A catequese de hoje tem por tema: “educar para a esperança”. Por isso pronunciar-la-ei diretamente com o “tu”, imaginando que falo como educador, como pai a um jovem ou a qualquer pessoa aberta ao aprendizado.
Pensa, ali onde Deus te semeou, espera! Espera sempre.
Não te rendas à noite: recordas que o primeiro inimigo a vencer não está fora de ti: mas dentro. Por conseguinte, não concedas espaço aos pensamentos amargos, obscuros. Este mundo é o primeiro milagre que Deus realizou, Deus pôs nas nossas mãos a graça de novos prodígios. Fé e esperança procedem juntas. Crê na existência das verdades mais elevadas e bonitas. Confia no Deus Criador, no Espírito Santo que move tudo para o bem, no abraço de Cristo que espera cada homem no final da sua existência; crê, Ele espera-te. O mundo caminha graças ao olhar de tantos homens que abriram frestas, que construíram pontes, que sonharam e acreditaram; até quando ao redor deles ouviam palavras de escárnio.
Nunca penses que a luta que enfrentas na terra seja totalmente inútil. No final da existência não nos espera um naufrágio: em nós palpita uma semente de absoluto. Deus não desilude: se pôs uma esperança nos nossos corações, não a quer esmagar com frustrações contínuas. Tudo nasce para florescer numa primavera eterna. Também Deus nos criou para florescermos. Recordo aquele diálogo, quando o carvalho pediu à amendoeira: “Fala-me de Deus”. E a amendoeira floresceu.
Onde quer que estejas, constrói! Se estás no chão, levanta-te! Nunca permaneças caído, levanta-te, deixa-te ajudar para ficares em pé. Se estás sentado, começa a caminhar! Se o tédio te paralisa, derrota-o com as obras de bem! Se te sentes vazio ou desmoralizado, pede que o Espírito Santo possa encher de novo a tua carência.
Exerce a paz no meio dos homens e não escutes a voz de quem espalha ódio e divisões. Não escutes essas vozes. Os seres humanos, por mais que sejam diversos uns dos outros, foram criados para viver juntos. Nos contrastes, paciência: um dia descobrirás que cada um é depositário de um fragmento de verdade.
Ama as pessoas. Ama-as uma por uma. Respeita o caminho de todos, linear ou complicado que seja, porque cada um tem uma história para contar. Também cada um de nós tem a própria história para contar. Cada criança que nasce é a promessa de uma vida que de novo se demonstra mais forte do que a morte. Cada amor que brota é um poder de transformação que anseia pela felicidade.
Jesus entregou-nos uma luz que brilha nas trevas: defende-a, protege-a. Aquela luz única é a maior riqueza confiada à tua vida.
E sobretudo, sonha! Não tenhas medo de sonhar. Sonha! Sonha um mundo que ainda não se vê mas que certamente chegará. A esperança leva-nos a crer na existência de uma criação que se estende até ao seu cumprimento definitivo, quando Deus será tudo em todos. Os homens capazes de imaginação ofereceram ao homem descobertas científicas e tecnológicas. Sulcaram os oceanos, calcaram terras que ninguém jamais tinha pisado. Os homens que cultivaram esperanças são os mesmos que venceram a escravidão, e proporcionaram condições melhores de vida nesta terra. Pensai nestes homens.
Sê responsável por este mundo e pela vida de cada homem. Pensa que cada injustiça contra um pobre é uma ferida aberta, e diminui a tua dignidade. A vida não cessa com a tua existência, e neste mundo virão outras gerações que sucederão à nossa e muitas outras ainda. E todos os dias pede a Deus o dom da coragem. Recorda-te que Jesus venceu o medo por nós. Ele venceu o medo! O nosso inimigo mais pérfido nada pode contra a fé. E quando te encontrares amedrontado diante de alguma dificuldade da vida, recorda-te que não vives só por ti mesmo. No Batismo a tua vida já foi imersa no mistério da Trindade e tu pertences a Jesus. E se um dia te assustares, ou pensares que o mal é demasiado grande para ser derrotado, pensa simplesmente que Jesus vive em ti. E é Ele que, através de ti, com a sua mansidão quer submeter todos os inimigos do homem: o pecado, o ódio, o crime, a violência; todos os nossos inimigos.
Tem sempre a coragem da verdade, mas recorda-te: não és superior a ninguém. Recorda-te disto: não és superior a ninguém. Se tivesses permanecido o último a crer na verdade, não fujas por causa disso da companhia dos homens.
Mesmo se vivesses no silêncio de uma ermida, conserva no coração os sofrimentos de cada criatura. És cristão; e na oração restituis tudo a Deus.
Cultiva ideais. Vive por algo que supera o homem. E mesmo se um dia estes ideais apresentarem uma conta alta a pagar nunca deixes de os conservar no coração. A fidelidade obtém tudo.
Se erras, levanta-te: nada é mais humano do que cometer erros. E aqueles mesmos erros não se devem tornar para ti uma prisão. Não fiques preso nos teus erros. O Filho de Deus veio não para os sadios, mas para os doentes: portanto, veio também para ti. E se errares ainda no futuro, não temas, levanta-te! Sabes porquê? Porque Deus é teu amigo.
Se a amargura te atinge, crê firmemente em todas as pessoas que ainda trabalham pelo bem: na sua humildade está a semente de um mundo novo. Frequenta pessoas que conservaram o coração como o de uma criança. Aprende da maravilha, cultiva a admiração.
Vive, ama, sonha, crê. E, com a graça de Deus, nunca te desesperes.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 20.09.2017
Vivemos em um mundo agitado, barulhento, acelerado. Somos constantemente bombardeados por novas informações e intermináveis propagandas. Corremos o perigo de aceitar passivamente tal situação, e mesmo de tal modo nos habituar com ela, que sua ausência seja experimentada como uma lacuna a ser preenchida, ou um vazio que não podemos suportar. Daí a pressa em suprir os momentos em que nossos ouvidos nada escutam, em que nossa atenção não é requisitada por novos estímulos. Cruzamos com jovens, e também menos jovens, embalados pelas músicas ouvidas em seu fone de ouvido, fixados em seus aparelhos eletrônicos e alheios ao que se passa à sua volta.
Porém, não somos apenas animais em interação com o nosso meio físico e social, pois temos uma inteligência e uma liberdade que não podem ser relegadas à periferia da nossa existência. Estamos destinados, pelo que somos, a conhecer, pensar, refletir, avaliar, julgar, bem como a agir, optar, tomar decisões, comprometer-nos, acolher ou recusar. Todavia, é muito difícil que correspondamos na vida concreta ao que somos se não conseguimos abrir espaços de silêncio em nossa existência. Pois ela é uma travessia agitada, como um navegar em alto-mar, sujeita a ventos e correntes que nos podem afastar do rumo desejado e que exigem, de tempos em tempos, uma avaliação da rota para corrigir os desvios ocorridos. Avaliação de nossa vida pessoal, familiar, profissional, social, religiosa. Não podemos nos contentar em ser reduzidos a seres de consumo de produtos culturais ou materiais, não podemos ser rebaixados a meras peças da corrente produtiva, descartadas quando perdem sua eficácia.
Só conseguiremos ser pessoas que sabem refletir e agir responsavelmente quando soubermos valorizar devidamente o silêncio em nossa vida. Pois é exatamente a ausência não só de ruídos externos, mas também de distrações internas, que nos capacitam a experimentar a importância do silêncio, sua realidade plenificante, seu conteúdo latente e rico. Temos de aprender a descer ao fundo de nós mesmos, escutar nosso coração, sentir seus anseios de sentido, de paz, de felicidade, de Deus, reconhecer que, apesar do que manifestamos exteriormente, e que a tantos engana, estamos, no fundo, decepcionados com nosso teor de vida, com a rotina mecânica de nossos dias, com a superficialidade das nossas conversas, das nossas relações, das nossas aspirações. Naturalmente, é preciso ter coragem para chegar ao nosso verdadeiro eu, mas a aventura compensa.
Pois o conhecimento próprio, a avaliação tranquila e objetiva de nossa vida, o olhar não ingênuo para a sociedade atual, nos fazem descobrir outra dimensão da realidade, com conteúdos e valores próprios, elementos indispensáveis para fundamentar e construir uma personalidade madura e sólida. Sem eles nos deparamos com pessoas frágeis, instáveis, indecisas, inseguras, incapazes de compromissos consistentes, de gestos corajosos, de renúncias conscientes e amadurecidas. É o silêncio que nos possibilita escutar a nós mesmos, a natureza, os outros e, sobretudo, Deus.
De fato, a Bíblia nos ensina que o deserto, enquanto lugar de silêncio, significa a oportunidade de um encontro do indivíduo consigo mesmo e com Deus, passagem obrigatória antes da chegada à terra prometida, parada fecunda onde acontece a conversão e a experiência das maravilhas de Deus. Também Jesus teve sua passagem pelo deserto, teve seu tempo de silêncio, teve seu encontro com o Pai antes de iniciar sua missão pelo Reino de Deus. E a história do cristianismo nos mostra como grandes vocações cristãs foram geradas no silêncio e no escondimento, que possibilitaram uma descida ao mais profundo da pessoa, onde esta se encontra consigo mesma em sua verdade última e, simultaneamente, com Deus, já que este é mais íntimo que o mais íntimo de cada um de nós, como afirmava Santo Agostinho.
Mas a vida prossegue e não podemos nos fixar no deserto. A realidade com toda sua complexidade espera por nós, nos interpela e nos provoca. Entretanto, a encaramos com outro olhar e a avaliamos com outros critérios. Sentimo-nos mais firmes e consistentes diante dos desafios da sociedade e da cultura atual, em uma palavra, somos diferentes. O silêncio nos capacitou a olhar a vida em profundidade e nela descobrir seu encanto e sua beleza, inacessíveis às percepções superficiais presentes na sociedade e divulgadas pela mídia. O silêncio nos capacitou a reconhecer o efêmero e o transitório, garantindo nossa paz em meio às turbulências próprias da condição humana. O silêncio nos aproximou de nossos semelhantes tornando-nos mais sensíveis às suas carências e mais pacientes com suas falhas. Enfim, o silêncio nos fez mais cristãos.
A pastoral do silêncio, se assim podemos falar, não se encontra muito valorizada na Igreja. Para muitos a experiência de deserto é um luxo, reservado apenas a uma elite do cristianismo. Daí que toda nossa atenção se volta para o ensino da doutrina, da moral, das diversas pastorais, para a organização do culto e para as atividades assistenciais. E nada mais justo, pois tudo isto é necessário. Mas a finalidade de toda e qualquer pastoral é levar a pessoa a um encontro pessoal com Jesus Cristo, a uma experiência de Deus, a um encontro significativo e plenificante em sua existência. O que não acontece se não ousarmos mergulhar corajosamente no silêncio, que não é o vazio, mas a plenitude de Deus que nos espera.
As paróquias constituem o núcleo da vida cristã e eclesial. Também elas deveriam oferecer uma pedagogia da oração e do silêncio, não apenas restrita a pequenos grupos, mas sempre presente em todos os demais grupos apostólicos como fator decisivo na qualidade de suas atividades. Assim deveriam ser mais valorizadas as iniciativas que promovam retiros, oficinas de oração, movimentos como o da "meditação cristã", sem descurar momentos de silêncio e de interiorização em nossas celebrações. A vida espiritual e apostólica não se mede tanto pela quantidade de atividades quanto pela qualidade da doação de cada um. E aqui o silêncio desempenha um importante papel!
Pe. Mario de França Miranda sj
Dia desses, vi meu primeiro filme de zumbis. Embora me interesse pelo imaginário de vampiros e lobisomens, confesso que não assistia filmes de zumbis por medo, por pensar que era um terror meio trash que me faria mal. Bom, vamos tentar elaborar essa questão que coloco inicialmente como algo pessoal. Alguém pode dizer que estou disfarçando um preconceito, mas não é bem assim. Quer dizer, talvez seja, mas vou relutar até o fim, porque se eu tiver algum preconceito, sentirei vergonha do meu preconceito.
Aproveito aqui para fazer um parêntese ainda nesse tom. Uma certa dose de vergonha, sobretudo no que diz respeito à vida pública, não é de todo ruim. A vergonha pode parecer um sentimento conservador, mas me parece também um sentimento inevitável, como a inveja. Mesmo que não seja uma coisa boa, a gente sente coisas desse tipo, da vergonha e da inveja. E não é por sentir coisas assim que elas se tornam boas. Tudo é mais complexo. É verdade que a vergonha é um tipo de sentimento que serve de mediação a outros. Eu sinto vergonha de ter medo, por exemplo, porque no fundo, no imaginário, a coragem é mais valorizada, ou sinto vergonha de ter ciúme ou raiva porque, igualmente, o ciúme e a raiva me desvalorizam diante de outros que não admiram esses sentimentos. A vergonha sinaliza para os valores de um época. Que nos tocam a todos e revelam um certo senso do que é “comum”.
Não estou fazendo o elogio da vergonha, apenas dizendo que eu sinto vergonha de ter preconceitos. E de ter preconceitos estéticos, como esse que talvez tenha me levado a não assistir filmes de zumbis.
Assisti a meu primeiro filme de zumbis e fiquei com uma sensação péssima. Em Extermínio 2 não restou aquele último sobrevivente que em todo cinema distópico dá um último sinal de esperança na comunidade humana, na vida possível e até mesmo na promessa de uma felicidade que há de vir. Na mesma noite, além do mal estar difuso, tive um pesadelo com redes sociais em que o foco era a solidão inevitável do mundo atual e a transformação de pessoas humanas em bonecos da Disney.
O filme parecia fechado nele mesmo, mas o que aparece no cinema é sempre um pouco espelho da realidade. E foi então que percebi que eu não estava com medo do filme de zumbis porque fosse humor trash, ou coisa de mau gosto (o mau gosto é um dos meus objetos de análise assim como o “bom gosto”, quem vai esquecer do “esteticamente correto” que nos controla hoje?), mas porque alguma verdade bem desagradável podia aparecer. E essa verdade apareceu.
A zumbificação do mundo
De que verdade estou falando? A verdade da zumbificação do mundo. Cada época tem os monstros que merece, digamos assim. Toda imagem em cada época revela energias psicológicas, morais e políticas que são sua verdade mais inerente. Ou seja, aquilo que aparece mesmo quando não devia aparecer, quando seria melhor que não aparecesse. Se nos séculos 19 e 20 os vampiros fizeram sucesso, no século 21 os zumbis tomaram a cena e os vampiros parecem cada vez mais antiquados.
O que tem um zumbi que o vampiro ou qualquer outro monstro mais clássico, por assim dizer, não tem? Uma determinada relação com o tempo. Vampiros viviam entre o dia e a noite, se moviam lentamente, precisavam enganar suas vítimas com gestos e simulações que exigiam de um tempo para acontecer. Vampiros se transformavam em morcegos. Eram ligados à animalidade e, desse modo, com a vida. Assim também acontecia com os lobisomens. Qualquer vampiro atravessa os séculos e seu tempo é medido em séculos. Por isso, a narrativa do vampiro é longa e sempre sobra alguém para o futuro.
Já o filme de zumbi mostra uma vida vivida como morte, dia e noite já não importam. O corpo do zumbi não tem saúde nem vitalidade e nenhum sangue o alimenta. O corpo zumbi atua sem esperança alguma. Os vampiros sobreviveram na época romântica como a tristeza de mortos que viviam como vivos, ou, melhor ainda, como seres límbicos, larvares entre a vida e a morte. Já o zumbi é sem futuro e, por isso, vive sem esperança alguma, no mais completo desespero. Por isso, sem grandes metamorfoses, as pessoas se tornam zumbis em vinte segundos, sem chance de retorno, sem qualquer expectativa de salvação.
Kierkegaard, autor cristão e romântico do século 19, escreveu um livro chamado A doença para a morte, no qual fala sobre o desespero. O desespero seria justamente a “doença para a morte” ou, se pensarmos bem, a vida vivida como uma doença na qual não se pode esperar mais nada.
Chegamos nesse lugar com o projeto-programa neoliberal. Adequado para o surgimento e para a sustentação da experiência zumbi.
Se a racionalidade técnica é a racionalidade da dominação, como diziam Adorno e Horkheimer em sua Dialética do Iluminismo, entende-se por que o tipo de susto zumbi é diferente do susto do vampiro. Vimos aliás, essa mutação na história do cinema. Da lentidão sepulcral de Nosferatu aos voos rasantes de Deixa ela entrar (2009), também o vampiro se tornou mais ágil. Até os vampiros sofrem de zumbificação. Dessa mudança no movimento que implica a velocidade das máquinas e das conexões digitais.
O susto zumbi é rápido porque não há tempo há perder. Ele é instantâneo como os movimentos da câmera que nos mostra o mundo zumbi. De repente, é estranho, mas ninguém sente mais susto algum ao ver um filme de terror tão intensamente pavoroso. O terror se tornou literal, vemos atores e espectadores anestesiados de tanto pavor. A coisa toda ficou naturalizada.
A política zumbi
A estética zumbi caracteriza a nossa época. E a ela corresponde uma política zumbi.
Michel (para) Temer é, na sabedoria iconográfica popular, um vampirão, como dizem há tempos. Porém, com a demonstração do apodrecimento generalizado dos personagens políticos, entramos com força na era dos zumbis políticos. Não espanta que a sabedoria iconográfica da internet tenha configurados Aécios e outros como personagens caricatos desse processo de zumbificação da política.
Desesperados por dinheiro, por poder, adoecidos para a morte, de dentro dela, todos correm para o alvo que é o corpo vivo ainda saudável, não para sobreviver nele, mas para puxá-lo para dentro da morte sem esperança, nem expectativa. A zumbificação acontece no tempo dos zumbis que é também o tempo digital, no qual tudo é instantâneo, no qual não há tempo para a salvação. O niilismo é a última verdade.
Ao corpo devorado pelo desespero podemos dar o nome genérico de democracia. Por isso, a pergunta urgente é: como produzir democracia e qual seria a sua chance, a sua qualidade, em tempos de zumbificação geral?
Marcia Tiburi
In: Revista Cult 24.05.17
Gosto daquela velha olaria com suas altas janelas rasgadas para o céu num quadro de 1947 de meu avô. Gosto dos primeiros tempos de um artista, quando tudo nele ainda é nascente como no país da infância. Aquelas pinceladas sólidas quase em relevo. Aquele primeiro tatear de formas. Dezenas de estudos do corpo feminino como anotações de um amante obcecado. Os muitos exercícios de luz e sombra, perspectivas, profundidades. Um barco solitário atado a uma corda numa marinha sem data. Uma figura curvada sobre um livro. Naturezas-mortas com gladíolos, uma abóbora aberta ao meio e uma jarra de prata brilhante. Paisagens de campo com pinheiros invertidos no reflexo de espelhos d’água. Esboços de detalhes anatômicos de uma orelha, um olho, uma boca. Desenhos realistas demais, acadêmicos demais, ou o contrário, excessivamente românticos, gestuais, impressionistas, todos eles como que felizes em seus excessos num éden antes da expulsão e do vexame. O autorretrato do menino Picasso aos quinze anos com sua franja selvagem como uma pata de urso, uma jovem Frida num robe vermelho-sangue, esguia como uma mulher de Modigliani, o amarelo berrante das casinhas de Kandinsky antes de tornar-se Kandinsky, a árvore primeira e nada elementar de Mondrian embaraçando-se num caos de traços. Gosto dessa infância dos caminhos, dessas mãos estreantes, experimentais, exploradoras, estonteadas com o começo de tudo, mãos ainda sem nome nem traquejo, ocupadas em se autodescobrir antes de fazer história.
Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli, da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre (ed. ardotempo, 2013).
A mensagem era esperada e temida. Quando chegou, no entanto, a dor surpreendeu pela sua profundidade e força. Ulpiano Vázquez Moro SJ estava morto. Perdera a luta contra o câncer que lhe sugava as energias vitais há dois anos. E o vazio, a orfandade que deixava atrás de si eram de um indizível e abrumador peso.
Em 1978, eu era estudante de Teologia na PUC-Rio. Avisaram-nos que chegaria ao departamento para ensinar o Tratado da Trindade um padre espanhol chamado Ulpiano. O nome nos fez imaginar alguém baixinho, calvo e já entrado em anos. Foi, portanto, uma agradável surpresa quando aquele espanhol alto, delgado e fidalgo entrou na sala de aula. Mais fascinante ainda foi seu curso. Acompanhar-lhe o brilho e a originalidade do pensamento, a profundidade da fé e a mística ardente transformavam cada aula em uma experiência espiritual e intelectual inigualável.
A relação professor-aluna, transida de admiração, transformou-se em amizade verdadeira e profunda, e posteriormente em discipulado espiritual. Sob sua orientação segura de mistagogo experimentado fui iniciada na escola dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio uma, duas, três vezes, até realizar a grande experiência dos 30 dias, inesquecível pela disciplina exigida e abundância de graças recebidas. Aprendi a descobrir os traços da teografia que se ia desenhando em minha alma pela arte inigualável do Espírito de Deus e a ela responder ponderando as moções, os sentimentos interiores, os impulsos e afetos.
Ulpiano era um mestre na arte de conversar. E as conversações espirituais que mantínhamos nos retiros e orientações deixaram marcas indeléveis em mim e foram configurando-me, outra, nova, inteira na estatura que a vocação e a missão me traziam. A relação mestre-discípula foi se transformando em outra identidade, comum e partilhada: a de companheiros de Jesus, apaixonados por Seu Evangelho e Seu Reino. Começamos a trabalhar juntos, formando pessoas, dando retiros, orientando espiritualmente a muitos, fazendo e ensinando teologia em conjunto, abrindo a outros os caminhos por nós mesmos trilhados.
Quanto mais o conhecia, mais me impressionava. Era talvez o homem mais completo que já havia cruzado meu caminho. Pensador brilhante e extremamente erudito, era professor que preparava cada aula como se fosse a única. Aplaudido pelos alunos no final do curso, ria modestamente e procurava jamais colocar-se em evidência. Místico ardente, era igualmente mestre espiritual que ajudava na experiência de Deus desde as pessoas mais simples até as mais requintadas e letradas. Pastor dedicado e incansável, foi exímio formador de leigos cultos e inquietos, religiosos de ambos os sexos, e membros do povo de Deus de condição extremamente simples e humilde. Para todos havia a linguagem adequada, a palavra precisa, o olhar e a acolhida carinhosa. Sacerdote devotadíssimo, guiou várias comunidades e paróquias no culto, na doutrina e na unidade. Suas celebrações e homilias atraiam pessoas não só da comunidade local, mas vindas de outras paragens, atraídas pelo fogo e a inspiração que emanavam do pregador exímio, cheio de conhecimento e entusiasmo pelo mistério de Deus.
Para mim, assim como para toda da minha família foi mais do que um irmão. Era a presença amiga que celebrava ao redor da mesa de casa como também o apreciador de uma saborosa lasanha regada a bom vinho ou, nos últimos anos, bom uísque. Ia conosco passear nos lugares aprazíveis da cidade, ou ao cinema ver um bom filme, ou passava dias em nossa casa de Petrópolis. Preparou e deu a primeira Eucaristia a meus dois filhos menores. Foi padrinho de Crisma do filho do meio. Concelebrou e pregou com palavras inesquecíveis na missa de minha boda de prata. Celebrou o casamento de meus dois filhos maiores, batizou minhas três netas.
No batizado de meus dois netos meninos não se encontrava aqui e sim em Cuba. Ali fomos algumas dezenas de vezes durante dez anos, dando Exercícios, cursos, oficinas e ajudando na formação do laicato da Ilha. Íamos por várias cidades, experimentando dificuldades e cansaço, mas trabalhando felizes pelo Reino de Deus. A experiência de viver no ambiente único e meio mágico da Ilha caribenha fortaleceu a amizade e a comunhão na busca do bem mais universal.
A notícia de sua doença caiu como um golpe duro. Foram muitas orações, súplicas, promessas, esperanças. Alegria nos tempos de remissão, tristeza nas recidivas. E sobretudo admiração crescente por sua coragem, destemor, confiança. Sem uma queixa, avançava ao encontro da morte que o olhava nos olhos, cada vez mais próxima. Visitei-o pela última vez uma semana antes de seu falecimento. Magro, abatido e fragilizado pudemos conversar um pouco.
Hoje, sinto-me irmã daquelas mulheres que foram ao túmulo de Jesus ao terceiro dia e o encontraram vazio. Por que buscar entre os mortos aquele que está vivo? Por que não abrir os olhos para a boa notícia de que ele estará sempre vivo? Apesar da saudade, da ausência, como não sentir profundamente que tudo que ensinou, semeou, doou, proclamou agora é flor, é fruto, é campo de trigo que se faz pão e alimenta os famintos de esperança e de amor? Como não crer que a missão gera descendência mais generosa e fecunda do que as estrelas do céu e as areias do mar?
Por uma dessas brincadeiras divinas, surpreendentes e deliciosas, sua Páscoa se deu no dia 22 de julho, quando a Igreja celebra Santa Maria Madalena, apóstola dos apóstolos, aquela que chorava pelo Mestre perdido até reencontrá-lo no pronunciar do nome: Maria. Assim reencontro Ulpiano hoje. Me chamo Maria, pois esse era o nome pelo qual ele me chamava. E sentindo a presença desse amigo e mestre morto e ressuscitado que me testemunha o Mestre, Rei Eterno e Senhor Universal, sigo em frente. Enxugando as lágrimas e olhando à frente, impelida pelo Espírito Consolador. A missão deve continuar e nela estaremos juntos, como sempre e para sempre.
Maria Clara Bingemer
* professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio.
Maria Clara Bingemer é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.
O tempo constitui fundamentalmente uma espécie de coreografia interior. Dir-se-ia que a própria vida nos solicita a que a escutemos de um outro modo. É com este imperativo que cada um de nós é chamado a confrontar-se: a irresistível necessidade de reencontrar a vida na sua forma pura. Por exemplo: se a linha azul do mar nos seduz tanto, é também porque esta imensidão nos recorda o nosso verdadeiro horizonte; se subimos às altas montanhas, é porque na visão clara de cima se alcança do real, nessa visão luminosa e sem cesuras reconhecemos uma parte importante de um apelo mais íntimo; se vamos à procura de outras cidades (e, nessas cidades, de uma imagem, de um fragmento de beleza, de um não sei quê...), é também porque estamos em busca de uma geografia interior; se simplesmente nos concedemos uma experiência do tempo dilatada (refeições tomadas sem pressa, conversas que se prolongam, visitas e encontros), é porque a gratuidade, e só essa, nos dá o sabor prolongado da própria existência.
Tomemos esse verbo cunhado por Rainer Maria Rilke que diz: «Espero o verão como quem espera uma outra vida». Este verso não nos projeta para fora de nós, antes inicia-nos na arte da imersão interior. Verdadeiramente durante os longos invernos do tempo não é uma vida estranha e fantasiosa aquela que devemos esperar (e para a qual trabalhar!), mas uma vida que realmente nos pertença. É de um verão assim que Rilke fala, e que pode coincidir com qualquer estação: uma necessária oportunidade para nos imergirmos mais a fundo, mais dentro, mais alto, aceitando o risco de colher a vida integralmente e dela nos espantarmos. Na escassez e na plenitude, na dolorosa imprevisibilidade como na sabedoria confiante. Pensemos na proposta que, mais de uma vez, Jesus faz aos discípulos: «Passemos à outra margem» (Marcos 4, 35). Passar à outra margem não significa necessariamente a transferência para outro lugar, diferente daquele em que nos encontramos.
Às vezes, tudo o que nos é preciso é habitar a vida de um outro modo. É simplesmente caminhar com um outro passo nas estradas que já percorremos a cada dia. É abrir a janela quotidiana, mas lentamente, nas consciência de que estamos a abrir. É reaprender uma outra qualidade para uma quotidianidade talvez demasiado abandonada às rotinas e aos seus automatismos. É, no fundo, saborear o gosto das coisas mais simples. Podemos fazer uma viagem inesquecível, fascinados pelo sabor do instante presente, pela contemplação da paisagem que nos é mais próxima, da sabedoria de uma conversa, do silêncio de um livro que já temos entre as mãos. Pensemos no que escreve Marcel Proust: «Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que passamos com um livro predileto». Que desafio, esta noção de «dias plenamente vividos», e como nos é necessário avizinharmo-nos dela! «Passemos à outra margem.» As viagens não são só exteriores. Não é simplesmente na cartografia do mundo que o homem viaja. Fazer uma deslocação comporta uma mudança de posição, uma maturação do olhar, abertura ao novo, uma adaptação a realidades e linguagens, um confronto, um diálogo, inquietante ou encantado, que necessariamente deixa impressões muito profundas. A experiência da viagem é experiência da fronteira e de novos espaços, de que o homem tem necessidade para ser ele próprio. «Passemos à outra margem.»
A viagem é uma etapa fundamental na descoberta e na construção de nós mesmos e do mundo. É a nossa consciência que caminha, descobre cada detalhe do mundo e tudo olha de novo como se fosse a primeira vez. A viagem é uma espécie de motor desse olhar novo. Por isso é capaz de introduzir na nossa vida e nos seus esquemas, na sua organização, elementos sempre inéditos que podem operar essa recontextualização radical que, com um vocabulário cristão, chamamos "conversão". Muitas mudanças de paradigma epocais (também eclesiais) tiveram a ver precisamente com a aceitação de um olhar viajante sobre o nosso mundo habitual e as suas convenções. O escritor Bruce Chatwin utiliza, a esse respeito, a expressão «alternativa nómada», expressão secularizada mas que pode bem ser reconduzida ao campo teológico e bíblico.
Abraão é um errante. Moisés descobre a sua vocação e missão como mandato de itinerância. Muitos dos profetas de Israel, de Elias a Jonas, viveram como exilados e proscritos. Jesus não tinha onde pousar a cabeça e habitava, dando-lhe sentido, um trânsito permanente. Os seus discípulos são convidados aos quatros cantos da Terra. O cristianismo define-se assim através de uma extraterritorialidade simbólica, sem cidade e sem morada, que permite a fenda, a abertura à revelação de um sentido maior. «Passemos à outra margem», propõe-nos Jesus.
José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"
Trad.: SNPC
Publicado em 06.06.2017 no SNPC(Portugal)
«Há uma tendência muito perigosa de aceitar tudo o que se diz, tudo o que se lê, de aceitar sem colocar em discussão. E, ao contrário, só quem está pronto a pôr em discussão, a pensar autonomamente, encontrará a verdade. Para conhecer as correntes do rio, quem quer a verdade tem de entrar na água.»
Leio estas palavras de um sábio indiano, Nisargadatta Maharaj, falecido em 1982. Todos sabemos que não raramente a informação é fabricada para uso de finalidades nem sempre confessáveis; muitas vezes descobrimos que os dados apresentados pelos jornais são aproximativos e, por vezes, claramente falsificados.
Todavia, deixamo-nos ir lentamente à deriva, e alguns meios particularmente poderosos, como a televisão, envolvem as nossas mentes numa rede de lugares comuns, de convicções, de decisões que são acriticamente absorvidas na nossa existência. Eis, então, o apelo daquele sábio para exercitar vigorosamente a razão e o juízo.
Mas a mim agrada-me sobretudo a imagem do imergir na verdade e na realidade, com uma busca pessoal, fatigante, como quando se é obrigado a ir contra as correntes, nadando em sentido oposto.
Já um grande escritor do século XX, Robert Musil, em "O homem sem qualidades", declarava que a verdade não é uma pedra preciosa a guardar num cofre ou no bolso, mas antes um mar infindável ao qual uma pessoa se deve lançar. É preciso, então, reencontrar o gosto da busca e da interrogação.
A própria fé não é uma adesão de olhos fechados e sem pensamento; ainda que a escolha última seja risco e confiança, ela supõe uma coerência interna e tem uma substancial premissa fundada na razão. Crer e compreender devem avançar juntos.
Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In "Avvenire"
Trad.: SNPC - Publicado em 25.05.2017
«Estou obcecado pelo espiritual. Estou obcecado pela questão do que somos»: talvez estas duas pequena frases de Martin Scorsese sejam um dos motivos que levou o realizador norte-americano ao "Silêncio", um filme germinado durante 30 anos e que chegou a Portugal em janeiro.
A película sobre a missionação cristã no Japão, a partir do romance homónimo de Shusaku Endo, constitui o núcleo da entrevista que o cineasta concedeu ao P. Antonio Spadaro, diretor da revista italiana "La Civiltà Cattolica", e que a Paulinas Editora de Portugal publicou recentemente.
O livro inclui o posfácio do padre Adolfo Nicolás, redigido em 2014 pelo anterior responsável máximo a nível mundial da Companhia de Jesus, e o ensaio que o padre Ferdinando Castelli, especialista de literatura para "La Civiltà Cattolica", escreveu em 1973.
"Silêncio - Entrevista com o realizador do filme Martin Scorsese"
Martin Scorsese, Antonio Spadaro
"Silêncio" parece a história de uma descoberta íntima do rosto de Cristo, de um Cristo que parece pedir a Rodrigues que o espezinhe, para salvar outros homens, porque foi por isso que veio ao mundo... Para ele, qual é o rosto de Cristo? É o fumi-e, a imagem espezinhada, como descreve Endo? Ou é o Cristo glorioso da majestade?
Escolhi o rosto pintado por el Greco, porque pensei que seria mais compassivo do que o pintado por Piero della Francesca. Na minha juventude, à medida que crescia, para mim o rosto de Cristo era sempre um conforto e uma alegria.
Na sua opinião, e deixando de lado "A última tentação de Cristo", qual é o filme da história do cinema que retrata melhor o verdadeiro rosto de Cristo?
Para mim, o melhor filme sobre Cristo é "O Evangelho segundo Mateus" de Pasolini. Quando eu era jovem, queria fazer uma versão contemporânea da história de Cristo, ambientada nas casas populares e nas ruas do centro de Nova Iorque. Mas quando vi o filme de Pasolini, compreendi que aquele filme já tinha sido feito.
Foi uma ocasião em que sentiu Deus próximo, embora calado?
Quando eu era rapaz e ajudava à Missa, não tinha nenhuma dúvida de que percebia um sentido do sagrado. Esforcei-me por transmiti-lo em "Silêncio", durante a cena da Missa na casa colonial em Goto. Em todo o caso, recordo-me de que caminhava pela rua, depois do fim da Missa, e perguntava-me a mim mesmo: como é possível que a vida avance como se nada tivesse acontecido? Porque é que o mundo não é abanado pelo corpo e pelo sangue de Cristo? Foi deste modo que experienciei a presença de Deus, quando era muito jovem.
Em 1983, estive em Israel à procura dos melhores cenários para a "Última tentação de Cristo". Sobrevoava o território a bordo de pequenos aviões. Por isso, tinha na mão alguns pequenos objetos religiosos que a minha mãe me tinha dado havia alguns anos. Estava nervoso, muito tenso. Andava para a frente e para trás, de Telavive à Galileia, de Betsaida a Eilat. E, a determinada altura, levaram-me à igreja do Santo Sepulcro. Estava com o produtor, Robert Chartoff, que faleceu recentemente. Entrei no túmulo de Cristo. Ajoelhei-me e rezei uma oração. Quando saí, Bob perguntou-me se me sentia um pouco diferente. Respondi que não, que só estava impressionado com a geografia do lugar e com o facto de tantas ordens religiosas terem vindo reivindicar direitos sobre ele. Então, tínhamos de voar novamente para Telavive. Perdi o avião. Uma vez mais, eu estava muito nervoso e apertei de novo na mão todos aqueles objetos religiosos da minha mãe. E, de repente, enquanto voávamos, dei-me conta de que já não precisava deles. Percebi uma sensação total de amor, e a sensação de que, se tivesse de acontecer alguma coisa, nunca mais aconteceria. E foi extraordinário. Sinto-me bastante afortunado por tê-lo experimentado uma vez na minha vida.
Quero também falar do nascimento da minha filha Francisca. Nasceu de cesariana. Eu estava lá e via tudo o que acontecia. Depois, repentinamente, mandaram-me sair. Acompanharam-me a outra sala, e olhei através de uma janela retangular. Vi que havia muita urgência, uma atividade frenética, até ao instante em que saiu o que me parecia ser um corpo sem vida. Depois, a enfermeira saiu a chorar e disse-me: «Há de conseguir!» E abraçou-me. Eu não sabia se estava a falar da minha esposa ou da menina. Depois, veio o médico. Apoiou-se na parede, deixou-se deslizar até ao chão, agachou-se e disse: «Pode-se planificar e prever tudo, e, depois, chegam vinte segundos de terror. Mas conseguimos.» Tinham quase perdido as duas. E o que depois eu soube foi que me tinham posto nas mãos aquele embrulhinho. Olhei para o seu rosto, e ela abriu os olhos. Tudo mudou num instante.
Faz-me lembrar aquela extraordinária passagem do romance de Marilynne Robinson, "Gilead", que li enquanto rodava "Silêncio". O reverendo moribundo descreve a admiração que sentiu quando viu o rosto da sua filha pela primeira vez. «Agora, que estou para partir deste mundo – diz –, é que me apercebo de que não há nada mais extraordinário do que um rosto humano. [...] Tem a ver com a Encarnação. Quando vemos uma criança e a temos nos braços, sentimo-nos obrigados em relação a ela. Cada rosto humano exige alguma coisa de nós, porque não podemos deixar de compreender a sua unicidade, a sua coragem e a sua solidão. E isto é ainda mais verdade no caso do rosto de um recém-nascido. Considero esta experiência uma espécie de visão tão mística quanto muitas outras.» Pela minha experiência pessoal, posso afirmar que é absolutamente verdade.
A compaixão é instinto ou amor?
Penso que a chave é a negação do eu. Em "Os cavaleiros do asfalto" [realizado por Scorsese], Charlie cai na armadilha de pensar que cuidar de Johnny Boy poderá ser a sua penitência, que servirá para a sua redenção pessoal, que será para seu uso espiritual. Isto leva-nos ao facto de que os bons sacerdotes que conheci sempre puseram de lado o seu ego. Quando isso acontece, só restam as necessidades – as necessidades dos outros – e diminuem as perguntas sobre que penitência escolher ou sobre aquilo que é ou não a compaixão. Isso passa a não ter significado.
Na história do "Silêncio" há muitíssima violência física e psicológica. O que é que há na representação da violência? Nos seus filmes também há muita. O que representa de específico a violência, neste filme?
Referindo-me a uma sua pergunta anterior, estou obcecado pelo espiritual. Estou obcecado pela questão do que somos. E isto significa olharmo-nos de perto, olhar para o bem e o mal em nós. Podemos alimentar o bem de maneira que, num determinado ponto futuro da evolução do género humano, a violência talvez deixe de existir? Seja como for, neste momento, a violência está aí. É algo que fazemos. E é importante que o mostremos. Assim, não se cometerá o erro de pensar que a violência é alguma coisa que os outros fazem, que «as pessoas violentas» fazem. «É óbvio que eu nunca poderia fazê-lo.» Mas não: pelo contrário, tu poderias mesmo! Não podemos negá-lo. Depois, há pessoas que ficam perturbadas com a sua própria violência, ou que se entusiasmam com ela. Trata-se de uma autêntica forma de expressão, em circunstâncias desesperadas, e não é divertida. Há quem diga que o filme "Tudo bons rapazes" [também realizado por Scorsese] é divertido. As pessoas são divertidas, mas a violência não. Muita gente simplesmente não compreende a violência, porque provém de culturas ou subculturas de que ela está muito distante. Mas eu cresci num lugar onde ela fazia parte da vida e me era muito próxima.
No início dos anos setenta, estávamos a sair do Vietname e era o fim dos fastos da antiga Hollywood. "Bonnie e Clyde" e, depois ainda mais, "A quadrilha selvagem", foram uma revelação. Esses filmes tocavam-nos, não necessariamente de modo agradável. Na minha opinião, a violência é uma parte do ser humano. Nos meus filmes, o humor vem das pessoas e dos seus raciocínios, ou da ausência deles. A violência e a vulgaridade. A vulgaridade e a obscenidade existem, o que significa que são parte da natureza humana. Consequentemente, isto não quer dizer sejamos intrinsecamente obscenos e violentos; quer dizer que se trata de um modo possível de se ser humano. Não é uma boa possibilidade, mas é uma possibilidade.
Para si, fazer um filme é como pintar um quadro. Nesse filme, a fotografia e as imagens têm um determinado valor. Como é que a fotografia nos faz ver o espírito?
Cria-se uma atmosfera através da imagem. Colocamo-nos num ambiente onde se pode sentir a alteridade. E são estas as imagens, as ideias e as emoções que se extraem do cinema. Há certas coisas intangíveis que as palavras simplesmente não podem exprimir. Por isso, no cinema, quando se monta uma imagem juntamente com outra, na mente obtém-se uma terceira imagem completamente diferente: uma sensação, e a impressão, uma ideia. Por isso, penso que o ambiente que se cria é uma coisa, e que este visa a fotografia. Mas é na conjugação das imagens que o filme nos captura e nos fala. É o "editing", é a ação do fazer cinema.
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura de Portugal - Publicado em 26.04.2017
O desejo de tirar a própria vida entre os jovens encontra na era digital uma nova forma de se propagar.
Jogo da Baleia Azul e série “13 Reasons Why” mostram por que é preciso quebrar o silêncio em torno desse desafio.
A questão do suicídio, especialmente, entre os jovens é urgente e inadiável. Jovens no mundo inteiro estão tirando a sua própria vida. É um problema que vem rompendo o silêncio com a emergência do jogo da ´baleia azul’ nas redes sociais e da série ’13 Reansons why’. O jogo e a série de TV não é o problema: é apenas uma parte ínfima, quase desprezível, do problema.
Reportagens de diferentes jornais e revistas revelam dados estatísticos impressionantes. Na mais recente pesquisa feita pela OMS (Organização Mundial da Saúde), divulgada no Jornal O Globo em 05.09.2014, a organização lança o primeiro relatório global sobre o suicídio, revelando que a violência auto infligida é um problema de saúde pública. A pesquisa aponta que cerca de 804 mil pessoas se suicidaram em 2012, ou seja, uma média de 11,4 mortes por 100 mil habitantes. Tais números tem um grande impacto econômico na saúde pública. Em números absolutos, o Brasil figura como o oitavo país com mais suicídios.
Globalmente, o suicídio representa 50% das mortes violentas entre os homens e 71% entre as mulheres, e é a segunda principal causa de morte entre jovens de 15 e 29 anos, perdendo apenas para os acidentes de trânsito.
Falar sobre o suicídio nos coloca diante do irrepresentável, que é a nossa própria morte. Com isso, a morte torna-se algo da ordem do indizível. O tema do suicídio é ainda mais difícil de lidar. Há uma diferença entre enfrentar uma morte “natural” ou ter que enfrentar uma morte por suicídio, onde as pessoas ao redor, sobretudo, a família, passam a se indagar sobre o que poderiam ter feito, quais foram os motivos desse ato, culpando-se e interpelando-se.
Importante nesse debate é diferenciar o suicídio propriamente dito da tentativa de suicídio e da ideação suicida, comportamentos que também rondam os jovens de hoje. O suicídio é caracterizado por um ato auto-agressivo global, realizado conscientemente pelo próprio sujeito, quando acredita que este ato deverá causar de um modo eficiente e suficiente o efeito esperado. Já a tentativa de suicídio seria um ato não fatal de automutilação, auto-envenenamento ou de intoxicações medicamentosas. Este ato ocorre deliberadamente, porém não há uma intenção de morte. E a ideação suicida refere-se ao pensamento de se matar. Há ainda uma nova categoria surgindo entre a juventude que é denominada como suicídio inconsciente, em que o sujeito se coloca em situações de risco, com comportamentos autodestrutivos.
É possível afirmar que as fantasias de suicídio não são evitáveis na adolescência, pois fazem parte de sua condição subjetiva no tempo presente. Os adolescentes sentem uma espécie de prazer com as fantasias de suicídio, numa tentativa de posse sobre si mesmo, uma pseudo-apropriação do seu corpo. Vale mencionar aqui a “brincadeira do desmaio”, tão frequente entre os jovens, onde os adolescentes chegam à perda de consciência pela apneia. Os amigos pressionam o peito daquele que quer desmaiar, provocando falta de oxigenação no cérebro e, consequentemente, o desmaio. Ao desmaiar, é como se o adolescente entrasse em contato com a experiência da morte, numa sensação de se desligar de seu corpo.
Sintomaticamente, o jogo da Baleia Azul é viral. São 50 desafios que envolvem automutilação e atividades arriscadas em geral. O último desafio é tirar a própria vida: só assim, eles dizem, você ganha o jogo. “Ganhar o jogo”, para muitos de nossos adolescentes e jovens, é se livrar da obrigação de continuar vivendo. Por que, afinal, é mais provável que as pessoas queiram se matar quando são jovens?
O fenômeno da automutilação tem sido observado em muitos adolescentes. É comum que os jovens afirmem se cortar para, segundo eles, aliviar a ansiedade. Diante de angústias que não conseguem dominar, por vezes, os adolescentes e jovens buscam sensações que os reassegurem e através da dor que eles próprios se infligem tentam contê-las. Recorrem a feridas físicas que podem controlar para diminuir o sofrimento psíquico, deixando de serem vítimas passivas para tornarem-se ativos nos limites que se impõem.
O papel da Escola Católica
Hoje, educar significa defender vidas. É preciso que se capte bem um ponto fundamental: processos vitais e processos cognitivos se tornam, nesse contexto, praticamente sinônimos. Note-se que isto significa adotar uma definição bastante nova do que se entende por “vida” e também do que se chama “conhecimento”.
A escola deve ser consciente, por um lado, de que não é a única instância educativa, mas pelo outro, não pode renunciar a ser aquela instância que tem o papel fundamental de suscitar nos jovens um novo sentido para a vida.
Educar hoje em nossos centros educativos requer de nós, educadores católicos, romper com um paradigma de “crise de sentido”. Num livro clássico sobre o sentido para a vida, o teólogo Clodovis Boff, apresenta-nos que o sentido é algo fundamental para a vida humana e que viver sem sentido é algo impossível, pois faz parte da nossa ontologia, porém muitos ignoram essa essência, insistem em viver com o Ter e não com o Ser, viver por viver, vivendo assim sem sentido, fato que traz muitos danos tanto para o ser humano como para toda a sociedade. (BOFF, Clodovis. O livro do sentido: crise e busca de sentido hoje (parte crítico-analítica). Volume 1.São Paulo: Paulus, 2014).
A Escola Católica precisa de encontrar caminhos para fazer eco ao imperativo cristológico: “Eu vim para que vocês tenham vida, e vida em abundância” (Jo 10, 10). Aqui se encontra a nossa contribuição enquanto educação católica. A tarefa de todo educador, não apenas do professor, é a de formar ser humanos felizes e equilibrados, orientados para um projeto de vida que seja capaz de dialogar com os sentimentos mais profundos dos jovens hoje.
A crise de sentido, que assola os jovens hoje, nasce a partir da configuração da nossa sociedade que é fundamentalmente desencantada. As coisas perderam seu sabor, principalmente pelas influencias dos maus usos das novas tecnologias e do capitalismo, tonando a vida apática, sem sentido, sem graça e tediosa, pois eliminamos a dimensão transcendente da vida, de modo que nada mais tem valor e encanto.
Para Clodovis Boff, e para nós educadores cristãos, só há uma alternativa para o sentido que ser humano busca, que é a Transcendência. Uma autêntica e verdadeira experiência de Deus. Podemos vislumbrar o sentido da vida a partir do anúncio do Reino de Deus. A partir do evangelho, podemos afirmar que o sentido da vida cristã se encontra na adesão a Jesus e seu projeto. Jesus, Deus encarnado na história, é o sentido último da vida humana. Precisamos educar nos tempos de hoje com esse postulado, fazendo deste princípio o núcleo fundamental de todo o projeto pedagógico de nossas escolas. Assim vamos dar uma grande contribuição para o mundo atual nesse contexto de suicídio e crise no valor fundamental da vida.
Carlos Eduardo Cardozo
Especialista em Juventude. Trabalha na Equipe Diretiva do Colégio Stella Maris, da Rede Filhas de Jesus, no Rio de Janeiro. Integra o GT de Pastoral e ERE da ANEC-RIO. É autor do livro Jovens construindo juventudes, dentre outros artigos na área dos estudos de juventude.
«A nossa democracia está minada. E os nossos representantes são como os mineiros inconscientes que se põem a fumar cigarros numa mina cheia de grisu.» É um clássico literário falar mal dos políticos, mas é preciso reconhecer que eles fazem tudo para merecê-lo.
Nunca como nos nossos dias se confirma (...) a suspeita do escritor inglês Robert L. Stevenson (sim, o do doutor Jekyll e do senhor Hyde), segundo o qual «a política é a única profissão para a qual não se considera necessária nenhuma preparação específica».
Mas o filósofo Norbeto Bobbio (1909-2004), na carta por nós citada, endereçada em 1964 ao historiador Tamburrano, acrescentava um aspeto: o risco que toda uma nação corre com a impreparação, a superficialidade, a inconsciência de uma certa classe política.
E a propósito de fumo, queria citar aqui as palavras ásperas de Indro Montanelli: «Estranho país o nosso. Bate nos vendedores abusivos de cigarros mas premeia os vendedores de fumo». E continuava: «Temos um fraco pelos governantes que dizem o que pensam. Só gostaríamos que de vez em quando pensassem no que dizem».
Dito isto, todavia, desejava confiar-vos uma reflexão proposta por um político bem diferente, Giorgio La Pira (1904-1977): «Não se diga aquela habitual frase pouco séria: a política é uma coisa má! Não: o compromisso político é um compromisso de humanidade e de santidade; é um compromisso que deve poder envolver para si os esforços de uma vida toda tecida de oração e de meditação, de prudência, de fortaleza, de justiça e de caridade».
E se é verdade que cada país tem os governantes que merece, talvez seja melhor que a honestidade, o rigor, a preparação, a seriedade, a justiça se afirmem antes de tudo a partir de baixo.
Card. Gianfranco Ravasi
In "Avvenire"
Publicado em 25.04.2017 no SNPC
As árvores e as pedras ensinar-te-ão aquilo que tu
nunca aprenderás com os mestres.
(Bernardo de Claraval)
Cultivar o apreço pela natureza é aprofundar a nossa própria vida espiritual, aproximarmo-nos mais da criação, ver a nossa própria responsabilidade moral por ela, segundo a forma como tratamos cada hastezinha de erva. Viver em harmonia com a natureza significa estarmos nós próprios mais vivos.
A nossa sincronia com a natureza é demonstrada pelo efeito emocional que essa exerce sobre nós. Quando está escuro, podemos tornar-nos mais taciturnos. Quando a neblina paira sobre as montanhas que nos cercam, quando o nevoeiro nos envolve, também nós nos tornamos mais reflexivos. Quando o sol aquece as pedras, cada nervo cobra vida dentro de nós. Cada mudança da natureza é esta a nos chamar a entrar mais a fundo nos ritmos da vida. É vendo-nos como parte da natureza, e não exteriores a ela, que sincronizamos a alma com os ensinamentos da natureza.
Não podemos controlar a natureza, é ela que nos controla. O único problema é que um mundo moderno e laborioso leva várias gerações a compreendê-lo. Quando destruímos a natureza sem ter em conta as consequências daquilo que estamos fazendo ao futuro, a natureza tem sempre a última palavra. Basta olhar para aquilo que estamos a fazer à Terra, para saber que mudanças precisamos de introduzir na nossa própria vida, se quisermos ser verdadeiros buscadores de Deus.
Caminhando através da natureza, vamos de mãos dadas com Deus, que lhe deu a vida. A única questão é: dar-lhe-emos vida ou morte? Numa das suas visões, Hildegarda de Bingen, mística do século XII, diz acerca da natureza: “Eu sou aquela essência viva e ardente da substância divina... Eu brilho dentro da água e ardo no sol, na lua e nas estrelas”. Oh, quem nos dera viver tempo suficiente e suficientemente bem para chegarmos a ver estas coisas!.
Joan Chittister
In "Os tempos do coração", ed. Paulinas
Handel, em sua obra Messiah (HWV56), já depois de entoar um Aleluia, capaz de fazer ressuscitar os mortos de tanta alegria, parece divertir-se pondo logicamente a morte e o túmulo nos lugares que lhes pertencem: a irrelevância. Diz o texto cantado, repetidamente cantado: «Oh death, where is thy sting? / Oh grave, where is thy victory? (Oh morte, onde está o teu aguilhão? / Oh túmulo, onde está a tua vitória?)».
Parece temeridade ou bravata alguém arriscar-se a relativizar «morte» e «túmulo» deste modo. Parece. E assim seria, não fora o significado do que é proclamado, gritado ao mundo, no momento, no acontecimento, do Aleluia.
É que a Ressurreição que tal grito sagrado comemora inaugura um campo lógico que subverte toda a racionalidade humana anterior, subjugada à pura imanência finitista de uma vida sem futuro possível, que tudo, absolutamente, relativiza à morte e ao túmulo, morte que é o operador da impossibilidade da continuidade da vida, túmulo que é o destino, único, inexorável, da mesma vida, seja ela qual for.
Com a ressurreição de Cristo, é o «logos» da vida que surge não apenas a uma nova luz perante a inteligência humana, é todo o sentido possível, consequentemente realizável, de tudo, de precisamente tudo, que surge substancial e essencialmente modificado: a morte já não é isso que destina o túmulo como fim único e inexorável da vida humana.
O anseio fundamental que marca o específico próprio da humanidade – o seu desejo de nunca morrer ou de para sempre viver –, que se expressou de tantos e belos modos ao longo da história das muitas culturas humanas que formam a humanidade como coisa cultural, por oposição a mera coisa natural, recebe concretamente com a ressurreição de Cristo a concretização que manifesta não apenas a possibilidade – coisa metafísica, mundanamente irreal – da perenidade infinita da vida, mas a sua realidade posta mundanamente: é no mundo e para o mundo que Cristo primeiro ressuscita. A sua subida ao Céu é posterior à sua subida à Terra, pois de uma subida se trata, também.
A ressurreição é o momento-chave absolutamente significativo que opera a metamorfose mundana de uma substância condenada a si própria – símbolo do túmulo e da sua vitória – a uma substância liberta de si própria enquanto coisa meramente mundana, doravante aberta, em absoluto, à autotranscendência no modo da vida que não tem fim, algo de impossível num mundo submetido ao movimento, ao tempo, à necessária entropia.
O grande escândalo da ressurreição reside no seu caráter absolutamente antientrópico, que subverte tudo o que se considera ser lei do universo, leis de necessária morte, universo que, deixado a si próprio, ou é um frio túmulo ou é um anedótico pulsar sem outro sentido que não o próprio pulsar, ainda outra forma, esta dinâmica, de túmulo.
Sem que se possa compreender o que a ressurreição seja no seu pormenor, se se quiser, qual o seu «algoritmo», mundanamente entendido – embora todo o domínio matemático seja, em si mesmo, metafísico –, a vida pré-morte do Ressuscitado é comparável a um especial “algoritmo”: o do amor, da caridade, em seu sentido propriamente cristão, que é, precisamente, esse em que Cristo a exerceu.
A vida de Cristo é, até morrer, um “algoritmo” mundano de amor, quer isto dizer que é um contínuo ato, uma contínua fórmula de ato de amor, de agência de bem para com tudo. Tudo. Assim como ao Deus-Pai criador nada “escapou” enquanto objeto de ereção do nada relativo de si próprio, assim ao Deus-Filho-Homem recriador nada “escapou” enquanto alvo de uma amorosa atenção: das Marias Madalenas, aos lírios do campo; dos paralíticos, às águas dos mares; dos pães e peixes escassos, aos Samaritanos vários; da água feita bom vinho, ao decoro do Templo; da matéria da madeira de carpinteiro, ao olhar da Maria cuja matéria mais íntima metamorfoseou o amor de Deus pelos seres humanos em humano infante.
Tudo Cristo divinamente amou no mundo. E como Deus só pode amar infinitamente, tudo amou infinitamente.
Ora, nós, por mais pobres ontologicamente que sejamos – eu – sabemos o que é amar alguém ao ponto de desejar infinitamente que esse alguém viva: ainda vivo ou já morto para nós, que viva! Se este nosso infinito fosse não ao modo da sucessão, mas ao modo de um ato absoluto, não seria este nosso desejo capaz de conseguir isso a que se propõe?
A ressurreição é este infinito desejo de vida transformado em vontade, isto é, a sua concretização. Nunca está em nosso poder realizá-lo plenamente. Mas, a Deus, basta querer.
Como?
Também sabemos, pois tudo o que o nosso em ato finito amor quer – e só pode querer podendo ontologicamente – realiza: do mudar a fralda ao Jesus bebé, ao acompanhá-lo junto da cruz. Pegue-se no simbolismo destes dois atos e realize-se a sua expansão simbólica sobre todos os atos de amor: o que é que, neste sentido, não podemos criar? Apenas o que não queremos.
A ressurreição é, então, apenas, o resultado de um ato de amor que é capaz de transformar em vida o desejo de vida que se tem, na forma do ato pleno de outorga de bem. Por analogia percebe-se: se eu, finito, posso dar vida finitamente através dos meus atos de amor, assim Deus também, infinitamente.
A ressurreição é o ato – o resultado – da plenitude do ato de amor de Deus-Pai por Deus-Filho.
É o mesmo ato que há entre mim e esse a quem amo, só que imperfeitamente. Em Deus, é perfeito. É esta a única diferença.
Note-se, no entanto, que estamos a falar de amor, não de emoções ou de sentimentos, que, ao contrário do amor, têm, ainda, no túmulo o seu destino.
É o amor que vence a morte e o túmulo. Não apenas o especial amor de Deus-Pai por Deus-Filho, mas cada ato de amor, por mais consideravelmente ínfimo que pareça, pois ínfimo é algo que o amor nunca é.
Como corolário, e é a mensagem a retirar em termos antropológicos da ressurreição, temos que cada ato de amor é um ato de ressurreição: se todos os atos de todos os seres humanos fossem atos de amor, não haveria aguilhão da morte ou triunfo do túmulo, pois o reino do amor é indiferenciável do Reino de Deus no seio da humanidade, que foi onde Jesus o veio anunciar como coisa possível e realizável.
A cada momento, ressuscitemos, isto é, mesmo contra toda a morte e túmulos omnipresentes, amemos. Em cada ato de amor, não apenas ressuscitamos como começamos a saborear o absoluto do que é viver, coisa espiritual, não biológica.
Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 17.04.2017
Aprovado em primeiro turno na Câmara Municipal, o Projeto de Lei 751 visa “flexibilizar” a Lei do Silêncio, aumentando o limite de ruído permitido na cidade. Sua alegação grita aos céus: os limites estariam baixos porque o barulho está alto, legalizar o ruído estratosférico atenderia melhor a cidadãos e negócios para os quais ruído é “legal”. Seguindo o mesmo raciocínio: deveríamos legitimar a corrupção já que se apresenta como comum, norma infalível em certos ramos de atividade “social”? O escândalo quer ganhar patente.
“Pedra de tropeço” é o significado literal de skandalon em grego, quando colocada diante do cego para que tropece, “pedra” indica engano, tentação, armadilha, tudo aquilo que faz cair, que induz a pecar (Levítico). Escândalo é metáfora de tropeços e vícios morais que diariamente se armam para nós, de obscuros poderes que nos
preferem cegos, isto é, surdos, imersos no ruidoso nada que nos exaure. A relação entre ética e audição é mais que estreita, sem audição a boa conduta é impensável. Má audição é maldição, corrupção ativa dos ouvidos esquecidos. Não é lucro, é escândalo.
A população carece de uma Lei de Educação e Saúde Auditiva, não de uma Lei Anti-Silêncio que garanta impunidade, que prometa isenção de responsabilidade na escalada de violência deci-bélica. O barulho é astro coadjuvante da violência, a zoeira é o som da mentira em excesso. É a Lei do Ruído, melhor, é uma compulsória Lei da Surdez (moral e auricular) que se impõe em nosso cotidiano. Se os valores referenciais em decibéis nos parecem baixos, é porque já estamos surdos; não são os limites que estão baixos, nós é que andamos “altos” demais.
Da árvore do silêncio pende seu fruto, a paz, assim dizia Schopenhauer. O silêncio desperta e fertiliza a consciência, aqueles que acolhem o silêncio e suas bênçãos ganham asas, cantam, conversam, tocam, transbordam paz e esperança para todos. Silêncio é a eterna voz do divino que anima a vida, que ganha forma na música, no tempo, na palavra, na memória, ela é ouvida pela alma em busca de sentido. Silêncio não é ausência, mas presença que nos ensina o essencial, é o ruído que em desespero berra ausências e insuficiências. Muitos ficam apavorados sempre que o silêncio ameaça surgir, sempre que a consciência vem à tona para alertar sobre os rumos que sua vida tem tomado. Medo inconfesso projeta para fora de si a ruidolatria, adoração de ruído compensatório viciante ensurdecedor, destinada a “silenciar” o silêncio que tudo revela.
O ídolo é nossa melhor armadilha. Difícil andar sem tropeçar. Na guerra das frequências repetitivas, promíscuas, desrespeitosas, em meio à inflação de escândalos, ídolos competem com ídolos, vícios com vícios, ruídos com ruídos, pedras com pedras, brigam pelo poderio decibélico. Inventamos uma espécie de realidade paralela, esquizoide, esquizofônica, dissociada da vida, em que a idolatria do ruído opera a serviço dos mecanismos de fuga e escape. O projeto 751 é pedra no sapato, digo, pedra no nosso ouvido, não se deve querer tirar vantagem política e comercial da surdez alheia.
Escutem: precisamos inserir a noção de silêncio em nosso tecido social, fazer a contenção do barulho (multidão de ruídos viciados) que nos amaldiçoa e tortura, permitir as verdadeiras vozes da vida e da música, voltar à simplicidade das boas condutas. Senão no fim chegamos à calamidade na qual já nos (des)encontramos.
Ilan Grabe
Músico e Educador
Artigo publicado no Jornal O TEMPO em sua edição de sábado, dia 07 de janeiro de 2017, Número 7329, Coluna Opinião, Belo Horizonte, p. 14
A humanidade sofre sérias consequências quando deixa de investir na unidade interior – ponto de equilíbrio e sustentação que permite a cada pessoa agir de modo assertivo nos diversos campos da vida. Sem a unidade interior, as muitas possibilidades oferecidas pela inteligência humana não são suficientes para superar os obstáculos que pesam sobre a humanidade. E, muitas vezes, o “progresso” desconsidera as estaturas humanitária e espiritual que precisam permear as atitudes de cada pessoa. Percebe-se, frequentemente, um descompasso entre a dimensão existencial e a posição que se ocupa, no campo profissional ou no exercício de outras responsabilidades. Para além da competência técnica, da experiência ou da força política, é preciso investir na unidade interior, o ponto de equilíbrio.
Mas não se busca esse caminho. Concentra-se fortemente, e até exclusivamente, nos projetos que resultam em conquistas de poder, nas oportunidades que garantam ganhos financeiros. Tudo a partir de uma compreensão equivocada do que é bem-estar, considerado apenas como a experiência de se usufruir das coisas, das benesses. Esse modo de compreender obscurece o olhar humano, que não consegue mais enxergar a necessidade do investimento na unidade interior. Há uma exigência fundamental que deve desafiar todo indivíduo: o cuidado com o próprio “poço”. Há um “poço interior” que alicerça a conduta de cada pessoa e define os rumos de suas escolhas. Incide, determinantemente, sobre a qualidade dos exercícios cidadãos, profissionais e familiares. A medida, portanto, não está “do lado de fora”. Decisivo e mais importante é o “poço”, a interioridade de cada pessoa, responsável pela consciência, pelos sentimentos e pela articulação humanística dos valores.
A interioridade é que gera a competência para as ações cidadãs. Sem investir nesse âmbito, os comprometimentos são muitos, a mediocridade torna-se regra. Não basta ter alcançado um título, vencido eleições, ocupar cargos e nem mesmo a convicção de se estar onde está por ser merecido. Cada pessoa deve mensurar seus atos, considerando a qualidade de suas intervenções e sua influência nos necessários processos de transformação. Tudo temperado por uma simplicidade que forja um tecido cultural de respeito e de unidade. Assim é possível superar descompassos que estabelecem o caos na sociedade.
A humanidade perdida precisa, com mais velocidade, reencontrar rumos. Por isso, a importância do empenho em buscar a unidade interior, alicerce para condutas adequadas, balizadas por valores que podem deter os problemas humanitários, a exemplo das guerras, migrações forçadas, insensibilidade diante da dor dos pobres e crescimento incontrolável da violência. Em busca da unidade interior, há um percurso a trilhar: é preciso e urgente investir em uma espiritualidade que possibilite aprender a lidar com a interioridade. E que contribua, assim, com o exercício diário de limpar o próprio “poço”. A espiritualidade pode qualificar o sentir e o agir de cada indivíduo, tornando-o instrumento de construção da solidariedade e da cultura da paz.
Chega agora, mais uma vez, a oportunidade de ouro para se investir na unidade interior e requalificar o tecido humano: a vivência da Semana Santa, a Semana Maior. Não como um “feriadão”, mas reconhecendo nesse tempo a chance de se fazer um fecundo retiro espiritual. Esse exercício é fundamental para limpar a própria interioridade de tudo o que se origina nos limites e fragilidades humanas. O segredo é fixar o olhar em Jesus Cristo. De modo silencioso e amoroso, deixar-se tocar por seus gestos, por suas palavras e pelo acolhimento de suas indicações. Uma experiência que não pode ser substituída por futilidades, pela fugacidade de sensações.
Vale a pena vivenciar e engajar-se na celebração da Semana Santa, no coração da própria família e na comunhão da comunidade de fé, compreendendo o sentido de cada uma dessas celebrações. Um investimento forte e determinante na ordem pessoal e social para renovar a unidade interior, alicerce que sustenta as competências e a vida cidadã. Eis um remédio indispensável.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Quando se fala sobre essa “reforma”, obviamente deve-se lembrar de uma demanda inquestionável que envolve não somente o setor previdenciário, mas também muitos outros segmentos do Estado. São necessárias, por exemplo, as reformas do Judiciário, a fiscal e a tributária. Particularmente, uma urgência é a reforma política, que não avança porque muitos representantes do povo têm medo de perder privilégios. Há, também, um modo de atuação historicamente viciado na sociedade, como evidenciam os esquemas de corrupção envolvendo políticos e outros setores, o que inviabiliza a necessária reforma política. Uma força perversa que atrasa a superação da crise econômica e impõe verdadeiro caos social. Por isso mesmo, reconhecer a necessidade inadiável da reforma da Previdência não significa simplesmente adotar a perspectiva em debate no Congresso Nacional, encaminhada pelo Executivo, como visão única e hegemônica. Isso porque, há uma crise de credibilidade que atinge os representantes do povo.
Assim, não se pode desconsiderar a necessidade da reforma previdenciária, em busca de sustentabilidade e do bem do povo, o que também não significa compreender que o lugar de quem governa seja o único para definir os parâmetros da discussão. Embora se reconheça como prerrogativa do Congresso Nacional discutir e aprovar a proposta de reforma, os parlamentares não podem conduzir o assunto apenas entre eles. É preciso um amplo debate, incluindo o povo, pois a mudança que se espera deve acabar com os privilégios de uma minoria, o que envolve os próprios políticos.
Diante dos argumentos do governo federal para propor uma reforma previdenciária, muitos segmentos manifestaram-se contrariamente, dizendo que os dados apresentados para justificar as alterações constituem “uma farsa”. Há de se esclarecer esse impasse. Alguns defendem que não existe “rombo da Previdência”. Outros indicam um preocupante déficit. Onde e com quem está a verdade? Outro aspecto importante a se considerar refere-se à idade da aposentadoria. Essa definição considera a complexidade do contexto social e cultural da sociedade brasileira? São questionamentos que precisam ser respondidos, de modo claro, antes de qualquer passo definitivo na reforma previdenciária.
O entendimento sobre essas questões só pode ser alcançado a partir de um amplo debate, para que a reforma não se configure como um posicionamento unilateral e autoritário, em que representantes eleitos, ao invés de defender os direitos do povo, fazem o contrário. Os parlamentares têm a obrigação moral de discutir o assunto com suas bases, clarificando todas as dúvidas, até a “última gota”, desse complexo e delicado tema. Fidelidades partidárias e interesses cartoriais não podem orientar as ações dos políticos em momento tão decisivo.
Não haverá sustentabilidade na Previdência Social se forem ignoradas as necessidades do povo, particularmente de quem é mais pobre e frágil. A oportunidade dessa reforma precisa ser também a chance para corrigir situações vergonhosas na sociedade, historicamente organizada para favorecer alguns grupos, poucos privilegiados, prejudicando uma ampla maioria que não possui a mesma força no exercício dos poderes. Espera-se que o espírito da Constituição cidadã de 1988 não seja ferido. Não se pode, por exemplo, agir com “mão de ferro” ao lidar com os cidadãos comuns e tratar com “luvas de pelica” as empresas que devem à Previdência.
Agora é necessário investir nos entendimentos sociais e políticos, bases indispensáveis para uma nova aragem civilizatória na sociedade brasileira. A reforma da Previdência que precisa ser feita requer compromisso com a verdade e com a justiça. Para isso, os processos devem ser pautados no respeito que o povo merece.
Para além de uma configuração apocalíptica, há dois modos de representar o que a ideia de fim do mundo evoca. Um sublinha a propensão para a conduta isolacionista. Outro concebe o fim do mundo como proveniência, como referência de origem, como margem ou periferia da qual se tende para o centro, da qual se procura alcançar o centro, e sobre a qual se procura atrair a atenção do centro. Hoje a periferia, incarnada na figura de Francisco, toma a palavra, convida o mundo. Com Francisco o mundo quer falar a partir da sua periferia. Tê-lo eleito papa implica por isso uma disposição para escutar essa periferia, a recorrer a ela, a dar-lhe lugar, a deslocá-la para o centro.
Pois bem, essa periferia não remete apenas a um limite geográfico. Não indica só e sobretudo uma latitude planetária extrema, uma margem. Implica em primeiro lugar a presença de problemas mandados para trás, renegados, marginalizados, a reação contra o silêncio que habitualmente envolve a periferia, a voz daquilo que é marginal que se faz ouvir. Francisco mostra-se decidido a voltar a dar a palavra a tudo aquilo que foi calado, relegado, excluído, a tudo aquilo que para ele significam termos como "pobre", "pobreza", "empobrecido".
Com Francisco sublinha-se por isso uma outra concepção do fim do mundo. O fim do mundo passa assim a significar aquilo que chega ao centro para se fazer ouvir e também para reformular a ideia de centralidade. A palavra de Francisco propõe uma tarefa: transferir a periferia para o centro. A velha cruz de ferro no lugar da cruz de outro. Os velhos sapatos no lugar dos principescos sapatos papais. A humildade do compromisso com a pobreza no centro da prática sacerdotal. A austera simplicidade da fraternidade com quem vive na necessidade no coração da vocação religiosa.
Há mais: a Argentina passa, mediante o novo papa, a desempenhar um papel inesperado na reconsideração crítica do futuro do ocidente, na promoção de mudanças indispensáveis, seja na Igreja seja fora dela. Francisco aspira a fazer com que a nossa civilização se interrogue sobre o seu futuro, sobre o que o obscurece e sobre aquilo que lhe poderia voltar a dar consistência e clareza. O ocidente é chamado a deixar de ser, e para sempre, a vanguarda espiritual no mundo? A eficiência no ocidente esmagou definitivamente a ética? Os seus valores decisivos e fundamentais poderão ir além do aspeto financeiro, do consumismo desenfreado, do auge da corrida aos armamentos? Até que ponto a Igreja poderá tornar o seu destino independente daquele que está a acontecer ao mundo secular? A Igreja irá recuperar, encorajando assim o renascimento espiritual da nossa civilização? (...)
Espera-se de Francisco, o papa americano, uma sã integração entre tradição e vanguarda. Ela espera-se como algo de indispensável. A Igreja pode contribuir decisivamente através das mudanças que deve enfrentar e promover, para que possamos compreender se o ocidente ainda tem um futuro ou só tem um passado.
O cardeal Carlo Maria Martini disse em tempos ainda recentes: «A nossa Igreja está 200 anos para trás, a nossa cultura está envelhecida, os nossos conventos estão vazios, o nosso aparato burocrático cresce». Francisco ligar-se-á a este diagnóstico. Procurará levar coragem à vida onde a coragem definha. Conhece as causas do mal. Conhece o empenho na procura do bem. Procurará voltar a dar atualidade, transparência e firmeza à Igreja. Assim fazendo dará ao ocidente a possibilidade de reencontrar no catolicismo, que é um dos fundamentos da sua civilização, uma fonte revitalizada de energia.
Por fim vale a pena recordar que no centro das preocupações daquele que hoje é o papa Francisco palpitam há anos as interrogações em torno da globalização, da bioética, dos desafios ecológicos, da educação e da justiça social. Recorde-se igualmente a sua preocupação perante o papel da mulher dentro e fora da Igreja, os problemas das vocações religiosas, o debate sobre o matrimónio dos sacerdotes. Própria de Francisco é também a reflexão constante sobre o vínculo apaixonante e intenso entre fé e conhecimento, entre ética e política.
Em suma, o papa Francisco é sem dúvida um líder inesperado. Tão inesperado como imprescindível num mundo angustiado pela incredulidade.
In "L'Osservatore Romano", 13.3.2017
Edição: SNPC de Portugal
Publicado em 13.03.2017
Neste dia, Quarta-feira de Cinzas, entramos no tempo litúrgico da Quaresma. E dado que estamos a desenvolver o ciclo de catequeses sobre a esperança cristã, hoje gostaria de vos apresentar a Quaresma como caminho de esperança. Com efeito, esta perspectiva é logo evidente se pensarmos que a Quaresma foi instituída na Igreja como tempo de preparação para a Páscoa, e portanto todo o sentido deste período de quarenta dias recebe a luz do mistério pascal para o qual se orienta. Podemos imaginar o Senhor ressuscitado que nos chama a sair das nossas trevas, e nós colocamo-nos a caminho para Ele, que é a Luz.
A Quaresma é um caminho para Jesus ressuscitado, um período de penitência, bem como de mortificação, mas não é um fim em si própria, e sim dirigida a fazer-nos ressurgir com Cristo, a renovar a nossa identidade batismal, isto é, a renascer novamente «do alto», do amor de Deus. Eis porque a Quaresma é, pela sua natureza, tempo de esperança.
Para compreender melhor o que isto significa, devemos referirmo-nos à experiência fundamental do êxodo dos israelitas do Egito, narrada pela Bíblia no livro que tem esse nome: Êxodo. O ponto de partida é a condição de escravidão do Egito, a opressão, os trabalhos forçados. Mas o Senhor não esqueceu o seu povo e a sua promessa: chama Moisés e, com braço poderoso, faz sair os israelitas do Egito e guia-os através do deserto em direção à Terra da liberdade.
Durante este caminho da escravidão à liberdade, o Senhor dá aos israelitas a lei, para o educar a amá-lo, único Senhor, e a amarem-se entre eles como irmãos. A Escritura mostra que o êxodo é longo e tormentoso: simbolicamente dura 40 anos, isto é, o tempo de vida de uma geração. Uma geração que, perante as provações do caminho, é sempre tentada a recordar com saudade o Egito e a ele regressar; também todos nós conhecemos a tentação de voltar atrás, todos. Mas o Senhor permanece fiel e aquela pobre gente, guiada por Moisés, chega à Terra prometida.
Todo este caminho é realizado na esperança: a esperança de alcançar a Terra, e precisamente neste sentido é um "êxodo", uma saída da escravidão à liberdade. E estes 40 dias são também para nós uma saída do pecado e um caminho para o Senhor. Cada passo, cada esforço, cada prova, cada queda e cada retomada, tudo tem sentido apenas no interior do desígnio de salvação de Deus, que quer para o seu povo a vida e não a morte, a alegria e não a dor.
A Páscoa de Jesus é o seu êxodo, com o qual Ele nos abriu o caminho para chegar à vida plena, eterna e feliz. Para abrir este caminho, esta passagem, Jesus deve de despojar-se da sua glória, humilhar-se, fazer-se obediente até à morte e à morte de cruz. Abrir-nos a estrada para a vida eterna custou todo o seu sangue, e graças a Ele nós fomos salvos da escravidão do pecado.
Mas isto não quer dizer que Ele fez tudo e nós não temos de fazer nada, que Ele passou através da cruz e nós "vamos para o paraíso de carruagem". Não quer dizer isto. Não é assim. A nossa salvação é certamente dom seu, dado que é uma história de amor, requer amor, requer o nosso "sim" e a nossa participação, como nos demonstra a nossa Mãe Maria e depois dela todos os santos.
A Quaresma vive desta dinâmica: Cristo precede-nos com o seu êxodo, e nós atravessamos o deserto graças a Ele e atrás dele. Ele foi tentado por nós e venceu o Tentador por nós, mas também nós temos com Ele de enfrentar as tentações e superá-las. Ele dá-nos a água viva do seu Espírito, e a nós cabe extrair da sua fonte e beber, nos sacramentos, na oração, na oração; Ele é a luz que vence as trevas, e a nós é pedido alimentar a pequena chama que nos foi confiada no dia do nosso Batismo.
Neste sentido, a Quaresma é «sinal sacramental da nossa conversão», quem faz a estrada da Quaresma está sempre na estrada da conversão, do nosso caminho da escravidão à liberdade, sempre a renovar. Um caminho certamente exigente, como é justo que seja, pois o amor é exigente, mas um caminho repleto de esperança. Aliás, direi mais: o êxodo quaresmal é o caminho em que a própria esperança se forma.
O esforço de atravessar o deserto - todas as provações, as tentações, as ilusões, as miragens -, tudo isto serve para forjar uma esperança forte, sólida, sobre o modelo daquela da Virgem Maria, que no meio das trevas da paixão e da morte do seu Filho continuou a acreditar e a esperar na sua ressurreição, na vitória do amor de Deus.
Com o coração aberto a este horizonte, entremos hoje na Quaresma. Sentindo-nos parte do povo santo de Deus, iniciamos hoje com alegria este caminho de esperança.
Papa Francisco
Audiência Geral 1.2.2017
É inconsistente o dito popular: “palavras são apenas palavras e nada mais”. Recorde-se o Salmo 33 que sublinha a força da palavra, quando se canta que pela palavra de Deus foram feitos os céus, pelo sopro de sua boca todos os seus exércitos. E em Jesus Cristo, o filho de Deus Pai, a Palavra se fez carne e veio morar entre nós. Vale ler e reler as narrativas iniciais dos primeiros capítulos do Livro do Gênesis, 1-3, e compreender o sentido, o alcance e a força da palavra: “Faça-se!”.
Pela palavra, até mesmo no silêncio, Deus fala e vem ao encontro de cada pessoa. A palavra tece os diálogos, fazendo-os autênticos e construtivos quando a sua força se manifesta, não pela imposição, mas a partir da transparência e da verdade. Há de se constatar que o falar não é qualquer coisa. A palavra é essencial na construção da vida pessoal, na edificação da sociedade e na busca por novos horizontes. Assim, a palavra, para edificar vínculos duradouros na verdade e no amor, em vista da justiça e da paz, não dispensa sinceridade, transparência, honestidade e o compromisso com o bem comum. É incontestável que a sociedade contemporânea precisa avançar na recuperação do sentido da palavra, para que por sua força possam ser sanadas as consequências das incompreensões, distorções, equívocos que têm como parâmetro a mesquinhez. Esses males conduzem o mundo rumo a fracassos, incompetências institucionais, familiares, governamentais e religiosas.
Embora a contemporaneidade seja tão marcada por grandes avanços tecnológicos, que incluem as redes intermináveis para a transmissão das palavras, em velocidades surpreendentes, ainda é tempo de se aprender a falar. Esse é um investimento indispensável no alicerce básico da consciência humana, que abrange a individualidade e a clareza de pertencimento comunitário e familiar. Deus, em diálogo com cada pessoa – porque Ele fala – estabelece uma dinâmica que leva a esse necessário aprendizado, cultivando nos corações o gosto de ser sincero, bom, lúcido e capaz de agir como instrumento da paz.
O segredo, portanto, é dar centralidade e primado à Palavra de Deus. Ao escutar a Palavra, cada pessoa abre-se à verdade, aprende as lições do amor, capacita-se para ser justo. Mais que outras escutas, é essencial ouvir a Palavra de Deus que também revela, inevitavelmente, a dramática possibilidade de o homem subtrair-se a esse diálogo de aliança com Deus. O resultado nefasto é a expansão de domínios perversos no coração.
Proclamar a Palavra é investir no cumprimento da tarefa dada pelo Mestre Jesus, a Palavra encarnada. Cristo quer o Povo de Deus congregado em uma “Igreja em saída”, missionária, próxima de todos, presente especialmente nos lugares mais pobres e sofridos, em diálogo com a sociedade. Uma Igreja que ajude a confeccionar o tecido da cultura solidária e da vida.
Nenhuma outra palavra tem a força da Palavra de Deus, capaz de renovar a Igreja, as pessoas e reconstruir a sociedade contemporânea tão marcada pelo cansaço, fracasso e pelas banalizações. Proclamar a Palavra é o compromisso primeiro, entre muitos outros, assumido pela Arquidiocese de Belo Horizonte, como Igreja no mundo e a serviço do Povo. É seu Projeto de Evangelização, para que surja o novo pela força da Palavra de Deus, iluminando as palavras de cada cidadão.
O infinito que a nós cabe viver é sempre um infinito ferido. E é bom que assim seja. As perguntas «quem estou disposto a amar?», «até que ponto me torno disponível para a confiança?», «como me disponho a abraçar a vida nos seus rasgões e nas suas convulsões?» trazem tatuada uma interrogação que não vemos, em que raramente pensamos, mas que é intrínseca a tudo, precisamente a tudo aquilo que somos: «Por que coisas me sinto capaz de sofrer?».
E isto nada tem a ver com um qualquer confuso masoquismo autosacrificial. É antes o contrário. Onde se lê «sofrer» entenda-se «viver», investir gratuitamente desejo e esforço, escutar em profundidade, acompanhar passo a passo com amor incondicional, dar a vida. Exatamente como faz a semente que mergulha na terra, onde está como se morresse, e desse modo assume o risco de hipotecar e transmudar a sua própria existência para gerar um fruto novo.
Poderemos nós pensar a vida de outra maneira? Podemos, certamente. E infelizmente muitos (por medo, por egoísmo, por insegurança) lidam com ela nessa perspetiva. Mas essa não é vida. Permanecerá sempre, mesmo se bem camuflada, uma vida aparente, mutilada de algumas dimensões fundamentais, vida a realizar. Uma aventura apenas esboçada. Um dom que não chegou a sê-lo.
José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 12.01.2017 no SNPC
Num recente programa de rádio, o escritor norte-americano Jack Hitt contou uma história sobre como explicar o Natal à sua filha de quatro anos. Um dia, quando ela lhe perguntou sobre o que era essa festa, ele falou-lhe do nascimento de Jesus, o que aguçou a sua curiosidade. Compraram-lhe uma Bíblia para crianças e ela aprendeu sobre o nascimento de Jesus e os seus ensinamentos, incluindo a antiquada expressão «faz aos outros como gostarias que te fizessem».
Noutro dia, passaram de carro por uma grande igreja com um enorme crucifixo no exterior. «Quem é aquele?», perguntou ela. Hitt percebeu que nunca tinha falado à filha dessa parte da história. «Então respondi-lhe alguma coisa como "oh, bem, é Jesus. E eu esqueci-me de te dizer o final. Ele entrou em conflito com o governo romano», recordou Hitt na emissão.
«Esta mensagem que Ele tinha foi tão radical e perturbadora para as autoridades do tempo, que elas tiveram de o matar. Elas chegaram à conclusão de que Ele tinha de morrer. A sua mensagem era muito problemática», explicou o escritor à criança.
Algumas semanas após aquele Natal, a escola pré-primária fechou por causa do feriado dedicado a Martin Luther King Jr., e Hitt levou a filha a almoçar. Na mesa do restaurante estava o suplemento artístico do jornal local, que tinha um grande desenho de Luther King feito por uma criança. «Quem é este?», interrogou ela.
Ele respondeu que King tinha sido um pregador que havia afirmado que «deves tratar todos da mesma forma, sem olhar à aparência». Ela ficou a pensar naquelas palavras por alguns momentos. «Então foi o que Jesus disse», respondeu. Hitt afirmou que nunca tinha pensado nisso daquela maneira, mas sim, tem muito a ver com a frase «faz aos outros...».
A criança voltou a ficar pensativa por instantes, depois olhou para o pai e interrogou: «Também o mataram?».
Esta história andou às voltas na minha cabeça a 26 de dezembro, a festa de Santo Estêvão, o primeiro mártir cristão. Os novos brinquedos da nossa filha continuavam dispersos por toda a sala de estar, o quarto dela, a entrada. As imagens do Menino Jesus descansavam pacificamente na meia dúzia de presépios espalhados pela casa. E a Igreja celebrava um jovem do primeiro século que foi apedrejado por causa do que acreditava e fez. É uma justaposição dissonante. Segue até ao extremo a mensagem de amor e paz revelada na manjedoura e pode ser que acabes numa cruz ou na varanda de um hotel.
Nunca vi uma imagem mais poderosa sobre esta verdade do que a fotografia que povoou a internet nos dias a seguir ao Natal: crentes amontoados na secção frontal da catedral maronita católica em Alepo, tendo atrás de si a grande nave da igreja totalmente bombardeada.
A palavra "mártir" significa testemunha, e estas testemunhas sírias deixaram-me estupefado. As suas vidas do dia a dia tornam-nas pessoalmente mais íntimas com a história de Santo Estêvão do que a maioria de nós alguma vez será. Ainda assim, confrontadas com uma violência inimaginável, apareceram para adorar juntas o Príncipe da Paz. Apareceram. Apareceram.
Eu, quanto a mim, passei os olhos pela seleção de cânticos da nossa Missa do Galo. Tenho evitado olhar diretamente para os olhos da maior parte dos sem-teto que vejo nas ruas em redor do meu escritório. Muitas vezes, demasiadas vezes, não estou a aparecer.
«Digo-vos uma coisa», afirmou o papa Francisco no dia de Santo Estêvão. Na sua habitual forma direta, pareceu-me que estava a falar precisamente para mim e para os meus confortáveis companheiros cristãos: «Os mártires de hoje são muitos mais em relação aos dos primeiros séculos [da Igreja]. Quando lemos a história dos primeiros séculos, aqui, em Roma, lemos tanta crueldade com os cristãos; eu digo-vos: hoje existe a mesma crueldade, em número superior».
«Hoje queremos pensar neles que sofrem perseguições, e estar próximos deles com o nosso afeto, a nossa oração e também com o nosso pranto», continuou ele. «Não obstante as provas e os perigos, eles testemunham com coragem a sua pertença a Cristo e vivem o Evangelho comprometendo-se a favor dos últimos, dos mais esquecidos, fazendo o bem a todos sem distinção; testemunham assim a caridade na verdade.»
Eis aqui alguma inspiração para uma resolução de Ano Novo que valha a pena. Pertencer a Jesus. Viver o Evangelho. Favorecer os últimos e os esquecidos. Fazer o bem a todos sem distinção. Extrair energia da coragem de Martin Luther King, dos cristãos de Alepo e de Santo Estêvão. Por outras palavras: ser uma testemunha, por amor de Deus.
Mike Jordan Laskey
In "National Catholic Reporter"
Trad. / adapt.: Rui Jorge Martins
Publicado em 03.01.2017 no SNPC
Porque é que colocamos tanta resistência em parar e a conceder-nos formas de descanso que nos restituam a nós próprios? Por uma razão simples: o movimento parece-nos mais fácil de viver.
O movimento preenche o tempo, mantém-nos ocupados nas suas voltas vertiginosas, enquanto o repouso inicia-se muitas vezes com a sensação de um esvaziamento, surpreendente, incómodo, difícil de gerir.
Por isso fugimos do repouso verdadeiro, no qual o encontro conosco próprios é inevitável. É o que com frequência acontece às pessoas superatarefadas que finalmente decidem dar-se um tempo de pausa ou de retiro.
Não é raro que a sua primeira experiência seja o desejo de escapar, enquanto pensam que o retiro foi uma má decisão: a princípio percebem uma sensação de abandono, como se inesperadamente se encontrassem a combater sozinhos com a sua noite.
Thomas Merton, um mestre que é necessário redescobrir, escreve: «O caminho da quietude nem sequer chega a ser um caminho, e quem o percorre não encontra nada». Soa estranho, não é verdade?
Aprender a repousar é também aprender a libertar-se do imediatismo das nossas expetativas e dos nossos desejos excessivamente idealizados. Repousar é dizer-se, no fundo do coração: «Estou aqui, à espera de nada»
José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 04.01.2017 no SNPC
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