério do mal. Na fraqueza e no sofrimento inocente de Jesus estão a fragilidade e o sofrimento do próprio Deus. Este é o mistério maior do silêncio e da “kénosis”: com o despojamento de divindade do Filho, o Pai, sem utilizar o revide de vingança e de poder, acolhe o mistério do mal em seu mistério maior de amor.
Disposição de todo o meu ser para o mistério - Leio Mc. 14,26-42 Mc. 15,33-41
Trago à memória todas as criaturas que sofrem por causa da cegueira e da avareza suicida do ser humano. Milhões de anos de história da evolução estão sendo apagados da face da terra, ao mesmo tempo que as áreas desérticas do mundo crescem rapidamente.
Diante da Árvore da Cruz, sinto-me aniquilado pela agonia que Jesus suporta silenciosamente enquanto destruímos biomas, poluímos rios e mares, devastamos florestas junto com a imensa quantidade de comunidades de vidas que há nelas.
Com a imaginação, permaneço junto à Cruz, cheio de aflição e amor por tudo aquilo que Ele está suportando por mim e por todas as criaturas. Vejo como esta Vida pura, inocente, está se desfazendo na Cruz, diante de mim. Esta Vida que assumiu a matéria para poder estar entre suas amadas criaturas. Estou sobressaltado diante deste mistério: Ele assume livremente dar sua vida para plenificar a vida de todos os seres.
O desejo de meu coração
Peço alcançar a graça de ter um conhecimento profundo do sofrimento da humanidade de Cristo, que continua nas comunidades de vida marginalizadas e exploradas, que gemem em seu sofrimento.
Peço sentir tristeza e aflição, dor interior e lágrimas com Cristo, enquanto Ele experimenta o mal trato imposto à sua amada Terra, e como eu ainda ignoro sua preocupação pessoal e sua vinculação física com sua comunidade universal de vida. Minhas atitudes de avareza e exclusão feriram e humilharam penosamente a sua amada Criação.
Diante da agonia de Jesus, fazer memória da agonia da Terra
A Natureza está sendo vergonhosamente atacada e dizimada pela implacável crueldade humana. Arrancaram suas vestes e a desnudaram. Suas matas e florestas estão sendo destruídas, adulteradas e saqueadas.
A desolação estendeu-se sobre seu corpo; lançaram fogo sobre suas vestes... Poucos correm para socorrê-la. Muitos estão cegos e insensíveis. Observam-na agonizando, enquanto contam seus lucros insaciáveis.
A Terra já não consegue respirar como outrora; sente-se sufocada, febril e doente. Detritos e gases asfixiam-na. Ela sente-se sozinha e indefesa.
Ouço o grito de Jesus na Cruz; ouço os últimos gritos da mãe Terra.
Na oração: Estou assombrado diante da revelação das Três Pessoas Divinas no Gólgota, humilhando-se para dar à luz um novo cosmos de espaço, tempo e matéria.
Penso com espanto na Trindade humilhando-se ao dar completa liberdade ao seu amado cosmos, em vez de impor um controle total.
Maravilho-me diante de Seu amor, demonstrado em sua própria doação e expresso através de toda a evolução ao fazer com que as criaturas fossem adquirindo cada vez maior liberdade, culminando na liberdade humana, capaz de dirigir toda mudança futura.
Ao pé da Cruz, comovo-me no mais profundo de meu ser diante do poder misericordioso de Deus, muito mais efetivo através da doação que através do uso da força.
Dou graças a Jesus na Cruz por ter-me revelado agora que todas as lutas do cosmos durante todas as eras foram experimentadas pela Trindade bondosa. Reflito com espanto que a verdadeira história da vida de Deus inclui toda a agonia da evolução: extinções em massa de espécies, a necessidade cruel da cadeia de alimentação, parasitas, epidemias, bosques arrasados, guerras, crianças famintas, o horror da avareza e a indiferença da humanidade...
Colóquio
Falo com Jesus, meu amigo e irmão, e permaneço presente com Ele, junto à sua Cruz.
Termino com a oração que Jesus nos ensinou.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
"Fazei isto em memória de mim”
Nesta Quinta-feira Santa, celebramos o Amor até o extremo de Jesus, a radicalidade de sua ternura que se faz cuidado até o ponto assumir todo o sofrimento da humanidade mais excluída e da criação mais ferida. Jesus é a misericórdia em ação, a misericórdia em relação, vivida no corpo a corpo com as pessoas mais oprimidas e exploradas. N’Ele se faz carne e se revela o rosto do Deus todo cuidadoso da Criação, que vela pela dignidade de toda criatura, que “não quebra o ramo já machucado, não apaga o pavio já fraco de chama” (Is. 42,3).
Mais uma vez, durante o tempo quaresmal deste ano, a Igreja do Brasil (CNBB) nos alertou para os perigos da devastação do meio-ambiente, além de despertar a atenção de todo povo cristão para o cuidado e proteção da Criação de Deus que nos foi confiada.
Com o tema “Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da vida” e o lema: “Cultivar e guardar a criação” o objetivo foi dar destaque à diversidade da cada bioma e criar relações respeitosas com a vida e a cultura dos povos que nele habitam.
“Cultivar e guardar” nascem da admiração. A beleza que impacta nosso coração faz com que nos inclinemos com reverência diante da Criação. Como discípulos(as) do Senhor, temos a missão de sermos servidores(as) no amor, dentro das relações vividas no cotidiano de nossa realidade.
Tocados pela bondade e diversidade dos biomas, somos conduzidos a uma grande ação de graças. E a Eucaristia é o momento privilegiado para isso.
Em Jesus, Deus se revelou encarnado na história e, por sua atuação, morte e ressurreição, fica claro que Ele fez do universo seu corpo. A presença real de Jesus, no pão e vinho da Eucaristia, nos desperta a reconhecê-Lo presente no coração do Cosmos e da História.
Céu e Terra estão integrados; o finito se faz espaço e revelação do Infinito, e Deus acontece nas relações humanas interpessoais e nos cuidados por tudo que diz respeito à harmonia neste mundo.
Pela Eucaristia, valorização definitiva do universo através da comunhão, somos confrontados com a presença transformadora de Deus em tudo e em todos.
A Eucaristia nos educa no respeito e cuidado para com tudo aquilo que nos cerca. Tudo e todos são sinais do divino, que rejeita toda forma de dominação e exclusão, exploração e divisão, substituindo-a pelo respeito e cuidado que integra a natureza, promove a vida e confraterniza a convivência. A Eucaristia clarifica e atualiza a Vontade do Pai: “E a vontade d’Aquele que me enviou é esta: que não perca nenhum dos que Ele me deu, mas os ressuscite no último dia” (Jo. 6,39).
É o papa Francisco quem, em sua importante encíclica “Laudato si´” (n. 236), alude a esta dimensão cósmica da eucaristia. Porque no pão e no vinho da se concentra toda a essência da Criação, a exube-rante riqueza de seus recursos, a fecundidade inesgotável dos biomas, a beleza deslumbrante de suas fontes e rios, de suas matas, de suas montanhas...
“A Criação encontra sua maior elevação na Eucaristia.(…) O Senhor, no apogeu do mistério da encarnação, quis chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo no nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito, a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico. Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar de uma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo. A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no Pão eucarístico, a criação está orientada para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador. Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e motivação para as nossas preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da criação inteira”.
O texto acima é, sem dúvida de uma grande densidade teológica. Os dons eucarísticos, o pão e o vinho, por sua condição material e terrena e por sua vinculação com o trabalho humano, são parte da criação, são algo nosso, “um pedaço de matéria”; pertencem à nossa condição mais própria e íntima.
Tudo isto aponta para a convicção de que, no insondável mistério eucarístico, os dons apresentados são uma representação do cosmos inteiro. Todo o universo cósmico é assumido e se faz visível na Eucaristia. Desde modo a Eucaristia acaba se convertendo no centro do cosmos, no “centro vital do universo”.
Quem come do Pão e bebe do Vinho, entrega-se ao dinamismo da Ressurreição, comprometendo-se com a luta contra as forças da morte: egoísmo, violência, indiferença, omissão política, desonestidade na gerência dos bens, descuido nas relações afetivas, isolamento no medo, destruição do meio-ambiente, poluição...
Simbolicamente, na Eucaristia, o pão é partido para significar a doação de Jesus; e ao comermos deste pão, aceitamos ser como o grão de trigo que, caído no chão da história, produz frutos para o bem de todos. Essa presença mística de Cristo em nós, dinamizada pela Eucaristia, consagra irmãos solidários, cidadãos do mundo. Aqui está o fundamento da espiritualidade ecológica que nos faz sensíveis para guardar e cuidar todas as expressões de vida, reveladas nos diferentes biomas de nosso país.
Cultivar a “memória de Jesus”, de tudo que celebrou na Última Ceia, é tornar viva e atual Sua presença nas diferentes refeições junto ao seu povo. Consciente da missão que o Pai lhe confiara, Ele despertava as pessoas para seu próprio valor, para a dignidade e originalidade de cada um...
Nessa perspectiva, Ele as libertava da banalidade do medo, do poder excludente, da ansiedade, da culpa e da passividade na submissão, para um sentido superior de ser e conviver.
Na prática do amor, Jesus se fez presente-doação em todas as situações de exclusão e marginalidade, envolvendo a todos com a solicitude misericordiosa do Pai. Tal doação-entrega atingiu o cume na partilha do pão e do vinho, na celebração da Eterna Aliança.
O dom eucarístico, portanto, tal como a humanidade de Jesus, não pode ser reduzido a um simples objeto desligado das demais relações envolventes (com Deus, com os outros e com toda a Criação). “Como o pão é um só e o mesmo, formamos todos um só corpo” (1Cor. 10, 14-22).
Texto bíblico: Jo 13,1-15
Na oração: Nem sempre estamos preparados para assumir a tarefa tão humilde do Lava-pés, porque esta tarefa implica prostrar-se, descer ao húmus, entrar em contato com a terra, o barro, a poeira… Lava-pés é o gesto humilde que não nos humilha, mas nos humaniza e nos faz viver a comunhão com toda a Criação. Não é evento, mas hábito de vida, um “modo de proceder” que mais nos identifica com Aquele que mais “cultivou e guardou a Criação”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quando Jesus entrou em Jerusalém, a cidade inteira ficou alvoroçada, e diziam: ‘Quem é este?’”
A Paixão de Jesus teve causas históricas concretas e foi o desenlace final de uma vida que entrou em conflito com o sistema religioso-político estabelecido na sociedade daquele tempo. Sua vida e sua mensagem revelaram uma novidade de tal magnitude que rompeu com as estruturas que atentavam contra a vida. De fato, Jesus apostou na vida de todos os seres humanos e por isso não se deixou subornar por nenhum poder destruidor de vidas.
O conflito de Jesus foi o conflito com o poder, mas o poder levado até sua raiz última. Por isso, Jesus compreendeu que, para mudar o comportamento dos dirigentes da cidade de Jerusalém, a primeira coisa a fazer era desmontar o “ídolo” que legitimava o poder autoritário daqueles que oprimiam o povo indefeso. Jesus desmontou o “seu deus” e atirou por terra “seus podres poderes”. Foi exatamente isso que provocou o enfrentamento, que desembocou na sua morte.
Este confronto com o poder religioso e político ficou evidente na cena da “entrada de Jesus em Jerusa-lém”. A subida a Jerusalém foi, sem dúvida, uma decisão meditada, mas também profundamente radical.
A chegada de Jesus com seus discípulos e discípulas à cidade santa, formando parte da comitiva dos pere-grinos que vinham dos quatro cantos do mundo conhecido, para celebrar a Páscoa, se converteu numa procissão festiva. O Mestre, evocando a profecia de Zacarias, não entrou em Jerusalém como um rei, guerreiro triunfador, na garupa de um possante cavalo, mas montado em um burrinho, entre sinais de natureza e de concórdia (palmas, ramos, cantos de alegria e de paz), mostrando-se assim como o enviado humilde de um Deus cujo poder é o amor.
Jesus, que havia anunciado a novidade do Reino, rompe com os esquemas e paradigmas. O povo o quer identificar como um messias que vai triunfar e tomar o poder, como um novo Davi, mas Jesus procura fazer descobrir que o poder nunca é mediação para a libertação do ser humano. Nem o poder econômico, nem o político, nem o religioso solucionam as desigualdades e injustiças humanas, nem sequer criam esperanças libertadoras.
Este é o momento definitivo de atuação de Jesus: subiu a Jerusalém na festa principal dos judeus. Com seu gesto Ele atinge o centro do poder político e religioso, encarnado na cidade de Jerusalém. Até então seus gestos foram libertadores das pessoas. Agora Ele arremessa diretamente contra a cidade que exclui e mata. Aquele “dia de Ramos” foi uma autêntica manifestação de desafio.
Jesus rompe o silêncio e entra na cidade de Jerusalém de maneira impactante, como Messias cheio de autoridade, mas faz isso de forma pacífica, sem armas nem soldados, anunciando o reino de Deus para o pobres e a partir dos pobres. Não optou por empregar violência externa, nem prepotência ou domínio (religioso, militar, econômico) de uns sobre os outros, porque o Reino de Deus não se manifesta com violência, nem se mantém por meio do poder ou da sacralidade sacerdotal. Até então Jesus havia se movimentado mais na clandestinidade, esperando o momento oportuno, a “sua hora”. E essa foi a “sua hora”: desmascarar a manipulação e extorsão daqueles que com poder autoritário tinham oprimido o povo. Por isso, sua vinda, nesse tempo de Páscoa, não foi um gesto privado; veio de um modo público, pois queria a transformação ou conversão da cidade de Jerusalém.
Para alguns, esse gesto de cruzar os umbrais da cidade foi altamente provocativo e quiseram frear o entusiasmo que Jesus despertava pela sua passagem. Ele se tornou um perigo que deveria ser eliminado. Os dirigentes religiosos e os líderes do povo judeu deram-se conta de que aquele homem, Jesus o Nazareno, questionava, da maneira mais radical, o sistema no qual eles se sustentavam para continuar exercendo um poder ao qual não estavam dispostos a renunciar.
A festa da entrada de Jesus na cidade de Jerusalém revela-se uma ocasião privilegiada para considerações sobre nossa presença e o nosso habitar nas grandes cidades de hoje. Às vezes, a grande cidade pode nos parecer um lugar estranho e hostil; ela se revela complexa e confusa como um labirinto, perigosa e traiçoeira como o deserto, espessa e impermeável como uma floresta. De fato, nas cidades existem situações que dificultam ou impedem a descoberta de Deus e a vivência de relações mais humanas: a violência, a pobreza, a discriminação sexual, a intolerância, o racismo e muitas outras atitudes e práticas que separam, excluem e oprimem. As ofensas contra a pessoa humana, sua digni-dade e seus direitos, são impedimentos para reconhecer e descobrir a presença do reinado de Deus.
Assim, no domingo de Ramos, abrimos espaço para entrar na nossa cidade com Jesus, com sua força, com sua presença crítica; só assim, nos manteremos lúcidos nessa mesma cidade tão distante da proposta de vida apresentada pelo evangelho. Somos enviados a todas as fronteiras de nossas cidades não para impor a fé e o Evangelho, mas para dialogar com aqueles que não pensam como nós, com aqueles que não creem, com aqueles que estão muito distantes, marginalizados...
Desde aquele dia de Ramos sabemos que Deus mesmo habita em nossa cidade, para além dos limites da Igreja; Ele deixa marcas de sua presença em tudo e em todos. Só aquele que vive “em saída” pode entrar em sintonia com a ação do Senhor e ser presença de luz no próprio espaço urbano.
“A fé nos ensina que Deus vive na cidade, em meio a suas alegrias, desejos e esperanças, como também em meio a suas dores e sofrimentos” (Doc. Aparecida, 514).
Jesus “entrou” em Jerusalém para que também nós entremos em nossas cidades de maneira inspiradora e provocativa, buscando e construindo a nova cidade, feita de paz e de concórdia, rompendo com tudo aquilo que desumaniza e trava os espaços de convivência. Somos chamados a construir pontes e não muros de separação, a ser presença reconciliadora e não de divisão.
A experiência de uma pastoral urbana nos capacita a descobrir e potenciar a presença real do Deus que revela seus rosto nas pessoas, casas, bairros, povos, cidades e metrópoles. “O coração dos povos é o santuário de Deus”. Trata-se de “passear com o Absoluto pelas ruas da cidade” (Michelstaeder).
O Deus presente nas cidades é um Deus que nos chama e interpela a partir do reverso da história, a partir dos lugares ocultos, dos ‘outros-espaços” de exclusão... e a nos comprometer na construção da Jerusalém justa e fraterna.
Texto bíblico: Mt 21,1-11
Na oração: rezar sobre minha presença na cidade: participativa? Questionadora? Inspiradora?...
Ou presença alienada, fechada em condomínio, apartamento... sem contato com a dura realidade e com o mundo da exclusão daqueles que são vítimas de uma cidade desumana?
- O que significa “morar” numa sociedade virtual?
- A “Jerusalém terrena” é expressão da “Jerusalém interna”: minha cidade interna é espaço de paz, de concórdia, um espaço onde Deus mesmo mora em mim? Ali me sinto verdadeiramente “em casa”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Lázaro, vem para fora!”
Os relatos evangélicos do 3º., 4º. e 5º. domingo da Quaresma do Ciclo A, tomados do evangelista João, apresentam Jesus como Fonte de Água viva (samaritana), Luz do mundo (cego de nascença) e Vida (ressurreição de Lázaro). Três símbolos de nossas necessidades humanas mais fortes (água, luz e vida) e que só o encontro com Jesus pode preenchê-las.
A Quaresma termina com um chamado à vida. Não qualquer vida, mas a Vida verdadeira, a Vida que deseja ser despertada para romper com tudo aquilo que a limita. Por isso, o relato da ressurreição de Lázaro é toda uma catequese sobre o encontro com Aquele que é Vida e que é fonte de vida em crescente amplitude. Jesus não vem prolongar a vida biológica, vem comunicar a Vida de Deus que Ele mesmo possui pelo Espírito e da qual pode dispor.
Em Jesus acontece algo totalmente novo; Ele traz uma nova maneira de viver e de comunicar vida que não cabe nos nossos esquemas. É justamente isso o que mais atrai em sua pessoa. Quem entra em comunhão de vida com Ele, conhece uma vida diferente, de qualidade nova, expansiva... Nesse sentido, a experiência do Seguimento de Jesus é uma verdadeira “escola de vida”, cujo aprendizado nos leva ao âmago do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração da Trindade, dele haurir a seiva da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus. Nada mais contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores...
Para o evangelista João, a “vida” é uma totalidade, ou seja, a vida presente, a vida atual, possui tal plenitude que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida eterna”; uma vida com tal força e tão sem limites, que nem a morte mesma terá poder sobre ela. A “vida eterna”, então, não é um prolongamento ao infinito de nossa vida biológica. É a dimensão inesgotável e decisiva de nossa existência. Ela torna-se “eterna” desde já.
Precisamos adquirir uma consciência mais profunda da vida do Espírito, perceber as pulsações desta vida eterna que está em nós, do mesmo modo que, prestando atenção, percebemos as batidas do coração de toda a criação. Nesse sentido, a vida tem a dimensão do milagre e até na morte anuncia o início de algo novo; ela carrega no seu interior o destino da ressurreição. “Minha vida é uma sucessão de milagres interiores” (Etty Hillesum).
Vida plena prometida por Jesus: “Eu vim para que tenham a vida e vida em abundância” (Jo 10,10)
Nem sempre sabemos viver de maneira intensa: conformamo-nos com uma vida estreita, estéril, fechada ao novo, carregada de “murmurações”, atada com faixas. O dinamismo do Seguimento de Jesus, no entanto, é gerar vida, possibilitar que o(a) discípulo(a) viva a partir da verdade mais profunda de si mesmo; ou seja, viver a partir do coração, do “ser profundo”.
A imagem de Jesus, presente junto às vidas feridas e bloqueadas, nos ajuda a conhecer nossa própria interioridade e desperta nossa vida, arrancando-a de seu fatal “ponto morto”, de seus limites estreitos e constituindo-a como vida expansiva em direção a novos horizontes.
O seguimento proporciona vigor inesgotável, nossa vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa, é convocação...
“Lázaro” representa a humanidade ferida e amada, com dimensões de sua vida necrosadas, amarradas, presas nos sepulcros. Nós mesmos podemos perceber parcelas de nossa vida paralisadas e atrofiadas. Mas Lázaro, que está presente em cada um, não está morto, apenas dorme. As fontes da alegria, as fontes da criatividade e da confiança, as fontes do agradecimento e das bem-aventuranças... não estão mortas; estão adormecidas e necessitadas de que alguém tire os escombros e afaste a pedra que bloqueia o impulso da vida. E cabe a nós, como seguidores(as) de Jesus, despertá-las com a voz, com os gestos, com o olhar, com as mãos.
O primeiro passo é remover a pedra. Quem jaz atrás da pedra está fechado a qualquer tipo de relação. Quando a pedra é removida, Jesus ora e diz: “Lázaro, vem para fora!”. Chama seu amigo, e suas palavras de amizade e amor ressoam dentro da sepultura para levantá-lo, despertá-lo e insistir para sair por seus próprios pés. A palavra de amizade de Jesus o alcança inclusive naquilo que está necrosado em Lázaro.
“Lázaro vem para fora”: “Ele tinha as mãos e os pés amarrados com faixas e um pano em volta do rosto”. Ainda não está livre; está preso pelas faixas. Algumas ligaduras podem ser bloqueios internos, dependências, medos, inseguranças, carências...
Diante do túmulo, Jesus mobiliza a todos: para ressuscitar a Lázaro pede a uns que afastem a pedra, a outros que estendam as mãos e desatem as faixas, a outros que o ajudem a pôr-se de pé.
Como podemos crescer em uma corresponsabilidade que nos faça a todos e cada um extrair o melhor de nós mesmos para contribuir com a vida, para que entre luz em nossas relações humanas, para construir entre todos os seus seguidores que caminham, livres das amarras, ao ritmo do Espírito?
“Lázaro, vem para fora!”. Não é este o grito diário de Deus em nossas vidas? Este apelo “vem para fora” é para todos. Todos somos portadores de um sepulcro que nos fecha, nos isola e nos asfixia, privando-nos de nossa liberdade. É preciso dar asas à vida, soltá-la em direção à imensidão do universo.
“Lázaro, vem para fora!” Esta palavra é preciso dizê-la desde agora, com Jesus. Venhamos todos para fora, de maneira que não vivamos mais de morte, que não permaneçamos na letargia, envolvidos em sudários e faixas, compactuando com a violência e a injustiça, dando cobertura àqueles que matam.
Temos de sair de um mundo no qual, de um modo ou de outro, nos habituamos com a morte e nos sentimos impotentes: “Senhor, já cheira mal: é o quarto dia”
Cada dia Deus nos tira do sepulcro e nos devolve a vida sempre enriquecida e iluminada. É um milagre que cada dia possamos amanhecer com vida. Ninguém vive só de momentos extraordinários e de grandes festas; o que mais influi em nossas vidas é a alegria de cada dia, a festa de cada dia, a vida de cada dia, o amor de cada dia, a esperança de cada dia.
Jesus nos oferece a oportunidade de deixar-nos amar pelo Deus da vida, que gera vida, proximidade e abertura, fraternidade profunda e sincera. Podemos fazer isso porque carregamos ricas potencialidades de vida dentro de nós e que, muitas vezes, permanecem atadas, impedindo-nos viver a comunhão e a convivência com os outros. Vir para fora do túmulo significa viver para a vida, na justiça e solidariedade, condenando toda violência que atrofia a vida.
A comunhão de vida com Cristo nos faz ter um “caso de amor com a vida”.
Texto bíblico: Jo 11,1-45
Na oração: “Vem para fora!”, não te feches em ti mesmo, sai de tudo o que há de morte em tua vida; sai de teu individualismo, de teu orgulho, de tua indiferença! Sai de tua insensibilidade à dor dos outros! sai da vulgaridade e superficialidade de tua vida e vive a elegância da santidade!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Vai lavar-te na piscina de Siloé. O cego foi, lavou-se e voltou enxergando” (Jo 9,7)
Jesus afasta-se do Templo, fugindo dos fariseus que queriam apedrejá-lo por ter dito: “Eu sou a luz do mundo”. Ele vai repetir isso e demonstrar com atos, dando ao cego a capacidade da visão. Não conhecemos o nome deste cego. Só sabemos que é um mendigo, cego de nascimento, que pede esmola nas proximidades do templo. Não tem experiência da luz, não a conhece, nunca a viu. Estava sentado, não podia caminhar nem orientar-se por si mesmo; estava imóvel, dependendo sempre dos outros. Sua vida transcorria nas trevas. Nunca poderia conhecer uma vida digna.
Também não se menciona que era sábado, somente ao longo da narração. Jesus não leva em conta essa circunstância à hora de fazer bem ao ser humano. “Amassar barro” estava explicitamente proibido pela interpretação farisaica da lei. O amassar o barro no sétimo dia, prolonga o sexto dia da criação. Jesus termina a criação do ser humano.
Este ponto de partida é chave para ressaltar o ponto de chegada. Jesus vai ativar no cego a mobilidade e a independência, vai lhe devolver a capacidade de ver, vai reconstruí-lo como ser humano por inteiro. Jesus vê na cegueira uma ocasião para a manifestação da atividade salvífica de Deus. As obras que Deus realiza consistem em libertar o ser humano de sua inatividade e dar-lhe capacidade de ação.
“Enquanto é dia, temos de realizar as obras d’Aquele que me enviou”.
Jesus não consulta ao cego se ele quer ficar curado, pois sendo cego de nascimento não tem experiência da luz e não a pode desejar de maneira especial. Mas a cura não acontece automaticamente; o cego tem de aceitar a luz e optar livremente por ela. Jesus não lhe tira a liberdade: oferece-lhe a oportunidade e coloca diante dos seus olhos o projeto de Deus sobre o ser humano. A decisão de recuperar a vista fica nas mãos do cego: ela se manifesta no fato de ir à piscina de Siloé por sua própria iniciativa, de caminhar livremente, de poder sair do seu lugar, lavar-se na piscina, para chegar a ser ele mesmo.
Jesus passa à ação. João usa dois verbos para indicar a aplicação do barro nos olhos: aqui untar-ungir tem relação com o título de Jesus “Messias” (que significa o “ungido”). Mais adiante dirá simplesmente “aplicar”. Aquí está a chave de todo o relato. O cego é agora um “ungido”, como Jesus. O homem ferido na sua cegueira foi transformado pelo Espírito.
A reação das pessoas (parentes, vizinhos...) sobre a identidade do cego manifesta a novidade que o Espírito realiza. Sendo o mesmo, é outro. O que era cego revela a nova identidade de homem reconstruído pelo Espírito: ele agora é um ungido, encontrou-se a si mesmo – “Ele afirmava: sou eu”.
Ao “ungir-lhe os olhos”, Jesus convida o cego a ser homem “acabado, reconstruído, restaurado...”
Os outros personagens continuam em sua cegueira: fariseus, conterrâneos, pais… são símbolos da dificuldade de aceitar a luz quando esta ilumina o que não se quer ver.
Há uma grande diferença entre o cego sem iniciativa, sem liberdade no início da cena, e o homem livre depois da cura. Daí que ele utilize as mesmas palavras que tantas vezes, no evangelho de João, Jesus utilizava para identificar-se: “Sou eu”. Esta fórmula deixa transparecer a identidade do ser humano recriado pelo Espírito; descobre a transformação que se realizou em sua pessoa e quer que os outros a vejam.
O cego opta livremente pela luz. Segue o caminho apontado por Jesus e chega à meta indicada. Ele, que era só limitação, recupera sua autonomia e deixa-se conduzir pelo Espírito. O que de verdade importa é que este homem estava limitado e carecia de toda liberdade antes de encontrar-se com Jesus. Agora descobre o que significa ser pessoa e se sente completamente realizado. O Espírito o capacitou para desatar todas as possibilidades de ser “humano”.
Sua vida, escondida e dependente, está agora cheia de sentido. Perde o medo e começa a ser ele mesmo, não só em seu interior mas diante dos outros. O horizonte que se abre para ele é indescritível. O mundo mudou radicalmente; agora ele poderá dar orientação à própria vida: não dependerá mais que os outros o conduzam.
O relato do evangelho de hoje é, sobretudo, uma catequese cristológica. Como aparece Jesus nele? Em primeiro lugar, Jesus é Aquele que vê. Na cena do “cego de nascença”, onde os discípulos viam um pecador, Jesus via um ser humano. Seu olhar não se detinha na máscara, mas contemplava um rosto.
O “cego de nascença” encontra em Jesus um olhar encorajador, compreensivo, que acredita nele e lhe inspira confiança; um olhar que não se prende ao passado, mas abre uma nova possibilidade de vida. Um olhar que ativa nele a capacidade de olhar a própria vida de maneira diferente. Por isso, Jesus aparece também como Aquele que faz ver. É o mestre que vai curando a cegueira e trazendo luz, para que a pessoa, descobrindo sua identidade, possa dizer como o cego curado: “sou eu”.
Neste tempo quaresmal, sentimos a urgência de uma conversão do nosso olhar; é preciso purificar o olhar, cristificá-lo. Olhar com os “olhos cristificados”. Não se trata de qualquer olhar. É o olhar limpo, diáfano, gratuito e desinteressado, que destrava e expande a vida do outro numa nova direção. Contemplar o rosto do outro é sentir sua presença, sem pré-conceitos e pré-juízos..., vendo nele o sinal da ternura de Deus. Passar da contemplação à acolhida: este é o movimento da oração dos olhos.
O “olhar contemplativo” está perdendo sua força criativa no contexto atual; marcado pela ansiedade de querer “ver” tudo ao mesmo tempo, o ser humano já não é mais capaz de fazer uma “pausa” para se deixar “ver” pela realidade. Sob o peso do olhar do racionalismo, ele tudo examina, compara, esquadrinha, mede, analisa, separa... mas nunca “exprime”. Daí o olhar reprimido, desviado, insensível, frio, duro, ríspido...
Este é o pecado contra o olhar: olhar supérfluo e imediatista, olhar esquizofrênico e narcisista, olhar morno, sem vibração, sem brilho, sem assombro... Nesse olhar não há lugar para a admiração, nem para a acolhida e a presença do outro. Só existe o olhar que “fixa”, escraviza e aliena.
A arte de viver consiste, fundamentalmente, em chegar a ver tudo com o coração. Só o coração descobre em tudo as pegadas da Presença Última, que olha a partir do rosto de cada pessoa, a partir da beleza de cada criatura. O amor nos abraça em tudo quanto vemos.
Texto bíblico: Jo 9,1-41
Na oração: Ver mais além, a partir do coração, transcender, despertar nossa visão interna e intuitiva das coisas e das pessoas, tirar as cataratas de nossos olhos e abrir-nos a Deus.
- Abro os olhos para olhar de outra maneira.
- Quê há de fechamento, de intransigência, de superficialidade, de rotina em minha vida, que não quero ver?
- Estou aberto a acolher a Luz da verdade, do amor, da justiça, da gratuidade... venha de onde vier?
- Creio ter a posse da verdade ou me deixo questionar pelos outros?
- Em quê aspectos de minha vida pessoal e relacional preciso abrir-me à luz do Evangelho?
- Sou luz que ajudo os outros a verem?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede...” (Jo 4,15)
Comprovamos hoje uma atrofia ou um “déficit de interioridade”, pois a volatilidade das sensações passageiras nos dificulta ter acesso à nossa própria identidade. Continuamente chegam até nós, sensações inteligentes e sedutoras elaboradas pelos técnicos da publicidade em laboratórios e ilhas de edição e semeadas na nossa afetividade subconsciente. Estamos rodeados por telas iluminadas (tvs, smart, tablets, computadores...) que emitem uma mensagem “interessada” e nos forçam a permanecer na superfície de nós mesmos, esvaziando-nos de toda densidade humana. Precisamos redescobrir uma pedagogia que nos conduza até o mais profundo de nossa intimidade, onde o Espírito alimenta a originalidade de nosso ser único, através de uma fonte que nunca se esgota. Precisamos, sob a ação da Graça, destravar nosso centro vivo e sempre inédito, de tal maneira que brote a novidade que tudo renova e plenifica nossa existência.
Vamos, pois, buscar inspiração no encontro instigante de Jesus com a Samaritana, junto a um poço.
Assim como a água, necessária para a vida, é preciso extraí-la do fundo da terra, também a água do Espírito é preciso tirá-la das profundezas de si mesmo.
No início do relato vemos uma mulher caminhando em direção ao poço de Siquém em busca de água; ela vive um “eu fragmentado”, perdida em sua solidão, sedenta de um sentido para sua existência... Tinha graves problemas, estava confusa, em toda sua vida havia buscando o grande amor. No entanto, seus casamentos fracassados continuavam a perturbá-la. Era uma mulher que havia se perdido no caminho: tantos cântaros quebrados, tantos pedaços para recolher.
Jesus rompe com as fronteiras culturais e religiosas, assenta-se junto ao poço de Jacó e, através de um diálogo provocativo, ajuda a mulher samaritana a encontrar, dentro dela mesma, esse centro de onde mana sem cessar uma água que mata a sede, e não buscá-la em tantos poços secos ou rachados. Com sua presença instigante, Jesus ajuda a mulher a integrar suas rupturas existenciais, reconstruindo-a como pessoa, a partir de sua própria interioridade.
O encontro com Jesus fez a samaritana viver uma verdadeira “páscoa”, passando de uma vida trivial e dispersa à missão de anunciar aos outros Aquele com quem se havia encontrado. Como uma água “que jorra para a vida eterna”, uma torrente de gratuidade percorre a cena e transfigura a mulher. Ela foi sendo conduzida até sua própria interioridade através de um paciente processo que a fez passar da dispersão à unificação, da exterioridade à interioridade, da desarmonia à unidade interior, da solidão à comunhão com os outros.
Ela entra em cena como “uma mulher da Samaria” e sai dela como conhecedora do manancial de “água viva”, consciente de ser buscada pelo Pai para fazer dela uma adoradora. Sua identidade transformada a converte em uma evangelizadora que consegue, através de seu testemunho, que muitos se aproximem de Jesus e creiam nele. Aquela que falava de “tirar água” como uma tarefa de esforço e trabalho, abandona agora seu cântaro: Jesus a fez descobrir um dom que lhe é entregue gratuitamente.
Na realidade, ela passou a ter a sensação de estar nascendo pela primeira vez e que Deus a amava. Caíam as etiquetas. Tudo o que tinha sido, a samaritana, filha de sangues misturados e de religião meio pagã, a mulher com uma vida afetiva fracassada, a amante que, depois de compartilhar sua vida com seis homens, duvidava de ter sido amada de verdade alguma vez... tudo aquilo parecia deixar de existir.
Os véus que cobriam o verdadeiro rosto da mulher do cântaro vazio, foram levados pelo vento. Ela se tornou “pessoa”.
Estamos, aqui, diante de uma vida em processo. Ao longo do relato assistimos a tentativa da mulher de permanecer em um nível superficial e mover-se em seu diálogo com Jesus no âmbito da superficialidade. Uma e outra vez ela procura escapar e desviar a conversação para terrenos que não permitem descer em sua profundidade e que não a deixam enfrentar-se com a verdade de sua existência.
Mas ela não contava com a tenacidade de Jesus e com sua determinação de alargar aquela vida atrofiada. Ao longo do encontro, Ele é o verdadeiro protagonista, o condutor da cena e aquele que marca as estratégias da conversação.
Como hábil pescador, Jesus joga suas redes e lança seus anzóis para tirar a mulher, com quem dialoga, das águas enganosas da trivialidade e do desejo de auto-justificação que a afogam.
Como bom pastor que conhece suas ovelhas, Jesus a faz sair do deserto da superficialidade, vai guiando-a para a profundidade e autenticidade, para a terra do dom da água viva. Como amigo que busca criar relações pessoais, em nenhum momento emite juízos morais de desaprovação ou condenação: em lugar de acusar, prefere dialogar e propor, emprega uma linguagem dirigida ao coração da mulher.
Como “expert” em humanidade, Jesus mostra-se profundamente atento e interessado pela interioridade de sua interlocutora e lhe faz descobrir o manancial que pode brotar do mais profundo dela mesma. Revela-lhe também a interioridade de Deus como Pai que busca adoradores em espírito e em verdade.
Jesus desperta a samaritana a cair na conta que é preciso abrir-se a um “manancial” novo, que lhe vem através d’Ele e que “brota em seu interior” de um modo permanente. Ele é o manancial e com sua presença desperta o manancial interior da samaritana, entupido.
“Dá-me um pouco de sede porque estou morrendo de água!”
Eis o clamor da nossa geração que tendo quase tudo, parece que não consegue descobrir o sentido da própria existência. Morre de sede junto ao poço de água viva.
A sede se refere à busca de sentido presente em todo ser humano, busca daquilo que traz definitivamente a paz: a “água viva” que coincide com o “dom de Deus”. Por isso, o relato se situa intencionadamente em chave de oferta: “se conhecesses o dom de Deus...”. Acabou-se o tempo dos templos; a adoração passa pelo coração, é interior e verdadeira, corresponde a uma vida em fidelidade.
A experiência acontece quando escutamos em nosso interior o “eco” que a água viva produz, saciando nossos desejos mais plenos. “Uma água viva murmura dentro de mim e me diz: Venha para o Pai” (S. Inácio de Antioquia)
Como a samaritana, também diante de nós se apresenta uma alternativa: continuar buscando água viva e justificação em poços secos e esgotados ou eleger “vida eterna” e deixar-nos arrastar pela oferta de transformação proposta pelo Jesus que nos busca, porque deseja ampliar nossa existência e comunicar-nos alegria e plenitude.
Texto bíblico: Jo 4
Na oração: A cena do encontro de Jesus com a samaritana nos remete à experiência fundante de nossa vida. Tal experiência significa abertura, dilatação do coração, expansão da consciência ao ver que tudo parte de Deus (Fonte do rio da vida) e tudo volta para Deus (rio que mergulha no Mar).
A experiência de oração junto ao nosso poço nos conduz à outra fonte, aquela que brota do coração, e que estava ressequida, impedindo-nos de reconhecer o murmúrio da água viva.
De quê tenho sede? Onde busco saciar minha sede?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Este é o meu filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o” (Mt 17,5)
O “mistério de Deus” sempre nos supera. Parece que Ele se faz menos acessível pelos caminhos da razão. É na vida pessoal ou coletiva onde Deus se revela presente e manifesta sua Voz. Esta foi a experiência do povo de Israel; esta foi a experiência do próprio Jesus e dos seus primeiros discípulos.
Mateus, no seu relato da Transfiguração, quer transmitir algo da experiência original de poder conhecer a Jesus de uma “outra” maneira e usa expressões intensas: “alta montanha”, “seu rosto brilhou como sol”, “suas vestes ficaram brancas como a luz”, “Moisés e Elias, conversando com Jesus”, “uma nuvem luminosa os cobriu”, e uma “voz”, saindo da nuvem, revelou a verdadeira identidade d’Ele: “Este é meu Filho amado, escutai-o”. São expressões vigorosas que comunicam a emoção de haver descoberto o “outro rosto” de um amigo.
O Evangelho de hoje nos propõe precisamente isso: uma atenção desperta capaz de detectar o pulsar da vida e a presença do Senhor que a habita; uma teimosa convicção de que toda realidade esconde em suas entranhas o poder de resplandecer, de “revelar-se outra”; e uma escuta expectante que nos permite ouvir, em meio o alvoroço de tantas vozes, a Voz que se dirige a cada um de nós e nos sussurra as palavras que possuem o poder de transfigurar-nos: “Tu és meu(minha) filho(a) amado(a)”.
A experiência da Transfiguração é isso: Deus entra no nosso espaço vital, no meio daqueles movimentos difíceis e repetitivos e nos faz deslocar para o alto da montanha. Exatamente ali, naquela visão tão ampla, acontece algo novo. Aqui não estamos no templo, nem num dia sagrado.
No grande silêncio da natureza, ouviremos o sussurro de Sua voz, e nos daremos conta d’Aquele que está passando, pois desde sempre já nos viu, nos conheceu, nos amou e nos escolheu.
Aquela Voz amplia nossos olhos, abre nossa mente e alarga o nosso coração. Sentimo-nos chamados pelo nome e compreendemos melhor a nós mesmos; sentimo-nos envolvidos por uma Presença que nos faz únicos e redescobrimos um sentido novo, um significado inimaginável para nossa própria existência. Voz mobilizadora, que nos arranca de nossas tentativas de acomodação (“façamos aqui três tendas...”) e nos faz descer em direção ao vale do compromisso e do serviço.
O olhar e a voz de Deus nos atraem para a verdade da nossa própria vida: mergulhados na Luz, descobriremos a luz e compreenderemos para onde devemos ir. Finalmente, não nos sentiremos mais sozinhos.
Quaresma é tempo para afinar nossos ouvidos e deixar-nos impactar pela Voz, única e original, que vem de Deus. Voz que “toca” e desperta forças desconhecidas do nosso interior; Voz que ativa nossa identidade; Voz que nos faz voltar ao nosso ser essencial; Voz que reconstrói nossa dignidade e nos ajuda a conectar com o nosso ser mais profundo.
Quanto aspira nosso coração escutar uma Voz que desate em nós forças libertadoras! Livres do domínio de nossas compulsões, livres para amar sem defesas, livres para sermos nós mesmos e poder entrar numa relação nova com a realidade, com os outros e com Aquele que continuamente sussurra sua Voz como uma brisa reconfortante.
Quanto precisamos ouvir uma Voz que toque nossas superfícies endurecidas e atinja nossa fibras mais profundas! Quanto desejamos uma voz que nos liberte de tantas ataduras que não nos deixam respirar com profundidade, nem olhar compassivamente, nem considerar a beleza da diversidade e da diferença!
Presença e voz que nos arrancam do nosso ambiente, da nossa rotina... e nos lançam em direção a novos desafios. Tudo pode começar no alto da Montanha... um encontro.
Neste tempo Quaresmal, “subir a Montanha” requer um ritmo pessoal, fazer o próprio caminho, vencer os obstáculos, vivenciar o silêncio, apurar a escuta interior para captar as “vozes” do coração. É no silêncio que a Voz de Deus ressoa com mais intensidade. Voz que desperta as “cordas” do coração para podermos entrar em “sintonia” com o próprio Criador. Voz que integra e pacifica nosso ser dividido, estabelecendo uma harmonia em meio aos sons dissonantes do nosso interior.
Dizem que há pessoas capazes de serem curadas por uma voz, pela sonoridade de uma voz determinada. São vozes que “tocam” e despertam forças desconhecidas. Certas vozes nos devolvem ao nosso “eu original”, ativam recursos ainda latentes.
Somos seres de palavras e somos também seres de silêncio. Neste mundo de “palavreado crônico” temos esvaziado o dom da palavra e as vozes se fazem estridentes e agressivas... Por isso, precisamos educar nossa voz no calor do silêncio, porque só o silêncio restaura a força mobilizadora de toda voz. Só assim nossa voz poderá curar, elevar, comunicar vida... Voz que realça a dignidade a cada pessoa, remetendo-a a si mesma, ajudando-a a conectar-se com o que há de melhor em seu interior.
Todos os grandes personagens bíblicos fizeram uma experiência de montanha (lugar de intimidade com Deus; lugar onde a Voz divina ressoou com mais intensidade; lugar da bênção e do envio...). Foi no alto da montanha que Deus se revelou no meio das nuvens e somente aqueles que se fizeram “simples e despojados” puderam encontrá-Lo e escutar sua Voz. Sentiram-se transfigurados. A partir do impacto interior da Voz de Deus, tais personagens educaram suas vozes para que elas fossem portadoras de vida, vozes que fizeram emergir a nobreza original das pessoas.
A Montanha é o lugar do encontro íntimo com o Senhor e encontro com o melhor de nós mesmos (nossa identidade); o silêncio da Montanha nos des-vela e nos re-vela quem “somos nós”. A experiência de Montanha significa experiência de “transfiguração”, ou seja, nos revela nosso ser essencial, nos faz ir além de nossa aparência para captar nossa riqueza interior, nosso “eu original”.
Além disso, os “momentos” de Montanha nos fazem perceber qual é a direção de nossa vida, nos apontam qual é o caminho a seguir, qual é a opção a viver... Caminhando por trilhas desconhecidas, poderemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer “vozes novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões ainda desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes que dão sentido e consistência ao nosso viver.
Texto bíblico: Mt. 17, 1-9
Na oração: O que aconteceu a Viktor Flankl depois de sua libertação em Auschwitz pode também acontecer conosco: “Em primeiro lugar se soltava a língua e vários dias depois estalava algo que se escondia no fundo de nós mesmos”.
- A escuta da Voz divina no mais profundo de nosso ser é o meio para transformar-nos e descobrir nossa verdadeira identidade de filhos(as) de Deus.
- No fundo do nosso coração é aí que o Senhor passa... e com sua Voz provocante nos acorda para uma ousadia maior. Compete a cada um dar-lhe acolhida e entrar no movimento expansivo do próprio Deus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Naquele tempo, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo” (Mt 4,1)
O deserto é um lugar instigante na vida humana. Apresenta-se como o lugar da tentação e também como o lugar onde o Senhor nos fala ao coração. O interior não se expande sem períodos de deserto. Há desertos que são buscados, e há também desertos que a vida nos traz, surpreendendo-nos. Sempre aprofundam e alargam em nós uma dimensão do amor que nosso ego fechado quer roubar-nos.
Os evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) colocam o relato das tentações de Jesus no início de sua atividade pública. Talvez com isso eles estão querendo dizer que, antes de começar uma missão libertadora, é necessário enfrentar-se com os próprios “demônios interiores”.
“Demônios interiores” é tudo aquilo que nos divide (“dia-bolum” – o que divide), que alimentam nosso ego-centrismo, rompendo a comunhão com os outros, com Deus e com suas criaturas; são forças que permanecem ocultas, mas bem ativas em nós, conduzindo-nos aonde não queríamos ir.
O “dia-bolum” não quer que reconheçamos o Criador, e muito menos que lhe honremos nos outros. Ele gosta dos verbos que afirmam o ego: possuir, conquistar, adular, mandar, competir, destacar, impor... E lhe causa repugnância aqueles verbos que nos fazem sintonizar com outros: doar, servir, colaborar, agradecer, suscitar, partilhar...
Os “demônios”, dos quais os relatos sinóticos nos falam, são três e caracterizam bem o nosso ego: o ter, o poder e a aparência (vaidade). É neles onde o ego se entrincheira e onde se apega para sentir-se que é “algo”. Bens materiais, poder e influência, imagem e prestígio: eis aí os interesses do ego.
Em outras palavras, o que o ego busca nesses apegos é uma só coisa: segurança. Precisamente por isso, a maneira de “lidar” com esses demônios interiores é reconhecer e des-velar (tirar o véu) as carências pen-dentes em nossas vidas e descobrir a falsidade de suas promessas. Fica claro que são “tendências narci-sistas”, próprias de um ego imaturo, que buscam um lugar ao sol e que desencadeiam um processo de auto-centramento e ruptura de aliança com tudo e todos.
Des-velar as “vozes dia-bólicas” de nosso interior pode nos ajudar a compreender que a segurança que elas prometem são vazias: todo o dinheiro do mundo, todo o poder e toda a fama são incapazes de conferir segurança e plenitude. Não só isso: aquelas vozes nos confundem e nos fazem distanciar de nossa verdadeira identidade. Cedo ou tarde reconheceremos que o futuro do ego não tem fundamento e que, como dizia Jesus, viver para ele é “perder a vida”.
A segurança não se encontra ao alcance do ego. Por isso, ele se desespera ao perceber que, por mais esforço que faça, não pode tê-la sob seu controle. Tampouco se encontra fora de nós, em outro lugar ou no futuro; nem sequer podemos situá-la em nossas ideias ou crenças.
Porque, o que ardentemente aspiramos não é “algo” que imediatamente nos complete. Aspiramos nada menos que o Absoluto (“adorarás ao Senhor, teu Deus, e somente a Ele prestarás culto”), mas não como “algo” ou “alguém” separado, mas essa Presença intima e amorosa que nos habita. Essa Presença é segurança e constitui o núcleo de quem somos; ela é o “objeto” de nossa sede e de nossa busca porque é reveladora de nossa verdadeira identidade. Onde a estávamos buscando?
Jesus, também tentado, nos ajuda quando tentados. Ele também “foi provado em tudo como nós” (Heb. 4,15). Ele precisou superar a “divisão interna”, própria do ser humano, para poder viver a densidade humana, aberta e oblativa. No tempo do deserto viveu um processo de humanização profundíssimo, deixando-se pacificar e conduzir pelo Espírito, reencontrando, na própria história, pontos de referência fundamentais que vão situá-lo na condição de Filho de Deus. As tentações não foram um momento da vida de Jesus, mas uma “sombra escura” que o acompanhou ao longo de toda sua vida. Frente ao ídolo do poder e do ter, Ele se mantém de pé, despojado; frente ao desejo de utilizar sua condição de Filho em seu próprio benefício, elege o caminho da obediência sintonizada no Pai; frente ao discurso do êxito e da fama, Ele elege o do serviço.
As tentações são expressão do conflito permanente de sua vida e de sua obra. No deserto, Jesus tomou uma consciência tão plena de sua condição de Filho, a Palavra do Pai lhe deu tanta segurança e iluminou de tal maneira sua vida, que já se torna impossível confundir Deus com os falsos ídolos que o tentador lhe apresenta: um “deus” contaminado pelas piores pretensões da condição humana: possuir, fazer ostentação de prestígio, exercer domínio.
Jesus não veio para que os anjos esvoaçantes o carregassem, mas para carregar sobre seus ombros a ovelha perdida; não veio para converter as pedras em pães, mas para entregar-se Ele mesmo como Pão de vida; suas mãos não se fecham possessivas sobre as riquezas porque Ele precisa delas livres para levantar caídos, sarar feridos ou lavar os pés cansados do caminho; não veio para trocar a pérola preciosa do Reino que o Pai lhe confiou por outros reinos que o tentador lhe mostrou a partir do monte.
Neste tempo quaresmal, identificados com Jesus na estadia do deserto, vamos “des-velando” nossos dinamismos “dia-bólicos” que se instalam em nosso interior, atrofiam nossas forças criativas e nos dis-tanciam da comunhão com tudo e com todos.
O mundo em que vivemos nos condiciona a viver em torno do ter, do poder, da ambição do prestígio, da idolatria... Jesus nos ensina a pedirmos ao Pai que não nos deixe cair nessas tentações que destroem o projeto de um mundo fraterno e igualitário.
A tentação é a que promete o bem e nos conduz ao mal; aquilo que parece atrativo e inclusive bom, mas nos afasta de Deus e dos outros; aquilo que parece algo evidente, inevitável em nossa vida quando na realidade não é; aquilo que, com enganos, nos mata aos poucos.
Do nosso interior, esta força do mal se encarna nas nossas atividades, instituições, estruturas (externalizado), provocando violência, gerando tensões, injustiças... e criando uma sociedade opressiva, dividida, conflituosa, preconceituosa... Esta situação, com suas seduções e ilusões se constitui em permanente tentação coletiva para o egoísmo, a insensibilidade e a ruptura da fraternidade.
Viver humanamente consistirá em deixar o Espírito circular livremente por todos os cômodos de nossa morada, arejando-os, ventilando-os, religando-os, dando-lhes vida, reorientando-os. A missão do Espírito é ajudar-nos a fazer a travessia do deserto interior, tanto nas sombras como nas zonas de luz, até ao centro de nós mesmos. O Espírito procura entrar para fecundar, recolocar em ordem, restaurar, unificar.
Precisamos nos abrir para uma verdade maior quanto à nossa humanidade, ou seja, que todos os nossos recantos merecem ser visitados, olhados, ouvidos e abraçados; que cada aspecto de nossa vida contém uma dádiva maior do que podemos enxergar e cada sentimento merece uma expressão saudável.
Texto bíblico: Mt 4,1-11
Na oração: A oração sobre as “tentações de Jesus” nos ajuda a tomar consciência das alianças e cumplicidades nas quais podemos cair em nossas relações com o mundo e com aqueles elementos que de modo mais decisivo põe em perigo nossa liberdade: as riquezas, o poder, o prestígio. Nessa "embriaguez existencial" a alteridade desaparece, a abertura a Deus se atrofia e a gratidão frente aos bens se esvazia.
- Dar nomes aos “demônios interiores” que desumanizam.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serdes vistos por eles”
Todos os anos, vivemos um curioso itinerário: “passamos” do Carnaval à Quarta-feira de Cinzas. Trata-se de uma das expressões coletivas onde a tradição, a cultura, a história e a fé se encontram para deixar transparecer, com assombrosa claridade, um de nossos contrastes profundos. Assim somos nós, às vezes escondidos detrás de máscaras, ou envolvidos em plumagens brilhantes. E outras vezes, necessitados de nos desfazer de capas e envoltórios para poder contemplar nossa autêntica identidade, profunda e frágil ao mesmo tempo.
Algo disto acontece no Carnaval. É uma espécie de apoteose do sonho, do espelhismo, da vaidade. No carnaval não há nada mais que a fachada que alguém quer mostrar.
É uma curiosa metáfora de como, às vezes, podemos viver. Disfarçamo-nos de forte quando sabemos que somos vulneráveis; aparentamos ser resistentes quando, na realidade, estamos quebrados por dentro; manifestamos coragem quando o medo bloqueia o fluir da nossa vida; escondemos as inquietudes cotidianas, os desgostos ou as feridas, os fracassos e a falta de sentido na vida...
Vivemos a cultura da “civilização do espetáculo”. A humanidade passa por uma etapa de progressiva atrofia da interioridade, na qual a vida deixou de ser vivida para ser representada. As pessoas, como os atores que representam em um cenário o nas telas, vivem para mostrar-se para fora, carecem de sedimento interno. Através das redes sociais não há nada mais oculto, e o que é mostrado ao exterior está enfermo de superficialidade. As pessoas mais inventivas e criativas, que antes perseguiam ideais e causas mobilizadoras, agora já não conseguem senão representar uma farsa; nada escapa à banalização generalizada imposta por uma cultura focada na imagem pública.
É cada vez mais difícil a criação de um espaço interior, em sintonia e bem integrado com o mundo exterior. É cada vez mais difícil o caminho para a autenticidade, a esforçada vida que aposta pela profundidade pessoal e pelo compromisso. Pode-se dizer que a civilização na qual nos movemos converte em árdua a aspiração evangélica do “escondido” e “oculto”, porque com a multiplicação de presenças superficiais – celular, tablets, face-book, whatsApp – nossa civilização trivializou e banalizou a intimidade.
“Vestir-se de saco e cobrir-se de cinzas” seria a outra face dessa mesma moeda. É como quem tira a maquiagem frente a um espelho, para encontrar-se com a pele desnuda, como quem vai se despojando de camadas de roupas e vai ficando desprotegido.
Neste tempo de Cinzas a liturgia insiste para que possamos ver nossa verdade sem adornos; contemplar-nos e saber quem somos; aceitar nossa fragilidade, reconhecer os dons e os limites; descobrir as fendas por onde a vida se esvai, para ver se há algo a fazer com elas; confiar no Deus que nos conhece melhor que nós mesmos; e, ao “sair do próprio amor, querer e interesse”, poder partilhar este nosso ser no compromisso com os outros.
Buscar a Deus onde Ele quer ser buscado e como quer ser buscado significa confrontar nossa própria interioridade, com toda sua complexidade de desejos contrapostos, e desmontar fantasias enganosas sobre nós mesmos e nossos objetivos na vida.
A experiência quaresmal significa: caminhar para a vivência de um Evangelho mais autêntico, lutar contra uma cultura que premia a exibição, mergulhar no “oculto” de modo que se dilate em nós um espaço interior, pois é no oculto e no escondido onde vai ser possível um encontro com o Deus verdadeiro.
A Quarta-feira de Cinzas se abre com o conhecido texto de Mateus sobre a esmola, a oração e o jejum. Tais “práticas quaresmais” são uma mediação para reaprender o caminho de volta ao coração, desvelando (tirando o véu ou as máscaras) nossa interioridade para poder viver com mais verdade e coerência.
Mateus caricaturiza, exagera e amplifica o comportamento errôneo daqueles que vivem o “complexo do pavão”. O texto não critica que se dê esmola ou se faça oração e jejum, mas o “por quê” e o “para quê” de tudo isso: “para chamar a atenção”, “para serem elogiados pelos outros”, “para serem vistos”. Ou seja, faz-se da oração-esmola-jejum uma autocelebração ou exibição de si mesmo.
Somos convidados a viver a Quaresma como um tempo de libertação. Neste tempo litúrgico teremos a oportunidade de experimentar um modo de viver, onde a verdadeira liberdade terá a chance de se expressar. Quaresma pode ser escola de vida para o restante do ano.
Não se trata de estar olhando nosso próprio umbigo: se queremos mudar as estruturas injustas, se queremos enfrentar o mal sistêmico, se cremos que outro mundo é possível, temos que começar por nós mesmos. Jejuar, dar esmola e orar... três simples propostas para sermos melhores e mais humanos.
A oração: um tempo para tomar consciência que minha vida passa diante dos olhos do Senhor e saber o que Ele vê nela; somente diante do olhar compassivo do Senhor posso ativar os melhores recursos presentes em meu interior. Orar para conhecer mais o Senhor, para conectar com o que Ele deseja para mim e desejar, também eu, com Ele. Oportunidade de sentir sua presença em meu dia-a-dia, no cotidiano, e de reconhecer que, às vezes, Ele não passa: não o deixo passar. Tempo também de agradecer o bem que Ele realiza em minha vida e na das pessoas que me rodeiam. A oração é um encontro necessário, especial, insubstituível, para prestar-lhe toda minha atenção. E como em toda aprendizagem, persistir.
Como é minha oração? Deixo espaço suficiente à ação surpreendente de Deus?
O jejum: deixar de lado o que causa dano, para afirmar o que merece um espaço em minha vida. O Senhor me chama a jejuar de pré-juizos, de incompreensão, de intolerância, de egoísmo, de soberba, de mentiras... Jejuar de desculpas que me impedem olhar a realidade de frente, e optar por assumi-la com toda sua dureza e sua riqueza. Distanciar-me da vida superficial-consumista e eleger a vida plena, profunda, comprometida. Aprender a jejuar, não como sacrifício vazio, mas por amor; abraçar a renúncia que me abre a uma vida nova.
De que jejuar em minha realidade de hoje? A quê renunciar para ativar a vida?
A esmola: chamado a partilhar o muito ou o pouco que tenho, a descentrar-me, a fazer da minha vida uma contínua saída em direção aos outros, sobretudos os mais pobres e excluídos. Praticar a esmola libera os braços para acolher, alarga o coração para ser mais compassivo, movimenta os pés para uma maior prontidão no serviço, desperta uma presença inspiradora junto àqueles que estão abatidos...
Esta generosidade, à qual sou chamado, é a atitude central na escola da quaresma e da vida. Seus frutos: a liberdade, a justiça, a Páscoa.
Dar esmola é fazer tudo aquilo que me leva a sair ao encontro do outro em suas necessidades: ser mais consciente da injustiça e da violência, servir os outros, visi-ar o enfermo, estancar feridas afetivas, encontrar tempo para falar com a família, deter-me naquilo que é mais positivo nos outros, ser membro ou voluntário de uma ONG...
Qual é a “esmola” que o Senhor me chama a entregar?
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Qual é minha verdade, diante de Deus, de mim mesmo, diante dos outros?
Quê máscaras costumo usar, e em quê circunstâncias?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Não vos preocupeis com a vossa vida, com o que haverei de comer ou beber;
nem com o vosso corpo, com o que havereis de vestir” (Mt 6,25).
Jesus se dirige aos seus discípulos e revela o verdadeiro rosto de Deus e as suas entranhas de Pai-Mãe, que cuida dos próprios filhos, como também das flores do campo e dos pássaros do céu. O fundamento da segurança e da serenidade reside na consciência de estar nas mãos providentes de Deus.
O ser humano conhece bem a própria condição de precariedade e as muitas situações adversas que podem tornar o seu futuro incerto. A inevitável experiência da limitação tira as forças e dificulta o caminho. Surgem, então, a preocupação e a ansiedade que tornam o seu rosto cansado e triste e, até mesmo apagar em seu coração a alegria de viver.
Por isso, o ser humano, instintivamente, busca algo ou alguém que lhe dê segurança, e sente a necessidade inapagável de superar a angústia do limite e de respirar futuro. Sem futuro não há espaço de vida, não há esperança. Mas nada o preenche e o pacifica interiormente. A consequência é um rosto marcado pelas rugas da preocupação e do cansaço. A confiança depositada no bem-estar, a rejeição das próprias raízes, a incapacidade de sentir-se “filho”, obscurecem a horizonte do futuro.
A “pre-ocupação”, quando se torna hábito de vida, tem o efeito desastroso de comprometer a capacida-de de relação, dimensão fundamental que torna a existência fecunda e criativa. Segundo o Evangelho, a preocupação envolve duas necessidades básicas do ser humano: o alimento e o vestuário.
que é considerado necessário para manter a pessoa viva.
dignidade, posição social e relação.
O alimento e o vestuário, portanto, representam duas dimensões essenciais da existência humana: uma individual e outra relacional.
A preocupação que pode atormentar o coração do ser humano, o medo de perder aquilo que dá segu-rança e o temor de não ter acumulado suficientemente, fazem com que o alimento e o vestuário percam o seu significado mais amplo e a sua força evocativa.
Então, acontece que a preocupação com o alimento e com o vestuário prevalece sobre a própria vida, não mais acolhida como dom; do mesmo modo o corpo, não mais entendido como possibilidade e lugar de relação-encontro. Inevitavelmente, a dignidade da vida se degrada e a luz do rosto da pessoa se apaga. Muitas vezes, a preocupação com o amanhã oculta a beleza do presente, mas também a lembrança de um passado que reaparece sempre de novo entorpece esta vivência.
As pessoas espiritualmente inteligentes vivem serenamente com a máxima intensidade o agora, cada momento que se apresenta na vida, sem a pre-ocupação e a ansiedade frente o futuro. Sabem que tudo passa, mas que cada instante é uma porta de acesso à eternidade. Gozam intensamente da alegria de existir, da beleza e da bondade que se manifestam em cada momento. Não sofrem pelo passar do tempo, nem pelo envelhecimento ou pela morte. Usufruem intensamente o tempo presente e encontram nisso sua alegria.
Este sentimento não é um estado de espírito suscitado por um objeto de consumo, nem por um êxito pontual ou por um reconhecimento público. Ele emerge das profundezas, do fato de estar existindo e da capacidade de vibrar com a beleza que existe nas coisas.
Esta vivência plena do momento não entra em contradição com o fazer da vida um projeto pessoal. Dar sentido à vida é fazer dela uma missão que tenha como objetivo um fim nobre, algo que mereça a entrega e o sacrifício; mas isso não significa transformar o presente em puro instrumento e pretexto do futuro.
Quem vive com entusiasmo seu projeto vital, quem ama seu trabalho, sua missão, quem se entrega apaixonadamente ao compromisso que desenvolve no mundo, experimenta a alegria de existir indepen-dentemente do fato de seu projeto, a longo prazo, chegar ou não ao seu cumprimento.
Quando alguém está centrado no presente, envolvido criativamente em algo que o satisfaz de verdade, que vive cada instante com a máxima intensidade e não se preocupa com os resultados ou benefícios..., esse é capaz de dar-se conta de que cada dia é uma possibilidade, cada dia é um dom único e irrepetível.
Quando uma pessoa vive a presença plena do agora não sofre com o que virá, nem mesmo com a certeza da morte, consciente de que quando chegar a esse dia poderá confessar que viveu, que experimentou seu ser aqui. Por outro lado, aquele que passa mecanicamente de um momento a outro, esperando um futuro supostamente feliz, vive angustiado e cheio de temor. Não tem nenhuma garantia de chegar a tal futuro e esse estar dependente do amanhã o transforma em escravo.
A dimensão espiritual habilita a experimentar a alegria de existir, transcendendo a mania de esperar e a obsessão de recordar. Esta alegria é a que Jesus vê refletida nos lírios do campo e nas aves do céu.
Ao observar as aves do céu e a beleza dos lírios no campo, Jesus convida os discípulos a contemplarem, com admiração, o rosto paterno-materno de Deus: cada um deles é cuidado pela Sua mão providente. Não se trata de se colocar numa atitude de espera passiva, mas de estar ciente de que Alguém cuida, não só das menores criaturas, mas também da vida dos próprios filhos, como um tesouro do qual tem ciúmes.
Deus não descuida de nenhuma das suas criaturas, nem mesmo as mais frágeis – os lírios - ou as mais im-previsíveis – as aves. Ele tece, com incrível precisão, a forma, a cor e o perfume da flor, que desabrocha pela manhã e à noite, murcha, é jogada ao fogo. Ele cuida dos filhotes dos pássaros, que não tem condi-ções de semear e de colher, e nem de acumular; muito mais faz Deus pelo ser humano, criatura predileta por quem demonstra tanto afeto e carinho.
Tomando como exemplo os pássaros do céu e os lírios do campo, Jesus, implicitamente, une o céu e a terra, e recorda que o ser humano é formado do “húmus” e do “sopro” de Deus. O fiel discípulo de Jesus, descobrindo-se amado e protegido com a ternura providente, se sente sempre a caminho, isto é, pronto a acolher cada fragmento de luz e de vida, que fala da presença e da passagem do Pai. O presente, tecido de partilha, solidariedade, doação, misericórdia, mansidão, reveste o futuro de luz.
A verdadeira segurança cresce no coração e na confiança de sermos protegidos por um Deus que sabe o que precisamos e nos aguarda. A busca do Reino é o “pão” da vida e a “roupa” da luz que nos envolve.
Texto bíblico: Mt 6,24-34
Na oração: Quê oportunidades você percebe no dia de hoje? Ou nesta semana? Você tem consciencia das surpreendentes oportuni-dades que Deus oferece cada dia? Conversações, leituras, vivências, senti-mentos, gestos, orações...
Viva cada jornada como um mistério, uma festa, uma página em branco que você pode escrever de muitas formas diferentes. Cada dia é um cenário onde você pode ativar o amor, a justiça e a fé. Sempre.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E se saudais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? (Mt 5,47)
Com estas palavras, Jesus estabelece a diferença entre o modo pagão e o modo cristão de viver o cotidiano. A “cotidianidade” de nossa vida está tecida de coisas “ordinárias”, contraposta ao que ocorre de maneira “extraordinária”.
A maioria das pessoas vive restrita ao ordinário com o anonimato que ele envolve. No entanto, no seio do ordinário pode brotar uma mudança, uma transformação. “Se, às vezes, há um fastio na rotina, não raro ela revela um mistério insondável” (Cláudio Van Balen).
Quando assumimos o nosso ordinário e o vivificamos com injeções de novidade e de criação, ele se torna o “lugar” das experiências. E a “experiência é a sabedoria da vida”. No ordinário se encontram as “pequenas práticas com sucesso”. O ordinário pode significar um avanço na aceitação do “pequeno”, das coisas mais simples... tudo tem sentido, tudo é digno de ser cuidado.
Nesse sentido, o ordinário que conserva, também pode provocar o surgimento do novo; o ordinário que aliena, também está grávido de utopia; o ordinário que nos acomoda, também pode ser o lugar da audácia e da iniciativa.
No evangelho de hoje(7º Dom TC), Jesus pergunta aos seus seguidores o que fazem de extraordinário. Isso nos leva a pensar que o cristão deve ser aquele que tem atitudes extraordinárias, comportamentos extraordinários, ações extraordinárias, etc... Portanto, esta é uma das características do cristão: ser extraordinário.
No entanto, quando pensamos em “extraordinário”, pensamos em enormes obras, coisas estrondosas, mirabolantes, etc... O que é “extraordinário”? A palavra nos sugere pensar o seguinte: “extra” + “ordinário”.
“Ordinário” é o que está na ordem do dia, nas regras, nos comportamentos ditos normais de todos, na mesmice do dia a dia. Isto é o ordinário: acordar, trabalhar, estudar, casar, comprar, consumir, morrer,…
Milhões de pessoas passam a vida fazendo o ordinário. E simplesmente “passam”.
Aqueles que fazem coisas “além desse ordinário”, ou seja, “extra”, são pessoas “extraordinárias”. Portanto, tudo aquilo que vai além da normalidade, do comportamento geral, isso é extraordinário. Dessa forma, tiramos do conceito de “extraordinário” a necessidade de “coisas enormes”. Mas, coisas mais profundas, com mais sentido, com “sabor diferente”, com “características diferenciadas”. O seguimento de Jesus é para aqueles que querem “algo mais”, que querem o “extraordinário”.
A espiritualidade é a contracorrente do ordinário. Se, de um lado, o ordinário nos arrasta para a repetição e a conservação, de outro lado, a espiritualidade nos impulsiona para a busca e a descoberta. Se permanecermos simplesmente no ordinário, então nos tornaremos medíocres e nos contentaremos com o “menos”.
A espiritualidade cristã é a espiritualidade do cotidiano, que conserva sua força transformadora, que é capaz de despertar o espanto e a admiração, apontando sempre para um horizonte mais amplo e mais rico; é a espiritualidade que reacende desejos e sonhos novos, que suscita energias em direção ao mais; é a espiritualidade que faz descobrir, escondida no ordinário, uma Presença absoluta que nos envolve; é a espiritualidade que faz saborear o eterno e o Absoluto no ritmo doméstico e cotidiano da vida... é a espiritualidade que projeta a vida a cada instante; abre espaço à ação do Espírito para que Ele nos expanda, nos alargue e nos impulsione para horizontes novos.
Uma pessoa certa vez disse: “todos nós somos chamados a sermos santos; e santo não é aquele que faz coisas extraordinárias, mas santo é aquele que faz as coisas ordinárias de forma extraordinária”. Há aqui um sentido profundo: ser uma pessoa “normal”, mas que faz tudo de forma extraordinária. Fazer bem as coisas, com responsabilidade, com ética, com respeito, com justiça…
E temos muitas pessoas extraordinárias no mundo hoje, felizmente. Ocorre que os grandes meios de comunicação, ordinários (em todos os sentidos da palavra), não divulgam o que elas vivem: não retribuem violência com violência, são capazes de entregar o manto e de não dar as costas a quem pede emprestado; amam os inimigos e rezam por aqueles que as perseguem. Vivem de maneira extraordinária. Tais pessoas fazem a diferença.
É a “mística” que nos desperta da letargia do cotidiano. E despertos, descobriremos que o cotidiano guarda segredos, novidades, energias ocultas, forças criativas... que podem sempre conferir novo sentido e brilho à vida. O Reino se revela no pequeno, no anônimo, no ordinário e não só no espetacular, no grandioso. É o cotidiano que nos prepara para as grandes decisões.
Na vida cotidiana, as pessoas correm o risco de serem apenas imitadoras ou repetidoras, pois temem se perderem na busca do novo; as respostas são confirmadas, mesmo que estas sejam velhas e desfocadas e as perguntas são silenciadas. Fechado em si mesmo o ordinário torna-se pesado, desinteressado e frustrado. As “ações cotidianas insensatas” podem ser “sensatas” (com sentido), se percebermos Deus presente nelas. Descobrir a presença divina escondida no ordinário é encontrar-nos acolhidos pelo abraço do Criador que nos envolve.
Falamos de uma cotidianidade humana, isto é, daquelas atividades de nossa vida diária que, embora irrelevantes em sua aparência, tem uma razão de ser, uma motivação e um modo de serem feitas que não se deve à mera casualidade ou a um impulso instintivo de repetição ou automatismo.
O cotidiano é o que vivemos e/ou fazemos cada dia: o conjunto de circunstâncias, atividades e relações que formam a trama da nossa vida através da qual Deus se revela presente e atuante. Com essa inspiração, o cotidiano torna-se o “lugar” das experiências.
É na realidade diária que cada cristão é chamado a viver em comunhão com Deus e a deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito que animou Jesus e o levou a inserir-se na trama humana, assumindo o risco da história. Ser cristão inserido no mundo, em meio às agitações cotidianas, é acima de tudo ter Jesus como referência de vida: suas palavras, suas ações, seu modo de relacionar-se com o Pai e com os irmãos...
Quando a vida cotidiana do cristão se torna monótona e se faz “normal”, é necessário sacudí-la com algum “detalhe não-normal”, que ajuda para revigorá-la e dar-lhe fecundidade. Neste sentido, os tempos de oração são os momentos privilegiados para que toda pessoa, consciente de sua responsabilidade social e empenhada na transformação de seu “entorno”, possa encontrar em sua vida cotidiana a fonte e sua fecundidade transformadora.
Texto bíblico: Mt 5,38-48
Na oração: O Espírito nos faz abrir os olhos às realidades novas em nossa vida cotidiana; mas nossos olhos somente se abrirão se formos fiéis à voz do Espírito nos simples atos de nossa vida cotidiana.
Suas atividades diárias formam parte do seu caminho para Deus? Você tem consciência que cada dia é um “tempo de graça”? Você “apalpa” a presença de Deus nas “rotinas diárias”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20)
É uma beatitude ter dentro de nós o desejo de um mundo melhor, no qual haja justiça. É uma beatitude não estar satisfeito com a situação presente, porque seria uma infelicidade não ver as injustiças. Aquele que tem fome e sede de justiça não permanece imóvel, está “em busca”... e a busca da justiça não pode jamais se dar por terminada. O ser humano e o mundo carregam infinitas possibilidades de crescimento. Há aí uma tarefa sem fim.
A justiça não é uma virtude como as outras. Ela é o horizonte de todas. Todo valor a supõe; toda a humanidade a requer. É aquela virtude que contém ou supõe todas as outras.
A palavra “justiça” evoca em 1º lugar uma ordem jurídica (“jus”, em latim), ou seja, o respeito à lei. A noção moral é mais ampla: a justiça dá a cada um o que lhe é devido, ou seja, refere-se a uma igualdade entre as pessoas. Mas, no sentido bíblico, “ser justo” é “ajustar-se” ao modo de ser e de agir de Deus.
A justiça adquire, então, um sentido muito mais profundo: a integridade do ser humano é o eco e o fruto da justiça soberana de Deus, da maravilhosa delicadeza com que Ele conduz o universo e cumula de dons as suas criaturas. Esta justiça de Deus coincide com sua misericórdia, sua bondade, sua santidade... Segundo os livros Sapienciais, a justiça é a sabedoria posta em prática. É a sabedoria que ensina a temperança, a prudência, a justiça e a coragem...
Para os judeus, a justiça não é tanto uma atitude passiva de imparcialidade, mas um empenho apaixonado em favor do direito das pessoas. Por isso, justiça deve ser interpretada como misericórdia criadora, na linha profética de Israel, na linha messiânica de Jesus, em forma de não violência ativa, a serviço dos últimos da terra.
A justiça entra em cena nas relações entre Deus e seu povo e entre os homens. Ela está presente nos campos jurídico, social, ético e religioso. É um conceito dinâmico, que significa mais agir do que ser. De Deus e dos homens se diz frequentemente que fazem a justiça, praticam a justiça...
A justiça divina é vista como “a mais sublime bondade” ou uma “força que salva”. A justiça de Deus, portanto, não é poder universal, mas amor aberto e libertador.
No NT, a “nova justiça do Reino” refere-se a uma justiça que se exprime na maneira de viver e na forma de proceder com os outros. É uma justiça que radicaliza a nossa vida de tal modo que nos faz participar já do Reino messiânico. A nova justiça é, antes de tudo, uma exigência de amor entre as pessoas.
Jesus recupera o sentido e o espírito da Lei e não a interpretação casuística. A Lei é mediação para expandir-se em direção aos outros e a Deus. Nela mesma, não tem sentido, desumaniza. É legalismo. Quando a Lei nos abre aos outros ela se revela carregada de humanismo; do contrário, cai-se no farisaísmo.
A preocupação de Jesus não era as minúcias da Lei, mas a prática do amor misericordioso, de modo especial em relação aos pobres e marginalizados. Com relação a isso Jesus foi radical. Na vivência do amor não podemos descuidar nem da menor lei.
Quando estava em jogo a defesa da vida, Jesus não transigia. Na relação com os outros somos chamados a ir além da Lei; não se contentar com a prática da lei em si, mas carregá-la de vida. Ela deve ser mediação para amar mais.
A vivência da lei também é processo; sempre podemos ir um pouco mais além dela. A lei em si estipula um limite: daí o perigo de acomodar-se; a lei do amor, pelo contrário, não tem limites. Jesus veio para alargar o horizonte do comportamento humano, nos libertar dos perigos do legalismo.
Quando alguém busca a vontade do Pai com a mesma paixão com que Jesus a buscava, vai sempre mais além daquilo que pedem as leis. Para caminhar em direção ao mundo mais humano que Deus deseja para todos, o importante não é contar com pessoas observantes de leis, mas com homens e mulheres que se pareçam com Ele, que se "ajustam" ao modo de agir do mesmo Deus; em outras palavras, a prática da justiça que é infinitamente superior à lei.
Aquele que não mata, cumpre a lei, mas se não arranca de seu coração a agressividade para com seu irmão, o desprezo ao outro, os insultos ou as vinganças, não se parece com Deus. Aquele que não comete adultério, cumpre a lei, mas se deseja egoisticamente a esposa de seu irmão, não se assemelha a Deus. Nestas pessoas reina a Lei, mas não Deus; são observantes, mas não sabem amar; vivem “corretamente”, mas não construirão um mundo mais humano.
A radicalidade exigida por Jesus pode, em princípio, assustar às pessoas; mas se trata de uma radicalidade que aponta para o coração. Jesus aponta diretamente para a necessidade de viver em conexão constante com o que há de melhor em nós mesmos, ou seja, ancorar nosso modo de viver nas raízes de nossa identidade profunda. Somente a partir desse “eu profundo” é possível perceber que o que brota daí tem a marca do amor. Esta forma de “ver” e de viver é mais importante que o culto. Por isso, o texto insiste em priorizar a reconciliação antes de fazer a oferenda no altar. Primeiro a justiça, depois o culto.
E essa interioridade, por sua vez, se expressa no modo de olhar, de agir. É preciso arrancar do coração todo olhar possessivo, toda ação egoísta.
Mas Jesus não fala aqui de controle, nem de medo e punição. Segundo a mentalidade oriental, olho direito é o olho consciente, é o olho masculino, que domina, avalia e julga, que quer vencer, e, às vezes, também matar, é o olhar do avarento que deseja possuir tudo.
O olho esquerdo é o olho inconsciente, o olho feminino, que aceita, admira, que observa e percebe. A mão direita é a mão do realizador, daquele que se julga capaz de conseguir tudo que deseja; a mão esquerda, por sua vez, é a mão feminina, que recebe, que é carinhosa, que toca e cura.
Aquele que vê tudo só com seu olho direito, que se apodera de tudo, alimenta uma divisão interior e acabará criando seu próprio inferno nas profundezas do seu ego; é o inferno de seu caos interior. Aquele que pensa que pode controlar tudo com sua mão direita, reprime muitos impulsos oblativos e abertos de seu coração, e acabará lançado no fogo de suas regiões reprimidas.
O decisivo é integrar e harmonizar os dinamismos interiores para que o seguimento de Jesus não desemboque numa batalha interior que desgasta e alimenta sentimentos de culpa.
Texto bíblico: Mt 5,17-37
Na oração: A oração do tato é a oração de um corpo que não se apega avidamente, que não se fecha ao outro.
Tocar a Deus ou deixar-se tocar por Ele não é sentir-se esmagado, mas sentir-se cercado de espaço. A oração é um estreitamento que nos torna livres. Não oramos com os punhos fechados, nem com garras, nem com aguilhão na ponta dos dedos. Só se pode orar com as mãos abertas...
- Diante de Deus, deixar aflorar os sinais de “farisaísmo” presentes no seu cotidiano.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Vós sois o sal da terra… Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,13-14)
O Evangelho de hoje (4º dom TC) vem imediatamente após a proclamação das Bem-aventuranças. Isto quer dizer que aquelas e aqueles que fazem das Bem-aventuranças o programa da sua vida, são chamados a uma responsabilidade real e atual, ou seja, eles/elas não vão se tornar sal da terra e luz do mundo no futuro, mas devem ser presença diferenciada no aqui e agora, humanizando as relações e comprometendo-se com a vida mais justa e plena.
Jesus diz: “Vós sois”; não diz “deveis ser”, ou “tenhais que vos converter em...” “Sois”: expressão que se refere à existência toda do(a) seguidor(a) de Jesus, em qualquer circunstância e tempo. Quem segue a Jesus Cristo, afetado por seu chamado, torna-se plenamente convertido em sal da terra e luz do mundo.
“Sal da terra…, luz do mundo”: muitas vezes estas duas imagens foram entendidas em chave proselitista, de um modo sumamente atraente para o ego e gratificante para a mente.
Ao ego lhe atrai sempre considerar-se em posse da verdade, particularmente por dois motivos: porque isso lhe traz uma sensação de segurança e porque lhe permite manter uma imagem de si “acima” daqueles que, para ele, se encontram no erro. Ao ego lhe encanta ser “especial”, brilhar, aparecer... Ao ego lhe encanta que o reconheçam como “sal” e como “luz”, já que ele não busca outra coisa a não ser sentir-se reconhecido a qualquer preço.
Se permanecermos no clima das bem-aventuranças, cairemos na conta que a pessoa que é chamada a ser sal e luz não sai publicando por aí; ela é sal e luz não por suas ideias, doutrinas ou normas morais que busca impor aos outros, mas por ela mesma, por aquilo que ela é em sua interioridade.
Concretamente, é “sal” aquela pessoa que nos ajuda a saborear a vida com mais profundidade, porque seu gosto por viver nos contagia e nos apoia para que possamos experimentar isso também. É “luz” porque, com sua presença amorosa, dissipa nossas obscuridades e facilita que percebamos o sentido luminoso de nossa existência, de nossa verdadeira identidade.
Ser “luz” e “sal”, portanto, é o mais radicalmente oposto a qualquer atitude de superioridade e de proselitismo. Nem a vaidade, nem o fanatismo trazem sabor e luz.
A vida de Jesus aparece como “sal” e como “luz” pelo que Ele era e vivia. Sua mensagem era sumamente simples, centrada no compromisso com todos e numa presença compassiva; afinal de contas, “sal” e “luz” é outro nome da compaixão. Jesus despertou um movimento humanizador, carregado de sabor e iluminação, afetando a todos que d’Ele se aproximavam. Ele não estava preocupado em fazer proselitismo, nem anunciar uma nova religião, uma doutrina mais palatável... Sua presença desvelava a luz e o sal presente em toda e qualquer pessoa.
«Vós sois o sal da terra…” “Vós sois a luz do mundo…”: constitui uma das afirmações evangélicas mais claras de que a missão dos seguidores de Jesus no mundo faz parte de sua própria identidade. Duas pequenas imagens ou afirmações para duas grandes atitudes.
As imagens do sal e da luz servem também de apoio para justificar duas formas diferentes de presença e de ação no mundo. A referência ao sal remete a uma ação invisível, pois concebe a presença dos cristãos no mundo sob a forma da encarnação, a presença silenciosa na realidade, a inserção na sociedade, deixando atuar, pelo testemunho de cada um, a força do evangelho que, como a semente, uma vez semeada, germina no campo, de dia e de noite, sem que o semeador perceba.
O específico da luz, por outro lado, é brilhar, ou seja, esta imagem realça uma forma de presença visível, através das ações comunicativas e, especialmente, do anúncio explícito, como meios para fazer chegar o evangelho ao mundo no qual o cristão é chamado a ser presença diferenciada.
De acordo com o texto, as formas de presença significadas pela luz e pelo sal são, as duas, inseparáveis. São duas formas de presença no mundo; duas formas de exercício da missão, de um modo de proceder que se dá por “contágio ativo”, caracterizado pela hospitalidade, o amor mútuo, a caridade para com os pobres, a alegria contagiante...
O símbolo da luz é ainda mais rico do que o do sal: a luz ilumina, aquece, guia, agrega, tranquiliza, reconforta. A Luz é força fecundante, princípio ativo, condição indispensável para que haja vida. Tem capacidade de purificar e regenerar. Em oposição às trevas, a Luz exalta o que belo, bom e verdadeiro.
Vivemos imersos num oceano de luz; carregamos dentro a força da luz. Ela sempre está aí, disponível; basta abrir-nos a ela com a disposição de acolhê-la e de fazer as transformações que ela inspira.
Pelo fato de ser benfazeja e criadora, a luz nos permite dizer com o poeta Thiago de Mello, no meio de impasses, ameaças e conflitos que pesam sobre nossa vida: “Faz escuro, mas eu canto”.
Há aqueles que, ao invés de serem presenças iluminadoras, estão mais preocupados em subir e ocupar a posição do candeeiro, para aparecer, para se colocar acima dos outros, serem vistos e elogiados pelas pessoas. Quem aspira estar no candeeiro revela não ter luz para iluminar os outros, mas uma luz auto-referente. O candeeiro não é para que os vejam; o candeeiro é para que a luz de suas vidas se expanda e ilumine melhor; o candeeiro não é para que estejam mais altos, mas é para que a luz de suas vidas chegue a lugares mais distantes.
O ser humano é luz quando expande seu verdadeiro ser, ou seja, quando transcende e vai mais além, desbloqueando as ricas possibilidades de humanidade. A luz, por si mesma, é expansiva.
Um fotógrafo profissional fez a seguinte afirmação: “minha profissão é escrever com a luz; muitos escrevem com letras, eu com a luz”. As fotografias dependem de como a pessoa administra a luz.
Uma preciosa motivação a buscar a luz dentro de nós mesmos, a buscar esse “retrato interior” que é movido a se expor diante dos olhares dos outros. Nossa vida pode ser apaixonante se a contemplamos e a construímos como um diálogo de vida e de luz.
O salmista utilizará um registro parecido, contemplando nosso espaço interior como uma fonte de luzes; uma fonte que deixa transparecer aquela Luz profunda que nos leva por caminhos de paz e serenidade:
“Pois em Ti está a Fonte da vida e à tua Luz vemos a luz” (Sl 36,10).
Deixemo-nos iluminar pela Luz de Deus, levemos a Luz nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos do nosso cotidiano.
Somos uma “sarça ardente” diante dos outros, consumindo-nos constantemente, no humilde serviço; somos uma lamparina humilde, brilhando na janela da nossa pobre casa, indicando aos outros o caminho da segurança e do aconchego.
Texto bíblico: Mt 5,13-16
Na oração: Sinto-me uma lâmpada com a responsabilidade de iluminar no meio da sociedade?
- Quê atitudes e comportamentos meus projetam luz para potenciar a tímida luz presente no outro?
- E quais projetam sombras, para poder erradicá-las? Na família, no trabalho, na comunidade cristã?
- Estou integrado ou devo integrar-me em alguma comunidade, grupo ou movimento eclesial, para ser luz coletivamente? A quê compromissos concretos o Espírito me impulsiona pessoalmente e à nossa comunidade para ser luz em nosso entorno?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“E Jesus começou a ensiná-los: bem-aventurados...” (Mt 5,2)
O Evangelho que nos foi confiado é um programa para alcançar a felicidade, a vida ditosa, prazerosa, bem-aventurada. Na boca de Jesus brilha sempre a palavra chave: “Felizes”.
A felicidade, proclamada aqui por Ele, é já uma realidade presente na sua pessoa e na sua missão. Todas e cada uma das bem-aventuranças são autobiográficas. Jesus viveu-as durante 30 anos antes de proclamá-las. Elas são, portanto, a expressão do que constitui o centro mesmo da sua pessoa e da sua vida, dos seus sentimentos, atitudes; numa palavra, do seu mistério. Poderíamos dizer que as bem-aventuranças são o auto-retrato de Jesus. Elas são o compêndio do ministério de Jesus. Não é lei que se impõe por si mesma; é confissão: “o Reino chegou”.
As Bem-aventuranças não são uma doutrina, mas um estilo de vida, um modo de proceder. Jesus não prega diretamente uma moral. Proclama a “irrupção” da graça, do amor, da misericórdia, da justiça de Deus na história da humanidade.
Porque tem a certeza de que chegou a “hora” de Deus intervir na história, Jesus fica feliz e proclama “fe-lizes” os até agora indefesos, oprimidos e marginalizados, mas que mantiveram viva a confiança em Deus.
Jesus fala da felicidade não no singular, mas no plural. Em outras palavras, o que Ele afirma é que a felicidade de cada um está em íntima relação com a felicidade dos outros, com quem cada um convive.
Todos sabemos que nas nossas igrejas fala-se muito mais da renúncia ao prazer, da mortificação, do sofrimento, da austeridade, do sacrifício, da suportabilidade e da resignação, ao passo que pouco se escuta sobre aquilo que deve mover as pessoas a buscar ser felizes, a deleitar-se com tudo aquilo que de bom Deus pôs no mundo e na vida, desfrutar o prazeroso, o sensível, o corporal. Não é comum encontrar pessoas que, espontaneamente, associem Deus e a religião à alegria de viver e, em geral, a tudo aquilo que nos faz sentir melhor, sentir-nos bem e ser mais felizes.
Portanto, o centro da fé cristã não está na religião com suas exigências de sacrifícios e renúncias, com suas verdades e suas normas, mas na felicidade dos seres humanos.
“A ética de Jesus é a ética do prazer de viver para todos, da felicidade compartilhada por todos, sem excluir ninguém. E isso é o que mais custa assumir e aceitar como projeto de vida, porque a ascética mais dura não é a da renúncia, mas sim da doação” (José Maria Castillo).
Os enunciados das bem-aventuranças soam à primeira vista como “idealistas”, “utópicas”, não possíveis de serem colocadas em prática no mundo em que vivemos. No entanto, pela sua provocação e questionamento, elas são a proposta mais realista, mais revolucionária e mais eficaz jamais pronunciada.
As bem-aventuranças são a exposição mais exigente e, ao mesmo tempo mais fascinante, da mensagem e da “intenção de Cristo”. Elas são a plenificação daquilo que é o mais humano em nós. Poderíamos dizer que as Bem-aventuranças são a quinta-essência do seguimento de Jesus.
De fato, percebemos uma resistência surda frente às bem-aventuranças, não porque nosso coração não se reconheça nelas, mas porque parecem tão impossíveis, tão distantes estamos delas...; vivemos mergulha-dos em tantas contradições, profundos dramas e violências que nos parecem desmenti-las. Incomoda-nos e inquieta-nos sua mensagem de humildade, de mansidão, de paz, de pureza, de misericórdia... quando, na realidade, estamos envolvidos em construir, em fomentar um mundo que é arrogante, agressivo, violento, intolerante, excludente, injusto...
Temos resistências em escutá-las porque elas nos colocam de novo frente à verdade para a qual nascemos, diante do mais original de nosso coração e de nossas entranhas humanas. A ética de Jesus nas bem-aventuranças encontra resistência para ser assumida por nós precisamente em virtude de sua desconcertante humanidade.
As bem-aventuranças nos esperam no pequeno, no cotidiano, no próximo mais próximo, e nos impul-sionam a proclamar: a paz é possível, a alegria é uma realidade, a justiça não é um luxo, a mansidão está ao alcance da mão... Elas nos dizem que nascemos para a bondade, a beleza, a compaixão...
Ao formular as bem-aventuranças, Mateus traça o perfil que caracterizará os seguidores de Jesus; elas condensam as atitudes básicas que os cristãos devem ter na relação com os outros, seguindo as pegadas do Mestre. Jesus propõe a ventura sem limites, a felicidade plena para seus seguidores. Deus não quer a dor, a tristeza, o sofrimento; Deus quer precisamente o contrário: que o ser humano se realize plenamente, que viva feliz... Jesus acreditava na vida, e queria que todos vivessem intensamente. Por isso, as bem-aventuranças podem ser escutadas como uma mensagem que brota do mais profundo da vida e que tem como finalidade apresentar a qualquer pessoa o mais humano que existe em nós.
Ao proclamar bem-aventurados os pobres, os que choram, os perseguidos, os humildes... Jesus, certamente, jamais quis sacralizar a dor humana. Ele constata a situação do povo, de pobreza, humilhação, submissão; percebe o esforço que o povo faz para mudar a situação, e o proclama feliz nesta busca, porque esta busca mora no próprio coração de Deus.
Aos olhos de Jesus nada é mais perigoso para o espírito humano do que vidas satisfeitas, acomodadas, sem desejos, sem a afeição das esperas e o desassossego das buscas; corações quietos, indolentes, medro-sos, covardes, petrificados, sensatamente contentes com aquilo que são e têm.
Como são, ao contrário, humanamente repletos de vida os que quase nada são e têm, os que ainda se encantam com as buscas, os que sonham e lutam por um mundo novo. Sua vida é penosa, sem dúvida, mas repleta de razões, criatividade, entusiasmo e vitalidade.
As diferentes ciências (psicologia, filosofia, antropologia, etc) nos fazem cair na conta de que todos os seres humanos desejam ser felizes. Também elas nos permitem compreender que a felicidade não é uma situação existencial que possamos agarrar e possuí-la. Também não é uma sucessão interminável de pra-zeres que acabam por nos esgotar, mas uma forma de ser e de viver. Ela não emana do que temos ou fazemos, mas do centro de nosso ser.
A felicidade que buscamos é o que realmente somos, e isto só se revela quando a mente se cala. Ser feliz, portanto, consiste em experimentar na existência a plenitude de nossa verdadeira identidade.
Ser feliz é deixar viver a criatura livre, alegre e simples presente dentro de cada de nós. A felicidade é, assim, o livre curso da vida, o fluxo contínuo da Vida em nós que se “entre-tece” com a vida dos outros.
Texto bíblico: Mt. 5,1-12
Na oração: O melhor modo de fazer esta oração é seguir um dos “modos de orar” proposto por S. Inácio, ou seja: “Contemplar o significado de cada palavra da oração” (EE. 249).
* Rezar as dimensões da vida que estão paralisadas, impedindo-lhe de viver a dinâmica das bem-aventuranças.
* Olhe no mais íntimo de você mesmo e pergunte-se: há um coração que deseja coisas grandes ou um coração adormecido pelas coisas? Seu coração conservou a inquietude da busca ou você tem se deixado sufo-car pelas “coisas”, que terminam por atrofiá-lo?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Eles, imediatamente deixaram as redes e o seguiram” (Mt 4,20)
Mudanças são a essência e o sabor da vida. O ser humano é um ser de mudança; só é humano quem vive em “estado de mudança”. A mudança é o elemento que traz energia, variedade, surpresa, côr e vida à vida. Trata-se de um “hábito do coração”: descobrir, examinar, purificar e substituir os hábitos inertes, os esquemas mentais fechados, as condutas petrificadas, os projetos sem horizontes...
É saudável questionar-se, abrir-se e aventurar-se a ver as coisas de maneira diferente e a responder às circunstâncias com espontaneidade nova.
Deus não nos deu um espírito de timidez, de medo, de fuga, de acomodação... mas de audácia, de criatividade, de luta, de participação... Movidos por sua força, vemos a possibilidade de questionar toda nossa atitude conformista, sacudir nossas convicções, ampliar nossos horizontes e animar nossa vida.
Toda mudança implica sair de nós mesmos, de nosso estreito mundo, de nossas práticas arcaicas, daquilo que nos protege e nos esteriliza para que possamos avançar em direção às novas fronteiras do espaço sem limites, que nos espera aberto e acolhedor.
Ser seguidor de Jesus, portanto, consiste em colocar-nos nos seus “passos”, com suficiente visão da realidade para ir adiante, e com bastante disponibilidade para mudar de caminho quando o sopro do Espírito assim nos sugerir.
O texto do evangelho de hoje nos situa diante de um denominador comum que é a mudança. O próprio Jesus vive um momento de mudança radical: rompe com sua família, com seu ambiente, afasta-se da estrutura religiosa centrada na Lei e no Templo e opta por deslocar-se para a margem social e religiosa de seu tempo (Galiléia e terra de Zabulon). Sua mudança de vida desencadeia um processo de mudanças nas pessoas, de maneira especial no grupo dos primeiros seguidores.
O olhar e o chamado de Jesus ativam um movimento na vida dos primeiros discípulos: deixam seu estreito mar e seu rotineiro trabalho para fazer caminho com o Mestre. Tudo começou às margens do mar da Galiléia... Jesus caminha e, ao passar ao longo do mar, viu aqueles homens que estavam retornando da pesca e entra no espaço vital deles. Exatamente ali, naquela vida tão normal, acontece algo novo. Jesus os chama do mar, os faz descer da barca e os convida a segui-Lo, para mergulhá-los no Seu mar, para fazê-los subir noutra barca, para atraí-los a uma vida diferente.
O seguimento só se realiza quando alguém se deixa conduzir para águas profundas num novo mar. Partindo do lugar e das coisas que representam as esperanças, as dificuldades, as decepções, os sucessos, as derrotas daqueles homens pescadores, Jesus pronuncia sua Palavra mobilizadora: “Segui-me e farei de vós pescadores de homens”, ou seja, compartilhar Sua mesma missão, “pescar” o que há de mais humano e nobre nas pessoas, ajudá-las a viver com sentido, tirando-as do mar da desumanização.
E Jesus tem a capacidade de extrair o maior bem possível do outro, de garimpar a autêntica qualidade humana de cada um, sem necessidade de dar-lhe lições ou arrastá-lo com argumentos racionais. “Eles deixaram as redes e o seguiram”: seguir Jesus é uma libertação. Na realidade, o que eles deixam não são só redes, mas tudo aquilo que aprisiona, enreda e que impede a vida ter uma dimensão maior.
Tocados pelo dinamismo de Sua voz e de sua Palavra, os pescadores se dão conta d’Aquele que estava passando: eles já tinham sido vistos, conhecidos, amados, escolhidos. Aquela Palavra que vibra forte, abre os olhos, a mente e o coração daqueles homens rudes do lago. Sentem-se chamados pelo nome, conseguem compreender melhor a si mesmos e redescobrem um sentido novo, um significado inimaginável para a própria existência. Eles descobrem o quão estreito era o seu mar cotidiano e entram no dinamismo da vida de Jesus, deslocando-se para o vasto oceano do Reino.
A experiência do encontro com a pessoa de Jesus, seu olhar compassivo e terno, a proposta ousada e desafiante que Ele nos faz... despertam dinamismos profundos e desejos nobres em nosso interior, sacodem nossa rotina e ampliam nosso atrofiado olhar.
Ao “fixar seu olhar” em cada um de nós, chamando-nos pelo nome, seremos movidos a assumir opções mais radicais e integrais pelo Reino, segundo o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus.
São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz. Ampliar os espaços do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade, solidariedade e abertura às mudanças e às novas descobertas.
Vivemos um tempo caracterizado por constantes mudanças e pelo movimento. No entanto, de uma maneira dissimulada, percebemos a presença de uma paralisia que perpassa nossa condição humana. E paralisia é o que ocorre quando algo que deveria mover-se e fluir, não se move, nem flui. Esse “algo” são processos, projetos, relações, aspirações, causas... E é essa mudança verdadeira que, quando não ocorre, nos faz sentir estancados, angustiados e sem brilho, embora aparentemente as coisas parecem andar bem.
Uma pergunta que normalmente costuma protagonizar nossas conversações com amigos e parentes é: “por quê você vai mudar?” Aumenta a curiosidade quando alguém que gosta muito do que está fazendo, sobretudo no campo profissional, decide mudar: “é verdade que você vai deixar? A gente percebia você tão feliz!”
Acontece que, às vezes, não há nada “mau” com o que estamos fazendo, mas sem entender muito bem por quê, há algo dentro de nós que nos impulsiona a sair, a ir além de nós mesmos, a levantar novo vôo. Alguém poderia nos perguntar: “Mas, se estava bem, para quê complicar-se ao começar algo novo?”.
A resposta que damos nunca poderá ser totalmente racional. Porque disso se trata: toda mudança nos leva a desatar nossa essência, isso que somos na verdade e que clama por sair.
O certo é que avançar supõe fazer opções, renunciar à comodidade do conhecido e dar lugar à mudança. Mas mudar nos dá medo e o medo, às vezes, paralisa. Temos medo de nossas próprias capacidades; tememos nossas máximas possibilidades; assusta-nos chegar a ser aquilo que vislumbramos em nossos melhores momentos. No entanto, não podemos ser “bonsais” de nós mesmos”, atrofiando nossos recursos internos e tirando o brilho de nossa vida.
Desprender-nos do antigo e dar lugar ao novo implica um processo sempre enriquecedor mas também doloroso. Muitas vezes, para escapar do sofrimento, preferimos evitar os riscos em vez de assumir o fato de que, para dar à luz algo novo, necessariamente devemos tomar a decisão de soltar o que nos mantém ancorados no nosso estreito mar e não nos permite singrar os vastos oceanos.
Texto bíblico: Mt 4,12-23
Na oração: No fundo do seu coração cheio de velhas barcas, redes inúteis, mar estreito... é aí que o Senhor passa... e com sua Palavra provocante o acorda para uma ousadia maior. Compete a você dar-lhe acolhida.
- Seguir o Desconhecido do lago significa aceitar a vida como sacramento do encontro, onde ressoa a Palavra d’Aquele que passa, vê, conhece, ama, chama pelo nome... Aos poucos você vai intuindo que a vida não é questão de certezas, mas de busca e de desejos, de caminhar com Aquele que o chama para ficar com Ele e com Ele constituir a grande comunidade de servidores.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele” (Jo 1,32)
Estamos iniciando o tempo litúrgico conhecido como “Tempo comum”; tempo para um longo e demorado olhar centrado na pessoa de Jesus: “ver” e “mirar” nos conduzem a uma identificação com Ele. Do olhar correspondido brota o seguimento.
Como seguidores(as) de Jesus, também vivemos à luz do Espírito, não à sua sombra. Nossa existência, em sintonia com o desejo de Deus para que vivamos em plenitude, é enriquecida pelos nossos desejos profundos de nos constituir como seres livres, ou seja, capacitados a tomar decisões oblativas, desafiados permanentemente por uma pluralidade de opções abertas que se apresentam diante de nós. Não somos escravos de nossa pobre condição mortal, mas o espaço livre por onde habita e transita o Espírito.
No evangelho de hoje(2º dom Tempo Comum), mais uma vez o autor do quarto Evangelho nos coloca diante da figura de João Batista, relatando a experiência dele de encontro com Jesus e revelando-o como aquele que “viu” e que “deu testemunho” de que Jesus é “o Filho de Deus”. Daí sua insistência no verbo “ver”. Não se trata de um “ver” neutro, preso à exterioridade, mas de um olhar contemplativo, capaz de distinguir e apontar quem de fato era o Messias. João não recebeu o encargo de divulgar uma ideia, uma doutrina... mas apontar uma pessoa.
Como nos evangelistas sinóticos, também o evangelista João faz do batismo de Jesus o acontecimento fundante com o qual Ele inicia sua atividade pública. Quê é que João Batista “viu”? Viu um homem cheio de Espírito. Ou seja, Jesus é aquele que, habitado pelo Espírito, se deixa conduzir pelo mesmo Espírito. Ele deixa “transparecer” esta presença do Espírito e só quem tem olhar contemplativo é capaz de perceber quem O move.
Sempre quando temos a sorte de encontrar uma pessoa “transparente” (não “perfeita”, mas humana), torna-se mais fácil reconhecer, apreciar, “ver” o Mistério que a habita. Mas não é suficiente encontrar-nos com alguém assim; é preciso também desenvolver a própria “capacidade de ver”, ou seja, um “saber olhar” que transcende para além das aparências.
Os sábios sempre foram conscientes de que existem diferentes níveis de realidade aos quais podemos ter acesso através de diferentes órgãos de conhecimento. São Boaventura fala do “olho do espírito”, ou seja o “olho da contemplação”. Empobrecemo-nos quando nos reduzimos ao “olho da carne” e também ao “olho da razão”. Precisamos ativar o “olho do espírito” que nos capacita para “ver” a realidade em sua dimensão mais profunda, para perceber o Mistério em tudo o que nos rodeia, nós incluídos. A qualidade humana, o futuro da humanidade e do planeta depende de que saibamos “ver” deste modo.
Nossa experiência do seguimento de Jesus brota da capacidade de fixar nosso olhar n’Ele. De fato, o olhar é o primeiro sentido que nos faz sentir presentes junto ao outro. E, como João Batista, ao fixar nosso olhar contemplativo na pessoa de Jesus, o que vemos é o Espírito agindo n’Ele.
E porque se deixa conduzir pelo Espírito, Jesus não suporta lugares fechados, rompe com os “espaços sagrados”, com os esquemas fechados, com as estruturas arcaicas... O Espírito é “movimento” e Jesus inicia um movimento de vida e vida plena.
Jesus, cheio do Espírito, sempre foi o homem das praças, ruas, caminhos e campos abertos... Não foi o homem dos templos, dos lugares fechados, das cidades fortificadas, mas o “homem em saída”, revelando sua mensagem e sua missão ao ar livre da vida.
A comunidade dos seus seguidores, conduzida pelo Espírito, também não se deixa atrofiar pelo lugares fechados, cheirando a incenso mofado, nem se prende a um ritualismo e religiosidade alienante, mas é aquela que sai para os espaços públicos e ali oferece o testemunho de Jesus.
Somos seguidores de Jesus nos espaços amplos da vida, sem distinção de classes, sem hierarquias, onde todos podem comunicar-se com todos, pois são habitados pelo mesmo Espírito, a força da vida.
A novidade de Jesus consiste justamente em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo. Desse modo, reconhece-se a vida como lugar privilegiado da Sua Presença. Jesus, na Galileia, encontrou os seus lugares: junto ao mar, nas estradas poeirentas, nas margens...
Depois do seu batismo e pleno do Espírito, Jesus se faz presente no lugar onde se encontram aqueles que não tem “lugar”, os “deslocados” e que são a razão de seu amor e do seu cuidado; faz-se solidário com os “sem lugares” e os convida a caminhar para um novo lugar. Na Galileia, Jesus tem suas preferências e escolhe o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles que se fazem donos dos lugares.
O(a) seguidor(a) de Jesus não é aquele que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele(a) que, movido(a) por uma radical compaixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença d’Aquele que é a Misericórdia.
Dessa forma, “habitado pelo Espírito”, experimenta que a vida é forte e formosa e que vale a pena acolhê-la e doá-la, como Jesus fez, sabendo que o tempo da opressão, da enfermidade, da morte e da condenação... não tem a última palavra. Esse é o sentido da expressão de João Batista aplicada a Jesus: “Aquele que tira o pecado do mundo”. Por isso, Jesus e os primeiros cristãos não usaram modelos de poder centralizado para cultivar a presença de Deus. Nem tiveram a preocupação de construir um novo templo, nem formatar uma nova religião, mas descobriram o Templo de Deus na vida mesma, no diálogo e no encontro das pessoas nos espaços públicos, onde sob o impulso do Espírito, buscaram inspiração e sentido para suas existências. E a vida não é um templo já construído, mas uma rede de conexões múltiplas que vão se refazendo, recriando, de um modo incessante, por obra do Espírito de Cristo.
A presença provocativa e o chamado exigente de Jesus colocam em questão nosso costume de nos refugiar no mundo asséptico das doutrinas, na tranquilidade de uma vida ordenada e legalista, satisfatória e entorpecida, na segurança de horários imutáveis e de muros de proteção, longe do rumor da vida que luta para ter um lugar ao sol, dos gritos daqueles que sofrem e morrem nas periferias deste mundo.
Escutar e seguir Seu chamado implica abandonar a estreiteza de nossos caminhos e deixar o nosso coração bater no ritmo do Espírito que nos faz romper nossos estreitos lugares e nos projeta em direção ao mundo dos doentes e marginalizados, vítimas da desumanização de nossa sociedade.
Como Igreja, temos perdido esse estilo itinerante que Jesus propõe. O caminhar dela é lento e pesado; não acertamos o passo para acompanhar a humanidade; não temos agilidade para deslocar-nos em direção à margem sofredora; agarramos ao poder e às estruturas que tiram a mobilidade; enredamos nos interesses que não coincidem com o Reinado de Deus. É preciso uma profunda conversão e voltar à essência do Evangelho: compromisso com a vida, sendo presença misericordiosa.
Texto bíblico: Jo 1,29-34
Na oração: “Fazer caminho” com Jesus implica sair pelas estradas e encruzilhadas para escutar o clamor das pessoas e para alargar a nossa vida no contato com elas. A novidade do Espírito aparece sempre fora dos lugares seguros, protegidos e convencionais.
- Não estaremos desperdiçando as nossas melhores forças para conservar atitudes arcaicas e nos deliciamos com um estilo de vida que nos atrofia?
- Não chegou, talvez, o momento de deixar de repetir aquilo que fazíamos antes, e de abrir-nos àquilo que está diante de nós, à novidade que o Espírito está criando?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“E a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles,
até parar sobre o lugar onde estava o menino” (Mt 2,9)
A “travessia” vivida pelos Magos é a mesma que todos experimentamos; somos seres “em saída”, em contínua busca. Quem busca não permanece sentado olhando o teto ou paralisado com o comando da tv na mão; hoje somos milhões de pessoas buscando permanentemente no Google, no Facebook, no WhatsApp..., sentados, parados, anestesiados...
Quem “sai” está deixando sua acomodada segurança, expondo-se ao que não conhece ou lhe dá medo conhecer. Há milhões de pessoas saindo sem pôr os pés na rua, de garagem em garagem, de centro comercial em centro comercial, viajando de metrô com os olhos fixos no celular, transitando por circuitos perfeitamente estabelecidos para não ver o que há mais além do “parque temático” que lhe é apresentado. Há muitos milhões que vivem com uma venda nos olhos, quer estejam em casa ou saiam para fazer exercícios. Quê buscam? Quê as animam a sair? O quê encontram?
O relato dos Magos não faz referência a pessoas concretas, mas a personagens. Não eram reis, mas “magos”, ou seja, sábios que investigavam os céus para entender melhor o que se passava na terra. Porque estavam buscando, descobriram, encontraram. Notemos que são os que estavam longe que descobriram, enquanto que aqueles que estavam próximos do Menino não se inteiraram de nada.
Para descobrir a presença de Deus, o único definitivo é a atitude. Ao descobrir algo surpreendente, puseram-se a caminho. Não sabiam para onde iam, mas arriscaram. No caminho que os Magos percorreram para aproximar-se de Jesus estão representadas as atitudes daqueles que buscavam a Jesus e se aproximavam das primeiras comunidades cristãs para conhecê-lo. E está também representada nossa busca.
O importante, no texto de Mateus, não é deter-nos na veracidade histórica dos Magos, mas descobrir a “pérola preciosa” que o evangelista oferece, tanto para as primeiras comunidades cristãs como para os judeus que se aproximavam para conhecer Jesus através de seu testemunho.
Como eles poderiam situar-se diante do nascimento de Jesus? Segundo o Evangelista, diante de Jesus podem ser adotadas atitudes muito diferentes. O relato dos magos nos fala da reação de três grupos de pessoas. As autoridades religiosas, que conheciam muito bem a lei judaica e sabiam o que significava Belém para a corrente profética, não souberam ler os sinais dos tempos e não puderam encontrar Jesus. A religião, quando se reduz a simples práticas rituais, atrofia a sensibilidade da pessoa, impedindo-a abrir-se às surpresas de Deus.
O poderoso rei Herodes, preocupado em preservar seu poder, só vê perigo diante de qualquer situação diferente. Nenhum poder é mediação para deixar-se provocar pelo novo. Somente alguns pagãos, guiados pela pequena luz de uma estrela, buscaram, puseram-se em marcha e encontraram Jesus.
O relato é desconcertante. Deus, escondido na fragilidade humana, não é encontrado pelos que vivem instalados no poder ou fechados na segurança religiosa, mas se revela àqueles que, guiados por pequenas luzes, buscam incansavelmente uma esperança para o ser humano, na ternura e na pobreza da vida.
Os Magos não pertenciam ao povo eleito, não conheciam o Deus vivo de Israel. Nada sabemos de sua religião nem de seu povo de origem. Só sabemos que eles viviam atentos ao mistério que se encerra no cosmos. Seu coração buscava verdade.
Em algum momento acreditaram ver uma pequena luz que apontava para um Salvador. Precisavam saber quem era e onde estava. Abriram-se à luz da estrela e rapidamente puseram-se a caminho. Seria uma perda de tempo? Valia a pena fazer a travessia? Não conheciam o itinerário preciso que deveriam seguir, não sabiam para onde a estrela os conduziria e o caminho implicava riscos. Mas em seu interior ardia a esperança de encontrar uma Luz para o mundo.
Quando os Magos se desviaram da rota de Belém e entraram em Jerusalém para perguntar onde é que estava o rei dos judeus recém-nascido, a estrela desapareceu de suas vistas, como que indicando que não é na riqueza e no luxo das cortes que a Luz de Deus brilha para os corações. A estrela também moveu os magos a que deixassem de olhar para ela; que olhassem antes para o lugar, na Terra, para onde ela apontava e sua luz iluminava. Pois é na simplicidade e pobreza de uma criança que resplandece a luz de Deus.
Os magos não caem de joelhos diante de Herodes: não encontram nele nada digno de adoração. Não entram no Templo grandioso de Jerusalém: tem acesso proibido. A pequena luz da estrela os atrai para o pequeno povoado de Belém, longe de todo centro de poder. Ao chegar ao lugar indicado, vêem somente o “menino com Maria, sua mãe”. Nada mais. Um menino sem esplendor nem poder algum. Uma vida frágil que necessita dos cuidados de uma mãe. É suficiente para despertar nos magos o assombro.
Eles prostram-se e adoram o Menino Jesus. Cena poética onde Mateus nos ajuda a romper nossos esquemas mentais. Aqueles que conheciam as escrituras de memória e sabiam interpretá-las não vão ao encontro de Jesus. Aqueles que sabem ler as estrelas são capazes de ver mais além das aparências. E o que veem nesse Menino é tão profundo que caem prostrados, tiram seus tesouros, esvaziam-se e enchem-se da nova Luz descoberta.
Foi assim que a longa jornada dos Magos começou seguindo o caminho que a luz da estrela indicava. E ao final de longa peregrinação chegaram ao lugar procurado. “Banhado pela suave luz da estrela, em meio a vacas, jumentos e palha, se encontrava um nenezinho. Eles, então, foram iluminados. Não pela luz da estrela, mas pela luz da criança. Perceberam que sua busca havia chegado ao fim. Aquilo que os adultos esqueceram e que a sabedoria busca – as crianças sabem.
Ser sábio é ser criança. O universo é um berço onde dorme uma criança. E desde aquele dia eles deixaram de olhar para as estrelas e passaram a olhar para as crianças.
Os sábios vêem o avesso. O avesso é esse: os adultos são os alunos; as crianças são os mestres. Por isso os magos, sábios, deram por encerrada a sua jornada ao encontrarem um menino numa estrebaria...
No Natal, todos os adultos rezam a reza mais sábia de todos, escrita pela Adélia Prado:
“Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande...” (Rubem Alves)
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: Inspirados nos Magos, que descobriram sinais e começaram um caminho de busca, podemos nos perguntar: quê sinais descobrimos durante o ano de 2016? Para onde nos conduzem esses sinais, como se fossem estrelas? Eles nos fazem sair de nossa “zona de conforto”, de nossas seguranças...? Eles nos ajudam a priorizar a viagem ao interior de nós mesmos?
- A estrela que seguimos nos mobiliza ter acesso à nossa “gruta” interna, onde nova vida pulsa por nascer, ou preferimos alimentar uma multidão de contatos superficiais através das redes sociais, afogando-nos nas experiências de solidão?
- Nossas “viagens” despertam o espírito solidário e nos comprometem a responder às necessidades dos mais frágeis ou permanecemos confinados em nós mesmos, “adorando” nosso “ego”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)
Natal: estamos em um tempo que nos fala do essencial: um Deus que se faz carne, o divino que se faz humano; o eterno se estremece diante do que é terno; o infinito abraça amorosamente a fragilidade... Viver este mistério é viver em Deus, compreender até onde chega a loucura de amor de um Deus que se humaniza para que nos humanizemos. “A humanidade de Cristo é a humanidade vivida à maneira de Deus, ou melhor, vivida por Deus” (José Arregi).
“Deus se humanizou”: tal expressão revela que a Misericórdia de Deus significa também ternura. Apareceu um Menino: apareceu a ternura e a doçura do Deus que salva. Na fragilidade de uma criança se esconde e se revela a grandeza divina. Uma antiga tradição religiosa afirma que a maior seriedade de Deus aconteceu quando Ele virou menino. Louca aventura amorosa de Deus! No rosto de uma criança se faz visível a Misericórdia que desce sempre mais abaixo, que nasce no ventre da terra e se faz terra fértil.
Segundo Jacob Boehme, místico medieval, Deus é uma Criança que brinca... É nessa atmosfera “infantil” que Deus se aproximou de nós. Não veio como um imperador poderoso nem como um sumo-sacerdote ou um grande filósofo. Deus pode ser encontrado não na estrada suntuosa do domínio e do poder, mas na estrada da doação, da partilha, da solidariedade... A única explicação da “descida” de Deus é seu “amor compassivo”. Ele mergulhou na nossa fragilidade fazendo-se uma criança pobre, que nasce na periferia, no meio de animais, deitada numa manjedoura... para que ninguém se sentisse distante d’Ele, para que todos pudessem experimentar o sentimento de ternura que uma criança desperta e sobre quem nos dobramos, maravilhados. Criança não infunde medo; todos se aproximam dela. Pequenino com os pequeninos, Deus nos faz proclamar silenciosamente:
“Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande...” (Adélia Prado).
É a fragilidade de uma criança que ativa em nós a atitude da expectativa, da novidade, do assombro... Cada nascimento é um sinal, um imenso milagre, uma bela promessa, um profundo chamado. Viver é milagre. Só ser já é milagre. E o maior milagre é a ternura que cuida, nutre, consola. Isso é “Deus”.
Dizia o pintor Pablo Picasso que tornar-se criança leva tempo, e poderíamos acrescentar que somente o encontro com o Deus Menino nos devolve a pureza e a inocência primordiais. Quando nos fazemos presentes junto à Criança eterna, então brota em nós o impulso para a renovação de vida, o despertar da inocência escondida, o encontro com novas possibilidades de ação que correm em direção ao futuro.
O Natal é essa ternura que ilumina a história humana, o cosmos do qual somos parte. É a confissão de que a bondade gera e sustenta a vida. É crer que tudo está eternamente movido por um pulsar profundo, criador, maior e mais poderoso que o universo, mais terno e pequeno que o coração de um recém-nascido. É a promessa de que o bem prevalecerá.
Ao recuperar o olhar de assombro e de espanto no interior da Gruta de Belém, nossa mente se abre à imaginação e ao sonho, começamos a considerar as infinitas possibilidades para ser e conviver, brota a alegria do novo, do que está nascendo a cada instante, de explorar recursos inéditos e desconhecidos.
Natal é o tempo para acolher com ternura o que é germinal, o pequeno, o que nasce nos movimentos sociais e humanitários alternativos e nos grupos eclesiais que se empenham por um mundo novo e por uma Igreja mais sintonizada com o sonho de Deus. É o momento de sair para os excluídos, para aqueles que não podem chegar até nós.
Ao entrar na gruta para contemplar o Menino-Deus, conectamos, ao mesmo tempo, com o mais profundo do coração humano, carregado de compaixão e generosidade. A bondade humana é uma faísca que pode se atrofiar, mas jamais se apagar. São necessários alguns momentos densos para que esta chama seja ativada. A vivência do Natal é um deles.
Da “Gruta de Belém” à “gruta interior”: esta é a aventura que nos leva a crescer, amar e compartilhar com os outros o dom da vida; aprender a ver nas pessoas a grande reserva de bondade, altruísmo e generosidade que carregam dentro de si; nunca conformar-nos com a injustiça e a violência, semeando cordialidade e gentileza a todos (as); e, sobretudo, ser mestres da esperança. “...porque é de infância, meu filho, que o mundo precisa” (Thiago de Mello).
O Menino Deus, em Belém, nos oferece uma maneira nova de olhar a realidade e a fragilidade de tantas pessoas. A contemplação de Jesus em seu nascimento nos ensina a contemplar a fragilidade e a exclusão humana como uma forma de presença de Deus. Deus está entre nós como fragilidade, nos excluídos, nos pobres, nas carências de todo tipo, em cada uma de nossas limitações. Por isso mesmo, sair, descer ao encontro das carências humanas, é uma forma de peregrinação para o coração do Deus mais vivo e surpreendente. Com os mesmos passos com que nos aproximamos da fragilidade dos que sofrem, também nos aproximamos de Deus.
A partir dessa debilidade podemos sentir que passa por nós a força de Deus, seu santo braço, que transforma, com nossa ajuda, toda a realidade. Se Deus correu o risco de encarnar-se, de nascer pobremente e crescer como salvação a partir da exclusão deste mundo, já não há excluídos para Ele, ninguém fica fora d’Ele. E o lugar principal para a festa é ali onde Ele aparece: nos aforas, onde não há lugar, onde tudo parece esgotar-se e é condenado a crescer em meio às ameaças e às intempéries das situações humanas.
O Nascimento de Jesus é um atrevimento, uma verdadeira ousadia, uma surpresa inimaginável...; na verdade, o Natal é a manifestação do impossível que se faz possível no coração de Deus.
“Ele é o eterno Menino, o Deus que faltava; o divino que sorri e que brinca; o menino tão humano que é divino” (Fernando Pessoa).
Agora temos um Deus menino e não um Deus juiz severo de nossos atos e da história humana. Quê alegria interior sentimos quando pensamos que seremos julgados por um Deus Menino! Ao invés de condenar-nos, ele quer conviver e entreter-se conosco eternamente.
Texto bíblico: Lc 2,1-14
Na oração: Que saibamos escutar a nossa criança interior que clama por ser amada, acolhida, curada de tanta mesquinhez, intolerância, e indiferença.
O Natal é como um poema; nele Deus se revela como uma Criança, pois nos mostra que a vida é sempre dom, novidade que destrava a humanidade para expandi-la por inteira. Que o Deus Menino que vai nascer nos mostre o caminho da verdadeira beleza da vida, e a graça de nunca perdermos a alegria de ser e viver.
Deus seja louvado!
Um abençoado Natal a todos!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em segredo”
A única coisa que o Evangelho nos diz de José é que era um homem justo. Este adjetivo, de profundas raízes bíblicas, nos quer dizer que era reto, íntegro, autêntico, bom, etc..., tudo o que podemos encontrar de positivo em uma pessoa humana. O homem justo é aquele que, como Abraão, acolhe na fé o plano de Deus e com Ele colabora. José é “justo” porque adere ao misterioso desígnio de Deus, é justo porque se “ajusta” ao modo de agir de Deus, arrisca com Deus, embora os contornos do Seu Plano permaneçam obscuros e, em certos aspectos, incompreensíveis.
José se coloca, portanto, na linha das grandes figuras da história da salvação. Sua atitude é um exemplo de silenciosa dedicação ao Reino. É o homem de uma grande nobreza de coração que, no silêncio da fé, acolhe o mistério que não compreende. Ele também teve sua “anunciação”; também teve que dar seu “sim” a Deus no mistério do desconhecido.
O “justo” José viveu no dia-a-dia a fidelidade a Deus. Mateus repete três vezes que ele se levantou para fazer o que lhe fora revelado como Vontade de Deus. José soube acolher também, na obediência e no amor despojado, a missão que Deus lhe confiou.
José é o homem do silêncio; de fato, uma das coisas que mais chama a atenção é que ele não pronuncia palavra alguma em nenhum dos relatos evangélicos nos quais aparece. Diríamos que os relatos apresentam a figura de um homem silencioso. Sua existência está atravessada pelo silêncio. José é o homem que vive e atua no silêncio.
Mas entendamos bem. Este silêncio não se deve a que José seja um homem de caráter introvertido, isolado, fechado sobre si. Pelo contrário, trata-se de um silêncio interior, intenso, grávido de conteúdo. Precisamente o que as cenas evangélicas mais destacam é que José escuta atentamente o que lhe é anunciado e ele responde instantaneamente, com gestos decididos. Poderíamos dizer que suas ações são suas palavras e suas palavras não pronunciadas se convertem em gestos eloquentes que manifestam a grandeza de sua alma.
Nos relatos de aparição de anjo, normalmente se dá um intercâmbio de palavras entre o mensageiro e a pessoa à qual é enviado. No caso de José, no entanto, nunca há diálogo. Nos três momentos em que o anjo do Senhor aparece a José dá-se o mesmo esquema: o anúncio da mensagem e a resposta decidida de José por meio da ação. José não pede explicações nem sinais confirmadores; obedece e pronto.
Quando recebe o anúncio de que Maria estava grávida por obra do Espírito Santo, imediatamente faz o que lhe havia dito o anjo do Senhor e toma consigo a sua mulher. No caso da fuga ao Egito, o anjo, além do mais, pede a José colocar-se a caminho: pede-lhe uma prontidão que o desenraiza de seu ambiente, que o desinstala de sua própria terra para viver no estrangeiro.
Quando o anjo lhe adverte da perseguição de Herodes, imediatamente se levanta, toma o menino e a sua mãe durante a noite e se retira ao Egito. O mesmo acontece quando o anjo do Senhor lhe diz que pode voltar a Israel porque tinham morrido aqueles que buscavam tirar a vida do menino.
Os textos destacam a atitude de disponibilidade obediente e prontidão confiada de José. Seu silêncio não tem nada de ingênuo, não é o silencio daquele que nada sabe ou não quer complicar sua vida. José está, sim, ciente de que sua esposa está grávida; está ciente que o menino está em perigo e, por isso, o leva ao Egito; está ciente de que seu filho se perdeu e, por isso, o busca. E como está ciente, tem medo. Não um medo que o paralisa, mas um medo inquietante, que o impulsiona a buscar soluções respeitosas para com sua esposa e lhe move a tomar decisões valentes, como a de emigrar em busca de um lugar onde refugiar-se. José se arrisca como resultado de uma reflexão, feita possível graças a um silêncio que escuta, valoriza e discerne.
Toda a vida de José é descrita pelos evangelistas em segundo plano. Esse saber estar na “sombra” para não “fazer sombra” a outros, esse escutar e discernir a vontade divina, essa preocupação pelo bem-estar dos demais, esse silêncio contemplativo e radical que lhe permitia aprofundar na realidade, essa prontidão na “obediência à fé” e essa disponibilidade sem fissuras à graça foram as qualidades com as quais José entrou em sintonia com Deus, dando sua contribuição decisiva ao mistério da salvação.
A figura silenciosa de José desvela e denuncia o “palavreado crônico” que nos esvazia. Ele nos mobiliza a viver o silêncio atento e que escuta. Quando calamos e fazemos silêncio começamos a escutar a nós mesmos e a Deus, que fala silenciosamente “em sonhos”.
Há uma diversidade de silêncios. Existe o silêncio dos mortos ou o silêncio daquele que não tem nada que dizer, porque sua vida está vazia. Existe o silêncio cheio de tristeza do desamparado, que sofre, chora e perdeu toda esperança. Existe o silêncio tenso que se estabelece quando duas pessoas que não se amam se veem obrigadas a estar em um mesmo lugar. Existe o silêncio respeitoso diante de um enfermo ou diante de uma tragédia; existe o silêncio cheio de amor que brilha no olhar daqueles que se amam. E existe o silêncio daquele que escuta atentamente o que o(a) amado(a) tem a lhe dizer.
Sem dúvida, este último silêncio é o que melhor caracteriza a José de Nazaré. Os Evangelhos o apresentam como um homem sempre pronto a escutar a voz de Deus que fala através dos acontecimentos de sua vida e da vida daqueles que foram confiados aos seus cuidados.
Carecemos do silêncio transformador neste nosso mundo. O ruído inunda as ruas, os lugares de trabalho, as casas e até os corações. O ruído atordoa, tem efeito devastador, provoca a revolta, agressividade e um estado de ânimo convulsionado. Com o barulho, o espírito humano se acomoda, se anestesia, se dopa. O funcionamento normal do cérebro fica debilitado. A pessoa não sente, não pensa, não tem serenidade para decidir. Todas as expressões de vida se atrofiam. A criatividade seca, os sonhos desaparecem e o ser humano torna-se incapaz de escutar a música harmoniosa de toda a Criação...
Num contexto de ruídos atrevidos, tanto na cidade como em nossos lugares de “repouso”, torna-se mais do que necessário uma “cultura do silêncio”, que permita redescobrir o nosso próprio interior, escutar a voz dos anjos indicando os melhores caminhos a serem trilhados.
Tony de Mello nos diz: “O silêncio não é ausência de som, mas ausência de Ego”. A carência do silêncio em nossa vida nos faz seres superficiais. Com efeito, a cultura pós-moderna decretou o fim do silêncio: vivemos imersos nos mais diferentes ruídos. E o silêncio, por sua vez, está se vingando de nós, criando vazio, superficialidade, palavras sem sentido, já não sabemos quem somos, para onde andamos e o que queremos...
É indispensável “fazer silêncio” para entrar em contato com a realidade, sobretudo para abrir espaço ao Outro dentro de nós, para acolhê-Lo, para ouví-Lo e entrar em sintonia com sua Vontade.
Nos murmúrios interiores do coração ali encontramos os sinais da presença viva de Deus.
Texto bíblico: Mt 1,18-24
Na oração: Durante a contemplação devemos deter-nos particularmente na figura de José. Ele, no seu silêncio, teve seus pensamentos próprios, suas preocupações, suas perguntas dilacerantes e suas dúvidas angustiantes. Mas Deus nunca deixou de atuar no meio das suas noites, dúvidas, provações. E, no momento oportuno, o libertou dos seus medos e lhe deu a conhecer sua Vontade.
- Neste Advento, reservar momentos de silêncio e preparar-se para acolher Aquele que, no silêncio pleno, vem fazer morada em seu interior.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo...” (Mt 11,4)
A vivência cristã depende da sensibilidade e enquanto esta sensibilidade não for evangelizada não podemos ter certeza de atuar evangelicamente na vida. É preciso “evangelizar os sentidos” para que eles encontrem seu lugar insubstituível na experiência de fé e poder reagir diante da realidade com uma sensibilidade nova, diferente, transformadora, convertida.
E só podemos descobrir o “lugar e o sentido” dos sentidos através do confronto com a “sensibilidade de Jesus”. O Advento é tempo favorável para expandir os sentidos e assim ser presença diferenciada e comprometida no contexto onde vivemos.
Vivemos numa cultura que nos assalta por todos os sentidos, através de técnicas minuciosamente estudadas para invadir-nos e instalar-se nas dimensões mais profundas de nossa afetividade, de tal maneira que vejamos e escutemos a realidade segundo seus próprios quereres e interesses. Com isso, os sentidos estão ficando atrofiados e nos lançamos desesperadamente em busca de compensações virtuais. Nossos medos estão impossibilitando os sentidos ocuparem o lugar que lhes corresponde em nossos comportamentos e atitudes.
Nossos ouvidos, assaltados pelos ruídos virtuais, se desconcertam ao descobrir o silêncio. Perdemos a sintonia dos sons naturais. É exagerado pedir que distingamos o cantar de um pássaro. A contemplação auditiva não registrada em aparatos eletrônicos nos parece uma perda de tempo. A visão que, sem dúvida, é o sentido por excelência e o mais estimulado, é, ao mesmo tempo, o mais manipulado e violentado pelo excesso de imagens virtuais. Nosso campo de visão é cada vez mais reduzido, unicamente ampliado pelas telas digitais.
Talvez a pior enfermidade que hoje padecemos seja a de ter perdido a capacidade de assombro e de agradecimento, ou seja, a capacidade de abertura aos outros e ao Outro. Talvez hoje, mais do que nunca, precisamos de uma ascese que purifique nossos sentidos de tantos estímulos que invadem nossa intimidade, nos intoxicam, nos aprisionam e deturpam nossa sensibilidade, impedindo-nos de perceber como “os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados” (vv. 5 e 6).
Somente mediante uma acolhida contemplativa do Evangelho podemos transfigurar nossos sentidos e converter nossa sensibilidade. À medida que vai se realizando esta conversão de nossa sensibilidade, nós nos fazemos capazes de estar presentes no mundo à maneira de Jesus de Nazaré, em sua terra e com sua gente.
Advento é tempo propício para reeducar os sentidos, de maneira a torná-los mais oblativos e expansivos.
Educar nossa sensibilidade “ao estilo de Jesus” implica empapar-nos de sua forma de ser e de sentir, de vibrar com tudo aquilo que lhe fazia vibrar, de rejeitar tudo aquilo que Ele rejeitava, e assim reagir frente à realidade e às pessoas do mesmo modo que Ele reagia. Buscando e desejando a identificação com Jesus, nossos sentidos aprendem d’Ele a ter ternura, visão, escuta, sabor...
O mestre de Nazaré desenvolveu a sensibilidade no seu sentido mais belo. Nele, ela se tornou mais do que uma característica de sua personalidade, mas uma arte poética. Era criativo, observador, detalhista, perspicaz, arguto, sutil. Destilava prazer nos pequenos eventos da vida e, ainda por cima, conseguia perceber os sentimentos mais ocultos naqueles que o cercavam. Conseguia ver encanto numa pobre viúva e perceber as emoções represadas numa prostituta. As dores e as necessidades dos outros mexiam com as raízes de seu ser. Conseguia mesclar a segurança com a docilidade, a ousadia com a simplicidade, a autoridade com a capacidade de apreciar os pequenos detalhes da vida. Por ser um exímio observador, o mestre da sensibilidade se tornou um excelente contador de histórias e parábolas.
Jesus não idealizou a realidade; Ele a contemplava como o Pai a contemplava, e se aproximava dela como o Pai mesmo se aproximava. Seu modo de olhar e sentir a realidade permitia-lhe captar a maneira de atuar do Pai, para poder unir-se a Ele em seu trabalho criador. “Meu Pai trabalha sempre, e eu também trabalho” (Jo 5,17). Com sua presença inspiradora e através de palavras e gestos compassivos Jesus trazia à luz a vida nova escondida e atrofiada entre os escombros da enfermidade e da exclusão. Ele revelava-se como Aquele que era o “Esperado”, Aquele que vinha aliviar o sofrimento humano, destravar a vida e abrir um horizonte de esperança aos pobres e doentes.
A contemplação e o seguimento de Jesus não nos transformam a fundo se não atravessa todas as camadas de nosso ser, começando pela nossa sensibilidade; em outras palavras, a transformação do coração exige uma renovação de nossa sensibilidade.
O(a) seguidor(a) de Jesus, com seus sentidos cristificados, não fugirá dos desafios e dos dramas da realidade, mas ali se revelará presente de maneira inspirada, buscando entrar em sintonia com Aquele que destrava todas as amarras que oprimem e desumanizam.
Olhar e escutar a partir de Jesus, olhar e escutar como Jesus, olhar e escutar a partir dos olhos daqueles que sofrem... essa é a dinâmica própria do tempo do Advento. Trata-se de um convite a iluminar nosso olhar e afinar nossos ouvidos, às vezes muito apagados pela mediocridade de nossa vida; outras vezes opacos pela falta de esperança em nossa capacidade de levar adiante a missão que Cristo nos confia.
O olhar e o escutar não são atitudes neutras, senão que há fatores que as limitam: o lugar a partir de onde se olha e se escuta condiciona o que se vê e o que se ouve. O olhar e o escutar estão, muitas vezes, marcados também pelas ideias e visões distorcidas que temos da realidade.
Jesus nos convida, no Evangelho de hoje(3º dom Advento), a fazer um exercício especial da visão e da audição; o que Ele nos pede é expandir os sentidos para entrar em sintonia com as pessoas que nos cercam, para perceber a Presença do Invisível, que se revela ao mundo como mistério e transparência.
Há um modo de ver, de ouvir, de sentir e de pensar que nos entorpece e nos isola em nosso pequeno mundo estreito e autocentrado, enquanto que há outro modo que nos abre e nos lança ao mundo, e que o vai revelando como presença e transparência de Deus. Os sentidos devem ser portas e janelas abertas que nos fazem viver na atitude de contínua “saída”.
Jesus insiste: quem não está desperto, quem não abre bem os olhos, quem não afina o ouvido..., o mistério divino lhe ficará oculto. No descobrir, no “ver” as pessoas às quais costumamos excluir de nosso campo visual cotidiano, começa o vislumbre, a visibilidade de Deus entre nós... É aí onde encontraremos sua pegada. É aí onde nos “esbarramos” n’Aquele que esperamos neste Advento.
Texto bíblico: Mt 11,2-11
Na oração: Os sentidos, cristificados na contemplação, nos impulsionam em direção ao outro e nos fazem acreditar na beleza e dignidade escondidas na fragilidade da condição humana.
- Mergulhar na realidade que nos cerca, por meio dos sentidos bem abertos e evangelizados, é deixar estremecer de vida divina a fragilidade de nossa condição humana.
- Na intimidade com Deus, ampliar bem os sentidos para tornar-se contemplativo no modo cotidiano de viver.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaicí-SP
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