Quando vier a primavera
Alberto Caeiro
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
Fonte: Fernando Pessoa. Obra poética. Nova Aguillar: Rio de Janeiro, 1992, p. 236-237
NOSSO TEMPO
(dois trechos)
I
Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
VIII
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.
Carlos Drummond de Andrade
"Nosso Tempo", de A Rosa do Povo (1945)
in Poesia Completa
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2003
LUGARES
Onde fizemos memória
são lugares que já não existem,
camas de casa, mercados de Damasco
cidade dourada, templo de Palmira —
tudo transmigrado, repatriado em fábula
e entre as palavras muitos cigarros votivos,
muitas noites de intervalo musical
sem morada, sem registro, muitos dias.
Mariana Ianelli
in Manuscrito do Fogo – Antologia Poética
Edições Ardotempo, Porto Alegre, 2019
imagem: pexels.com
TEM GENTE COM FOME
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Piiiii
Estação de Caxias
de novo a correr
de novo a dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bonsucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar
Só nas estações
quando vai parando
começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuu
Solano Trindade
Do livro Poemas de uma Vida Simples (1944)
Essa dor
não me resolve,
esse poema
não te resolve.
O que nos une
é alguma coisa
acima do sim,
é alguma coisa
acima do não
(se por acaso
a palavra amigo
é prisioneira
no coração do homem).
Essa dor
não me resolve,
esse poema
não te resolve.
O que nos une
é a cumplicidade
em caminhar sobre pedras,
é o compromisso
em cavalgar sobre peitos
(se por acaso
a palavra amigo
é prisioneira
no coração do homem).
Somos esta coragem
em insistência humana,
somos esta covardia
sem existência humana.
O que nos une
é essa dor mesmo,
é essa mesma poesia
em roçar os dedos
na mão do outro.
Damário Dacruz
in Todo Risco – O Ofício da Paixão
Fundação Pedro Calmon, Salvador, 2012
Imagem: pexels.com
"O Cristo sorridente" do Castelo de São Francisco Xavier em Navarra, Espanha (Sec. XV)
Minha dor sorri para mim
Esperançosa do desconhecido
Com devida fome das lições futuras
Minha dor sorri para mim
Com a confiança de seu valor infinito
Só quando eu sorrio de volta para ela
Minha dor sorri para mim
Ressuscitando minhas memórias esquecidas
Meu sorriso não possui ou preserva
Só abraça e liberta
Minha tristeza estreia
Um sorriso nanico de volta para ela
E ainda meu sorriso causa-me dor.
Um sorriso comprido de volta para ela
Torna-se num franzir a testa para minha tristeza
Quando só tiranizam meus abraços
Meu sorriso aprisiona e embala
Matando minhas memórias amadas
Meu sorriso causa-me dor
Só quando não sorrio de volta para ela
Duvidando de seu valor infinito
Meu sorriso causa-me dor
Apostatando a existência das lições futuras
O desconhecido me paralisa
E ainda
A dor de Cristo sorri para mim
Eternamente.
Minha dor sorri para mim
Novamente.
Michael A. Martínez, S.J.
O BICHO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Manuel Bandeira
Rio, 27 de dezembro de 1947
Do livro Belo Belo (1948)
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Carlos Drummond de Andrade,
Sentimento do mundo
Não saberei nunca
dizer adeus
Afinal,
só os mortos sabem morrer
Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser
Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo
Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos
Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca
Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo
Mia Couto
Imagem: pexels.com
Crédito de Imagem: Michael A. Martínez, S.J.
Mãos abertas
Antes de me deitar à noite,
Examino minhas mãos,
Asseguro que estão vazias -
Porque isso significa
Que tenho dado tudo no dia.
Antes de me despertar na manhã,
Examino minhas mãos,
Asseguro que estão vazias -
Porque isso significa
Que estou disposto a receber tudo no dia.
Quando sigo a Cristo,
Examino minhas mãos,
Asseguro que estão vazias
E contêm suas chagas -
Porque agora dar e receber são um.
Michael A. Martínez, S.J.
História do Poema
Originalmente escrito em espanhol no 2014, “Manos Abiertas” foi a sínteses pessoal do mês de Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola na República Dominicana. Vamos pedir a graça de ter as mãos vazias necessárias para receber todos os presentes de Deus e as mãos abertas para doar esses presentes a todos com que nos encontremos no caminho. Esta é a meta dos Exercícios Espirituais – a liberdade de e a liberdade para.
Em 2016, como parte de meus estudos de Pós-Graduação em “Comunicação Digital” de Loyola University Chicago, adaptei o poema visual e musicalmente usando minhas mãos, as mãos de meus colegas Jesuítas e as mãos de jovens em risco da cidade de Chicago, EUA.
O vídeo tem legendas em português, espanhol e inglês:
Para mais conteúdo de Michael A. Martínez, S.J., visite: www.mikemartinezsj.com
O poema foi publicado por primeira vez em The Jesuit Post.
Só quero lembrar
se o tempo for todo meu.
A MÃO
Toma o ventre da terra
e planta no pedaço que te cabe
esta raiz enxertada de epitáfios.
Não seja tua lágrima a maldição
que seqüestra o ímpeto do grão
levanta do pó a nudez dos ossos,
a estilhaçada mão
e semeia
girassóis ou sinos, não importa
se agora uma gota anuncia
o latente odor dos tomateiros
a viva hora dos teus dedos.
Conceição Lima
(poeta de São Tomé e Princípe)
In: A Dolorosa Raiz do Micondó - Geração Editorial, São Paulo, 2012
Imagem: Albin Egger Lienz
I (2)
Abandonei o tempo dos limites.
É do infinito que a alma mais tem fome.
A vida tece a urdidura do avesso
E é de loucura que o corpo se sacia.
Minha paixão não teme estes abismos.
O que se busca é nesta névoa que se oculta.
Luíza Mendes Furia
In: Vênus em Escorpião. Patuá, São Paulo, 2016
TARDE DE SEXTA FEIRA SANTA
Tua vida se via destruída
mas tu alcançavas a plenitude.
Aparecias crucificado como um escravo
mas chegavas a toda liberdade.
Havias sido reduzido ao silêncio
mas eras a palavra maior do amor.
A morte exibia sua vitória
mas a derrotavas para todos.
O Reino parecia esvair-se contigo,
mas o edificavas com entrega absoluta.
Acreditavam os chefes que te haviam tirado tudo
mas tu te entregavas para a vida de todos.
Morrias como um abandonado pelo Pai
mas Ele te acolhia em um abraço sem distancias.
Desaparecias para sempre no sepulcro
mas inauguravas uma presença universal.
Não é apenas aparência de fracasso
a morte do que se entrega a teu desígnio?
Não somos mais radicalmente livres
quando nos abandonamos em teu projeto?
Não está mais próxima nossa plenitude
quando vamos sendo despojados em teu mistério?
Não é a alegria tua última palavra
em meio às cruzes dos justos?
Benjamim G. Buelta SJ
Imagem: bigStock.com
MINHA MÃE
Minha mãe costura
na Singer
todo fim de
tarde,
elegante e
sagaz
na missão de
consertar o mundo.
Como toda mãe,
sabe botar brilho
nos olhos dos filhos,
e põe na caixa de botões
os sentimentos extraviados.
Seus olhos
— de tardezinha —
são dois botões nublados.
Iara Maria Carvalho
in Meia Porção de Sol - Offset Editora, Natal, 2021
Imagem: Cornelia Hernes, Autorretrato aos 38 anos (2017)
HÁ EM MIM MULHERES
(para Maria Valéria Rezende)
Lua ineludível:
inúmeras faces
que tanto me despem
quanto me mascaram.
Fases tão diversas
e, no entanto, sempre
— sempre — a mesma lua:
muitas e nenhuma.
Ao meu lado um cão
gane o tempo todo.
O seu nome é medo,
sua voz é não;
Há em mim mulheres,
todas com seus cães
ganindo nos becos
deste corpo orbívago.
Há em mim mulheres
ensaiando ser
mais fortes que o medo,
maiores que o cão.
Há em mim mulheres
escolhendo a face
de uma nova lua.
Outras, o interlúnio.
Mulheres me habitam
feitas de coragem
embora nem saibam
que podem vencer.
Eu também duvido
vivo a sucumbir
mas depois revivo:
um dia seremos.
Sônia Barros
in Tempo de Dentro [Prêmio Paraná 2017]
Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba, 2018
Imagem: pexels.com
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