Quando pensei que estava tudo cumprido,
havia outra surpresa: mais uma curva
do rio, mais riso e mais pranto.
Quando calculei que tudo estava pago,
anunciaram-se novas dívidas e juros,
o amor e o desafio.
Quando achei que estava serena,
os caminhos se espalmaram
como dedos de espanto
em cortinas aflitas. E eu espio,
ainda que o olhar seja grande
e a fresta pequena.
Lya Luft
In: Pra não dizer adeus, Editora Record, 2005.
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem inseto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço.
Mia Couto, in: “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”.
"O meu mundo não é como o dos outros,
Quero demais, exijo demais,
Há em mim uma sede de infinito,
Uma angústia constante que nem eu mesma compreendo,
Pois estou longe de ser uma pessimista;
Sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada.
Uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade... Sei lá de quê!"
(Florbela Espanca)
A maior solidão é a do ser que não ama.
A maior solidão é a do ser
que se ausenta, que se defende,
que se fecha, que se recusa a
participar da vida humana.
A maior solidão é a do homem encerrado
em si mesmo, um absoluto de si mesmo,
e que não dá a quem pede
o que ele pode dar de amor,
de amizade, de socorro.
O maior solitário é o que tem medo de amar,
o que tem medo de ferir e de ferir-se.
Da Solidão - Vinícius de Moraes
Mas há a vida
Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida,
há o amor.
Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.
Clarice Linspector
In: A Paixão segundo G.H, Editora Saraiva, São Paulo-SP.
Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro.
Mas sempre alto.
Sempre longe.
Cecília Meireles
In: MEIRELES, Cecília. Cânticos. Editora Moderna. 12ª Edição.
Um homem estava anoitecido.
Se sentia por dentro um trapo social.
Igual se, por fora, usasse um casaco rasgado e sujo.
Tentou sair da angústia.
Isto ser:
Ele queria jogar o casaco rasgado e sujo no lixo.
Ele queria amanhecer.
Manoel de Barros
In: Poemas Rupestres, Record.
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