Que teus olhos, Menino, ensinem largueza
e altura aos meus olhos
Que teus olhos curem os meus
da fadiga e dos seus filtros
Que teus olhos desimpeçam a visão
fragmentária, parcial e indecisa
Que teus olhos devolvam aos meus olhos
o vento azul da viagem e a sua alegria
Devolvam o real como anel aberto
em vez dos círculos obsidiantes e fechados
Devolvam o aberto como imagem
e programa
Que teus olhos, Menino, ensinem aos meus
o seu natal
José Tolentino Mendonça
Eu caminhei na noite
Entre silêncio e frio
Só uma estrela secreta me guiava
Grandes perigos na noite me apareceram
Da minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira sendo ela só reflexo
De uma cidade a néon enfeitada
A minha solidão me pareceu coroa
Sinal de perfeição em minha fronte
Mas vi quando no vento me humilhava
Que a coroa que eu levava era de um ferro
Tão pesado que toda me dobrava
Do frio das montanhas eu pensei
«Minha pureza me cerca e me rodeia»
Porém meu pensamento apodreceu
E a pureza das coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu
E a fraqueza da carne e a miragem do espírito
Em monstruosa voz se transformaram
Disse às pedras do monte que falassem
Mas elas como pedras se calaram
Sozinha me vi delirante e perdida
E uma estrela serena me espantava
E eu caminhei na noite minha sombra
De desmedidos gestos me cercava
Silêncio e medo
Nos confins desolados caminhavam
Então eu vi chegar ao meu encontro
Aqueles que uma estrela iluminava
E assim eles disseram: «Vem conosco
se também vens seguindo aquela estrela»
Então eu soube que a estrela que eu seguia
Era real e não imaginada
Grandes noites redondas nos cercaram
Grandes brumas miragens nos mostraram
Grandes silêncios de ecos vagabundos
Em direções distantes nos chamaram
E a sombra dos três homens sobre a terra
Ao lado dos meus passos caminhava
E eu espantada vi que aquela estrela
Para a cidade dos homens nos guiava
E a estrela do céu parou em cima
De uma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha a cor que tem a cinza
Longe do verde do azul da natureza
Ali não vi as coisas que eu amava
Nem o brilho do sol nem o da água
Ao lado do hospital e da prisão
Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais triste e mais sozinha
E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado
Nesse lugar pensei: «Quanto deserto
atravessei para encontrar aquilo
que morava entre os homens e tão perto»
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Caminho do campo verde,
estrada depois de estrada.
Cercas de flores, palmeiras,
serra azul, água calada.
Eu ando sozinha
no meio do vale.
Mas a tarde é minha.
Meus pés vão pisando a terra
que é a imagem da minha vida:
tão vazia, mas tão bela,
tão certa, mas tão perdida!
Eu ando sozinha
por cima de pedras.
Mas a flor é minha.
Os meus passos no caminho
são como os passos da lua:
vou chegando, vais fugindo
minha alma é a sombra da tua.
Eu ando sozinha
por dentro de bosques.
Mas a fonte é minha.
De tanto olhar para longe,
não vejo o que passa perto.
Subo monte, desço monte,
meu peito é puro deserto.
Eu ando sozinha,
ao longo da noite.
Mas a estrela é minha.
Cecília Meireles
In Obra Poética
Há um sentido profundo
Na superficialidade das coisas,
Uma ordem inalterável
No caos aparente dos mundos.
Vibra um trabalho silencioso e incessante
Dentro da imobilidade das plantas:
No crescer das raízes,
No desabrochar das flores,
No sazonar das frutas.
Há um aperfeiçoamento invisível
Dentro do silêncio de nosso Eu:
Nos sentimentos que florescem,
Nas ideias que voam,
Nas mágoas que sangram.
Uma folha morta
Não cai inutilmente.
A lágrima não rola em vão.
Uma invisível mão misericordiosa
Suaviza a queda da folha,
Enxuga o pranto da face.
Helena Kolody
in: Correnteza
DEUS EM MEU QUINTAL
Alguns guardam o Domingo indo à Igreja.
Eu o guardo ficando em casa
Tendo um Sabiá como cantor
E um Pomar por Santuário.
Alguns guardam o Domingo em vestes brancas
Mas eu só uso minhas Asas
E ao invés do repicar dos sinos na Igreja
Nosso pássaro canta na palmeira.
É Deus que está pregando, pregador admirável
E o seu sermão é sempre curto.
Assim, ao invés de chegar ao Céu, só no final
Eu o encontro o tempo todo no quintal.
Emily Dickinson
(obs: a foto é do jardim do Centro Loyola de BH)
''Canção do caleidoscópio''
Quando achei que era tempo de sossego
jorraste nas minha veias
como um vento sagrado, um mar perdido.
Quando esperei que tudo tivesse sido
vivido, sofrido e chorado,
amadureceu esta fruta em meu deserto.
Quando pensei chegar no fim
de todos os corredores,
esta porta se abriu: sei que estás ali
a desenhar paisagens novas
plantar árvores e deitar rios
onde eu imaginava haver sabedoria
e um corpo apaziguado,
nada mais.
Lya Luft
In: Secreta Mirada
Não é preciso morar na esquina
nem ser jovem ou belo:
o amor melhor é sempre dentro
e perto.
Chega inesperado,
vem forte vem doce, acalma
e desatina.
Se está na minha rua ou vem de fora,
ele ignora o tempo e a idade:
o amor é sempre
agora.
É vento sutil e mar sem beira:
o amor é destino de quem está aberto,
e dói sem remissão quando negado.
O melhor amor sacia a fome inteira:
mas tem de ser aceito,
tem de ser ousado, tem de ser
navegado.
LYA LUFT
In Para não dizer adeus, 2005
O nosso presente, logo que alcança
o futuro, já o transforma em passado.
A vida é constante perder. A vida é,
pois, uma constante saudade.
Há uma saudade queixosa: a que
desejaria reter, fixar, possuir.
Há uma saudade sábia, que deixa as
coisas passarem , como se não
passassem. Livrando-as do tempo,
salvando a sua essência da eternidade.
É a única maneira, aliás, de lhes dar
permanência: imortalizá-las em amor.
O verdadeiro amor é, paradoxalmente,
uma saudade constante, sem egoísmo nenhum.
Cecília Meireles
Brota esta lágrima e cai.
Vem de mim, mas não é minha.
Percebe-se que caminha,
sem que se saiba aonde vai.
Parece angústia espremida
de meu negro coração
- pelos meus olhos fugida
e quebrada em minha mão.
Mas é rio, mais profundo,
sem nascimento e sem fim,
que, atravessando este mundo,
passou por dentro de mim.
Cecília Meireles
In Vaga Música
Conheço a residência da dor.
É um lugar afastado,
Sem vizinhos, sem conversa, quase sem lágrimas,
Com umas imensas vigílias diante do céu.
A dor não tem nome,
Não se chama, não atende.
Ela mesma é solidão:
Nada mostra, nada pede, não precisa.
Vem quando quer.
O rosto da dor está voltado sobre um espelho,
Mas não é rosto de corpo,
Nem o seu espelho é do mundo.
Conheço pessoalmente a dor.
A sua residência, longe,
Em caminhos inesperados.
Às vezes sento-me à sua porta, na sombra das suas árvores.
E ouço dizer:
“Quem visse, como vês, a dor, já não sofria”.
E olho para ela, imensamente.
Conheço há muito tempo a dor.
Conheço-a de perto.
Pessoalmente.
Cecília Meireles
“Hoje entendo a vida como um lugar para termos a maior fome que pudermos,
a maior sede de que formos capazes.
A vida é uma máquina de construir desejo.
Bem-aventurados os que têm um desejo tão grande, tão grande, tão grande que nada pode responder.
Isso faz-nos procurar outras respostas.
F. Pessoa também diz: «Triste de quem está contente», não é?
A insatisfação é uma dor. Mas essa ferida torna-se fecunda, criativa”
José Tolentino de Mendonça
Saio do sonho, da noite, do absurdo:
sou navegante que aborda o limite humano,
espuma breve.
Meus vestidos são de uma tristeza total:
da frágil superfície ao denso forro,
profundo mar.
Pergunto-me por que venho
e por que venho assim vestida:
- é dos lugares do sonho, da noite, do absurdo?
- é do limite humano a que abordo,
séria e inerme?
Entre os dias humanos
e a noite ex-humana
que mensageiro acaso somos?
A que destinatários?
em que linguagem?
que mensagem?
Ó noite, ó sonhos, ó absurdo
onde, no entanto, fluíamos, claríssimos!
Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti.
Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar, quando caí.
Cecília Meireles
Caos
Há um momento na vida
de terror definitivo,
de fracasso tremendo,
de sangrar a ferida.
Nada rende,
não há remendo,
nem consolo,
nem saída;
luta perdida.
A lágrima não significa,
o amor cruza os braços,
a saudade diz que vai,
e fica.
(Ivone Boechat)
"Tudo o que fazemos é marcado pela fragilidade da nossa condição.
Somos esta coisa humana,
provisória,
incerta,
inacabada,
imperfeita.
Mas somos também poeira enamorada.
Há em nós alguma coisa de maior.
Mesmo no erro.
No erro podemos encontrar um caminho."
José Tolentino de Mendonça
Como a árvore a que cortam um galho
e permanece(aparentemente) intacta
-suportar em silêncio certos afrontamentos.
Foi profundo o talho
embora o tronco se ostente sólido
impassível.
Uma flor brotava errante
na parte decepada.
Eu a mereci.
E isto basta
na sucessão das possíveis primaveras.
Affonso Romano de Sant'Anna,
in Vestígios
Ao morrer meu amigo
algo de mim
que já era ele
se foi.
Algo de mim
ressuscitou nele.
Algo dele
que ainda sou eu
ficou.
Algo dele
espera em mim por ressurreição.
O tempo ao passar
parece devorar
todo o amor.
Mas quanto mais afasta
no passado minha recordação,
mais se aproxima
ao encontro sem distância
do futuro.
Ainda que em mim
cada dia tenha
sua poda, sua espera e sua colheita,
para ele
já toda a história se cumpriu
eu cheguei com ele,
e ali estou.
Obrigado, Senhor.
(Benjamin Gonzalez Buelta sj)
(Homenagem do Centro Loyola ao querido Pe. Libânio, falecido dia 30.01.2014)
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
''Sophia de Mello Breyner''
(homenagem ao querido amigo e colaborador do Centro Loyola, o jesuíta e teólogo Pe. João Batista Libânio sj, falecido dia 30.01.2014)
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