ORIGAMI
nem sempre somos
o que queremos ser.
um dia,
pássaros.
um dia,
papel amassado
no chão.
[somos as dobraduras da vida]
Marina Rabelo
• in Das Coisas Que Larguei na Calçada
Com ilustrações de Augusto B. Medeiros
Caravela Selo Cultural, Natal, 2016
Imagem: pexels.com
Jesus, meu despertador
O tempo se cumpriu,
Arrependa-se do seu descanso,
Levante-se da cama
E carregue com você
Seu sono e sonhos mais profundos.
Siga-me, por enquanto, para o banheiro.
Lave seu rosto
Para que outros possam ver
Nele a Minha face.
Limpe seus ouvidos
Para que possas escutar dos outros
A música de Minha vontade.
Escove seus dentes
Para que possas falar para outros,
Sem as cáries de seus pecados, as Minhas palavras.
Pense com Minha mente
Para que a primeira oração
A nascer de seus lentos lábios, coração e mente
Seja somente Meu único desejo:
Amo, conheço e sirvo
A Deus, o próximo inteiramente.
Acorde, com um propósito,
E apenas um propósito:
O Reino de Deus está próximo,
O Reino de Deus está no próximo
Acorde, com um motivo,
E apenas um motivo:
Você acredita profundamente no Evangelho,
O mundo necessita profundamente do Evangelho
Eu Sou
O despertador de Deus
Para o mundo adormecido
Que acorda sempre
Lentamente
Teu despertador, Jesus
Michael Martinez SJ
INFÂNCIA
Faz de conta
Que tudo se passou
No campo do previsto.
Vestido de organdi,
Meias de seda,
Sapatos de verniz.
Faz de conta
Que eu sempre
Fui feliz.
Eu sempre fui feliz.
(Mas não sabia).
Myriam Fraga
• in Poemas
7Letras, Rio de Janeiro, 2017
imagem:
ÓRFÃO DE ORFEU
É minha a ciência dos desertos,
este desejo de devastação.
Deito-me num leito de pedras,
ordeno ao fogo que semeie a treva,
e aguardo as águas
com sua erosão.
Como alguém que mói um trigo antigo,
ou rói, atrás da porta,
um naco de pão,
eu exerço, humildemente,
o meu ofício.
Órfão de Orfeu,
tocador de flauta sem alento,
tangedor de lira desencordoada,
voz que vai afogada no vento,
celebro a vida
e seu olvido.
Marcelo Sandmann
in Não Cicatriza
Kotter Editorial, Curitiba, 2021
O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros - perdi-os...
Tive amores - esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.
Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!
Manoel Bandeira
VIAGEM NO TEMPO
Percorro a casa. Os claros
espaços dos antepassados.
As vigas. Os caibros. As telhas.
As vértebras das teias
de aranha. Por aqui
as serpentes dos pântanos
deixaram fragmentos
de astúcia e morfina.
Vestígios de borboletas
mortas vivem nas gavetas.
Dos ponteiros do relógio
pingam as gotas das horas.
Por todos os cantos
da casa a memória sangra.
Francisco Carvalho
in Memórias do Espantalho - Poemas Escolhidos
Imprensa Universitária da UFC, Fortaleza, 2004
Estou sempre nos limiares:
sou sempre esta pausa antes
do início de uma canção,
sou um momento de espera,
quase um fim de solidão.
Sou margem de caminho para a morte,
gesto que pressente atrás do véu:
promessa de chuvas sob o céu,
e vôo que antes de partir
repousa...
- Lya Luft,
em "Mulher no palco", 1984.
Aquela criança, aquela
ainda não compreendeu o mundo
ainda se busca no espelho
ainda inventa viagens
ainda ri sem motivo
- quando os fantasmas deixam.
Aquela criança, aquela
teve as asas cortadas
e a máscara afivelada
na morte dos seus amores.
Aprendeu que o tempo
- como tudo mais -
é só miragem.
Lya Luft
INTERIOR
Alguém esteve aqui
já não está
mas este calor na pele
das coisas, ainda
um momento aflora
e não transcorre
(uma auréola amarela
sobre a página Mundo
sobre a mesa)
ainda uma casa se pensando
em seus espelhos —
o tremor de uma nota
e outra nota
depois que um coração
para de bater.
Mariana Ianelli
Mariana Ianelli
in Manuscrito do Fogo – Antologia Poética
Edições Ardotempo, Porto Alegre, 2019
Apresentação
Aqui está minha vida - esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz - esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está minha dor - este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança - este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.
Cecília Meireles
Poesia Completa, vol. I, Retrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001. pg. 606.
CARESTIA
Amor custa bem caro.
Mesmo assim depenamos bolsos
e bolsas de moedas raras.
Por ele pagamos, em prestações
nem sempre suaves, quanto
de entrada supúnhamos
de todo não poder:
o alto preço dos sustos
a conta escorchante
das noites em claro
os juros extorsivos
do medo de perdê-lo
a tristeza do saldo zero.
Queixamo-nos de carestia
se de amor-próprio ainda
nos sobra algum trocado,
mas que fazer quando só
amor é o lucro que buscamos?
Astrid Cabral
in Coração à Solta 2ª ed.
Prefácio de Alexei Bueno
Kade, Maricá-RJ, 2021
Imagem: pexels.com/matheus martelli
Amor como tremor de terra
abalando montanhas e minérios
nas entranhas da minha carne.
Amor como relâmpagos e sóis
inaugurando auroras
ou ateando faíscas e incêndios
nas trevas da minha noite.
Amor como açudes sangrando
ou caudais e tempestades
despencando dilúvios.
E não me falem de ruínas
nem de cinzas, nem de lama.
Astrid Cabral
in Coração à Solta 2ª ed.
Prefácio de Alexei Bueno
Kade, Maricá-RJ, 2021
imagem: pexels.com
Quando vier a primavera
Alberto Caeiro
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
Fonte: Fernando Pessoa. Obra poética. Nova Aguillar: Rio de Janeiro, 1992, p. 236-237
NOSSO TEMPO
(dois trechos)
I
Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
VIII
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.
Carlos Drummond de Andrade
"Nosso Tempo", de A Rosa do Povo (1945)
in Poesia Completa
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2003
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