Deus que vens de Deus,
horizonte da nossa linguagem e nosso desejo
Deus que anunciamos
na espessura do que em nós é riso
e choro, ao mesmo tempo infiguráveis
que descubramos no corpo dos outros
os traços do bem que procuramos e perdemos
que a nossa vida te reconheça
pela maneira como por ti se vê reconhecida
na teia do que passa e permanece,
tu que és aquele que há-de-vir;
e Deus conosco.
José Augusto Mourão
In: O nome e a forma. Poesia reunida. Ed. Pedra Angular
Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta o longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.
O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.
Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho — o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.
Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo.
Ferreira Gullar
Talvez o tempo, por si só, explique a cada um
de nós o que é necessário para a felicidade.
Talvez a felicidade seja sempre outra coisa
que em cada idade se revela para que nos
esforcemos de novo, continuamente.
Há um amor guardado para cada fim. No limite,
já não podemos adiá-lo. Temos de amar sem
olhar a quem até que, olhando, o perfeito
desconhecido nos seja familiar. Até que se
invente uma família, tão pura e fundamental
quanto outra qualquer. A felicidade, afinal,
é possível, embora se esconda atrás de
um mundo de tristezas. Mas nenhuma tristeza
nos deve vencer. O destino de cada um é só
este: acreditar, mesmo quando ninguém mais
acredite.
Valter Hugo Mãe
em “O Filho de Mil Homens”
O amor é o início. O amor é o meio. O amor é o fim. O amor faz-te pensar, faz-te sofrer, faz-te agarrar o tempo, faz-te esquecer o tempo. O amor obriga-te a escolher, a separar, a rejeitar. O amor castiga-te. O amor compensa-te. O amor é um prêmio e um castigo. O amor fere-te, o amor salva-te, o amor é um farol e um naufrágio. O amor é alegria. O amor é tristeza. É ciúme, orgasmo, êxtase. O nós, o outro, a ciência da vida.
O amor é um pássaro. Uma armadilha. Uma fraqueza e uma força. O amor é uma inquietação, uma esperança, uma certeza, uma dúvida. O amor dá-te asas, o amor derruba-te, o amor assusta-te, o amor promete-te, o amor vinga-te, o amor faz-te feliz. O amor é um caos, o amor é uma ordem. O amor é um mágico. E um palhaço. E uma criança. O amor é um prisioneiro. E um guarda. Uma sentença. O amor é um guerrilheiro. O amor comanda-te. O amor ordena-te. O amor rouba-te. O amor mata-te. O amor lembra-te. O amor esquece-te. O amor respira-te. O amor sufoca-te. O amor é um sucesso. E um fracasso. Uma obsessão. Uma doença. O rasto de um cometa. Um buraco negro. Uma estrela. Um dia azul. Um dia de paz. O amor é um pobre. Um pedinte. O amor é um rico. Um hipócrita, um santo. Um herói e um débil. O amor é um nome. É um corpo. Uma luz. Uma cruz. Uma dor. Uma cor. É a pele de um sorriso.
Joaquim Pessoa ‘Ano Comum’
(…)
Escrevo para celebrar o Teu Nome, ao desabrigo dos nomes. (…) Creio, sim, que o nome que melhor Te convém continua a ser este: Amor. Ou este outro: Misericórdia. Nunca Te vi, Deus abscondítus, apenas Te pressinto no olhar aflito ou alegre dos passantes. Apenas Te pressinto na palavra, que é um vivo. Ou na pujança que move o mundo. Sim, o olhar transporta. O sentido é transpositivo. A palavra é legião: sei que não falo no deserto, alucinado e estéril. O magnificat é a forma mais jubilosa de ver o mundo como um milagre, de assistir à primavera, aos nascimentos e até às despedidas. Creio que Tu és o Verbo que se fez carne em Jesus e que habitou entre nós (Jo 1, 14). Porque não sei falar (escrever -Te) só queria mostrar as feridas das palavras varridas pela areia dos dias com que Te escrevo. Espero que, chegando à Páscoa, chegarei à palavra plena. Vou deixar de querer ver-Te: o Teu olhar me basta. Para os amantes, escrever foi sempre dizer: "Vem"! Que outra coisa poderia eu querer, escrevendo-Te?
[Fragmento do último escrito de Frei José Augusto Mourão, OP, o poeta litúrgico da “alegria triste”]
Ilustração: Sebastião Salgado
Viver é
Oferecer-se
Viver é ter aberto o coração
dia e noite e oferecê-lo
aos mendigos do amor,
da beleza e da esperança,
sem esperar nada em troca.
Como se oferece o vento
às folhas que se desprendem
das árvores,
balançando-as
até deitá-las no chão.
Como se oferece a árvore
ao pouso brando das garças
e ao espelho azul do lago.
Como se oferece o lago
aos olhos enternecidos
do casal de namorados.
Como se oferece o néctar
das flores ao beija-flor.
Como se oferece a flor
do campo aos olhos pasmados,
ao sorriso, às mãos minúsculas
e trêmulas dos in-fantes.
Como se oferece a terra
ao abraço silencioso
e fecundante da noite.
Basta abrir o coração
para exorcizar a morte.
Pe. Álvaro Barreiro sj
In: Vislumbres
Não sei quantas vezes chorei
a boneca de papelão
que se desfez na água
quando lhe dei um banho.
Eu não sabia que podem ser tão breves
as coisas que abrigamos no próprio coração.
Graça Pires
Os sentimentos são paisagens áridas, imprecisas, tremeluzentes, desconfortáveis.
Dito isto, poderia fechar a porta, correr as grades, trancar o cadeado, dar a loja por encerrada, sem previsões de reabertura.
Fechados lá dentro, os sentimentos, bem, seria como se não existissem
Talvez morressem, se desidratassem, se pulverizassem, talvez deles restasse apenas uma mancha de gordura no chão.
Em qualquer caso, emudeceriam. Ou não seriam escutados, o que vem a dar ao mesmo.
Nunca contemplei esta hipótese por mais de cinco minutos – certamente, nem tanto.
Não consigo. Não sei. Julgo que, no fundo, é o que menos quero. E que essa é a raiz da minha resistência. Crónica e aguda.
Os sentimentos são onde sei viver, onde me sinto menos morto.
Os sentimentos sou eu.
Os melhores.
Os piores.
O beijo.
A bala.
(Ou vice-versa).
Miguel Martins
Poeta português
Por tudo que fomos.
Por tudo o que não conseguimos ser.
Por tudo que se perdeu.
Por termos nos perdido.
Pelo que queríamos que fosse e não foi.
Pela renúncia.
Por valores não dados.
Por erros cometidos.
Acertos não comemorados.
Palavras dissipadas.
Versos brancos.
Chorei pela guerra cotidiana.
Pelas tentativas de sobrevivência.
Pelos apelos de paz não atendidos.
Pelo amor derramado.
Pelo amor ofendido e aprisionado.
Pelo amor perdido.
Pelo respeito empoeirado em cima da estante.
Pelo carinho esquecido junto das cartas envelhecidas no guarda- roupa.
Pelos sonhos desafinados, estremecidos e adiados.
Pela culpa. Toda a culpa. Minha. Sua. Nossa culpa.
Por tudo que foi e voou.
E não volta mais, pois que hoje é já outro dia.
Chorei.
Apronto agora os meus pés na estrada.
Ponho-me a caminhar sob sol e vento.
Vou ali ser feliz e já volto.
Caio Fernando Abreu
Venha comigo
Para o campo de girassóis.
Suas faces são discos brunidos,
suas colunas secas
rangem como mastros de navio,
suas folhas verdes,
tão pesadas e tantas,
preenchem o dia com
os açúcares pegajosos do sol.
Venha comigo
visitar os girassóis,
eles são tímidos
mas querem ser amigos;
eles têm histórias maravilhosas
de quando eles eram jovens –
o tempo importante
os corvos perambulantes.
Não tenha medo
de fazer perguntas a eles!
Suas faces luminosas,
que seguem o sol,
ouvirão, e todas
aquelas fileiras de sementes -
cada uma uma nova vida!
esperança de uma amizade mais íntima;
cada um deles, embora em
uma multidão de muitos,
como um universo separado,
é solitário, o trabalho longo
de transformar suas vidas
em uma celebração
não é fácil. Venha
e vamos falar com aqueles rostos modestos,
as roupas simples de suas folhas,
as raízes ásperas na terra
queimando tão eretamente.
Mary Oliver
Uma dor
Tenho uma dor de concha extraviada.
Uma dor de pedaços que não voltam.
Manoel de Barros
"Benditos os que conseguem se deixar em paz.
Os que não se cobram por não terem cumprido
suas resoluções, que não se culpam por terem
falhado, não se torturam por terem sido
contraditórios, não se punem por não terem
sido perfeitos.
Apenas fazem o melhor que podem.
Se é para ser mestre em alguma coisa, então
que sejamos mestres em nos libertar da
patrulha do pensamento.
De querer se adequar à sociedade e ao
mesmo tempo ser livre.''
Martha Medeiros
Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,
a que não se recusa a esse final convite,
em máquinas de adeus, sem tentação de volta.
Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza:
Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:
já de horizontes libertada, mas sozinha.
Se a Beleza sonhada é maior que a vivente,
dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho ?
Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.
Pelos mundos do vento em meus cílios guardadas
vão as medidas que separam os abraços.
Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:
- Agora és livre, se ainda recordas.
Cecília Meireles
Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.
Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?
Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?
Ninguém responde, a vida é pétrea.
Carlos Drummond de Andrade
Caminho sem pés e sem sonhos
só com a respiração e a cadência
da muda passagem dos sopros
caminho como um remo que se afunda.
os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes
para que a elevação e a profundidade se conjuguem.
avanço sem jugo e ando longe
de caminhar sobre as águas do céu.
Daniel Faria
de Explicação das Árvores e de Outros Animais (1988)
Tudo posso entregar-TE
- paisagens e criaturas,
a alegria de amar e ser amada,
a obediência dos meus passos,
a agilidade das mãos que tecem em Teu louvor,
a glória de caminhar todas as manhãs
em busca do pão
Deixa-me Tua Palavra
- medida de todas as coisas.
Carminha gouthier
DA PÁSCOA
Porque para ressuscitar um Deus
não se prescrevem datas
(o divino brota
quando se rompem couraças)
e porque os símbolos, os mitos
são do humano a ceia mais farta,
peço-vos licença, Senhor de minha estória,
para à vossa mesa sentar-me,
com minha nudez
e toda fome de minha alma
inglória.
Fernando Campanella
O MAR DOS MEUS OLHOS
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os Homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes
e calma.
Adelina Barradas de Oliveira
As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos – digo,
As mulheres – ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.
É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas
Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos – no pescoço das mães – ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos
As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.
Daniel Faria
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