“O Rimbaud dizia “Je suis un autre” [Eu sou um outro]. Há, em todas as vidas, uma dimensão de alteridade em relação a nós próprios. Não somos apenas uma coisa só. Somos um conjunto de componentes, de desejos, de memórias, de caminhos, de projetos. E é interessante sentir esse lado quase laboratorial da vida interior de cada pessoa. É também assim que me sinto, a habitar o ‘entre’: entre projetos, entre caminhos, entre memórias, entre visões. Não sinto uma falta de unidade. Sinto que aquilo que, aos olhos de outros, pode aparecer como uma dispersão, é a resposta ao apelo polifônico da própria vida. A vida não nos chama de uma maneira só, chama-nos com vozes diferentes que são no fundo a única voz. A escrita é uma espécie de ponte, funciona como uma espécie de resíduo, um lugar, por onde tudo passa e algumas coisas ficam.”
José Tolentino Mendonça
Compras de Natal
São as cestinhas forradas de seda, as caixas transparentes os estojos, os papéis de embrulho com desenhos inesperados, os barbantes, atilhos, fitas, o que na verdade oferecemos aos parentes e amigos. Pagamos por essa graça delicada da ilusão. E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e alegrias. Durável apenas o Meninozinho nas suas palhas, a olhar para este mundo.”
Cecília Meireles
"O certo é que um menino nasceu e partiu.
Deixou um recado para ser lido no cosmo infinito, no espelho da água, no silêncio da pedra, no percurso do vôo, no silencio das dúvidas.
Mas só quem olha com dois olhos pode decifrar.
A sua presença ficou no sopro do vento, no ruído do inseto, no canto da cigarra, na queda da chuva, na maré do mar, no rumor da cachoeira.
Mas só quem escuta com os dois ouvidos pode entender.
Nas palavras que trocam a guerra pela paz, o amargo pelo doce, o nunca pelo sempre, sua visita breve fica mais confirmada.
Mas ninguém contesta que há um “antes” e um “depois”, e que houve uma noite feliz".
Bartolomeu Campos Queirós
Alvará de demolição
O que precisa nascer
tem sua raiz em chão de casa velha.
À sua necessidade o piso cede,
estalam rachaduras nas paredes
os caixões de janela se desprendem.
o que precisa nascer aparece no sonho buscando frinchas no teto,
réstias de luz e ar.
Sei muito bem do que este sonho fala
e a quem pode me dar
peço coragem.
Adélia Prado
In: A duração do Dia, Editora Record, 2ª Edição, 2011, página 37.
(...) "Tomara que a gente não desista de ser quem é por nada nem ninguém deste mundo. Que a gente reconheça o poder do outro sem esquecer do nosso. Que as mentiras alheias não confundam as nossas verdades, mesmo que as mentiras e as verdades sejam impermanentes. Que friagem nenhuma seja capaz de encabular o nosso calor mais bonito. Que, me......smo quando estivermos doendo, não percamos de vista nem de sonho a ideia da alegria. Tomara que apesar dos apesares todos, a gente continue tendo valentia suficiente para não abrir mão de se sentir feliz. As coisas vão dar certo. Vai ter amor, vai ter fé, vai ter paz – se não tiver, a gente inventa!” (...)
Caio Fernando Abreu
CANÇÃO
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e minhas duas mãos quebradas.
Cecília Meireles
De Viagem (1939)
“A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.”
Manoel de Barros
In:Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001).
DESCOBRIMENTO
a infância é um barquinho
a transportar nossos sonhos
da enxurrada até o rio
a juventude um caiaque
a descer a correnteza
sem pensar em desembarque
a velhice é caravela
terra à vista
Líria Porto
In: Olho Nú - Ed. Patuá, 2018
"A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre."
José Saramago
Estou lá onde me invento e me faço:
De giz é meu traço. De aço, o papel.
Esboço uma face a régua e compasso:
É falsa. Desfaço o que fiz.
Retraço o retrato. Evoco o abstrato
Faço da sombra minha raiz.
Farta de mim, afasto-me
e constato: na arte ou na vida,
em carne, osso, lápis ou giz
onde estou não é sempre
e o que sou é por um triz.
Maria Esther Maciel
Há inevitalmente, em qualquer período
entre catástrofes, uma noite de chuva boa.
O trabalho termina mais cedo e pensamos
ainda ontem tudo era cálculo, sordidez
e sangue, mas agora a paz respira amplamente.
Ainda há, inevitavelmente, o amor
que ainda se ergue, que ainda caminha
como um animal sem medo dos relâmpagos.
Daniel Francoy
Depois de tudo
Mas tudo passou tão depressa
Não consigo dormir agora.
Nunca o silêncio gritou tanto
Nas ruas da minha memória.
Como agarrar líquido o tempo
Que pelos vãos dos dedos flui?
Meu coração é hoje um pássaro
Pousado na árvore que eu fui.
Cassiano Ricardo
A FOME
dera para lamentar-se de fome
não de um prato de comida
não de um copo de água
era fome que o roía que bramava
dentro noite e dia, se
alguém perguntasse que fome
era aquela ele não saberia
dizer não saberia
dizer
Vera Lucia de Oliveira
"Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta. Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas de miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra, os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdado daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer".
Adélia Prado
[in Filandras, São Paulo, Record, 2001, p. 121]
Introdução à arte das montanhas
Um animal passeia nas montanhas.
Arranca a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima o animal é um imã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer.
Fonte: Leonardo Fróes. Trilha. Poemas 1968-2015. Rio de Janeiro: Azougue, 2015, p. 25.
(Certas ruas
certas ruas têm um bosque
- armadilhas - que se chamam
que se chamam exclusão...)
Fernando Campanella
Tenho fome de boas-novas,
cartas com letra floreada,
postais, quem sabe,
de faróis
no Mar Vermelho.
Mas raro batem
à minha porta.
Por isso invento
meus milagres
(e então os lanço
dos telhados
em aviões de papel).
Ana Santos
In: Móbile (Ed. Patuá)
Pés sujos de Tereza
(Caravaggio)
Aprende o rosto que se mostra.
Mas Tereza tem os pés descalços e sujos.
Depois do humano estampado na tela,
conspiram contra ele os poderosos.
Atribuem à verticalidade das cenas projetadas,
afronta à nobreza encomendada.
Tereza responde aos inescrupulosos:
- a beleza mora nos pés sujos.
Respiro aliviada, embriagada
pelas migalhas de arte
nos pés sujos de Tereza
Alzira Maria Ribeiro Araújo
In: Pés sujos de Tereza (- primavera de trapos -) - Ed. Mosaico 2018
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