PALAVRAS
Nem tudo se tem coragem de dizer.
Mas dizer é uma coisa muito forte,
e, afinal, somos quase que só palavras,
em cada vão do corpo, cada fresta.
Esse o delicado abismo que habitamos,
e medeia de uma frase a outra frase,
embora cá dentro, um vasto mundo,
entre as duras bolhas dos silêncios.
Que luz me ilumina quando falo?
E quando escrevo o que se acende em mim?
Uma palavra brilha e se liga a outra,
e nenhuma está morta em dicionário.
E qual dicionário poderia contê-las?
Não as contêm o meu próprio peito,
nem extenso país, nem qualquer língua.
Gilberto Nable
MUDAR OU NÃO MUDAR
Fui neurótico durante anos
Cheio de ansiedades, depressões e egoísmos.
Todos me diziam que mudasse,
Eu ficava ressentido e ao mesmo tempo concordava,
e queria mudar, mas não conseguia,
por mais que tentasse.
O que mais me feria era o meu melhor amigo,
que, tal como os outros,
insistia que eu mudasse.
Mas, um dia, ele disse-me:
“Não mudes! Gosto de ti como tu és!”
Estas palavras foram música para os meus ouvidos,
esta frase do amigo: “Não mudes! Não mudes!
Não mudes… Gosto de ti como tu és!”
Então relaxei; voltei a viver. E então mudei!
Agora sei que não teria conseguido mudar até encontrar alguém que me amasse,
com ou sem mudança.
É assim que vós me amais, ó Deus?
(em Anthony de Mello, O Canto do Pássaro)
As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.
Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.
Deixa o presente. Não fales,
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.
Em águas de
eternamente,
o cometa dos meus
males
afunda, desarvorado.
Fico ao teu lado.
Cecília Meireles
Se escrevesse um poema neste instante, escreveria uma árvore. Deixaria meu sangue circular em sua seiva, e os pássaros fazerem ninhos com palavras de paina.
Paulo Bomfim
De ‘O colecionador de minutos.’
O AMOR DISPARADO
Pressente-se o perigo
O coração acelera
E ganha vantagem
O médico o chama
De taquicardia
E o cérebro sabe
Daqui pra frente
Quem é que manda.
Adriana Garcia
in: Garrafas ao Mar
Penalux, Guaratinguetá-SP, 2018
Este é o começo do dia,
como o começo e o fim do mundo:
as nuvens aprendem a voar,
os campos vão sonhando nuvens,
o vento vai sonhando o pó
onde tristemente o amor palpitará.
Este é o começo do dia.
Vemos tudo o que já foi visto,
alguma coisa não mais se verá.
Nem sempre olhamos o dia
tão face a face e tão docemente.
Nem sempre sentimos esta saudade,
ainda ausente, ainda futura,
do que há e do que não há.
Este é o começo do dia:
- do céu, da luz, da terra, dos homens,
que acontecerá?
Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)
Biografia
Cecília Meireles
Escreverás meu nome com todas as letras,
com todas as datas,
e não serei eu.
Repetirás o que ouviste,
o que leste de mim, e mostrarás meu retrato,
e nada disso serei eu.
Dirás coisas imaginárias,
invenções sutis, engenhosas teorias,
e continuarei ausente.
Somos uma difícil unidade,
de muitos instantes mínimos,
isso seria eu.
Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,
aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente.
Como me poderão encontrar?
Novos e antigos todos os dias,
transparentes e opacos, segundo o giro da luz,
nós mesmos nos procuramos.
E por entre as circunstâncias fluímos,
leves e livres como a cascata pelas pedras.
Que mortal nos poderia prender?
Cecília Meireles
Litania das Horas Mortas
Por estas horas de silêncio e solidão,
Eu gosto de ficar só com o meu coração.
É nestas horas de prazer quase divino
Que eu me sinto feliz com o meu próprio destino.
Por estas horas é que a cisma me conduz
Por estradas de treva e caminhos de luz.
É nestas horas, quando em êxtase medito,
Que sinto em mim a nostalgia do infinito.
Por estas horas, quando a sombra estende os véus,
A fé me leva além dos mais remotos céus.
É nestas horas de tristeza e de saudade
Que desperta em meu ser a ânsia da Eternidade.
Por estas horas, minhas naus ousam partir
Para Istambul, para Golconda, para Ofir...
É nestas horas, Noite amiga, em teu regaço,
Que eu me difundo pelo Tempo e pelo Espaço.
Por estas horas eu somente aspiro ao Bem,
Que em vida se tornou minha Jerusalém.
É nestas horas, quando o espírito descansa,
Que me depões na fronte o teu beijo, Esperança!
Por estas horas é que eu sinto florescer,
Como os astros no céu, o jardim do meu ser,
É nestas horas de quietude que deponho,
Ó Noite! em teu altar, minha lâmpada — o Sonho.
Por estas horas é que eu gosto de sonhar,
Para ter ilusões brancas como o luar.
É nestas horas de mistério e beatitude
Que a Glória me fascina e a Poesia me ilude.
Por estas horas de tranqüila e doce paz,
Quanta serenidade o espírito me traz!
É nestas horas, quando a treva se constela,
Que ouço o teu canto nas estrelas, Filomela!
Por estas horas, a minh'alma anseia por
Teu encanto, Ventura! e teu engano, Amor!
É nestas horas de tristeza e esquecimento
Que eu gosto de ficar só com o meu pensamento.
Por estas horas eu me julgo Parsifal
Para ir pela renúncia à conquista do Graal.
É nestas horas que, como um eco profundo,
Repercute no meu o coração do mundo.
Por estas horas transitórias e imortais
Se desvanecem minhas dúvidas fatais.
É nestas horas de harmonia indefinida
Que eu tento decifrar o teu enigma, Vida!
Por estas horas, meu instinto morre, com
A intenção de ser justo, o anseio de ser bom.
É nestas horas de fantástico transporte
Que eu busco interrogar a tua esfinge, Morte!
Por estas horas, eu me enlevo assim, porque
Vela no lodo humano a luz que tudo vê...
Por tuas horas silenciosas, benfazejas,
Deusa da Solidão, Noite! bendita sejas!
Da Costa e Silva.
“Quando eu morrer… se pusessem uma lápide no lugar onde ficarei, poderia ser algo assim: “Aqui jaz, indignado, fulano de tal”. Indignado, claro, por duas razões: a primeira, por já não estar vivo, o que é um motivo bastante forte para indignar-se; e a segunda, mais séria, indignado por ter entrado num mundo injusto e ter saído de um mundo injusto. Mas temos de continuar, de continuar andando, temos de continuar"
José Saramago
Epigrama nº 2
És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir, e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.
Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste.
CECíLIA MEIRELES
In Viagem, 1939
O amor disparado
Pressente-se o perigo
O coração acelera
E ganha vantagem
O médico o chama
De taquicardia
E o cérebro sabe
Daqui pra frente
Quem é que manda.
Adriane Garcia
In: Garrafas ao mar (2018)
Preciso do teu silêncio
cúmplice sobre minhas falhas.
Não fale.
Um sopro, a menor vogal pode me desamparar.
E se eu abrir a boca minha alma vai rachar.
O silêncio, aprendo, pode construir.
É um modo denso/tenso - de coexistir.
Calar, às vezes, é fina forma de amar.
Affonso Romano de Sant’Anna
Tudo o que existe se esfarinha.
Tudo o que é férreo
um dia se corrói
que é outra forma de farinha.
A memória
tem mais fermento das ilusões
que trigo da razão.
Meus olhos são dois buracos negros.
Nada me desassossega
mais que o sossego.
Ronaldo Costa Fernandes
As mulheres do calvário
Algumas mulheres
seguiram a Jesus
desde a Galileia
até essa colina ensanguentada
onde o império masculino
desdobrava com frieza
de lança e de martelo
sua malícia treinada.
O olhar ofegante de Jesus
viu-as ao longe tão próximas,
em cachos,
imprensadas umas contra as outras
pelo espanto solidário,
que uma gota de ternura
pousou em seus olhos,
e deslizou como um beijo
por sua garganta arada
e seu coração amigo.
Contemplaram lentamente,
fiéis à realidade de sangue
e ao amor nú.
Só elas poderão nos contar
até a última ferida.
Só elas poderão nos dizer
a última palavra de Jesus,
que apenas aparecia nos seus olhos,
como um segredo inesgotável
que só ao terceiro dia
pôde pronunciar seu vôo.
Elas,
as mulheres da Galileia,
as mulheres da margem,
tão próximas à dor,
sabem bem
que as feridas ressuscitam
quando são ungidas
com lágrimas, olhares,
carícias e perfumes.
Por isso saíram
de madrugada,
quando as criaturas
emergiam da noite,
para ungir um cadáver
na manhã de domingo.
Benjamim Gonzalez Buelta SJ
HOUVE um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente feliz.
HOUVE um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém a minha alma ficava completamente feliz.
HOUVE um tempo em que minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, a às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.
HOUVE um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma regra: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
MAS, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
Cecília Meireles
BASTA-ME um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve…
– mas só esse eu não farei.
Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes…
– palavra que não direi.
Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,
– que amargamente inventei.
E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...
— e um dia me acabarei.
Cecília Meireles
In: ‘Viagem’ (1973)
Ouça aqui a interpretação de Monika Dockemdorff – Timidez (Cecília Meireles and Trenza Trio)
CANÇÃO
Pus minha vida num barco
e pus o barco no mar —
cometi erro e façanha
e estou ficando velho.
À mesa deste Café,
vejo as pessoas que passam:
algumas parecem tristes,
outras carregam embrulhos.
Nunca sabemos quem somos
e aonde vamos chegar.
A vida num barco pomos
— e o barco no mar.
Antonio Brasileiro
Claudia R. Sampaio
MEMÓRIA É MEDO
memória é medo
que se entreva
entre as teias
do corpo
memória é osso
sem carne
que cobrimos
da melhor forma
possível
para que não
sangre
Vera Lúcia de Oliveira
in Minha Língua Roça o Mundo
Patuá, São Paulo, 2018
Ofertas de Aninha
(Aos moços)
Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.
Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.
Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências do presente.
Aprendi que mais vale lutar
Do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.
Cora Coralina
In: “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”. 6ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p.145.
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