Lá na Vila das Riquezas
As casas da vila,
sem reboco e sem beleza,
abrigam sonhos.
Os seus homens
e suas mulheres
com seus filhos
ao redor de si,
e seus cães e gatos
mansos,
dormindo sempre ao sol,
passam os dias e noites,
atravessam as misérias e
se ocupam só em viver.
E nem sempre é céu azul,
entre uma e outra tristeza.
As casas da vila,
lá onde as portas se abriram,
são mais ricas que as riquezas
porque elas ainda abrigam os sonhos,
e sonham com os cães e gatos ao sol.
E nem sempre é céu azul,
entre uma e outra tristeza.
André Merez
MACIEIRA
Amanheci arbórea,
raízes longas,
um ninho
novo
em cada braço.
(Janela aberta.
Um farfalhar de ramos.)
Eu agito
meu cabelo:
o quarto se enche de maçãs.
Ana Santos
In: Móbile - Ed. Patuá
O Jardim e a casa
Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.
Sophia de Mello Breyner Andresen.
In: Obra poética. Porto: Assírio & Alvim, 2015, p. 92)
INFÂNCIA
Faz de conta
Que tudo se passou
No campo do previsto.
Vestido de organdi,
Meias de seda,
Sapatos de verniz.
Faz de conta
Que eu sempre
Fui feliz.
Eu sempre fui feliz.
(Mas não sabia).
Myriam Fraga
[...]Passam os séculos, os homens, as repúblicas, as paixões; a história faz-se dia por dia, folha a folha; as obras humanas alteram-se, corrompem-se, modificam-se, transformam-se. Toda a superfície civilizada da terra é um vasto renascer de coisas e idéias.”
Machado de Assis
Excerto de 'O Alienista"
Em todos os jardins hei-de-florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.
Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de-abrir.
Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.
Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.
Sophia de Mello Breyner Andresen.
Obra poética. Porto: Assírio & Alvim, 2015, p. 104.
Todos os dias abrimos os olhos, mas não o suficiente
Vemos descontentes a imperfeição e a pedra
Olhamos com desgosto – em nós e nos outros –
o avesso e a costura
e não nos damos conta
que poder observar com amor o avesso
se torna preciosa aprendizagem de caminho
(e que esse caminho nos leva até ao presépio)
Pois aquilo, precisamente aquilo
que hoje identificares como pedra
Deus vem ensinar-te
a transformar em estrela
Pe. José Tolentino Mendonça
Tudo o que por Ti vi florescer de mim
Senhor da Vida
Toda essa alegria que espalhei e que senti
Trago hoje aqui
Todos estes frutos que aqui juntos vês
Senhor da Vida
Eu em cada um deles e em mim todos os Teus fiéis
Ponho a Teus pés
Consentiste que minha pessoa
Fosse da Esperança um Teu sinal
Uma prova de que a vida é boa
E de que a beleza vence o mal
Tudo o que se foi de mim mas não perdi
Senhor da Vida
Os que já chorei e os que ainda estão por vir
Oferto a Ti
Caetano Veloso
Ouça a canção Ofertório, na voz de Caetano Veloso:
Veja mais:
Preciso sonhar um sonho novo,
Preciso saber perder um velho sonho,
Preciso gerar um novo sonho
E crer nas sempre novas possibilidades
Que o que há de vir me oferece.
Preciso encontrar o que mereço em outro endereço,
E que seja logo, que seja breve.
Preciso daquela esperança de um dia após o outro
Que a travessia do tempo me concede.
Ó futuro, não me deserde!
Elisa Lucinda
Estava indo, há muito, para o deserto
e não sabia.
Antes, ao revés, julgava caminhar
das pedras para o bosque
lugar de onde o mel e o vinho jorrariam.
Bastava fazer a travessia.
Em alguma parte passei por algum oásis
mas era para este destino de pedra
silêncio e pasmo
que me dirigia.
Os beduínos há muito compreenderam
o que eu não compreendia:
apenas nos movemos entre pedras, cabras e camelos
olhando ternamente o fim do dia.
A tenda é provisória.
Eterno
só o áspero horizonte de pedra
e a poesia.
Affonso Romano de Sant´Anna
Distante, o olhar procura
as linhas entrelaçadas
no tempo dos tempos,
no esquecimento dos dias,
na raiz de um som primordial,
no rasto de vidas que se cruzaram.
Com a boca cheia de silêncios
clamo o vazio absoluto em minha voz
tão inacabada, tão sequiosa,
tão presa à garganta.
Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015 (Portugal)
ÀS VEZES FALTAM-NOS PALAVRAS
Às vezes faltam-nos palavras
e às vezes sobram-nos.
Às vezes falta-nos o tempo de dizê-las
e às vezes passa o tempo de calá-las.
Às vezes precisamos do que já temos
e às vezes desejamos o alheio como se fosse nosso.
Às vezes mentimos injustamente
e às vezes fazemos da lei uma verdade fedorenta.
Às vezes temos boca para selar um segredo
e às vezes faltam-nos ouvidos para aceitar a evidência.
Às vezes um dia tem 24 horas
e às vezes uma hora esconde 24 dias.
Às vezes digo-te que te quero com a boca soterrada
e às vezes a terra ignora os advérbios que nos afastam.
Às vezes digo que sim porque não sou eu
e às vezes não sou ninguém para negá-lo.
Às vezes a chuva resvala pelos meus versos até dar com os teus olhos
e às vezes as lágrimas ancoradas na memória
alagam as terras ermas do que te escrevo.
Às vezes chamo-te com o meu nome
e às vezes respondes a partir do silêncio que me reclama.
Às vezes és tu mesma
e às vezes não sei quem sou se tu me faltas.
Baldo Ramos
Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um só que fosse, e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!
Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.
E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.
Miguel Torga
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Carlos Drummond de Andrade
Uma meta a longo prazo
nos exige esforço
duro e prolongado.
Mas um cálculo
nos dá a confiança de que vale a pena.
talvez a cruz
seja somente um investimento.
Por amor a outra pessoa,
sacrificamos com gosto
tempo, força e dinheiro.
A cruz se chama
solidariedade com o outro
que sinto de algum modo
parte de mim mesmo.
Um golpe repentino,
pode fulminar-nos em um instante,
e nossa existência
fica ferida sem remédio.
Perde-se a saúde,
um ser querido,
ou a estima pública.
Arranca-se um galho verde,
uma parte viva do eu.
Quando esta mutilação
encontra seu repouso,
a cruz se chama
aceitação.
Existe a cruz livre
a que escolho
aquela da qual não fujo.
Mas uma vez nela pregado
já não posso descer
quando quero.
Entregam-se
os projetos aos cravos
a fantasia aos espinhos
o nome aos rumores
os lábios ao vinagre
e os bens à partilha.
Aqui a cruz se chama
fidelidade ao amor no amor,
que é canto e fortaleza
ressuscitando pela ferida.
Benjamin González Buelta sj
Bénédicte Houart
Eu busco o rastro de alguém
Que o mar reflete e contém.
Calma que eterniza as suas horas,
Ou tumulto que vibra
Nas marés desesperadas e sonoras.
Eu busco o rastro de alguém
Que ao meu encontro vem
No sonho de cada linha.
Alguém
Que no silêncio dos pinhais caminha,
Rio correndo, chama
Em tudo acesa.
Alguém que me devasta e inflama
Me destrói e me inunda de certeza.
Alguém que me devora,
Ou infinitamente longe me implora
Que venha.
Alguém que se desenha
No perfil dos montes
E sobe do fundo da terra com as fontes.
Sophia de Mello B. Andressen
Deus que vens de Deus,
horizonte da nossa linguagem e nosso desejo
Deus que anunciamos
na espessura do que em nós é riso
e choro, ao mesmo tempo infiguráveis
que descubramos no corpo dos outros
os traços do bem que procuramos e perdemos
que a nossa vida te reconheça
pela maneira como por ti se vê reconhecida
na teia do que passa e permanece,
tu que és aquele que há-de-vir;
e Deus conosco.
José Augusto Mourão
In: O nome e a forma. Poesia reunida. Ed. Pedra Angular
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