A FOME
dera para lamentar-se de fome
não de um prato de comida
não de um copo de água
era fome que o roía que bramava
dentro noite e dia, se
alguém perguntasse que fome
era aquela ele não saberia
dizer não saberia
dizer
Vera Lucia de Oliveira
"Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta. Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas de miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra, os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdado daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer".
Adélia Prado
[in Filandras, São Paulo, Record, 2001, p. 121]
Introdução à arte das montanhas
Um animal passeia nas montanhas.
Arranca a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima o animal é um imã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer.
Fonte: Leonardo Fróes. Trilha. Poemas 1968-2015. Rio de Janeiro: Azougue, 2015, p. 25.
(Certas ruas
certas ruas têm um bosque
- armadilhas - que se chamam
que se chamam exclusão...)
Fernando Campanella
Tenho fome de boas-novas,
cartas com letra floreada,
postais, quem sabe,
de faróis
no Mar Vermelho.
Mas raro batem
à minha porta.
Por isso invento
meus milagres
(e então os lanço
dos telhados
em aviões de papel).
Ana Santos
In: Móbile (Ed. Patuá)
Pés sujos de Tereza
(Caravaggio)
Aprende o rosto que se mostra.
Mas Tereza tem os pés descalços e sujos.
Depois do humano estampado na tela,
conspiram contra ele os poderosos.
Atribuem à verticalidade das cenas projetadas,
afronta à nobreza encomendada.
Tereza responde aos inescrupulosos:
- a beleza mora nos pés sujos.
Respiro aliviada, embriagada
pelas migalhas de arte
nos pés sujos de Tereza
Alzira Maria Ribeiro Araújo
In: Pés sujos de Tereza (- primavera de trapos -) - Ed. Mosaico 2018
Deixa o dia de ontem
Deixa
o dia de ontem
com Deus
E vive
em paz
a espera
A cada dia
basta
a sua pena
E
o amanhã
é
como o arco-íris
Um anjo
está contigo
quando desanimas
Um anjo
está contigo
quando te alegras
Sempre
um anjo
está contigo
E
o arco-íris
brilha
como a água
que corre
Fonte: Adília Lopes. Dobra. Poesia reunida. Lisboa: Assirio & Alvim, 2009.
Lá na Vila das Riquezas
As casas da vila,
sem reboco e sem beleza,
abrigam sonhos.
Os seus homens
e suas mulheres
com seus filhos
ao redor de si,
e seus cães e gatos
mansos,
dormindo sempre ao sol,
passam os dias e noites,
atravessam as misérias e
se ocupam só em viver.
E nem sempre é céu azul,
entre uma e outra tristeza.
As casas da vila,
lá onde as portas se abriram,
são mais ricas que as riquezas
porque elas ainda abrigam os sonhos,
e sonham com os cães e gatos ao sol.
E nem sempre é céu azul,
entre uma e outra tristeza.
André Merez
MACIEIRA
Amanheci arbórea,
raízes longas,
um ninho
novo
em cada braço.
(Janela aberta.
Um farfalhar de ramos.)
Eu agito
meu cabelo:
o quarto se enche de maçãs.
Ana Santos
In: Móbile - Ed. Patuá
O Jardim e a casa
Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.
Sophia de Mello Breyner Andresen.
In: Obra poética. Porto: Assírio & Alvim, 2015, p. 92)
INFÂNCIA
Faz de conta
Que tudo se passou
No campo do previsto.
Vestido de organdi,
Meias de seda,
Sapatos de verniz.
Faz de conta
Que eu sempre
Fui feliz.
Eu sempre fui feliz.
(Mas não sabia).
Myriam Fraga
[...]Passam os séculos, os homens, as repúblicas, as paixões; a história faz-se dia por dia, folha a folha; as obras humanas alteram-se, corrompem-se, modificam-se, transformam-se. Toda a superfície civilizada da terra é um vasto renascer de coisas e idéias.”
Machado de Assis
Excerto de 'O Alienista"
Em todos os jardins hei-de-florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.
Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de-abrir.
Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.
Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.
Sophia de Mello Breyner Andresen.
Obra poética. Porto: Assírio & Alvim, 2015, p. 104.
Todos os dias abrimos os olhos, mas não o suficiente
Vemos descontentes a imperfeição e a pedra
Olhamos com desgosto – em nós e nos outros –
o avesso e a costura
e não nos damos conta
que poder observar com amor o avesso
se torna preciosa aprendizagem de caminho
(e que esse caminho nos leva até ao presépio)
Pois aquilo, precisamente aquilo
que hoje identificares como pedra
Deus vem ensinar-te
a transformar em estrela
Pe. José Tolentino Mendonça
Tudo o que por Ti vi florescer de mim
Senhor da Vida
Toda essa alegria que espalhei e que senti
Trago hoje aqui
Todos estes frutos que aqui juntos vês
Senhor da Vida
Eu em cada um deles e em mim todos os Teus fiéis
Ponho a Teus pés
Consentiste que minha pessoa
Fosse da Esperança um Teu sinal
Uma prova de que a vida é boa
E de que a beleza vence o mal
Tudo o que se foi de mim mas não perdi
Senhor da Vida
Os que já chorei e os que ainda estão por vir
Oferto a Ti
Caetano Veloso
Ouça a canção Ofertório, na voz de Caetano Veloso:
Veja mais:
Preciso sonhar um sonho novo,
Preciso saber perder um velho sonho,
Preciso gerar um novo sonho
E crer nas sempre novas possibilidades
Que o que há de vir me oferece.
Preciso encontrar o que mereço em outro endereço,
E que seja logo, que seja breve.
Preciso daquela esperança de um dia após o outro
Que a travessia do tempo me concede.
Ó futuro, não me deserde!
Elisa Lucinda
Estava indo, há muito, para o deserto
e não sabia.
Antes, ao revés, julgava caminhar
das pedras para o bosque
lugar de onde o mel e o vinho jorrariam.
Bastava fazer a travessia.
Em alguma parte passei por algum oásis
mas era para este destino de pedra
silêncio e pasmo
que me dirigia.
Os beduínos há muito compreenderam
o que eu não compreendia:
apenas nos movemos entre pedras, cabras e camelos
olhando ternamente o fim do dia.
A tenda é provisória.
Eterno
só o áspero horizonte de pedra
e a poesia.
Affonso Romano de Sant´Anna
Distante, o olhar procura
as linhas entrelaçadas
no tempo dos tempos,
no esquecimento dos dias,
na raiz de um som primordial,
no rasto de vidas que se cruzaram.
Com a boca cheia de silêncios
clamo o vazio absoluto em minha voz
tão inacabada, tão sequiosa,
tão presa à garganta.
Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015 (Portugal)
ÀS VEZES FALTAM-NOS PALAVRAS
Às vezes faltam-nos palavras
e às vezes sobram-nos.
Às vezes falta-nos o tempo de dizê-las
e às vezes passa o tempo de calá-las.
Às vezes precisamos do que já temos
e às vezes desejamos o alheio como se fosse nosso.
Às vezes mentimos injustamente
e às vezes fazemos da lei uma verdade fedorenta.
Às vezes temos boca para selar um segredo
e às vezes faltam-nos ouvidos para aceitar a evidência.
Às vezes um dia tem 24 horas
e às vezes uma hora esconde 24 dias.
Às vezes digo-te que te quero com a boca soterrada
e às vezes a terra ignora os advérbios que nos afastam.
Às vezes digo que sim porque não sou eu
e às vezes não sou ninguém para negá-lo.
Às vezes a chuva resvala pelos meus versos até dar com os teus olhos
e às vezes as lágrimas ancoradas na memória
alagam as terras ermas do que te escrevo.
Às vezes chamo-te com o meu nome
e às vezes respondes a partir do silêncio que me reclama.
Às vezes és tu mesma
e às vezes não sei quem sou se tu me faltas.
Baldo Ramos
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