Quero um dia para chorar.
Mas a vida vai tão depressa!
- e é preciso deixar contida
a tristeza, para que a vida,
que acaba quando mal começa,
tenha tempo, de se acabar.
Não quero amor, não quero amar…
Não quero nenhuma promessa
nem mesmo para ser cumprida.
Não quero a esperança partida,
nem nada de quanto regressa.
Quero um dia para chorar.
Quero um dia para chorar.
Dia de desprender-me dessa
aventura mal entendida.
sobre os espelhos sem saída
em que jaz minha face impressa.
Chorar sem protesto. Chorar.
Cecília Meireles
Livro: Mar Absoluto/ Retrato Natural
Ed.Nova Fronteira, 1983, p.269
imagem: pexels.com
O Tempo
A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado...
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas...
Seguraria o amor que está à minha frente e diria que eu o amo...
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.
Mario Quintana
Não é ficção nem simbologia.
Carinho
Substantivo masculino singular
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Emprega-se a palavra afagar para dizer de um carinho,
de um tipo de toque que lembra veludo, pelúcia,
geralmente feito apenas com as mãos de um
sobre a pele de outro, no rosto, usualmente.
Embora eu tenha afagado ao longo da vida,
só usei essa palavra em um texto, uma vez,
em janeiro de dois mil e dezenove,
quando precisei me declarar a um amor distante no mapa
e não havia modo de tocar-lhe o rosto carinhosamente.
A palavra afagar fez as vezes do meu toque,
sendo ele uma pessoa sensível ao verso.
Ana Elisa Ribeiro
in Dicionário de Imprecisões
Impressões de Minas, Belo Horizonte, 2019
Poetizar a vida
Eu quero é poetizar a vida,
Torná-la cheia de cores
Mesmo que dentro de mim exista um sertão
Quero poetizar a vida,
Descobrir e beber
das minhas próprias fontes.
Eu quero é poetizar a vida,
Amar a minha pobreza
Tornar minha esperança ativa
Quero poetizar esperançando,
Quero que meu ser finito anuncie um prelúdio de uma poesia litúrgica transcendental.
Eu quero é poetizar a minha existência,
Dar sentido,
encontrar razões.
Quem sou eu?
Quero descobrir poetizando.
Igor Cristiano Oliveira Nascimento
imagem: pexels.com
O Espelho''
[Mia Couto]
Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.
Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.
A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.
Mia Couto
In: "Idades Cidades Divindades", Lisboa, Caminho, 2007.
O CORPO
Nenhum dos dois
nunca soube explicar
— mesmo dez anos depois,
não sabem.
Tampouco tiveram
coragem de olhar
para baixo e ver
o corpo
estatelado
em meio
aos estilhaços.
Ele se mudou, ela ficou
no apartamento-trampolim
conservando por algum tempo
janelas e olhos fechados.
Nas raras vezes
em que se encontram,
quase sempre por acaso,
evitam palavras
ou mesmo olhares
que possam trazer
a dor à tona.
De vez em quando
ainda se lembram,
mas cada vez com menos
nitidez,
daquela tarde
de chuva
em que viram, perplexos,
saltando da janela
para o abismo:
a taça de vinho tinto,
onde boiava,
já morto,
o amor.
Sônia Barros
in Tempo de Dentro [Prêmio Paraná 2017]
Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba, 2018
Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
-que me alimenta a tristeza.
Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
-que perturba quem me ama.
Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
-pensando que eu sou ele.
Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
-e alguém calado que grita.
Affonso Romano de Sant"Anna
CERTIDÃO DE ÓBITO
Os ossos de nossos antepassados
colhem as nossas perenes lágrimas
pelos mortos de hoje.
Os olhos de nossos antepassados,
negras estrelas tingidas de sangue,
elevam-se das profundezas do tempo
cuidando de nossa dolorida memória.
A terra está coberta de valas
e a qualquer descuido da vida
a morte é certa.
A bala não erra o alvo, no escuro
um corpo negro bambeia e dança.
A certidão de óbito, os antigos sabem,
veio lavrada desde os negreiros.
Conceição Evaristo
O corpo não diáfano
o inverno assombra a pele descamada
na ausência do corpo diáfano concreto,
na imensidão do espaço da tua lágrima,
presa à garganta carregada de amargo,
no mundo sem saída deveras circundante.
o inverno clama o ponto fraco do teu ego
bate em tua face e reata o nó górdio
do teu ser imaterial a esconder-se do sol,
na timidez da tua luta inglória e pálida,
sarcástica a inebriar-te a alma copiada.
o inverno reclama teu corpo imensidão
carregado de fúria na chuva dissolvida
e cheio de franqueza outrora desgastada,
inerte na angústia corrompida pelo orgulho
e prende em quarto escuro a luz apagada.
o contrário ao inverno requer exatidão
computada em tuas vestes agora pesadas
e arrasta o ser intenso no calor impensado
da palavra anulada na frieza da solidez
do teu solo grosseiro de feitura inacabada.
o contrário ao inverno é tremor abrupto
a abalar teu chão cinzento de brutas pedras
acumuladas no impacto do amadurecer
do teu discernimento tardio e inigualável
e que nunca chega a plenamente morrer.
Rosa Acassia Luizari
Nasceu em São Paulo. Reside na cidade de Rio Claro. É membro da Academia de Letras, Ciências e Artes do Brasil (ACILBRAS) ocupando a cadeira 525 e tem como patrono o maestro e comendador Armando Caraaura. É colaboradora das revistas Caderno Literário Pragmatha, Avessa, Literalivre, Evidenciarte, Escritores Brasileiros Contemporâneos, Pixé, Ruído Manifesto, Literatura e Fechadura, Ecos da Palavra, Revista de Poesia e Brasil Nikkei Bungaku. Participa de coletâneas e antologias de poemas, contos e crônicas. Finalista do 28º Concurso Nacional de Poesia Augusto dos Anjos. Membro atuante de grupos de estudos em literatura brasileira e membro do movimento Mulherio das Letras Portugal.

Não deixes que termine
sem teres crescido um pouco.
Sem teres sido feliz,
sem teres alimentado teus sonhos.
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém te negue
o direito de expressar-te,
que é quase um dever.
Não abandones tua ânsia
de fazer de tua vida algo extraordinário.
Não deixes de crer
que as palavras e as poesias sim
podem mudar o mundo.
Porque passe o que passar,
nossa essência continuará intacta.
Somos seres humanos cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis.
Nos derruba, nos lastima, nos ensina,
nos converte em protagonistas
de nossa própria história.
Ainda que o vento sopre contra,
a poderosa obra continua,
tu podes trocar uma estrofe.
Não deixes nunca de sonhar,
porque só nos sonhos
pode ser livre o homem.
Não caias no pior dos erros: o silêncio.
A maioria vive num silêncio espantoso.
Não te resignes, e nem fujas.
Valorize a beleza das coisas simples,
se pode fazer poesia bela,
sobre as pequenas coisas.
Não atraiçoes tuas crenças.
Todos necessitamos de aceitação,
mas não podemos remar contra nós mesmos.
Isso transforma a vida em um inferno.
Desfruta o pânico que provoca
ter a vida toda a diante.
Procures vivê-la intensamente
sem mediocridades.
Pensa que em ti está o futuro,
e encara a tarefa com orgulho e sem medo.
Aprendes com quem pode ensinar-te
as experiências daqueles que nos precederam.
Não permitas que a vida
se passe sem teres vivido…
Walt Whitman
INSÔNIA
Tem um poema de tez escura
que não me deixa dormir.
Não,
não tenho medo.
Só as estrelas me espocam dos sonhos.
E se são palavras de negrume
abro a janela e deixo a lua entrar.
Iara Maria Carvalho
in Milagreira
Casarão de Poesia, Currais Novos-RN, 2011
Canção Menina
Vem! Amanhã começa o mundo...
A primeira luz. O primeiro alento.
O primeiro rosto. O que os outros
Vão dizer? As mil palavras de sempre
Também talvez algumas novas
Mas as palavras, meu amor, as palavras
Ainda nem se formaram: só amanhã
Começa o mundo. A primeira pele.
A primeira lua. O primeiro susto.
O homem que disse, uma vez, sabia:
Nascer é mesmo muito comprido.
Nascer, meu amor, não termina nunca.
(Fonte: Mariana Ianelli. Canções Meninas. Porto Alegre: Ardotempo, 2019)
DA ROTINA
Varrer o dia de ontem
que ainda resta pela sala,
o dia que persiste,
quase invisível
pelo chão,
nos objetos
sobre os móveis da sala.
Varrer amanhã
o pó de hoje.
Varrer,
varrer hoje.
(E domingo quebrar nos dentes
o copo
e sua água de vidro.
Segunda, não esquecer:
varrer todos os vestígios.)
Micheliny Verunschk
In Geografia Íntima do Deserto
Landy, São Paulo, 2003
O Pássaro Azul
Há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumo de cigarros
e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica escondido,
queres arruinar-me?
queres foder-me o
meu trabalho?
queres arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.
depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?
Charles Bukowski
BUKOWSKI, C., The Last Night of the Earth Poems, 1992.
Inspiração
Substantivo feminino
__________________
Estive em Paris e pensei que teria mil inspirações
e escreveria poemas provençais
e teria motivos para versos impressionantes
e enxergaria poesia no ar
e fumaria dez cigarros por dia,
mesmo não sendo fumante,
nem poeta.
Nada aconteceu
que me tirasse deste silêncio.
Nem Paris.
Ana Elisa Ribeiro
in Dicionário de Imprecisões
Impressões de Minas, Belo Horizonte, 2019
O AMOR
o amor é uma pinguela sobre um precipício, quem ama deve verificar todos os dias as tábuas, os parafusos, as porcas, as cordas, proclamar à exaustão alto e bom som: “eu te amo”, “eu te amo”. trazer flores do vendedor do semáforo. programar viagens para Istambul, São Petersburgo. achar água no deserto. inventar miragens. lapidar o diamante bruto do senso comum. deixar-se iludir pelo boca a boca. o amor é um produto falso contrabandeado do país vizinho?
Ruy Proença
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