“Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. Colocai-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés.
Trazei um novilho gordo e matai-o, para comermos e festejarmos” (Lc 15,22-23 )
Tornar presente o Pai como Amor e Misericórdia foi, para Jesus, o cerne de sua missão: toda a sua vida foi uma eloquente revelação da misericórdia divina para com a humanidade.
Jesus, presença visível da misericórdia, revela um Deus Pai-Mãe, cheio de ternura e de misericórdia que vai ao encontro dos perdidos, libertando-os da exclusão e do isolamento; um Deus que exulta de alegria quan-do os reencontra e que convida a todos para a festa da comunhão e do perdão.
Essa é a descrição de Deus cuja bondade, generosidade, amor, alegria e compaixão não tem limites.
Um Deus novo, “desconcertante”, “escandaloso”, totalmente incompatível com o “deus legalista” dos escribas e fariseus. A Misericórdia de Deus por nós faz-lhe perder sua soberania e compostura e sair correndo ao nosso encontro, para abraçar-nos na nossa humanidade ferida e profanada, para devolver-nos a filiação e a dignidade.
“Onde há misericórdia, aí está presente o Espírito de Deus. Onde há rigidez, aí estão seus ministros” (Papa Francisco).
O que escandalizava os destinatários das parábolas da Misericórdia (Lc 15) contadas por Jesus, que se consideravam justos e cumpridores exemplares da Lei, não era propriamente a conduta dos pecadores, mas a conduta do próprio Jesus com relação a eles; Ele, rosto visível da misericórdia, permite que os pecadores se aproximem dele, recebe-os de coração aberto, toma a iniciativa de ir ao encontro deles e senta-se com eles à mesma mesa.
O comportamento de Jesus é uma “parábola viva” do comportamento de Deus com os pecadores. Na parábola de hoje, o pai aparece sempre como alguém que contraria as expectativas dos ouvintes, que vai contra a visão de Deus daquele que está habituado à lei do “olho por olho, dente por dente”. Os escribas e fariseus não podiam suportar que Jesus proclamasse que Deus acolhe e perdoa incondicionalmente a todos, que tem um carinho especial, um amor de predileção pelos perdidos; um Deus que vai ao encontro dos perdidos e que transborda de alegria quando os encontra.
A parábola do Pai Misericordioso condensa toda a história de nossa salvação. Ela contém a quinta-essência do Evangelho do Reino do Pai proclamado por Jesus, a história do amor de Deus para com a humani-dade. O que Jesus quis proclamar ao contá-la foi que o amor, a misericórdia, o perdão e a comunhão são oferecidas por Deus aos “perdidos”.
Justamente por ser o Evangelho condensado, esta parábola deve ser incessantemente ouvida e contem-plada por todos nós. E depois de contemplada e experimentada, devemos contá-la, proclamá-la e testemu-nhá-la, sempre de novo, a todos os homens e mulheres que Deus ama. Ela é a parábola da nossa vida, da nossa história, de cada um dos nossos caminhos. Ela é, enfim, a parábola da nossa origem e do nosso destino.
Longe de uma imagem de um Deus severo, com a lei na mão, pronto para nos acusar, Jesus nos revela o rosto de Deus Pai-Mãe de infinita ternura, que se alegra com o retorno de seus filhos à convivência em sua casa. De fato, no Evangelho de hoje (4º dom Quaresma), a volta do filho perdido provoca uma “explosão de alegria” no Pai. Sua alegria era tão intensa que ele não poderia esperar para dar início à comemoração.
A expressão “depressa” com a qual o pai exorta seus criados denota que o serviço deve ser executado sem demora, pois o filho não pode ficar por mais tempo privado de sua dignidade. As ordens aos empregados são dadas em voz alta para que todos fiquem sabendo da festa, para que a sua alegria seja conhecida e partilhada por todos. Ele convida todos a comer, beber e dançar. Uma grande festa tem início, mas não tem fim.
Tão fortemente o pai deseja dar vida a seu filho mais novo que parece quase impaciente. Nada é suficientemente bom. O melhor precisa lhe ser dado. Ele ordena que o filho seja imediatamente vestido com a túnica luxuosa, como a que é usada nos dias de festa pelos hóspedes ilustres. O filho recupera sua identidade e sua dignidade de filho. O pai lhe dá o anel para honrá-lo como seu filho amado e novamente devolver-lhe a condição de herdeiro e a plenitude de seus direitos. Com as sandálias, é devolvida ao filho a condição do homem livre e de senhor da casa. Mas o Pai não ama só o filho perdido e reencontrado. Ele ama também aquele que ficou em casa, a seu lado, e que deixou seu coração endurecer. Ele vai ao seu encontro, vai para pedir que participe da alegria do reencontro e da festa. Não o deixa na sua solidão e na sua rejeição. Não acusa seu pecado.
O Pai vai procurar também aqueles que tem um coração de pedra, invejosos e legalistas. O fato miraculoso não está só em que o pai não renegou o filho mais moço, e sim que tenha sido compreensivo com um homem tão duro, frio e rígido como o filho mais velho, e que continua a chamá-lo de “filho”.
O “princípio misericórdia”, portanto, é o núcleo do Evangelho. E a misericórdia é o “amor em excesso”. Na misericórdia, Deus sempre nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, para abrir caminho a partir de nossas fragilidades. Só o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destravando-nos, colocando-nos em movimento e abrindo-nos em direção a um horizonte de sentido, de responsabilidade e compromisso.
Deus não só tem um coração que ama. Isso já é extraordinário. Mas também tem entranhas, uma ternura que se comove. Isso é avassalador. A misericórdia constitui a resposta de Deus à indigência do ser humano: ela recria a vida, pois, a força criativa da sua misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada.
Deus, em sua misericórdia reconstrutora, libera em nós as melhores possibilidades, riquezas escondidas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais profunda de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis...
A misericórdia é expansiva, ela abre um novo futuro e desata ricas possibilidades latentes em cada um. Ela não se limita ao êrro, mas impulsiona cada um a ir além de si mesmo.
Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano.
Podemos concluir afirmando que a misericórdia não é só a mais divina mas também a mais humana das virtudes. É aquela que melhor revela a natureza do Deus Pai e Mãe de infinita bondade. É a que revela igualmente o lado mais luminoso da natureza humana; nesse sentido, a misericórdia é a que mais humaniza as relações entre as pessoas. Por isso, Jesus propõe um modo de ser humano inseparável da misericórdia do Pai: “Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc. 6,36)
Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado convite e a mensagem mais profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a si mesmo e aos outros.
Texto bíblico: Lc 15,1-3.11-32
Na oração: A experiência de misericórdia ativa em nós um modo de viver misericordioso. O Deus de misericórdia cria em nós um coração novo, feito de acordo com o Seu, capaz de misericórdia. Entrar no “fluxo” da misericórdia divina: ser canal por onde circula o amor misericordioso de Deus em favor dos outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP
“Vou cavar em volta dela e colocar adubo; pode ser que venha a dar fruto” (Lc 13,8-9)
Comprovamos hoje um “déficit de interioridade”. Vivemos num contexto social e cultural no qual o ritmo frenético que nos é imposto para conseguir mais bem-estar material não favorece o acesso à nossa própria interioridade. Seduzidos por estímulos ambientais, envolvidos por apelos vindos de fora, cativados pela mídia, pelas inovações rápidas… vamos nos esvaziando, nos diluindo, perdendo a interioridade e… nos desumanizando. Vítimas da chamada “síndrome da exteriorização existencial”, temos dificuldades de introspecção, silêncio, reflexão, contemplação…; já não somos capazes de velejar nas águas da interioridade, vivendo uma vida superficial e sem sentido. A perda da direção de nossa interioridade, que nos constitui como seres humanos, gera um vazio existencial e espiritual.
Tal como a figueira da parábola do evangelho deste domingo(3º dom Quaresma), a vida vai se atrofiando e se ressecando, porque não recebe seiva do seu interior. É pura folhagem, pura aparência e sem frutos.
A originalidade do Tempo Quaresmal encontra-se na aventura da re-descoberta do “mundo interior”, esse mundo desconhecido e surpreendente, onde acontece o mais importante e decisivo de cada um. Conduzindo-nos a viver a experiência no deserto com Jesus, a liturgia quaresmal revela que toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal. Por isso, “viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às raízes da própria existência e chegar à fonte de água viva que ativa uma nova seiva, fazendo surgir novos brotos e novos frutos.
É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia; é aqui que ela experimenta a unidade de seu ser; aqui é o lugar da transcendência, onde realmente acontece uma profunda transformação.
Trata-se da dimensão mais verdadeira de si, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde a pessoa vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, onde brotam as aspirações e desejos fundamentais… Assim, a descoberta do próprio ser profundo aproxima cada um do autor da vida: Deus.
A vida está oculta nas profundezas. A pessoa superficial é aquela que se confunde com a aparência de sua folhagem, mas não dá frutos. A pessoa de interioridade, por sua vez, é aquela que vive a partir da raiz, da fonte mesma da vida, e deixa vir à tona todas as suas riquezas, dons, capacidades… É no chão da vida que está escondido nosso verdadeiro tesouro; é do chão da vida que existem, em abundancia, os aspectos positivos de nossa personalidade, os talentos naturais e as boas tendências. Ali se aninham imensas riquezas que se exprimem de maneira diferente, dando a cada um uma fisionomia própria, um caráter único. Esta região profunda coincide com o mundo das certezas, dos valores, das ideias-força… que formam o eixo de nossa existência, o melhor de nós, o lugar de nossa recuperação e de nossa realização.
Quem “desce” até sua própria interioridade, até os abismos do inconsciente, até a escuridão de suas sombras, até a impotência de seus próprios sonhos, quem mergulha em sua condição humana e terrena e se reconcilia com ela, este sim, está “subindo” para Deus, faz a experiência do encontro com o Deus “rico em misericórdia”.
Deus, em sua misericórdia reconstrutora, libera em nós as melhores possibilidades, capacidades, intuições… e nos faz descobrir em nós nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis… É Ele que “cava” no nosso coração o espaço amplo e profundo para nos comunicar a sua própria interioridade. A força criativa de sua misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada.
Por isso, é decisivo alimentar as raízes com os valores do Evangelho (justiça, compaixão, bondade..) para que uma seiva cristificada se espalhe pela árvore, gerando novos rebentos e novos frutos. “Descer” às raízes é uma oportunidade privilegiada para descobrir-nos e conhecer nosso reino interior, para encontrar nossa riqueza interior e assim experimentar a transformação.
O caminho para uma nova qualidade de vida passa pelo encontro com as próprias raízes. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido. Este é o caminho da espiritualidade que brota do húmus; “descer” até o fundo, mergulhar nas dimensões mais profundas onde estão escondidos os recursos que darão significado e sentido às nossas vidas.
É preciso “des-velar” nosso “eu profundo”, o lugar onde se encontra os dinamismos da nossa personalidade, as boas tendências, os dons naturais, as riquezas do ser, as beatitudes originais, as grandes aspirações. Dentro de nós encontramos forças construtivas que podem mudar-nos eficazmente. É preciso escavar, alimentá-las e deixá-las aflorar espontaneamente. Esse é o nível da graça, da gratuidade, da abundancia, onde a pessoa mergulha no silêncio do deserto interior, à escuta de todo o seu ser.
E das raízes profundas brotam as respostas mais criativas e duradouras; a interioridade desvelada ativa uma relação sadia com todos; com a nova seiva a figueira se expande em direção aos outros, fazendo-a viver numa conexão livre com toda a realidade.
A imagem da figueira destaca também a paciência do agricultor. Lucas é o evangelista da misericórdia; e essa misericórdia se faz visível na esperança e no cuidado esmerado do agricultor para com a figueira; ele não desiste, quer dar tempo para cuidá-la de novo, tempo para a mudança. A pesar de levar “três anos” sem dar fruto, o lavrador continua confiando nela: “vou cavar em volta dela e colocar adubo”.
Jesus realça a paciência divina, porque compreende e respeita o momento e o ritmo de cada pessoa. Conhecedor do coração humano, Ele sabe dos condicionamentos de todo tipo que pesam sobre ele. Na vivência cristã, a terra interior também pode ser cavada, adubada para que seja despertada a verdade pessoal. Os mecanismos, que ainda impedem a transformação interior, algum dia deixarão de funcionar, e o seguidor de Jesus quebrará suas resistências e se abrirá para dar início à a uma nova caminhada.
Portanto, revolver a terra é o primeiro requisito a ser cumprido para que a árvore dê fruto; o segundo é o adubo que alimenta e desperta um novo reflorescimento da nossa árvore.
Provavelmente, o místico Johann Tauler estava pensando nessa parábola quando disse: “Dia após dia, o agricultor leva o esterco ao campo, e, após um ano, o campo dá seus frutos. É uma imagem consoladora que, justamente, aquilo que consideramos o esterco da nossa vida – os fracassos, as coisas pouco vistosas e pouco louváveis – prepara o campo para a nossa árvore da vida e a faz florescer”.
Texto bíblico: Lc 13,1-9
Na oração: Há uma força de gravidade que nos atrai progressivamente para o mais profundo de nós mesmos, onde Deus nos espera e nos acolhe, e onde encontraremos o nosso “eu original” e a verdadeira paz.
É preciso “descer” até às raízes de nossa existência para descobrir uma nova “seiva” para nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida.
Trata-se de despertar, de escavar nosso chão interior, alargar nosso coração e garimpar em direção às energias que estão disponíveis no eu mais profundo.
- O quê alimenta as raízes de sua existência? Onde você busca o adubo que se transformará em seiva vital?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP
“Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante” (Lc 9,29)
O relato da Transfiguração não é crônica de um fato histórico; é, muito mais, a experiência de fé dos discípulos que, com toda certeza, perceberam em Jesus uma “transparência” ou “profundidade” que os impactou profundamente.
Podemos expressar numa frase o significado do relato: “Jesus é transparência do divino”. Por isso, podemos dizer também que Ele é um homem transfigurado. Jesus viveu constantemente transfigurado. A transfiguração não foi um fato isolado na vida do Mestre de Nazaré, mas o ‘estado habitual de seu ser’. Mas foi durante sua oração no monte que Jesus deixou transparecer sua identidade mais profunda e escondida; algo que os seus discípulos não podiam captar no ritmo da vida cotidiana.
Quê fazia de Jesus um “homem transfigurado?” Era sua bondade, sua compaixão, sua autenticidade, sua integridade e coerência, sua liberdade, seu projeto de vida, sua relação com o Pai... Ou seja, o que há de divino em Jesus está em sua humanidade. Só no humano transparece Deus.
Jesus nos dá a medida do humano: ser pessoa compassiva e comprometida com os demais. É precisamente na condição humana de Jesus onde podemos conhecer quem é Deus e como é Deus. Mais ainda, é na entranhável humanidade de Jesus onde compreendemos a profunda e desconcertante humanidade de Deus.
Sua humanidade e sua divindade se expressavam cada vez que Ele se aproximava das pessoas, especialmente as mais excluídas e sofredoras, ajudando-as a reconstruir a própria humanidade ferida. Sua humanidade levada à plenitude é Palavra definitiva. Por isso, é preciso “escutá-Lo”. Escutar o “Filho amado” é transformar-se n’Ele e levar uma vida comprometida, semelhante à d’Ele, ou seja, empapar-se do “modo” como Ele humanamente viveu.
A Transfiguração está nos dizendo quem era realmente Jesus e quem somos realmente cada um de nós. Ela nos revela também nossa identidade e nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade. Por isso, uma pessoa transfigurada é uma pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano é transparência de Deus. Em outras palavras, a vivência do humano nos diviniza.
Somos todos “pessoas transfiguradas”..., mas desconhecemos essa realidade surpreendente. Na Transfiguração, Jesus nos faz descobrir nosso verdadeiro ser, que vemos refletido n’Ele. Jesus continua se “transfigurando” na montanha interior de cada um de nós. N’Ele, encontramos “indicações” que nos conduzirão a essa descoberta: a vivência do amor, da compaixão, da confiança, do silêncio, da coragem, da experiência de Deus...
A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Transfigurar é descentrar-se e expandir-se na direção do outro. Transfigurar é ativar todas as possibilidades de vida para que ela se torne oblativa.
Tal experiência também nos confere um “olhar contemplativo” que nos faz descobrir que toda realidade já está “transfigurada”. Seguramente reacenderá em nós a capacidade de admiração, de assombro e de contemplação, para ver as pessoas e “todas as coisas criadas” para além do meramente superficial. O olhar habitual de nosso contexto pós-moderno não é precisamente esse, mas outro, caracterizado pelo imediatismo, pragmatismo, interesse e voracidade. Em tal contexto há tanta superficialidade e tanto narcisismo que a vivência da profundidade, do silêncio, da admiração... se tornam estranhos para nós.
A Transfiguração possibilita cultivar um “olhar” que sabe ver em profundidade, descobrindo em cada ser humano, para além de suas aparências, um ser transfigurado, porque somos capazes de vê-lo em sua beleza e bondade originais; um olhar que sabe deixar-se impactar por tudo aquilo que nos cerca e é capaz de render-se diante do Mistério.
Nesse sentido, “subir” ao Tabor implica “descer” em direção à nossa própria humanidade. A Montanha nos “transfigura” , revelando nosso ser essencial. Todos estamos dispostos a “subir”, mas nos custa muito “descer”. Não haverá plenitude de humanidade enquanto os de cima não decidam descer, e os de baixo não renunciem subir passando por cima dos outros.
Não se trata de ter a antena dirigida ao céu para esperar que dali venha algumas palavras para indicar o que devemos fazer. Trata-se de descobrir a voz de Deus no grito desesperado de cada um dos seres humanos que encontramos em nosso caminhar. “Humanizemo-nos!” Esta é a voz d’Aquele que viveu permanentemente “transfigurado-humanizado”.
Aquele Monte (Tabor) é um espaço instigante, lugar alto de experiência radical de Jesus, para ver os problemas da humanidade, para senti-los, para assumi-los e mudar... Jesus nos faz subir à grande montanha para que vejamos as coisas de outra forma, de outra perspectiva... É preciso, de vez em quando, tomar distância e nos afastar do cotidiano rotineiro e atrofiado, para ampliar nossa visão e contemplar o drama humano; é decisivo nos situar diante do calor de Deus (sarça ardente) para desvelar nossa verdadeira identidade. Somente assim a Montanha nos transfigurará para que nos empenhemos a serviço dos “desfigurados” do mundo.
A espiritualidade cristã nos possibilita fazer a síntese entre o novo e o antigo, entre a interioridade e exterioridade, enfim, síntese entre a Transfiguração do Tabor e o cotidiano da vida comprometida com os desafios do vale. Sínteses profundas que nos educam para a “liberdade dos filhos de Deus” (Rom. 8,21).
A transfiguração de Jesus é como uma parábola que nos recorda: a vocação cristã é transfigurar o tempo e o espaço. É preciso transfigurar nossas relações humanas: passar de relacionamentos interesseiros a relações afetuosas e amáveis.
É urgente transfigurar a política, transformando o poder e a gestão da coisa pública em serviço ao bem-comum. É preciso transfigurar a natureza na comunhão do ser humano com o universo.
A Transfiguração do ser humano acontece no coração de cada um que crê. É Deus que nos transfigura, “mudando nosso coração de pedra em coração de carne” (Ez. 36,26).
Texto bíblico: Lc 9,28-36
Na oração: Na nossa vida de seguidores de Jesus não faltam momentos de claridade e certeza, de alegria de luz. Ignoramos o que aconteceu no alto do Tabor, mas sabemos que na oração e no silêncio é possível vislumbrar algo de nossa identidade interior.
A oração nos transfigura e nos faz descer em direção à nossa própria humanidade e à humanidade dos outros.
Na vida de cada um de nós, como na vida de todo ser humano, certamente encontramos tempos especiais ou momentos privilegiados, cheios de sentido, embriagados de amor, de felicidade plena. Reviver estes momentos ou tempos nos fará bem: quais foram? Como aconteceram? Como os vivemos, que sentimos, porque acabaram?
* Fazer um tempo de oração revisitando em sua memória essas vivências de “transfiguração”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e, no deserto, Ele era guiado pelo Espírito” (lc 4,1)
Segundo a tradição, a primeira imagem da tentação foi uma maçã: uma fruta vermelha, carnosa, saborosa e brilhante. Seu atrativo aroma penetrou até os tutanos de nossos ancestrais e eles caíram na armadilha da superficialidade.
Atrai-nos a superfície das coisas, justamente aquela que brilha, ainda que de maneira fugaz e solucione nossa fome e nossa sede. Cremos que com apenas uma mordida podemos saciar nossa ânsia de sentir-nos diferentes, reconhecidos e valorizados. Tempos depois o superficial continua sendo superficial e o reconhecimento, o prestigio, o aplauso ou o acúmulo de bens revelam seu rosto inconsistente.
A tentação vai estar sempre ai, como maçã ou como pedras que se convertem em pães, como aplauso buscado a partir dos critérios do mundo, ou como joelhos que se dobram frente às promessas de um ídolo com pés de barro. Sempre vai estar presente, buscando saciar nossa fome e nossa sede, conhecendo onde pisamos, oferecendo-nos novidades no jardim florido e consolo nas gretas de nossos desertos.
Livra-nos Senhor desses “espelhismos” que prometem vida e escondem o vazio!
Ser tentado é próprio do humano, mas o que é divino pode ser encontrado em nosso interior.
Quem não se deixa conduzir pelo Espírito, não é capaz de acessar a própria interioridade, permanece na superfície de si mesmo e se deixam enredar pelos estímulos externos.
Muitos já não conseguem mais recolher-se e voltar para “dentro” de si, para recuperar o centro gravitacional de sua vida, o ponto de equilíbrio interior.
Este é o desafio que nos inquieta: é preciso “conhecer-nos a fundo”, ou seja, ter a experiência de si mesmo, do próprio íntimo, do centro do ser, da região profunda da qual sem cessar tiramos, como de um poço, a água viva, a energia, as certezas para viver.
Vivemos um contexto social e cultural no qual se constata um modo de vida que não favorece o contato profundo consigo mesmo. Seduzido por estímulos ambientais, envolvido por apelos vindos de fora, cativado pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizado por ofertas alucinantes... o ser humano se esvazia, se dilui, perde a interioridade e... se desumaniza. Tudo se torna líquido: o amor, as relações, os valores, a ética, as grandes causas... (cf. Bauman).
O Evangelho de hoje insiste que Jesus se deixa conduzir pela força do Espírito; por isso, vive uma inte-gração a partir de seu coração e não se deixa levar pelas aparências enganosas.
Tradicionalmente, as tentações de Jesus foram interpretadas num sentido moralizante; costumava-se dizer que Jesus nos queria dar o exemplo de como superar nossas tentações cotidianas. Tal interpretação não capta em toda sua profundidade o sentido das “tentações de Jesus”. Elas não são tanto uma prova a superar quanto um projeto que deve ser discernido.
O que parece claro é que Jesus, depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de discernimento, em oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho, sob o impulso do Espírito; de algum modo teve de refletir e discernir sobre que tipo de messianismo assumiria para sua missão em sua vida pública. É um tempo de confronto interior, de crise.
A “crise” põe à prova sua atitude frente ao Pai: como viver sua missão e a partir de quê lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente sua Palavra? Como deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? Buscando sua própria glória ou a vontade de Deus? Centrando sua vida na busca de poder e riqueza ou assumindo uma vida pobre, como expressão de solidariedade aos mais excluídos?
Jesus não quer um messianismo que reduza o ser humano a um consumidor de pão; este precisa também do alimento da Palavra de Deus que ative sua dignidade de interlocutor de Deus, o coloque pé e o conduza a assumir ele mesmo o trabalho de fazer o pão e reparti-lo entre todos.
Em vez de seduzir o povo com prodígios e espetáculos, Jesus prefere uma proximidade do tu a tu, nas mesmas praças e caminhos, na convivência criativa e nos encontros humanizadores. Jesus não buscará o poder da dominação política e da imposição pela força. Preferirá o caminho do serviço. O caminho de Jesus é absolutamente novo. Nem impressionar, nem seduzir, nem dominar a liberdade do ser humano. Só servir.
Aqui também é preciso nos perguntar:
* Qual é a nossa provação? qual é a nossa tentação? O que é que nos seduz?
* O que é que nos tenta? O que é que nos desvia de nosso eixo, do nosso caminho?
* O que é que nos desvia do ser essencial?
É preciso questionar certos acontecimentos, certas situações, certas vivências, que podem nos induzir a um caminho que nos afasta de nós mesmos, que nos afasta do melhor de nós. Desde sempre, a humanidade inteira e cada um de nós, estamos expostos à tentação. Faz parte de nossa condição humana. Trata-se de um conflito que dilacera a existência por dentro.Por um lado, o ser humano sente o apelo e o impulso para o alto, para a plena liberdade, para o compromisso e a fraternidade. Mas por outro, ele também sente a caducidade, a fragilidade, a fraqueza, toda sorte de limitações... que o deixam prostrado no chão.
Concretamente, em cada um de nós não existe apenas o chamado para a fraternidade, para o entrega, para a comunhão.... mas também a sedução e a tendência para o egocentrismo, o prestígio e os instintos de poder e posse. Sentimo-nos simultaneamente santos e pecadores, oprimidos e libertados.
Nossa liberdade sente-se movida e atraída em duas direções. A cena das “tentações de Jesus” desvela (distingue, põe às claras...) os dois dinamismos, duas tendências, dois impulsos... que se fazem presentes em nosso interior (um de alargamento ou expansão de si mesmo em direção aos outros e de Deus; e outro de fechamento, auto-centramento, resistência e medo).
A questão de fundo é saber qual dos dois dinamismos alimentamos; é aqui que entra a liberdade (ordenada) para deixar-nos conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito.
Trata-se de sermos dóceis para deixar-nos conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não sabemos. É Ele que ativa o que há de melhor em nós, expandindo nossa vida em direção aos valores do Reino: desapego, serviço, esvaziamento do ego...
Às tentações do poder, do ter e do prestígio, o seguidor de Jesus responde com a partilha, o serviço, a comunhão, a solidariedade... O tempo quaresmal vem ativar esse dinamismo expansivo.
Texto bíblico: Lc 4,1-13
Na oração: A oração sobre as “tentações de Jesus” nos ajuda a tomar consciência das alianças e cumplicidades nas quais podemos cair em nossas relações com o mundo e com aqueles elementos que de modo mais decisivo põe em perigo nossa liberdade: as riquezas, o poder, o prestígio. É uma espécie de "embriaguez existencial" na qual a alteridade desaparece, a abertura a Deus se atrofia e a gratidão frente aos bens se esvazia.
- Rezar minhas “afeições desordenadas”. Onde está o centro de minha vida? Na aparência ou no interior?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP
“Cuidado! Não pratiqueis vossa justiça na frente dos outros, só para serdes notados” (Mt 6,1)
Em meio a um mundo desumanizado e sacudido pela violência, lutas fraticidas, intolerância e egoísmo exacerbado, o papa Francisco nos convida a viver um Jubileu extraordinário, colocando a Misericórdia no centro de nossas vidas e respondendo ao chamado que Cristo nos faz: “sede misericordiosos como o Pai”.
De maneira especial, o tempo Quaresmal pode ser um momento privilegiado para que deixemos transparecer no mundo a missão de testemunhas da Misericórdia de Deus Pai-Mãe.
A Quaresma pode ser o ponto de partida de uma transformação de vida; os quarenta dias de duração são um tempo propício para viver a “operação saída”, ou seja, expandir a vida em novas direções, rompendo com aquilo que é rotineiro, estreito e atrofiante. Se, nesse tempo, algo calar fundo, o ano se tornará pequeno para aquele que vive uma existência com mais intensidade, coerência e solidariedade.
Este tempo litúrgico especial certamente mobilizará e ativará todas as dimensões de nosso ser: nossos sentidos se expandirão, olhando, escutando e sentindo a realidade que nos envolve; nossa mente tornar-se-á mais clara, sabendo discernir e não se deixando manipular; nosso coração se fará mais atento e misericordioso diante do sofrimento humano; nossa alegria que será o fermento do pão cotidiano, compartilhado com os outros. E se dedicarmos mais tempo ao silêncio e à oração, recobraremos energia e sentido, necessários para sair da “normose doentia” de todos os dias.
A Igreja nos proporciona este momento litúrgico como parada estratégica em meio à voracidade do caminho e perguntar-nos se vivemos como realmente desejamos viver; se haverá algum reajuste necessário para reorientar nossos passos de maneira mais acertada, para estabelecer uma harmonia entre cabeça e coração, desejos e hábitos. A Vida de Jesus, testemunhada nos evangelhos, nos convida a viver de um modo mais integrado.
Somos o que somos graças a essa matriz de relações que nos conecta conosco mesmos, com os outros, com o Outro e com as criaturas. Não nos estranhará, então, que a liturgia nos convide a perguntar a nós mesmos como nos relacionamos com nossos desejos/impulsos/decisões (jejum), como consideramos os nossos semelhantes (esmola) e como cuidamos de nossa amizade com Deus (oração).
Neste perspectiva, as três disciplinas espirituais da Quaresma (oração, jejum e esmola), encontram sua relação com as três dimensões do amor: a Deus, ao próximo e a si mesmo. Não é preciso estar publicando no Facebook ou no WhatsApp cada pequeno passo adiante. De fato, nos diz Jesus: “Vosso pai, que vê no segredo, vos recompensará”.
Neste ano em que celebramos o Jubileu extraordinário da Misericórdia, as práticas quaresmais que a liturgia busca ativar (oração, jejum e esmola) vão mais além de nós mesmos: elas devem ter impacto na relação com os outros, em especial com aqueles que mais sofrem e se encontram mais excluídos.
Com a Quarta-feira de Cinzas damos início à Quaresma e entramos num movimento de discernimento: de quê jejuar e com quê saciar-nos nesse tempo litúrgico? Mais que jejum de alimento e bebida, podemos jejuar de soberba, de vaidade, de consumismo, de fazer-nos centro de tudo, de ativismo, de afetos desordenados (smarts, internet...), jejuar de desculpas frágeis e de distâncias, de indiferença e de frieza nos relacionamentos...
Tudo aquilo de que jejuamos, deixa um vazio imenso em nosso interior e que só o amor poderá preencher. O jejum ativa o dinamismo do amor que nos faz mais compassivos, solidários, misericordiosos...
Em definitiva, o jejum e a abstinência nos conduzem ao autocontrole e à autoestima e são sinônimos de desintoxicar-se, desconectar, desapegar-se, desprender-se... Ou seja, fazer tudo o que nos leve a ser pessoas mais equilibradas, autônomas e livres... que tem mais tempo para amar a Deus e ao próximo.
A esmola (“elemosyne”) sempre esteve ligada à compaixão e piedade. Quem partilha do que tem é compassivo e misericordioso (“eleémon”). Trata-se, fundamentalmente, da inclinação para os desfavorecidos. A misericórdia (qualidade da esmola) é a atitude própria de quem tem um coração sensível à miséria do outro. Mantém indissoluvelmente unidos o sentimento de compaixão e ternura com a solidariedade efetiva. Está atenta à necessidade de cada pessoa, que em uns casos será econômica, em outras psicológica, em muitos afetiva...
A esmola – misericórdia em ação – é uma atitude central para o cristão. Uma das suas qualidades mais atraentes é precisamente sua capacidade para criar laços de comunhão. Se cada um põe seus dons e bens a serviço dos outros e se deixa socorrer em suas necessidades, criará verdadeira comunidade.
A oração nos ajuda a amar a Deus e a colocá-Lo como centro de nossa vida. A vivência da oração e de todas as práticas associadas a ela, como o silencio, a solidão, a reflexão, a “consciência plena”, a meditação bíblica, a participação na liturgia da comunidade, a leitura de um livro de espiritualidade..., nos preparam e nos ajudam a entrar em sintonia com a ação de Deus no mais profundo de nosso ser.
Quando oramos, conhecemos e amamos mais a Deus, sentimos sua misericordiosa presença em nosso dia-a-dia, alimentamos nossa vida interior, somos menos artificiais, nos fixamos mais naquilo que nos é dado continuamente como graça, vivemos em contínua gratidão por estarmos rodeados de tanta ternura e beleza, mesmo em meio às situações conflitivas, despertamos empatia para com aqueles que mais sofrem, recobramos novo ânimo para ajudá-los, somos conscientes de nossa fragilidade e pequenez, ao mesmo tempo que cresce em nós a percepção de nossa maravilhosa dignidade de filhos ou filhas de Deus.
À luz da misericórdia, a esmola, a oração e o jejum não são cargas pesadas sobre nossas costas neste tempo quaresmal e que podemos esquecê-las dentro de algumas semanas. Não são um evento, mas um modo de proceder que tem ressonância na nossa vida. Por isso mesmo, tais práticas quaresmais são uma autêntica revolução e uma alternativa para viver com sentido.
Aqueles que se empenham pacientemente em dar à sua vida um perfil mais evangélico acabam se depa-rando com o valor do pequeno e do que não é ostentoso, daquilo que nasce do mais profundo e que tem a autenticidade das coisas verdadeiras.
Esse é o movimento de vida despertado pelo tempo quaresmal.
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: A oração é o lugar onde se pode indicar “o escondido”, onde aprendemos a decifrar a vida, onde buscamos ter acesso ao nosso tesouro mais apreciado, aquele que não pode ser arrebatado à força e não pode ser comprado por nenhum valor, embora podemos facilmente perdê-lo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP
“Subiu num dos barcos e pediu que se afastasse um pouco da terra” (Lc 5,3)
Jesus entrou em conflito com o mundo religioso da sinagoga. A Lei, que se expressava em inumeráveis preceitos minuciosos, fragmentava a existência, atrofiava a criatividade e não representava vida nova para o povo. A novidade de Jesus não cabia nos moldes da sinagoga, e começou a buscar outros espaços onde criar a vida expansiva do Reino, elaborar novos sinais e cunhar novas palavras.
O “outro lado”, para Ele, passa a ser terra privilegiada, onde nasce o “novo” por obra do Espírito. Ali aparece o broto germinal do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se uma denúncia ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida. Isso vai gerar uma maneira nova de viver, um estilo de vida, um compromisso diferente, uma ação carregada de ousadia...
Uma multidão vinda de todas as partes o seguiu até à beira do lago de Genesaré, e Jesus pediu a seus discípulos que tivessem uma barca preparada, pois o povo o apertava, porque tinha curado a muitos. O povo acorre onde há vida nova que estremeça sua letargia. Jesus se afasta do centro, da sinagoga e busca as margens do lago. E ali desencadeia um “movimento humanizador”: vida destravada e abundante, horizonte de sentido, relações de comunhão...
Encontrando-se em meio a um mundo em efervescência, Jesus lançou por terra as paredes e os muros dos templos e sinagogas e mergulhou no mar espaçoso da vida cotidiana. Ele alcançou sua plenitude humana precisamente porque foi capaz de “transgredir” o que estava estabelecido e abrir-se à universalidade de todas as terras, de todos os povos, sem distinção de raças, condição social... Seu itinerário não foi unicamente geográfico. Mais que um simples deslocar-se, trata-se de um “modo de viver” e de situar-se no mundo. Ele se fez presente nos lugares socialmente rejeitados, lugares de exclusão e da marginalidade, e ali revelou a presença d’Aquele que se faz presente e santifica todos os lugares: o Pai.
Jesus, na Galiléia, encontrou os seus lugares: junto ao mar, nas estradas poeirentas, nas margens... Ele se fez presente nos lugares onde se encontravam aqueles que não tinham “lugar”, os “deslocados” e que foram a razão de seu amor e do seu cuidado.
Na Galiléia, Jesus tem suas preferências e escolhe o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles que se fazem donos dos lugares ou os excluem dos “lugares sagrados”.
Jesus transitou livremente por diferentes espaços; o deserto foi para ele um espaço necessário de solidão e de oração, onde, na intimidade com o Pai, alimentava a originalidade de sua pessoa e de sua missão. As margens do lago constituíam a trama da vida cotidiana, lugar de trabalho, de mercado, de encontros. As margens das cidades situavam-no frente à vida descartada, excluída, enferma ou fracassada. A montanha foi um lugar de perspectiva em momentos especiais de mudança, como a eleição dos Doze, a apresentação das Bem-aventuranças ou a Transfiguração no caminho para a Páscoa.
Jesus não se move preso aos espaços do Templo, mas vive aberto à surpresa e ao dinamismo do Reino, que irrompe como graça no centro da vida cotidiana. Em seus deslocamentos descobre, nas margens do lago e nas aldeias dos camponeses, que os homens e mulheres considerados os excluídos e os sem lugares são os verdadeiros criadores de uma nova realidade, os reais protagonistas, construtores de um mundo novo, sal nos paladares desanimados e luz nas noites escuras da humanidade e da história.
Com sua presença inspiradora e provocativa, Jesus alarga os espaços e os corações das pessoas: ao entrar no barco, este deixa de ser simples instrumento de pesca para ser lugar do anúncio; Ele amplia o rotineiro modo de pescar (“lançai as redes em águas mais profundas”); por fim, desafia aqueles rudes pescadores a deixarem aquele atrofiado mar e entrar no vasto oceano da vida (“sereis pescadores do humano”). Do mar da Galileia ao mar da vida: este é o movimento que Jesus desperta nas pessoas.
Ele continua desafiando a que cada um mergulhe mais fundo no oceano do coração e ali ative os recursos ainda escondidos: novos sonhos, novas possibilidades, nova inspiração, novo sentido para a existência... Para isso, é preciso vencer o medo que atrofia tudo o que é humano em nós e entrar no movimento expansivo de Jesus.
Onde estão os espaços de nossa missão e de nossa presença? Em quê margens da sociedade, da economia, da cultura, devemos nos situar para aí descobrir a novidade de Deus que nos desinstala e nos abre um futuro iluminador? Onde estão os espaços de solidão e de silêncio, de desintoxicação de informações, de encontro com o mais profundo de nós mesmos, por onde surge a palavra única que Deus nos dirige, integrando-nos como pessoas e expandindo-nos a uma presença mais criativa na realidade?
O profeta Isaías nos recomenda ampliar este “espaço interior”: “Alarga o espaço de tua tenda, estende sem medo tuas lonas, alonga tuas cordas, finca bem tuas estacas” (Is. 54,2). Ampliar os espaços do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade e abertura às novas ideias e às novas descobertas. Algumas fortalezas e seguranças pessoais caem quando os “espaços interiores”, abrasados e iluminados pela força do Espírito, começam a romper as paredes e se encarnam em “espaços exteriores”, marcados pela beleza e encantamento: espaço familiar, espaço celebrativo, espaço esportivo, espaço de convivência... um espaço nobre que só tem sentido quando carregado de presenças.
Não tem sentido ampliar os espaços externos se nossa mente permanece estreita, se nosso coração continua insensível, se nossas mãos estão atrofiadas, se nossa criatividade sente-se bloqueada... Espaço amplo é convite a sonhar alto, a pensar grande... ousar ir além, lançar por terra nosso modo arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos.
Deus nos chama cada dia, nos tira de nosso estreito mar, nos faz sair do que é nosso, da segurança, da comodidade... e nos faz entrar numa “terra nova”. A “travessia” ativa e revela o que há de melhor em cada um de nós. Igualmente, com nossa presença expansiva e inspiradora seremos também capazes de “pescar o humano” que está escondido no outro.
Somos desafiados a “viver uma vida no mundo e no coração da humanidade” (Pe. Kolvenbach). Precisamos levantar-nos cotidianamente de nossos “lugares” estreitos e seguros: há sempre um “lugar ferido” que nos espera, um “ambiente atrofiado” a ser curado, um “espaço limitado” a ser ampliado...
Texto bíblico: Lc 5,1-11
Na oração: Para S. Inácio, os lugares nascem na imaginação; nos Exercícios Espirituais, ele nos convida, através do preâmbulo “composição vendo o lugar”, a imaginar lugares em movimento, lugares de encontro, de desafio, lugares provocativos e criativos..., enfim, lugares carregados de presença.
A “composição vendo o lugar” desperta em nós um novo “olhar” para perceber, com mais nitidez e intensidade, os lugares por onde transitamos, uma nova disposição para dar sentido e valor aos lugares cotidianos, um olhar solidário para perceber o lugar do outro, uma nova sensibilidade para “ver” a Presença d’Aquele que ocupa todos os lugares e que nos conduz para o “lugar” da plenitude.
Da imaginação para a realidade, da oração para a ação..., uma travessia dos “nossos mares estreitos” para os “amplos lugares cristificados”. Um “lugar sagrado” que nasce do coração, carregado de afeto, de inspiração, de vitalidade... O “lugar externo” é o prolongamento do lugar saboreado internamente.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP
“Todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam da sua boca” (Lc 4,22)
“Nós somos palavra”. Somos feitos para a comunhão, para unir as nossas vidas. É graças à força das palavras que derrotamos o silêncio angustiante da solidão, derretemos o gelo da indiferença, criamos pontes, abrimos horizontes e chegamos a lugares jamais imaginados ou tocados pelos nossos pés. Quando não existe a troca de palavras, ditas e ouvidas, a vida é mutilada nas suas expressões mais vitais, as espirituais. Talvez porque sejam a mais genuína invenção humana.
A palavra tem os atributos divinos. Os próprios textos sagrados nos dizem que “Deus é Palavra” e, em Jesus, ela se faz carne. Chegada a plenitude dos tempos, Deus disse sua Palavra definitiva e insuperável em Jesus. Ele, em sua vida e missão, prolonga a Palavra criativa de Deus; começa a falar uma Palavra sedutora a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e econômica. Palavra encarnada, Jesus sintoniza e ajusta sua palavra à palavra do Pai.
Com sua vida e sua palavra, Jesus interrompe o discurso dos especialistas sobre Deus. A surpresa, o desapontamento e o conflito que Jesus provocou, ensaiam cada dia novas palavras e novos gestos. Seu ensinamento, cheio de “autoridade” introduz uma perspectiva nunca ouvida antes; apresenta uma alternativa que as pessoas mais simples do povo entendem como revelação do Pai aos pequeninos.
No encontro com a realidade dos pobres e excluídos, Jesus extrai palavras significativas, previamente cinzeladas e incorporadas no seu interior, onde elas revelam dinamismo, sentido e alteridade; sua palavra brota de uma vida interior fecunda e conduz a uma vida comprometida. A partir das periferias do mundo surge um canto de vida nova, a sabedoria oculta a muitos sábios e expertos. É uma sabedoria que vem de Deus, desconcertando a sabedoria exibida a partir do centro.
Suas palavras revelam uma força “re-criadora”, que é o sentido belo do viver; através delas Jesus põe em movimento a realidade, reconstrói pessoas feridas em sua dignidade, comunica saúde onde há enfermidade, faz emergir a vida onde impera a morte.
As palavras têm um peso no anúncio e na atividade missionária de Jesus; não são neutras. Como um raio x que transpassa, as palavras proferidas por Ele iluminam os recantos mais profundos do ser humano; como um refletor em noite escura, ela reacende a esperança onde tudo já perdeu o sentido; como a chuva em terra seca, ela desperta novidades na vida, sacode as consciências adormecidas, põe em questão as atitudes de indiferença e de fechamento...
É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Suas palavras são bem-aventuradas, pois são capazes de fazer crescer, sustentar, edificar as pessoas para o convívio social, humano-afetivo, espiritual. São palavras que trazem luz e calor, infundem confiança e segurança. Suas palavras jamais deixam as coisas como estão. Elas não se limitam a transmitir uma mensagem; elas tem uma força operativa, desencadeiam um movimento...
É preciso, a partir do encontro com Jesus Cristo, “sentir” a palavra que proferimos a cada instante; verificar se a palavra pronunciada procura traduzir a palavra interior, se sabemos “empalavrar”, ou seja “pôr em palavras” nossa realidade interior e exterior. Desde o nascimento até à morte, continuamente estamos “empalavrando” nossos sentimentos, sonhos, aspirações... A palavra abarca todas as expressividades humanas. Ela não se reduz à oralidade: a gestualidade, a linguagem corporal, a presença solidária e compassiva... tudo isso também forma parte da palavra humana. Os comportamentos éticos e os valores também são formas de “empalavramento”.
As palavras são, ao mesmo tempo, pensamento, ação, sentimento... Não possuímos nada que tenha, ao mesmo tempo, o poder e a leveza das palavras. Em todos os lugares aonde vamos somos cercados por elas; palavras murmuradas com suavidade, proclamadas em altas vozes ou berradas irritadamente; palavras faladas, recitadas ou cantadas; palavras em sites, em livros, em muros ou no céu; palavras de muitos sons, muitas cores ou muitas formas; palavras para serem ouvidas, lidas, vistas ou olhadas de relance; palavras que oscilam, que se movem devagar, dançam, pulam ou se agitam. As palavras podem mudar a vida, para o bem ou para o mal. Há palavras que ferem e há palavras que curam. Há uma palavra que constrói e uma que destrói, uma palavra que comunica calor e luz, outra que semeia frieza, uma que infunde confiança, outra que arrasa...
As palavras nos tocam e nos modelam; às vezes, elas nos tocam como brisa suave, outras vezes como punhais, mas sempre nos deixando marcas profundas de estímulos ou de desânimo: sentimentos de alegria ou tristeza, de paz ou inquietação, de fé ou descrença, de amor ou ódio...
Há uma palavra pela qual tudo começa e recomeça, outra pela qual tudo termina, deixando o silêncio atrás de si. Depois de certas palavras, não resta mais nada a dizer. Todos conhecemos pessoas destruídas pelas palavras, como também pessoas reconstruídas, recriadas pelo toque das palavras. A palavra tem uma força reconstrutora.
As palavras perdem força e criatividade quando não nascem do silêncio. O mundo está repleto de “papos” vazios, confissões fáceis, palavras ocas, cumprimentos sem sentido, louvores desbotados e confidências tediosas, palavras enfeitadas e vazias, sem alma, nem paixão. Vivemos cercados de “palavras vãs”. Às vezes temos a sensação de que as palavras nos saturam: nas aulas, na televisão, nos jornais, nas liturgias, na Internet, nas redes sociais... há demasiado palavrório. Carecemos de poesia.
Sem dúvida, em nossa sociedade pós-moderna, a palavra cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Elas são atrofiadas, manipuladas ou submetidas a um violento esvaziamento de significados, segundo nossa conveniência. Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial.
Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram nossa vida.
Quem sabe articular silêncio e palavra é um verdadeiro artífice da vida.
Texto bíblico: Lc. 4,21-30
Na oração: Percorrer as palavras proferidas, normalmente, ao longo do dia: são palavras que elevam? curam? animam? Palavras marcadas pela esperança? Palavras carregadas de sentido? Palavras criativas?
Cave palavras nas minas do seu silêncio, e deixe que o Espírito diga a “palavra” misteriosa, diferente, reveladora de sua verdadeira identidade. Somente o silêncio poderá gerar “palavras de vida”.
- Busque palavras nas profundezas de seu interior, palavras carregadas de sentido e de ânimo.
- Crie silêncio para poder dialogar com seu eu profundo, para ver o que há atrás de suas palavras, de seus
sentimentos, de suas intenções... Silêncio para tentar ir ao coração de sua verdade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus voltou para a Galileia com a força do Espírito...” (Lc 4,14)
Depois do prólogo, saltando os relatos da infância, do batismo e das tentações, o texto evangélico que a liturgia nos propõe para este domingo nos situa no começo da chamada “atividade pública” de Jesus, com a proclamação daquilo que constitui seu “discurso programático”. Lucas quer apresentar Jesus como o “Ungido” de Deus, cuja missão consiste em ser “boa notícia” para todos.
Antes de começar a narrar o ministério público de Jesus, Lucas quer deixar muito claro a seus leitores qual é a paixão que impulsiona o Profeta da Galileia e qual é a meta de toda sua atuação. Os cristãos deverão saber em que direção o Espírito de Deus move a Jesus, pois segui-lo é precisamente caminhar com Ele na mesma direção.
Em Lc 4,14 começa propriamente a vida pública de Jesus com este relato da pregação na sinagoga de seu povoado, depois de uma breve introdução geral na qual fala de seus ensinamentos nas sinagogas da Galileia. Ao aplicar-se a si mesmo o texto de Isaías, Jesus está declarando sua condição de “Ungido”. Ele voltou à Galileia conduzido pelo Espírito. Aqui está a chave. Só o Espírito pode nos capacitar para cumprir a missão que temos como seres humanos. Tanto no AT como no NT, ungir era capacitar alguém para uma missão. Paulo nos diz isso com uma claridade meridiana: se todos bebemos de um mesmo Espírito, seremos capazes de superar o individualismo, e entraremos na dinâmica de pertença a um mesmo corpo.
A primeira coisa que chama a atenção é a apresentação que Lucas faz de Jesus como alguém que é movido “pela força do Espírito”. Nem sempre somos conscientes das “forças” que nos movem em nosso viver cotidiano, tampouco das motivações reais que nos impulsionam a tomar certas decisões. Dois dinamismos atuam em nosso interior: um, de impulso para algo maior, para o serviço, para ser presença inspiradora; outro, de atrofia, de acomodação e medo. Qual das duas “forças” alimentamos em nosso interior? Jesus chamava a atenção pela claridade de suas motivações e a coerência com as mesmas: é o homem íntegro e fiel, lúcido e transparente. Deixa-se conduzir pelo Espírito no mais profundo de si mesmo; deixa que Deus viva nele; deixa Deus ser Deus nele.
Lucas descreve com todo detalhe o que faz Jesus na sinagoga de seu povo: põe-se de pé, recebe o livro sagrado, busca uma passagem de Isaías, lê o texto, fecha o livro, o devolve e se senta. Todos hão de escutar com atenção as palavras escolhidas por Jesus pois elas explicitam a missão à qual Ele se sente enviado por Deus. Ele começa a gritar uma mensagem nova e diferente, surpreendente e provocativa.
Estas são as credenciais de Jesus, aquelas que identificam sua personalidade e sua missão. E serão também estas as credenciais que nos identificam como seus seguidores. Surpreendentemente, o texto não fala de organizar uma religião mais perfeita, de implantar um culto mais digno ou de apresentar novas leis, mas de comunicar libertação, esperança, luz e graça aos mais pobres e excluídos. É curioso que os traços distintivos de sua missão não fazem referência à sua relação com Deus; todos fazem referência à relação com as pessoas mais necessitadas e marginalizadas: os pobres, os cativos, os cegos.
Sua única preocupação é a missão de “anunciar o Evangelho”. Jesus não veio anunciar desgraças, castigos, nem impor medo através de uma religião moralista e legalista. Jesus veio anunciar “boas notícias”: uma vida digna e de esperança aos pobres; a liberdade àqueles que carecem dela; a vista àqueles que não podem ver. Jesus não faz proselitismo e nem nos convoca para seguir uma determinada religião, uma doutrina... mas para sermos presenças humanizadoras e libertadoras.
A missão de Jesus é a de aliviar o sofrimento humano; o sofrimento dos inocentes é a primeira preocupação d’Ele: não suportava ver as pessoas sendo exploradas e marginalizadas; não aguentava a dor dos outros, porque sua sensibilidade não tolerava isso. Jesus “desce” em direção a tudo o que desumaniza as pessoas: os traumas, as experiências de rejeição e exclusão, as feridas existenciais, a falta de perspectiva frente ao futuro, o peso do legalismo e moralismo, a força de uma religião que oprime e reforça os sentimentos de culpa, as instituições que atrofiam o desejo de viver...
Enfim, tudo aquilo que prejudica as pessoas, provoca miséria, tira a dignidade do homem e da mulher. Lucas destaca que “todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos n’Ele”.
E ao “fixar os olhos n’Ele” os ouvintes são movidos a ampliar o olhar e voltar-se para aqueles que são vítimas do sistema social e religioso de seu tempo. As pessoas percebem n’Ele um novo Mestre, cujo ensinamento desperta o assombro e a admiração.
Vamos, na oração, considerar algumas expressões do Evangelho de Lucas e que revelam a essência de uma vida que se deixa impactar pelo modo de ser e viver de Jesus:
- “Ungidos pelo Espírito”: todos somos marcados, assinalados pela unção no Espírito. Carregamos a “marca” do Espírito: Espírito que não está sobre nós, mas dentro de cada um de nós; Espírito que nos habita e que nos conduz para fora de nós mesmos, em direção ao compromisso com os outros.
- “Enviados para anunciar o Evangelho”, ou seja, ser boa notícia para os outros através de nossa presença alegre e solidária. Não somos enviados para anunciar más notícias e desgraças, nem para alimentar culpabilidades nos outros, impondo falsos moralismos e legalismos que bloqueiam a vida das pessoas.
Somos enviados a anunciar aos tristes a alegria de Deus, aos pobres a esperança de um mundo mais humano, justo e fraterno, aos excluídos o amor de Deus, aos que nada contam aos olhos dos homens que eles são importantes para Deus.
- “Enviados a anunciar a liberdade aos oprimidos”: anunciar que Deus nos quer a todos livres; ser presença libertadora de tudo o que desumaniza o ser humano: pobreza e miséria, ignorância e violência, opressão religiosa, preconceitos, exploração...
- “Enviados a ativar a visão aos cegos” para que vejam as maravilhas que acontecem ao seu redor, para ver o rosto de Deus no rosto de cada irmão, para encantar-se com a beleza e grandeza da Criação, para contemplar a presença do Criador em tudo e em todos...
- “Enviados a proclamar o ano da Graça do Senhor”: a plenitude humana que Jesus começou a realizar se expressa como festa jubilar: ano de graça, tempo de júbilo que, conforme à tradição de Israel, se torna celebração de fraternidade, perdão das dívidas, libertação dos escravos, partilha das terras...
Neste “Ano jubilar da Misericórdia” somos convocados a ser presença reconciliadora em meio aos conflitos, a indicar para os desanimados a esperança da salvação, a viver como filhos de Deus e como irmãos, a viver a presença de Deus neles...
Texto bíblico: Lc 1,1-4; 4,14-21
Na oração: “Hoje se cumpre essa escritura em ti”. Esse mesmo Espírito que atuou em Jesus, está atuando sempre em ti. Deus dá o Espírito sem medida. Se não descobres e não experimentas isto, nenhuma vida espiritual será possível. O Espírito te levará ao amor. O amor se manifestará em atitudes, que sempre beneficiarão os outros. A força do ego nos separa. A força do Espírito nos identifica. Conecta com essa energia divina que já está em ti, e a espiritualidade será o que há de mais espontâneo e natural de tua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Também Jesus e seus discípulos tinham sido convidados para o casamento” (Jo 2,2)
A festa está profundamente enraizada no coração do ser humano; ela proporciona o diferente, o novo, o exuberante, o utópico; revela o “homo ludicus” que brinca, canta, dança, transborda emoções, reúne companheiros em comunidade e celebra a vida.
A festa é ruptura com a monotonia e com a rotina da vida; é um momento no qual se deixa levar pela vida em vez de “carregá-la” nas costas como um fardo. É a própria vida, despojada do peso do cotidiano e vivida em plenitude; a festa é um “sim à vida” porque significa mergulhar na profundidade da existência, assumindo o que há de prazeroso, de positivo e de belo, para expressá-lo com alegria.
A festa é celebração comunitária de experiências e acontecimentos da vida. As circunstâncias podem ser variadas (casamentos, nascimentos, padroeiros, conquistas, colheitas, aniversários, datas importantes...), mas o essencial permanece: uma afirmação da vida, da amizade, da comunhão, e uma espécie de juízo de valor sobre nosso mundo e sobre nossa existência.
Ao valorizar determinados acontecimentos, a festa constrói a comunidade a partir de suas raízes e de sua história em vista do futuro; ela torna público o horizonte social dos participantes. Fazendo a festa, a comunidade descobre que foi a festa que a fez. Ela sim, recria a comunidade, recriando os participantes.
Festejar não é ocultar as tensões, os conflitos... mas, ao contrário, é um meio de assumi-los e superá-los.
Nas bodas de Caná, a novidade está numa nova forma de presença de Jesus, que não se encontra interessado, em princípio, por fazer coisas, por resolver problemas, senão para traçar uma presença como convidado. Ele não está aí para “arrumar” as coisas, mas para escutar e compartilhar um momento festivo. Ele se encontra presente de maneira gratuita, num gesto de solidariedade que transcende e supera toda atividade.
Segundo o evangelista João, a primeira intervenção pública de Jesus, o Enviado de Deus, não tem nada de “religioso”. Não acontece num lugar sagrado (sinagoga ou templo). Jesus inaugura a Sua atividade profética "salvando" uma festa de casamento que podia ter terminado muito mal. Trata-se do "primeiro sinal", onde nos é oferecida a chave para entender toda a Sua atuação e o sentido profundo da Sua missão salvadora. Convida-nos a que descubramos o Seu significado mais profundo.
"Havia um casamento na Galileia". Assim começa este relato em que nos é dito algo inesperado e surpreendente. Este gesto de Jesus ajuda-nos a captar a orientação de toda a Sua vida e o conteúdo fundamental do Seu projeto do Reino de Deus. Enquanto os dirigentes religiosos e os mestres da lei se preocupam com a religião, Jesus dedica-se a fazer mais humana e leve a vida das pesso
Os evangelhos apresentam Jesus concentrado, não na religião mas na vida. Viver o “estilo de vida” de Jesus não é só para pessoas religiosas e piedosas. É também para quem ficou decepcionado com a religião, mas sente necessidade de viver de forma mais digna e ditosa. Porquê? Porque Jesus contagia a fé num Deus festeiro, que não complica nossa vida, mas nos move a confiar n’Ele, que com Ele podemos viver com alegria pois Ele nos atrai para uma vida mais generosa, movida por um amor solidário.
A espiritualidade de Jesus não é a espiritualidade do sacrifício, do pecado e da culpa, da busca da perfeição, mas é a espiritualidade da felicidade e da alegria para as pessoas. Com sua presença, participando das bodas, das refeições festivas e dos banquetes, Jesus anunciava e indicava um outro mundo diferente, onde partilha-se a vida, a convivência, a alegria, abrindo espaço à participação de todos, sobretudo daqueles que eram excluídos da religião. É a alegria contagiante do Evangelho.
Para Jesus, Deus se manifesta em todos os acontecimentos que nos impulsionam a viver mais plenamente. Deus não quer que renunciemos nada do que é verdadeiramente humano. Ele quer que vivamos o divino no que é cotidiano e normal. A ideia do sofrimento e da renúncia como exigência divina é antievangélica.
A cena das bodas de Caná da Galileia não se limita simplesmente à ausência de vinho. O assunto é outro: o relato tem que ser entendido na perspectiva do Reino, na dinâmica do tempo messiânico. O texto indica que havia aí, em um lugar da casa, seis talhas de pedra vazias. O texto enfatiza que estavam vazias. São vasos destinados a conter a água da purificação, ritual dos crentes judeus. Porém estão vazias, secas. Este símbolo indica que o modelo religioso que Jesus encontrou está ressecado, vazio.
A mensagem para nós hoje é muito simples, mas demolidor. Nem ritos, nem abluções, podem nos purificar. Só quando saborearmos o vinho-amor da festa e da partilha, ficaremos todos limpos e purificados. Só quando descobrirmos o Deus presente dentro de nós e nas nossas realidades mais cotidianas, seremos capazes de viver a imensa alegria que nasce da profunda unidade com Ele. Geralmente nos contentamos com as seis talhas de pedra para as purificações, preocupados com os ritos e as normas religiosas; esquecemos que o melhor vinho ainda não foi servido, pois está escondido no mais profundo de nós mesmos.
Na visão dos primeiros cristãos, que acabavam de se separar do judaísmo, a lei judaica, antes de ajudar, acabou dificultando a relação de Deus com seu povo. Por isso para eles era uma lei vazia, sem sentido, que somente gerava carga e não possibilidade de liberdade e de alegria. As talhas de pedra, destinadas à purificação, eram um símbolo que dominava a lei antiga. Esse modelo de lei criava com Deus uma relação difícil e frágil, mediada por ritos frios e carentes de sentido.
Com a presença de Jesus, a ritualidade, o legalismo, a norma fria e vazia, se transformam em vinho, símbolo da alegria, do júbilo messiânico, da festa da chegada do tempo novo do Reino de Deus. A atitude de Jesus, sem nenhum tipo de imposição, vai revelando uma nova imagem e um novo conceito de Deus. Deus deixou de ser esse ser estranho e distante, que atemoriza o ser humano com o peso da doutrina e das leis, mas que revela sua face misericordiosa, ou seja, o Deus que caminha com seu povo. Temos de eliminar, em nossa vida pessoal comunitária, com os sistemas religiosos desumanizantes, para conseguir entrar na dinâmica libertadora, inclusiva e festiva que Jesus inaugurou.
Texto bíblico: Jo 2,1-11
Na oração:
“Festeje a fé que torna Deus luz e garantia para os nossos caminhos; festeje a esperança que transporta os seres ao novo do amanhã; festeje o amor que os torna fonte de crescimento e união. Ao festejar o mistério que o carrega e atrai, será capaz de transformar o dever em prazer, a dor em dinamismo de renovação e a convivência em promessa que se há de revelar graça onipresente. Enxergue em tudo a dádiva e repouse do cansaço; celebre a festa em clima de gratidão e nunca deixará de ser motivado para um novo entusiasmo, recompensado também em ritmo de morte-ressurreição”. (F. Cláudio V.B.)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E, enquanto rezava, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre Jesus...” (Lc 3,21-22)
Terminado o ciclo natalino, somos convidados a fazer o caminho com Jesus durante sua vida pública. Liturgicamente, este longo percurso contemplativo é conhecido como “Tempo Comum” (este ano seguiremos o Evangelista Lucas), tempo de intimidade e de identificação com Aquele que é nossa referência e inspiração na nossa maturidade cristã.
Ao inaugurar a vida pública de Jesus, o Batismo significa o alvorecer dos novos tempos, o novo início para toda a humanidade, a Nova Criação: “O Espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gen. 1,2). A fé da comunidade cristã vê no batismo de Jesus uma ação definitiva de Deus em favor da humanidade.
À luz deste acontecimento “fontal”, situado no início da vida pública de Jesus, deve ser visto tudo o que vai ser relatado em continuação nos Evangelhos. Com o batismo de Jesus, começa uma nova era na história do mundo, na história da intervenção salvífica de Deus em favor da humanidade.
A “abertura dos céus” que se rasgam significa a abertura de novas relações entre Deus e a humanidade, o início de um novo diálogo de Deus com o ser humano, um novo tempo de graça, de novos dons dados por Deus a todos. Jesus é o lugar do novo, definitivo e pleno encontro de Deus com os homens, dos homens com Deus e dos homens entre si. “Jesus sai das águas elevando consigo o mundo que estava submerso, e vê rasgarem-se e abrirem-se os céus que Adão fechara para si e sua posteridade” (S. Gregório Nazianzeno).
Segundo os estudiosos da Cristologia, em Jesus, a tomada de consciência de quem era Ele e qual era sua missão, foi um processo de contínuo discernimento que não terminou nunca. O relato do batismo está nos falando de um passo a mais, ainda que decisivo, nessa tomada de consciência. Nesse sentido, o Batismo de Jesus é um acontecimento fundamentalmente vocacional. É muito provável que Jesus, já adulto, vivesse com uma inquietação em seu coração, conectado com seu desejo profundo, e uma pergunta estivesse ressoando com força no seu ser mais íntimo; essa mesma pergunta com a qual cada um precisa conectar, em algum momento da vida, e que faz brotar as decisões mais cruciais:
“Quem sou? Para quê nasci? Quê sentido quero que minha existência tenha?...”
Depois de ter passado trinta anos de sua vida no anonimato em Nazaré, dedicado aos trabalhos cotidianos e simples de uma vida campesina, Jesus decidiu um dia deixar para trás suas pequenas seguranças e pôr-se a caminho em direção ao sul, junto ao rio Jordão, onde João estava batizando. Despediu-se dos seus e se lançou a uma aventura da qual não regressaria mais. Tomou uma decisão que se revelou central para sua vida e para a nossa.
Para Jesus, a experiência vivida no Jordão, funda sua vocação, ou seja, a partir de então compreende quem é Ele para Deus: o Filho Amado. Com essa consciência, configura todo seu ser e aposta plenamente por seu projeto de vida. Então, Ele experimenta a presença de Deus de um modo claro e contundente. Nesse momento, confirma-se tudo o que sentiu e viveu em toda sua vida em Nazaré: a profunda sintonia com Deus, experimentado como um Pai amoroso e próximo.
Agora Jesus sente que o Pai o chama a mudar o estilo de vida escondido. Ele está atento aos “sinais dos tempos” e sabe discernir nesses sinais a Vontade do Pai que o chama a mudar de caminho, a deixar sua terra, a lançar-se numa aventura. Começa uma vida itinerante, missionária, despojado de tudo.
A novidade de Jesus não cabia mais nos estreitos espaços de Nazaré, nem nos moldes da sinagoga e da religião oficial. Ele começou a buscar e transitar por outros espaços alternativos onde ativar a vida expansiva do Reino.
Jesus não se move preso à estrutura da sinagoga, mas está aberto à surpresa e ao dinamismo do Reino, que irrompe como graça no centro da vida mesma, surpreendendo a cotidianidade. Jesus vive sintonizado no Espírito, que se revela em meio aos tempos humanos como sua dimensão mais profunda e definitiva.
Jesus não foi um extra-terrestre que, por ser de natureza divina, estava dispensado da trajetória que todo ser humano tem de percorrer para alcançar sua plenitude. Geralmente não levamos a sério essa experiência humana de Jesus. Mas os primeiros cristãos tomaram muito a sério a humanidade de Jesus.
Todos nós, em um momento ou outro de nossa vida, sentimos o chamado a reorientar nosso caminho. Tivemos que tomar a decisão de deixar para trás os espaços e as pessoas conhecidas que formavam nosso entorno vital. Aventuramo-nos a estabelecer novas relações, novas práticas, novas formas de comunicação com nosso entorno, novas formas de pensar a mesma realidade. Caminhamos para o desconhecido, confiados na promessa e na fidelidade de Deus. Por Ele e n’Ele, Saimos a descobrir novos horizontes.
Ver a Jesus dirigir-se para o desconhecido, confiado somente na proximidade de seu Pai Deus, nos anima a empreender também um caminho novo cada dia, com a confiança de que Deus nos acompanhará e repetirá de novo o que o mesmo Jesus escutou no Jordão: “Tu és meu(minha) filho(a) amado(a), em ti ponho o meu benquerer”. E essa foi nossa entrada na fila da humanidade, em virtude da fé de nossos pais. Fomos acolhidos junto a outros, constituindo a grande comunidade dos seguidores de Jesus, reconhecidos como filhos e filhas do mesmo Pai, irmãos e irmãs de todos.
Viver nossa vocação batismal implica viver em contínua “operação saída”. Demasiados costumes conservados podem ser um forte herança, mas não deixam de ser um peso para quem precisa olhar longe e olhar bem. O discernimento implica investigar quê novos lugares nos quer conduzir o Espírito.
Levamos anos em que, em lugar de ir, voltamos. Temos medo frente às “novas saídas”. Há uma preferência por permanecer no seguro, no conhecido, no de sempre. Buscamos as mais sofisticadas razões para “não sair”, para manter nossos “centros” e situar-nos naqueles espaços que nos dão segurança e nos permitem realizar nossos próprios sonhos e não tanto os de nosso Deus.
Quando a vida cristã não se põe em movimento de saída, ela se mundaniza e se asfixia. A Exortação do Papa Francisco nos convida a “sair”, em atitude de “intimidade itinerante”: “quando se toma gosto do ar puro do Espírito Santo, que nos liberta de estar centrados em nós mesmos, escondidos em uma aparência religiosa vazia de Deus” (EG, 97).
Tanto mais intensa será nossa vivência batismal quanto mais nos leve para “fora” de nosso próprio centro, de nosso próprio mundo e de nosso modo habitual e fechado de viver.
Nessa “saída de si” encontramos o termômetro de toda vida espiritual: “Sair de si” é olhar a própria vida de outro ângulo, de outra perspectiva... para encontrar um “sentido” maior que nos escapa. A “saída de si” é humanizante e humanizadora, porque faz emergir tudo o que é humano em nós. É ir mais além daquilo que nos é próximo, próprio ou afetivamente perto. É ir aos “aforas” de nossa vida, de nosso mundo, de nossas coisas de sempre.
Assim, pois, tanto mais real e verdadeira será nossa resposta amorosa ao carinho de Deus quanto mais expansiva se faz nossa vida, deslocando-nos em direção às fronteiras de nossa vida pessoal e comunitária. Algo teremos de suspeitar quando, no fundo, por mais propósitos que façamos, não saímos nunca do mesmo lugar. No Batismo comprometemos nossas certezas, nossos valores, nossa confiança básica, nossa fé. Esta atitude requer a maturidade de saber fazer a “travessia”, de romper com os muros das idéias fixas, atitudes fechadas, situações estreitas... De sedentários nos convertemos em nômades do “sentido”, buscadores de uma realidade totalizante que nos ultrapassa e que está sempre além.
Texto bíblico: Lc 3,15-16.21-22
Na oração: Lucas nos diz expressamente: “e enquanto orava...”; porque só a partir do interior pode-se descobrir o Espírito que nos invade. Se assim o fazemos e se damos uma oportunidade ao Espírito de Deus, descobriremos nossa própria vocação... e, quem sabe, veremos o Cristo em silêncio, do nosso lado.
A experiência do encontro com Ele junto ao Jordão, desvela nosso rosto, transforma nossa vida, abre caminhos e nos compromete com a causa do Reino.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe”. (Mt 2,11)
Em sua misericórdia, Deus sempre nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, para abrir caminho a partir de nossas fragilidades. Só o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destrava nosso coração e nos move em direção a horizontes maiores de busca, responsabilidade e compromisso.
A força criativa da sua misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada. E foi nas “fendas da humanidade” que o menino Jesus revelou o novo rosto misericordioso do Pai. A fragilidade de uma criança aponta o Deus presente e atuante nos meandros de nossa história, de nossas feridas, de nossos fracassos..., Aquele que não tem vergonha de se aproximar e de se misturar com a pobreza e a fragilidade dos seus filhos; o Deus misericordioso mergulha e santifica toda nossa existência. Ele se revela como um “Deus errante”, que corre ao encontro daqueles que estão em busca.
Nesta festa da Epifania, a imagem de Deus que nos transparece é a d’Aquele das portas sempre abertas. Esta imagem se fez visível na Gruta de Belém, simples estábulo sem portas ou portões, que só servia para guardar as ovelhas e protegê-las da chuva e dos perigos. Por isso, carecia de portas. Deus nasceu em um espaço sem portas. Por isso, quando os Magos chegaram, não precisaram tocar a campainha, nem abrir a maçaneta e esperar que alguém, pela abertura da porta, lhes perguntasse: quem são? de onde vem? quê buscam?...
Simplesmente chegaram e entraram, porque tudo estava aberto.
É impressionante a descrição que Edith Stein faz, quando um dia, ainda antes de se converter ao cristianismo, entrou na catedral de Francfurt.
“Entramos por alguns minutos na catedral e, enquanto permanecíamos ali dentro num silêncio respeitoso, entrou uma mulher com a sacola de compras. Ajoelhou-se em um dos bancos. Permaneceu nessa postura o tempo suficiente para rezar uma breve oração. Aquilo era algo completamente novo para mim. Nas sinagogas e nas igrejas protestantes que eu havia visitado só se entra para os atos litúrgicos da comunidade. Mas aqui alguém pode entrar numa igreja vazia, durante as horas de trabalho de um dia qualquer da semana para manter uma conversação familiar. Jamais pude esquecer isto”.
A presença dos Magos em Belém foi um pouco como a visita de Edith Stein à catedral de Franckfurt. O mais maravilhoso de Deus é que as portas lhe causam repugnância. Ele as quer sempre abertas para que todo aquele que queira “vê-lo”, falar-lhe e adorá-lo, não precisa nem chamar, nem tocar a campainha, nem marcar visita com hora fixa. Deus está aberto sempre e a todos. Não faz distinção de pessoas.
O Menino Jesus não se fixou se um Mago era negro, o outro branco e o outro amarelo. Nem se assustou vendo o quão grande eram os camelos. Simplesmente os recebeu com um sorriso. Por isso, esse encontro é conhecido como festa da Epifania, da manifestação, da revelação do Deus de “portas abertas” ao mundo. Revelou-se como o Deus de todos e para todos.
A mulher que entrou na Catedral de Franckfurt, seguramente que vinha ou ia às compras, porque entrou com sua sacola; não a deixou à porta da catedral, por respeito. Também com a sacola se pode falar com Deus. Não sabemos de que falaram, ela e Deus. Possivelmente de quão caras estão as coisas e que com certeza o dinheiro não ia dar para encher a sacola de compras. E Deus se sentiu lisonjeado com aquela visita. Os outros tinham entrado por simples curiosidade turística. E mesmo assim, alguns deles saíram diferentes, como a Edith, que ficou impressionada e tocada em sua alma por esta disponibilidade de Deus.
O Deus da Epifania não é o Deus das portas fechadas; tampouco o Deus a quem é preciso marcar visita previamente. É o Deus das portas sempre abertas a todos; é o Deus que sempre está disponível a receber-nos; é o Deus que nunca está ocupado para atender-nos; é o Deus sempre acolhedor de todos nós, levemos ouro, incenso e mirra, ou simplesmente levemos uma sacola de compras. Por isso, todos os dias deveriam ser “Epifania”, Deus com as portas abertas de seu coração misericordioso, pronto a nos receber a todos e a nos aceitar como somos. Deus que a cada dia nos diz: “Passai por aqui, a porta está sempre aberta”.
É altamente significativo e simbólico que a abertura do Jubileu da Misericórdia tenha começado com o destravamento das portas das igrejas em todo o mundo. Mais significativo ainda foi o gesto do papa Francisco de abrir a Porta Santa do Ano da Misericórdia em Bangui, na África, antes mesmo de fazê-lo em Roma, sede central do Cristianismo.
O Santo Padre declarou Bangui a capital espiritual do mundo no dia 29 de novembro, dando início ao Jubileu da Misericórdia a partir daquela cidade, marcada pela miséria e pela violência. Como os Magos, também nós nos dirigimos primeiramente aos palácios de nossa sociedade do bem-estar e aos Herodes contemporâneos, até que nos damos conta de que ali não encontramos o que estamos buscando, que ali se anula e se anestesia a vida, essa vida de Deus que quer crescer em nós. Somente quando nossos olhos se abrirem, descobriremos assombrados que não há nada que não seja sua epifania, que não é que Deus não se manifeste, senão que nos faltam olhos para descobri-lo.
O Espírito que sopra desde a África, com a abertura da Porta Santa, nos abre então a porta para palmilhar a estrada deste Novo Ano rumo a um mundo marcado pela luz da Misericórdia.
Os Magos do Oriente são o símbolo de tantos homens e mulheres que, em qualquer parte do mundo, a partir de outras sendas e tradições espirituais, se perguntam, buscam e caminham. Uma lenda os apresenta como um rei jovem, outro ancião e outro negro, querendo significar que todos os âmbitos do ser humano se fazem patentes ao longo do caminho, até poder encontrar o Menino e adorá-lo.
Segundo esta lenda, os magos perdem a estrela justamente antes de chegar, e foram os pastores, as potências do coração, aqueles que lhes ensinaram o caminho. O ouro do amor, o incenso de nossos desejos e a mirra de nossas dores e daquilo que cura as feridas são entregues Àquele que nos deu tudo primeiro.
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: A obscuridade e as dúvidas pairam sobre nosso presente e nosso futuro. A situação social que vivemos é certamente muito confusa. Por isso buscamos uma luz, uma estrela para orientar-nos. Precisamos de uma luz que dê sentido e orientação à nossa vida.
Uma vez que a Luz do Menino nos toca, já não podemos seguir pelo mesmo caminho; o caminho da epifania é agora o nosso caminho: descobrir o amor e manifestá-lo. Descobri-lo onde não esperávamos e levá-lo a outros por onde ainda não sabemos. Como cegos tocados por uma luz que nos indica os modos: em vulnerabilidade, em pobreza, em humildade, em alegria.
Ao celebrar a Epifania ou manifestação do Senhor devemos nos perguntar se vamos caminhando para onde essa luz nos leva, ou se permanecemos instalados no caminho. Somos portadores desta nova luz para que ela também chegue aos rincões do mundo e a todos os seres humanos. Quando todos se abrirem a ela, certamente se envolverão na construção de uma sociedade fraterna onde a justiça e a paz se abraçarão e permanecerá vivo o mistério do Natal.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam” (Lc 2,18)
Mais um novo Ano de Graça se inicia, agora sob o impacto de uma proclamação: Deus é Misericórdia e nossa vocação cristã é viver misericordiosamente.
Embora a compaixão e a misericórdia não estejam na moda na sociedade ocidental, renovemos nossa vida para que ela seja mais intensa e expansivamente misericordiosa.
O Papa Francisco inaugurou um Ano Jubilar especial: júbilo e atitude compassiva da misericórdia que perdoa, renova e facilita a reconciliação. Duas razões que deveriam estar presentes em quem se diz cristão, algo tão natural no seguimento de Jesus Cristo: alegria pela experiência de que Deus nos ama com um coração misericordioso e misericórdia como conduta libertadora que nasce de tal experiência. Aqui nos encontramos envolvidos por uma mensagem que é essencial e decisiva no nosso “ser cristão”.
Ser misericordiosos e compassivos é a vocação à qual todos nós, seres humanos, fomos chamados, inclusive aqueles que ainda não experimentaram o dom da fé ou mesmo a perderam. É o caminho para conseguir uma convivência leve, acolhedora e aberta. As Bem-aventuranças vão nesta direção, abrindo espaço para que o Amor misericordioso de Deus se transforme em motor da história.
Misericórdia. É a primeira, a última, a única verdade da Igreja, de todas as suas doutrinas, cânones e ritos. É o critério de juízo de todas as religiões. E, - porque não dizer?-, também da política ou da gestão da vida pública com todas as suas instituições, partidos, programas e conferências climáticas. Ai das políticas sem entranhas, sem alma, sem misericórdia!
A misericórdia é a luz e a chave de nossa vida tão preciosa e frágil, de nosso pequeno planeta tão vulnerável, do universo imenso e interrelacionado e do qual fazemos parte.
Misericórdia, segundo sua etimologia, significa entranha, coração, ternura para com o desfavorecido. Por isso é um dos nomes mais belos de Deus, que é como dizer “coração da Vida” e de tudo quanto existe.
Quê é este Ano Jubilar especial que a Igreja celebra? O texto bíblico do Levítico 25 nos ajuda a compreender o que significa “jubileu” para o povo de Israel. A cada 50 anos os hebreus ouviam o alegre som do “jobel” (corneta de chifre de carneiro) que ecoava nas montanhas e nos vales, convocando a todos (“jobil”) para celebrar um ano jubilar. Neste tempo devia-se recuperar a boa relação com Deus, com o próximo e com toda a Criação, fundada na gratuidade. Era um ano do perdão, ou seja, os pobres ficavam livres de suas dívidas, os escravos recuperavam a liberdade, os camponeses obrigados a desfazer-se da propriedade de sua terra a recuperavam... Podiam respirar, podiam viver, era o jubileu.
No Evangelho de hoje, os pastores, ao encontrarem o recém nascido deitado na manjedoura, viram nele o rosto da misericórdia: chegou para eles um novo Jubileu; por isso, “voltaram glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido”. Chegou para eles, e para todos os excluídos da história, um novo tempo, tempo de libertação do império e da religião, o cancelamento de suas dívidas, a mesa compartilhada com todos, a festa que nunca se acaba, a solidariedade humanizadora, a vida expansiva...
Nisto consiste o jubileu da Misericórdia.
Este é o convite que o papa Francisco expressa em sua Bula “Misericordiae Vultus”:
“Neste Ano Santo, poderemos fazer a experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática. Quantas situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo atual! Quantas feridas gravadas na carne de muitos que já não têm voz, porque o seu grito foi esmorecendo e se apagou por causa da indiferença dos povos ricos. Neste Jubileu, a Igreja sentir-se-á chamada ainda mais a cuidar destas feridas, aliviá-las com o óleo da consolação, enfaixá-las com a misericórdia e tratá-las com a solidariedade e a atenção devidas. Não nos deixemos cair na indiferença que humilha, na habituação que anestesia o espírito e impede de descobrir a novidade, no cinismo que destrói. Abramos os nossos olhos para ver as misérias do mundo, as feridas de tantos irmãos e irmãs privados da própria dignidade e sintamo-nos desafiados a escutar o seu grito de ajuda. As nossas mãos apertem as suas mãos e estreitemo-los a nós para que sintam o calor da nossa presença, da amizade e da fraternidade. Que o seu grito se torne o nosso e, juntos, possamos romper a barreira de indiferença que frequentemente reina soberana para esconder a hipocrisia e o egoísmo” (N. 15).
As consequências práticas do Jubileu da Misericórdia são imensas: que se eliminem as dívidas das pessoas e dos países explorados; que se abram as fronteiras aos imigrantes; que abramos as portas à misericórdia e os corações à esperança; que caminhemos, guiados pela ternura das entranhas, para a harmonia e o descanso da terra, para a libertação de todos os que vivem oprimidos; que situemos o amor e a misericórdia como centrais na vida cristã, como modo de ser essencial do cristianismo, e isso implica: amar e perdoar os outros, optar pelos pobres e por nossa casa comum a Mãe Terra, lutar pela justiça, mudar o sistema atual que só concentra riqueza, que exclui grande parte da humanidade e destrói a natureza, buscar estilos de vida alternativos ao atual paradigma tecnocrático patriarcal e consumista; que abandonemos a pastoral do medo, do legalismo e do moralismo, aproximando-nos do sacramento da Reconciliação como um espaço de misericórdia e não de tortura; que atualizemos as obras de misericórdia descritas em Mateus 25,31-46 com reformas sociais estruturais; que nos desloquemos e nos aproximemos dos lugares de sofrimento e dor: migrantes e refugiados, indígenas, camponeses, bairros periféricos, mulheres abandonadas, doentes, idosos, prostitutas, crianças de rua, drogados, inválidos, creches, cárceres...
Os textos bíblicos nos mostram as “três graças” da Misericórdia: sua operosidade, ela é uma obra eficaz; sua bem-aventurança: ela estabelece na terra o Reino do céu; sua alegria: ela alegra quem a exerce e quem a recebe.
No Documento de Aparecida, as tradicionais obras de misericórdia ganham nova feição, traduzindo-se em afirmação da dignidade humana, defesa incondicional da vida, promoção do bem comum, justa distribuição de renda, inclusão social, defesa dos direitos humanos, acesso aos bens culturais, salário justo e segurança alimentar (nn. 358-359).
Se recuperarmos as atitudes de misericórdia e compaixão, teremos entrado na vivência essencial do Evangelho. O decisivo é que a Igreja toda se deixe reger pelo “Princípio-Misericórdia”, sem ficar reduzida simplesmente a somar “obras de misericórdia”.
A misericórdia é para os audazes e criativos, capazes de revolucionar a existência com atitudes maduras de amor profético, alargando espaços onde imperam somente a doutrina, os esquemas rígidos e as retóricas de poder e de juízo daqueles que não se deixam conduzir pela força humanizadora da Misericórdia.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: Ao longo deste ano jubilar, deixemos nos inspirar pela oração de Santa Faustina, humilde apóstola da Divina Mi-sericórdia de nosso tempo:
“Ajuda-me Senhor, a que meus olhos sejam misericordiosos, para que eu jamais suspeite ou julgue segundo as aparências, mas que busque o belo na alma de meu próximo e acuda em ajudá-lo;
- a que meus ouvidos sejam misericordiosos, para que leve em conta as necessidades de meus próximos e não seja indiferente às suas penas e gemidos;
- a que minha língua seja misericordiosa, para que jamais fale negativamente de meus próximos mas que tenha uma palavra de consolo e perdão para todos;
- a que minhas mãos sejam misericordiosas e cheias de boas obras;
- a que meus pés sejam misericordiosos para que sempre me apresse em socorrer meu próximo, dominando minha própria fadiga e meu cansaço.
- a que meu coração seja misericordioso, para que eu sinta todos os sofrimentos de meu próximo”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Olha que teu pai e eu estávamos, angustiados, à tua procura” (Lc 2,48)
Os laços de sangue e o ambiente amoroso e afetivo, próprios de uma família, deveriam ser pontos de apoio para aprender a sair de nós mesmos e ir ao encontro dos outros, com nossa capacidade de comunhão e de serviço. As relações familiares deveriam ser espaço de humanização e nos motivar a não nos deixar determinar pelo nosso individualismo e egoísmo. Se na família superamos a tentação do egoísmo amplificado, aprenderemos a tratar a todos com a mesma humanidade.
Não nos deve assustar o fato de que a família, hoje, esteja em crise. O ser humano está sempre em constante evolução; se assim não fosse, já teria desaparecido há muito tempo. Com o Evangelho da Infância na mão, devemos buscar dar resposta aos problemas que a família hoje apresenta. A Igreja não deve esconder a cabeça na areia e ignorá-los ou continuar acreditando que isso se deve à má vontade das pessoas.
Como cristãos, temos a obrigação de fazer uma séria autocrítica sobre o modelo de família que encontramos hoje. Jesus não sancionou nenhum modelo, como não determinou nenhum modelo de religião ou organização social. O que Jesus revelou não faz referência às instituições, mas às atitudes que os seres humanos deveriam ter em suas relações com os outros.
Não basta defender de maneira abstrata o valor da família. Tampouco é suficiente imaginar a vida familiar segundo o modelo da família de Nazaré, idealizada a partir de nossa concepção da família tradicional. Seguir a Jesus, às vezes, pode questionar e transformar esquemas e costumes muito enraizados em nós. A família não é para Jesus algo absoluto e intocável. Mais ainda. O decisivo não é a família de sangue, mas essa Grande Família que, nós seus seguidores, devemos ir construindo, escutando o desejo do único Pai-Mãe de todos.
O Evangelho de hoje deixa claro que Maria e José tiveram de aprender isso, não sem problemas e conflitos. Seus pais “não compreenderam as palavras que lhes dissera”. Só aprofundando em suas palavras e em seu comportamento diante de sua família, descobrirão progressivamente que, para Jesus, o primeiro é a família humana: uma sociedade mais fraterna, justa e solidária, tal como o Pai deseja.
Iniciado no templo de Jerusalém, o evangelho da Infância também se encerra neste ambiente, que é o coração espacial da encarnação. De fato, como dirá Jesus na sua última entrada na cidade santa, as pedras de Jerusalém gritam.
É a primeira iniciativa independente e consciente do adolescente Jesus: Ele está cortando muitos vínculos com um só gesto; não pede permissão aos seus pais, pois vive em sintonia profunda com o Pai. À medida que Jesus vai crescendo em idade, cresce também nele a consciência da sua relação com o Pai celeste. E, a partir dela, toma decisões por sua conta, sem consultar seus pais terrenos; decisões que não os surpreendem, mas que os fazem sofrer. O filho é um mistério para a mãe. Embora feita com todo o carinho de um coração de mãe, a pergunta de Maria – “Meu filho, porque agiste assim conosco?”- mostra sua perplexidade diante do comportamento de Jesus.
É a segunda estadia de Jesus no templo, depois da visita da circuncisão. Trata-se do seu ingresso oficial na comunidade hebraica, inaugurando sua maioridade. É nessa ocasião que Jesus pronuncia as primeiras palavras registradas pelos evangelhos. E a primeira palavra, na prática é “Pai”, dirigida a Deus; “Pai” será também a última palavra pronunciada por Jesus, ainda em Jerusalém, mas no novo templo do Calvário: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito” (Lc. 23,46).Jesus voltará a Jerusalém outras vezes; aí vai morrer e ressuscitar, porque Jerusalém é o sinal da vida e da morte, das lágrimas e da beleza, do sangue e da luz. Em Jerusalém, Jesus encontrara alegria e dor, morte e vida, acolhimento e rejeição; Jerusalém é a cidade da história humana e da história salvífica: lá está a “casa” do templo, a “casa” do Senhor, e a “casa” da dinastia de Davi, da qual descende o Cristo.
Nas primeiras palavras de Jesus temos a afirmação condensada do que será a sua vida, a revelação do seu mistério mais profundo. A relação com o Pai é, com efeito, a que determina todas as suas atitudes e ações. Para Jesus é uma “necessidade” realizar na história concreta de sua vida o desígnio salvífico do Pai. Ela tem uma prioridade absoluta. Sobrepõe-se a todos os outros deveres, inclusive ao dever sagrado da piedade para com os pais.
Porque não se pertence a si mesmo, Jesus também não pertence a seus pais terrestres. Ele – sua pessoa, sua vida e sua missão – pertencem inteiramente ao Pai. Estas primeiras palavras de Jesus nos revelam onde está o centro de sua identidade e de sua missão: na sintonia e na comunhão com o Pai.
Na “perda e encontro” de Jesus no Templo se condensa toda sua vida, que é buscar a Vontade do Pai. Mas Jesus não é somente este jovem que decide “perder-se” no templo; é todo cristão que busca a Vontade de Deus; somos todos nós, convidados a “perder-nos” na busca de Deus, de seu Reino, da missão que Ele tem reservada para nós.
Hoje só há uma condição para poder entrar em sintonia com o coração do Pai: sentir-se “perdido”, como Jesus, buscando o bem dos demais, o serviço da Igreja, do Reino de Deus... Diferentes maneiras de expressar nosso chamado a servir.
Hoje, certamente Jesus não se “perderia” nos Templos (tão vazios) mas nos grandes centros, nos grandes shoppings, onde estão os novos sacerdotes, sem história e sem futuro, fazendo sacrifícios nos grandes altares do consumo. Ali poderíamos encontrá-Lo arguindo sobre a humanidade, criticando-os por fazer destes lugares um templo fechado, um verdadeiro bunker, um mercado de privilegiados, que fecha as portas aos irmãos mais pobres e necessitados.
Igualmente, Ele se “perderia” buscando os filhos do Pai abandonados à sua sorte, excluídos, perdidos nas ruas fedidas, explorados nos lugares de trabalho e sem nenhum tipo de segurança social. Hoje Jesus se “perderia” de novo em nossas peregrinações, se perderia nos “novos templos”. E é ali onde podemos encontrá-Lo. É a partir dali que Ele nos convida a encontrar a vontade de Deus nos imigrantes, nos excluídos, nos irmãos e irmãos que arriscam tudo para dar vida, uma vida, às vezes mínima, sem privilégios, nem extras, para que suas famílias vivam com um mínimo de oportunidade.
Texto bíblico: Lc 2,41-52
Na oração: Para inverter a “solidão desumanizante” na qual muitas famílias estão mergulhadas, é fundamental “re-tecer vínculos”. Para isso é preciso re-aprender a dizer e a ser “nós”, sem que ninguém fique sobrando. E, na família, há espaços onde isto se pode viver, fazer visível e viável.
Somente uma vivência familiar humanizada nos capacita para construir “comunidades de solidariedade”.
- Usando a imaginação, coloque sua família junto à Família de Nazaré: há aspectos comuns? Discrepantes?
- O que é preciso ativar para que sua família seja o rosto visível da Família de Jesus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Isto vos servirá de sinal: encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)
“Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai”. Frase de abertura da Bula “Misericordiae Vultus”, onde o Papa Francisco motiva toda a Igreja a celebrar o Jubileu da Misericórdia. E a festa natalina é uma ocasião privilegiada para o encontro com a Misericórdia de Deus que se tornou viva, visível e atingiu sua máxima revelação no rosto de uma Criança.
Neste Natal o convite é claro: abrir as portas da misericórdia para acolher uma Criança inocente, mansa e misericordiosa. É ela que ativará a faísca da misericórdia presente no interior de cada um de nós. Natal é Misericórdia que se expande, envolve toda a Criação e nos move a sermos mais ternos e humanos.
Ao aproximarmos de Belém para olhar e contemplar o rosto do Menino-Deus, acessaremos, ao mesmo tempo, o mais profundo do coração humano, carregado de misericórdia e bondade. A misericórdia humana é uma faísca divina que pode se atrofiar, jamais se apagar. São necessários alguns momentos densos para que esta chama seja ativada. A vivência do Natal é um deles.
Em Belém somos pacificados de nossas ansiedades e pressas de fazer mais e de conseguir mais, de nossa sede de poder e de vaidade; e se permanecemos em silêncio ali, diante da manjedoura, brotará em nós um desejo profundo de sermos mais humanos, de sermos aquilo que já somos, refletido no rosto aberto daquele Menino; ao mesmo tempo, brotará um desejo de venerar cada ser humano, de contemplá-lo em seu interior, esse lugar ainda não profanado em cada pessoa, o lugar de sua infância e de sua paz.
No momento em que o Verbo de Deus assume um rosto, todo ser humano chega à plenitude de sua realização: entra em comunhão com o Infinito e recebe uma dignidade infinita.
“Deus se humanizou”: tal expressão revela que a Misericórdia de Deus significa também ternura. Apareceu um Menino: apareceu a ternura e a doçura do Deus que salva. No rosto de uma criança se faz visível a Misericórdia que desce sempre mais abaixo, que nasce no ventre da terra e se faz terra fértil.
A verdadeira Misericórdia sabe desta ternura e desta reverência diante do outro; não é unicamente uma qualidade do modo de ser de Deus, senão o Ser mesmo que Ele é. É o que se entrega, amorosa e delicadamente, e que para isso desce sempre mais abaixo, nos extremos da condição humana.
Misericórdia carregada de humanidade: possibilitadora de tudo o que existe, discreta presença expansiva que ilumina todas as expressões de vida, Rosto que desvela todos os rostos e a todos dignifica. Abrir-se à dinâmica da ternura parece ser a grande aspiração de nosso tempo, marcado pela frieza nos relacionamentos, pelo preconceito que cria barreiras, pela prepotência que alimenta violências.
Somos ternos quando nos abrimos à linguagem da sensibilidade, entrando em sintonia com as alegrias e dores do outro; somos ternos quando reconhecemos nossa fragilidade e entendemos que a força nasce da partilha do alimento afetivo com os outros; somos ternos quando acolhemos a diferença que nos enriquece; somos ternos quando abandonamos a lógica da violência, protegendo os nichos afetivos e vitais (grutas) para que não sejam contaminados pelas exigências da competição e produtividade.
Este é o convite insistente do Natal: marcados pela ternura de Deus, viver misericordiosamente.
Na noite do Natal, a Misericórdia “desce” aos rincões da humanidade; uma intensa Luz brilha no interior da gruta e nos convida a olhar contemplativamente todo o universo e descobrir o significado do mundo. “Deus se fez mundo, a misericórdia se faz carne”.
A contemplação do Nascimento de Jesus nos impulsiona a fazer a travessia para o interior de uma Gruta: ali o Grande Mistério da Misericórdia se faz visível e revelador do sentido da existência humana. Trata-se de “entrar” nela com suavidade, de percebê-la e fazê-la descer até o coração, de convertê-la em matéria de consideração e oração silenciosa e surpreendida.
A contemplação desse Menino na Gruta revela que Deus, na sua Misericórdia, assumiu a aventura humana desde seus começos até seus extremos. Deus se fez “tecido humano”, revestiu o ser humano de sua própria glória, plenificou-o de sentido e de finalidade. No nascimento de Jesus é revelada a grandeza, a dignidade, o mistério inesgotável do ser humano. Nossa humanidade foi divinizada pela “descida” de Deus. “Sendo rico, Cristo se fez pobre para que nós participássemos de sua riqueza” (2Cor. 8,9).
Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano. Na pobreza, na humildade da própria história pessoal, inserida na grande história da humanidade, torna-se possível acolher o dom da Misericórdia de Deus visível na Criança de Belém.
“Em uma carne espiritual calosa, fossilizada, endurecida, Deus não pode vibrar. Deus vibra sempre no terno. O Natal evoca em nós aquele menino que fomos e aquela criança na qual, quando sonhamos, ainda captamos a presença de Deus... O menino é um olho aberto e maravilhado diante desta Presença” (A. Olivier).
A publicidade dos meios de comunicação, as cadeias de televisão vão nos impondo olhos para ver o de cima, o que conta, o que vale, o que impera. Enquanto que Belém arrasta nossos olhos para baixo, nos convida a olhar para o que não aparece, o que não conta, o que quase não se vê.
Em tempos de deslocamentos forçados para milhões de seres humanos, na era da tecnologia e da comunicação virtual, somos convidados a olhar o “reverso” da história para encontrar salvação, buscá-la sob o signo da debilidade em um entorno prepotente. O Natal nos aponta para o pequeno, o último... nos faz dirigir o olhar para a periferia, onde o coração de Deus armou sua tenda.
Deus pode ser encontrado não na estrada suntuosa do domínio e do poder, mas na estrada da doação, da partilha, da solidariedade... A única explicação da “descida” de Deus é sua “misericórdia compassiva”. A indigência e a fragilidade da humanidade atrai a plenitude da ternura e da graça de Deus. No Verbo feito homem nos é revelada a grandeza, a dignidade, o mistério inesgotável de todo ser humano.
Texto bíblico: Lc. 2,1-14
Na oração: A cena do Nascimento de Jesus pede tempo, presença, assombro... para deixar-nos afetar por ela.
- descer aos rincões interiores com a luz do Nascimento de Jesus; abrir espaço para que a luz chegue até os recantos mais escondidos; “nas cavernas interiores está escondido nosso verdadeiro tesouro”;
- nós nos humanizamos ao mergulhar na humanidade de Jesus.
Humanizando-se, Jesus desatou todas as possibilidades humanas presentes em cada pessoa.
Que a celebração do Natal faça emergir o que há de mais “humano” em cada um de nós.
Um “humano Natal” a todos.
Pe. Adroaldo Palaoro, sj
“Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre...” (Lc 1,41)
Nos relatos do Evangelho de Lucas há duas mulheres, Maria e Isabel, que experimentaram profundamente o dom da gratuidade, e seu lugar de carência se converteu em lugar de abundância. As duas descobriram o dinamismo curador das relações e a riqueza que os contatos pessoais contêm.
As relações que nos constituem são o tecido pelo qual circula nossa abertura a Deus e por onde crescemos em humanidade, acolhendo e sendo acolhidos pelos outros.
Vivemos em um mundo hiperconectado, em contato permanente e presente, ao mesmo tempo, em todos os lugares. O mundo, nossa vida, se converteu num “chat” contínuo. No entanto, em meio a este “chat” universal, a conversação emudeceu; a maior parte de nossas “conversações” tornaram-se prisioneiras das telas (celulares, tablets, smartphones, internet). Corremos o risco de reduzir a comunicação à conexão. Banalizam-se os conteúdos da conversa, mas também são amputadas dimensões fundamentais da experiência da comunicação, sobretudo a presença física. Sem essa presença, sem o encontro pessoal, não é possível o diálogo e a verdadeira comunicação. Este empobrecimento da comunicação vivente com o outro, ou a atrofia e medo de um face-a-face, é sinal claro de uma profunda desumanização.
O “mistério da visitação” nos possibilita recuperar o sentido e o dinamismo de um encontro interpessoal. O encontro é uma realidade inter-humana dinâmica e, até certo ponto, tem algo de arriscado e imprevisível, derrubando todas as nossas prévias tentativas de controlá-lo.
Podemos planificá-lo preparando estratégias; podemos acolhê-lo cheio de expectativas ou, pelo contrário, sem elas, esperando uma mera formalidade, repetição de outras situações semelhantes; podemos nos mostrar desejosos ou desconfiados, seguros ou ansiosos... De repente, algo inesperado acontece, na outra pessoa, ou em nós mesmos, ou no contexto, convertendo aquele encontro numa situação única e original, afetando nosso viver ou transformando nosso eu profundo.
O evangelho de hoje nos apresenta uma visita inesperada: a visita daquela que não permanece fechada nem ensimesmada em seu mistério; a visita daquela que se sente impulsionada a sair de si mesma para colocar-se a serviço daquela que está necessitada de ajuda.
Uma visita alegre, espontânea e gratuita, porque cheia da experiência de Deus; Maria que faz Isabel sentir a alegria de uma maternidade não esperada. Isabel que faz Maria sentir as maravilhas que Deus realizou nela. Uma visita que se expressa em dois cantos de louvor e ação de graças: “Bendita és tu que acreditaste” e “Minha alma engrandece o Senhor”.
Há visitas que não significam muito: só servem para matar o tempo e “jogar conversa fora”. E há visitas que despertam vida, que faz saltar a vida que carregamos dentro de nós. Por isso, todos somos seres carentes de “mais visitações”. Visitações que despertem nossas possibilidades e sonhos, visitações que nos façam saltar de alegria, visitações que nos ajudem a reconhecer as maravilhas que Deus realiza em nós e nos outros.
À sombra do encontro entre Maria e Isabel e contemplando o modo de visitar e de ser visitado, agradecemos o tecido relacional que conforma nossas vidas. É um tempo para orar as relações, para considerar aquelas que precisamos continuar alimentando e aquelas que se romperam e que queremos reparar.
Agradecer as relações que nutrem nossa vida. Trazer ao coração as pessoas significativas que nos fizeram provar o sabor do amor em nós e seus bons efeitos. Recolher agradecidamente os pequenos gestos de amor, de carinho, de escuta, de confiança, de paciência... que tiveram conosco.
As duas mulheres se encontram em diferentes momentos vitais: Isabel na terceira etapa de sua vida, Maria quase na primeira, entrando na segunda. Uma é estéril e anciã, a outra, jovem e virgem, ambas portadoras de uma vida maior que elas mesmas, conhecedoras do mistério que crescia em seu interior.
Devido à sua gravidez, as duas se encontram fora da norma social, do estabelecido. Isabel é idosa para poder conceber, e Maria está grávida sem estar casada. Ambas deviam sentir não só alegria no abraço, mas também a comoção e as dúvidas: “quê vai acontecer?”, “como vamos ajeitar as coisas?”...
Elas apoiam-se mutuamente no momento no qual estão, na situação que atravessam; reconhecem-se e se confirmam; estabelecem um vínculo entre elas, aceitam-se mutuamente; não se julgam nem valoram em função do que a sociedade considera correto ou incorreto; compreendem o que significa para cada uma delas que algo novo está crescendo em seu interior.
Maria não vai só servir a Isabel; ela precisa de alguém que a partir de sua experiência lhe diga: “vai em frente, que isso é de Deus”. Necessita que Isabel a confirme e a bendiga. E Isabel, por sua vez, necessita agradecer o sonho de Deus que as duas compartilham e que se tornou possível.
Estas mulheres são um ícone preciosíssimo para cultivar as dimensões do diálogo intergeracional e a necessidade que temos de diálogo em todas as dimensões da vida, entre as culturas, entre as diversas tradições religiosas... O diálogo como caminho para a comunhão. Elas nos conduzem a agradecer a capacidade feminina, que homens e mulheres tem, de deixar transparecer o Mistério que nos habita, de despertar-nos uns a outros para essa Vida que nos habita e cuja presença reconhecemos.
Isabel e Maria se convertem cada uma em comadre, em parteira da outra; a partir de seus diferentes momentos vitais, vão se ajudar a esperar e a passar o processo do “dar à luz”. Na vida nova que está se gestando nelas, no secreto, anseiam em uníssono para trazer ao mundo algo de Deus que estava oculto. As duas sabem de espera e de dores de parto. O parto não é um fato isolado e acontece nele a contração e a relaxação, a dor e o prazer, a posse e o desprendimento, a tristeza e a alegria, o medo e a confiança. Isto que as parteiras mencionam como momentos do parto, do “dar à luz”, são momentos de nossa vida, de nossas relações. Todos nos reconhecemos aí. Somos parteiros uns dos outros, e necessitamos cuidar desses processos cotidianos onde a vida do Espírito se manifesta como luz da vida.
Os ícones que ao longo dos séculos expressam esta visita, esta saudação, nos apresentam as duas mulheres vinculadas, unidas por um abraço, por um beijo, por uma mesma alegria. Em seu modo de entrar em relação, em sua maneira de dialogar, se apresentam na qualidade de mestras para nós, para nossa humanidade fragmentada que aspira relações novas.
Isabel e Maria se fazem valer mutuamente e despertam o melhor que há em cada uma. Viveram uma história de agradecimento e de libertação, se encontraram a partir da alma, a partir do mais profundo de si mesmas e se ofereceram mutuamente palavras amigas, palavras de encorajamento e de sabedoria. Elas nos ajudam a nos perguntar: Quê tipo de história relacional queremos viver? Uma história a partir do ego ou a partir interioridade?
Texto bíblico: Lc 1,39-45
Na oração: sua casa, lugar de visitação e encontro, espaço humano de partilha, convivência, festa, ajuda...?
Ou, casa cercada de parafernália eletrônica de segurança, com entrada rigorosamente controlada..., impedindo o acesso até mesmo dos mais próximos (parentes, amigos)?
- Seja uma casa sempre aberta: “entrada franca”;
Casa, lugar do lava-pés, do mandamento novo, da amizade, da oração...
Casa, lugar do discipulado: olhar, escutar e seguir
Casa, lugar de unção-acolhida, serviço e cuidado...
Casa, lugar do Nascimento, da experiência de um Natal permanente.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“As multidões perguntavam a João: ‘que devemos fazer?’” (Lc 3,10)
Na iminência da vinda do Messias, os que se deixam envolver pela pregação do Batista lhe pedem normas de comportamento. Estas poderiam ser resumidas numa palavra: humanismo, ser gente.
Novamente, estamos acostumados demais a estes textos, impedindo-nos de descobrir sua novidade. Mas, o normal que se esperaria do profeta e asceta como o Batista, seria: exercícios de penitência, jejum e cilício. No entanto, o Batista tem as ideias muito claras; não propõe às pessoas acrescentar às suas vidas novas práticas religiosas, não lhes pede que fiquem no deserto fazendo penitência, não lhes fala de novos preceitos. É preciso acolher o Messias, olhando atentamente e comprometendo-se com os necessitados.
Em outras palavras: viver a partilha; para os fiscais de imposto, serem honestos; para os soldados, não devem molestar as pessoas e contentar-se com seu soldo.
Ser humano: esta é a exigência do momento quando o Reino de Deus acontece no meio de nós.
Nesta terceira semana do Advento os sinais se tornam mais concretos: é preciso abrir-se à alteridade para viver a partilha, sair do estreito círculo do “meu”, para que o instinto de posse deixe passagem à liberdade de preferir o bem maior da relação: oportunidade de humanizar nosso louco consumismo, fazer-nos mais sensíveis ao sofrimento das vítimas, crescer em solidariedade prática, denunciar os desmandos na gestão da coisa pública, ativar a força da compaixão... Essa será nossa maneira de acolher com mais verdade o Messias em nossas vidas.
O Advento nos torna flexíveis, atentos às inspirações do Espírito; é um estado de alerta, de escuta e de uma grande atenção em relação à realidade que nos cerca, buscando ser presença que ajuda, que eleva e que salva quem está em situação de necessidade. O Advento revela a natureza humana verdadeira, quando esta não está entulhada pela ilusão e pelo ego; é des-centrar-nos, desfazer-nos de tudo aquilo que acreditamos ser, para que somente fique em nós o que é próprio de Deus.
Viver em “estado de mobilidade expansiva” é sair de nossos hábitos, sair do conhecido. Se entrarmos nessa aventura, nossa vida será virada pelo avesso e completamente questionada.
O Advento é o que diz “sim” em nós: sim à vida, sim ao compromisso, sim à compaixão... É necessário que descubramos em nosso interior, o sim mais profundo; ativá-lo para que nossa vida cresça em humanidade e alargue nossa capacidade de sair e caminhar para além de nós mesmos. O sim interior deve ser uma irradiação de todo o nosso ser.
Quando o impulso para o além, para a transcendência nos habita, tudo se torna sagrado, nossos olhos se tornam contemplativos e se fazem mais oblativos, movendo-nos em direção aos outros. Podemos dizer que o Advento, quando carregado por uma expectativa de Alguém que vem ao nosso encontro, destrava nosso coração, mãos e pés: coração cheio de compaixão e ternura; mãos que curam, cuidam, abençoam... e pés que nos arrancam de nossos lugares estreitos e nos deslocam em direção às margens, para junto dos pobres e excluídos.
Uma pessoa marcada pela vivência do Advento não é aquela que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquela que, movida por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí deixa transparecer o rosto da velada presença do Inefável. Isso significa uma maneira diferente e original de ser presença na realidade, dividida e conflituosa.
A espera do Messias não é passiva; ela se revela na saída de si mesmo, descentrar-se para entrar em sintonia com o outro, sobretudo os mais necessitados.
A espera implica um “modo de proceder” aberto e expansivo... Também na vivência cristã somos contaminados pela cultura do imediatismo e do ativismo; somos vítimas ingênuas de uma competitividade que nos é imposta e que nos exige desumanamente; com isso, o desejo de ajudar e de servir ficam soterrados pelo esgotamento, pela descrença e pelo desgaste profundo.
Há uma doença terrível e mortal que nos afeta a todos: a “compulsão prática” (popularmente conhecida como “fazeção”) ou seja, preocupação sem medida com o “fazer”. Com a chegada do “utilitarismo”, a pessoa passou a ser definida pela sua “produção”: a identidade é engolida pela “função”. E isto se tornou tão enraizado nela que, quando alguém lhe pergunta “quem ela é”, responde imediatamente o “que ela faz”.
Estamos mergulhados na cultura de resultados. A existência inteira faz-se maquinal e rotineira; já não encontramos mais “tempo” para desfrutar das atividades mais simples e humanas. Sentimo-nos invadidos por ruídos, pressas, atropelos, ansiedade, resultados imediatos, vivências superficiais... sem uma unidade interna e sem uma direção. Vivemos uma quantidade de experiências rápidas, amontoadas, sem possibilidade de avaliação... e vamos perdendo, pouco a pouco, a história pessoal e comunitária. Com isso, nosso “modo de viver” torna-se rotineiro, pesado, carregado de desencanto..., nos tornamos medíocres e nos acomodamos na passividade.
Nossas ações e nosso serviço se esvaziam, tornam-se “insensatos” (sem sentido, sem inspiração e sem motivação: “para quê?” “para quem?”); fazemos coisas que não faríamos se pudéssemos tomar distância e discernir a respeito do que estamos fazendo. Tudo isso nos faz viver à margem de nós mesmos, na superficialidade... sem poder captar o “mistério” escondido em nosso interior, nos outros e nas criaturas.
É neste contexto dramático e perigoso que devemos situar o lugar e o sentido do Advento, fonte primordial de inspiração do novo, de sentido evangélico de nossa ação, de esperança ousada.... como um modo de ser, uma atitude de base a ser vivida em cada momento e em todas as circunstâncias.
O Advento é a contracorrente do ativismo. Se, de um lado, o ativismo nos arrasta para a repetição e a conservação, de outro lado, a espiritualidade do Advento nos impulsiona para a busca, a criatividade, a ação discernida... visando o “maior e melhor serviço”.
Devemos habitar um mundo onde a interioridade faz a diferença, ou seja, onde as pessoas se definem por suas visões, paixões, esperanças, sonhos, imaginação criativa...
Texto bíblico: Lc 3,10-18
Na oração: A realidade cotidiana (casa, comunidade, trabalho, militância, relações...) é o “lugar” onde somos chamados a viver o Advento e a deixar-nos conduzir pelo mesmo Espírito que animou João Batista, o levou a mergulhar na trama humana e a assumir o risco do compromisso.
- Contagiar os outros com a nossa esperança: esta é a disposição de uma “Igreja em saída” e que não aguarda numa sala de espera.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O pensamento volta-se agora para a Mãe de Misericórdia. A doçura do seu olhar nos acompanhe neste Ano Santo, para podermos todos nós redescobrir a alegria da ternura de Deus. Ninguém, como Maria, conheceu a profundidade do mistério de Deus feito homem. Na sua vida, tudo foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne. A Mãe do Crucificado Ressuscitado entrou no santuário da misericórdia divina, porque participou intimamente no mistério do seu amor”. (Papa Francisco – Misericordiae Vultus)
Existe uma relação muito profunda entre Maria, Mãe de Jesus, o mistério da Misericórdia divina e a vivência da misericórdia. Desde sua concepção, Maria foi envolvida na infinita misericórdia de Deus Pai, pelo Filho e no Espírito Santo. Ela nos foi dada como Mãe, por seu filho Jesus, a própria misericórdia, e ela nos ama também de modo misericordioso, especialmente os pecadores e sofredores.
O Papa João Paulo II destacou na sua Encíclica “Dives in misericórdia” que Maria é a “pessoa que conhece mais a fundo o mistério da misericórdia divina” (n. 9).
Maria é a mãe que gerou a misericórdia divina na Encarnação, graça extraordinária que a coloca numa relação intima com Deus, o “Pai das misericórdias” (2Cor 1,3). Ao responder ao anjo “Eis-me aqui” e “Faça-se”, a Misericórdia divina se “faz carne” e entra na nossa história
Em qual sentido podemos proclamar Maria como “Mãe de misericórdia”?
O título “Mãe de misericórdia” assim se justifica: Maria é a mulher que experimentou de modo único a Misericórdia de Deus, que a envolveu de modo particular desde a sua Imaculada Conceição, passando pela Anunciação, vivendo como fiel discípula e seguidora do seu Filho, até o grande momento da Sua Páscoa (paixão, morte, ressurreição, glorificação e Pentecostes). Ela é “kecharitoméne”, “cheia de graça”, ou seja, totalmente transformada pela benevolência divina (cf. Ef 1,6).
No seu cântico o “Magnificat”, por duas vezes Maria, a profetisa, exalta a misericórdia de Deus; movida pelo Espírito, ela louva o Pai misericordioso: “a sua misericórdia se estende de geração em geração sobre aqueles que o temem”; “socorreu Israel, seu servo, lembrando-se de sua misericórdia”.
A misericórdia que Ela proclama no Magnificat foi vivida em todos os momentos de sua vida: desde o seu sim, até o momento em que acompanha os discípulos de seu Filho nos inícios da Igreja. E segue fazendo até o fim dos tempos.
Uma característica que particularmente toca o nosso interior, dada a nossa condição humana frágil e necessitada do auxílio de Deus, é a Misericórdia, que em Maria ecoa com muita intensidade, como a for-ça de uma cascata, que penetra até os corações mais duros. Maria é, como rezamos, a Mãe de misericór-dia. Mas para entendermos como toda a vida de Maria proclama a misericórdia, devemos primeiro pene-trar no coração do Pai, rico em misericórdia, pois Maria é como a lua que reflete os raios do sol de justi-ça, que segundo a tradição da Sagrada Escritura é o próprio Deus.
Maria é a intercessora incansável do povo de Deus ; ela não deixa de apresentar as necessidades dos fiéis ao seu Filho. As “Bodas de Caná”, por exemplo, é uma concreta evidência de sua presença misericor-diosa. Ela se compadece da situação dos noivos e pede ao seu Filho realizar o primeiro “sinal”. Em Caná, portanto, a novidade está numa nova forma de presença de Maria, que não se encontra interes-sada, em princípio, por fazer coisas, por resolver problemas, senão para traçar uma presença. Ela não está aí para “arrumar” as coisas, mas para escutar e compartilhar um momento festivo. Ela se encontra presente, num gesto de solidariedade que transcende e supera toda atividade.
Porque estava presente a Deus, Maria fez-se presente nos momentos decisivos de seu Filho, bem como fez-se presente na vida das pessoas. Uma presença que faz a diferença: presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de uma mãe. Sua presença não era presença anônima, mas comprometida; presença expansiva que mobilizou os outros, assim como mobilizou seu Filho a antecipar sua “hora”.
Trata-se de uma presença que é “música calada” nos lugares cotidianos e escondidos, que sabe enterne-cer-se e escutar as inquietações que procedem desses lugares. Uma presença que descobre o próximo no próximo, que sabe resgatar a solidariedade na vida cotidiana. Uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.
Em definitiva, Maria descobre que é chamada a dar de graça o que de graça recebeu. Sabe entrar em sintonia com os sentimentos dos outros e construir vida festiva, e vida em abundância.
Sua presença misericordiosa revela um gesto profético de solidariedade e de anúncio: presença que aponta para uma outra presença, a de seu Filho, a misericórdia visível. Sua presença dignifica e revela um novo sentido à presença de Jesus numa festa de Casamento.
A presença misericordiosa, silenciosa, original e mobilizadora de Maria des-vela e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carên-cias. Tal atitude misericordiosa nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossos problemas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetiva-mente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher na própria vida outras vidas; histó-rias que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.
Evidentemente, nem toda presença é “saída de si”; uma pessoa pode passar pelos lugares sem que os lugares deixem pegadas; ela pode tocar a superfície das coisas e das vidas, mas esse contato deixa pouca memória e que logo desaparece. Com isso não há encontro nem aprendizagem.
Quando a pessoa se faz presença misericordiosa que desemboca no verdadeiro encontro, ela se expõe, se faz vulnerável, se deixa afetar... Mas essa é a oportunidade para transformar os olhares e os gestos de quem se atreve a sair dos horizontes estreitos e conhecidos. São muitos os encontros que são fecundos para quem se faz presente e para quem acolhe esta presença. São muitas as pessoas cujas vidas ganham em seriedade, em profundidade, em compaixão e em alegria autêntica ao fazer esse caminho de saída de si.
São muitas as pessoas que, em contato com vidas e histórias diferentes e reais, compreendem melhor suas próprias vidas e sua responsabilidade.
Textos bíblicos: Lc 1,46-55 Jo 2,1-12
Ó Maria, Mãe que experimentastes e gerastes a Misericórdia, Mãe que proclamais e exerceis a misericórdia, fazei de nós autênticos apóstolos deste mesmo mistério de amor em nossos tempos e em nossos ambientes. Amém.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Esta é a voz daquele que grita no deserto: preparai o caminho do Senhor...” Lc 3,4)
Advento nos convida a “fazer estrada”, numa viagem em busca do mundo interior, sede dos desejos, daquilo que é importante e essencial, o nosso modo de projetar o futuro, as nossas decisões... Nesse “mergulho” interno cada um pode construir uma espécie de mapa do “eu”, com as regiões fortes e fracas, vulneráveis e criativas, transparentes e ainda misteriosas.
A figura de João Batista “toca” o coração de cada um e nos possibilita “entrar” em nosso mundo e captar em profundidade a nossa realidade, a perceber a raiz do nosso ideal de vida (cada vez mais atraente-convincente-exigente), como também suas contradições e ilusões, medos e necessidades.
Esse processo interior, motivado pela presença instigante do Batista, nos motiva a elevar vales e rebaixar montes de nossa paisagem interior: desmontar colinas do medo, nivelar os acidentados terrenos de esperança, alongar a “pele da alma” para nos redimir das escleróticas rugas dogmáticas e facilitar os caminhos do Senhor.
Profundidade e amplitude: são as duas dimensões ativadas neste tempo litúrgico do Advento; elas estão intimamente conectadas de modo que quanto mais profunda é uma pessoa, mais livre se faz de seus limites imediatos e mais capaz de olhar amplamente a realidade que a envolve.
E o percurso do caminho interior nos ensina muitas coisas. Aquele que “desce” em seu interior, é alguém que não tem medo de si mesmo, de olhar para si em todos os aspectos e dar-se conta do que está acontecendo. Um fio e intenso raio de luz penetra e ilumina, quase imperceptível, alguns rincões do seu aposento interior. Em seu silêncio interior, nas profundezas de seu ser, acolhe, escuta e reconhece o murmúrio de uma voz, chamando-o a engajar-se na aventura do serviço a Deus e aos outros. Com o passar do tempo, torna-se capaz de reconhecer a ação de Deus.
É ali que a pessoa descobre aquilo que podemos denominar a “bússola interior” do coração, algo capaz de lhe revelar as “moções” de seu íntimo; “moções” que mobilizam a energia vital mais profunda de seu ser. Esta interiorização é abertura, é dilatação do coração, é expansão do ser em direção a um mundo percebido como “morada do Criador”.
No nosso processo espiritual do Advento, devemos também ativar esta capacidade de ver quem somos nós, onde estamos, para onde vamos... sem o temor de nos defrontarmos com respostas desagradáveis. Somente partindo da realidade de nós mesmos, do conhecimento do nosso terreno interior, poderemos crescer como peregrinos em direção a um horizonte que progressivamente se mostrará sempre mais claro. Caminhando por estradas interiores desconhecidas, poderemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer “vozes novas” que nos mobilizam na direção de uma causa nobre e divina.
Dizem que há pessoas capazes de serem curadas por uma voz, pela sonoridade de uma voz determinada. Vozes que “tocam” e despertam forças desconhecidas. Certas vozes nos devolvem ao nosso ser essencial. Quanto aspira nosso coração escutar uma voz que desate em nós forças libertadoras! Livres do domínio de nossas compulsões, livres para amar sem defesas, livres para sermos nós mesmos e poder entrar numa relação nova com a realidade...
Somos seres de palavras e somos também seres de silêncio. Neste mundo de “palavreado crônico” temos esvaziado o dom da palavra, as palavras tem pouco valor, as vozes se fazem estridentes e agressivas... Por isso, precisamos educar nossa voz no calor do silêncio, porque só o silêncio restaura a integridade de nossas palavras. Essas palavras podem curar, elevar, comunicar vida... Vozes que devolvem a dignidade a cada pessoa, remetendo-a a si mesma, ajudando-a a conectar com seu ser mais profundo.
Precisamos ouvir vozes que toquem nossas superfícies endurecidas e nos libertem de tantas ataduras que não nos deixam respirar com profundidade, nem olhar compassivamente, nem considerar a beleza da diversidade e da diferença. Também nós buscamos pessoas que possam nos dizer palavras para viver e somos também cobrados a entregar aos outros uma palavra de vida.
Os primeiros cristãos viram na atuação e na voz do Batista o profeta que preparou decisivamente o caminho para a chegada do Messias. Por isso, ao longo dos séculos, a voz do Batista continua ressoando com intensidade, despertando-nos para uma atitude de acolhida d’Aquele que quer fazer morada entre nós.
Lucas resumiu sua mensagem com este grito tomado do profeta Isaías: “Preparai o caminho do Senhor”.
O importante é a Voz, uma Voz que grita e diz: “preparai”. Ela nos define e nos faz ser mais humanos, pois alimenta nossa esperança e nos abre um caminho de transformação.
É tempo de profetas, tempo para escutar e discernir as vozes que vem do interior e vozes de outros homens e mulheres que abrem, com sua palavra, uma esperança de humanidade. Uma voz que grita no deserto: nossos “reinos neo-liberais” estão demasiados cheios de propaganda deste mundo, de poder e de dinheiro, de intrigas e invejas, de corrupção e falsos amores, de puras imagens que passam e morrem, mantendo as pessoas ocupadas em suas mentiras e ilusões.
É preciso sair ao deserto, retornar ao silêncio dos grandes profetas para escutar as vozes verdadeiras, aquelas que brotam do eu mais verdadeiro e que nos fazem mais humanos. Fernando Pessoa nos diz: “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.
O caminho foi e continua sendo uma experiência de rumo que indica a meta e simultaneamente é o meio pelo qual se alcança a meta. Sem caminho nos sentimos perdidos, interior e exteriormente. Assim se encontra a humanidade, sem rumo e num vôo cego, sem bússola e sem estrelas para orientá-la nas noites tenebrosas.
Cada ser humano é “homo viator”, um caminhante pelos caminhos da vida. Assim disse o poeta cantor argentino Atahualpa Yupanqui: “o ser humano é a Terra que caminha”. Não recebemos a existência acabada; devemos construí-la. E para isso é preciso abrir caminho, a partir e para além dos caminhos andados que nos precederam. Assim, nosso caminho pessoal nunca está dado completamente: tem de ser construído com criatividade e sem medo.
Esse é o sentido de nossa existência: escolher quê caminho construir e como seguir por ele, sabendo que nunca o percorremos sozinhos. Conosco caminham multidões, solidárias no mesmo destino, acompanhadas por Alguém chamado “Emanuel, Deus conosco”.
O cristão é um contínuo peregrino, enamorado do caminho, não da meta. E caminhando aprenderá a ser feliz com pouco e a ser companheiro samaritano; aprenderá também que o caminho é a meta e que é mais importante saber caminhar que chegar. E caminhando, ele se tornará caminho: um caminho de terra e de ar, de pedra e de fontes, de árvores e nuvens, de encruzilhadas incertas e horizontes luminosos.
Num albergue para peregrinos estava escrito: “Tu és o caminho”. Sim, nós também somos o caminho, a verdade e a vida. Como João Batista, que no caminho deixa ecoar sua voz que desperta e mobiliza a entrar em sintonia com “Aquele que está vindo ao nosso encontro”.
Neste longo percurso, os convites de Deus são absolutos e constantes. Se estamos apegados ao que temos, jamais seremos capazes de “fazer estrada com Deus” e participar da preciosa vida que Ele nos oferece.
Texto bíblico: Lc 3,1-6
Na oração: “Senhor, mostra-nos teus caminhos!” Esta é a oração fundamental de Israel, a petição permanente dos Salmos. Para o povo que peregrina no deserto, é essencial conhecer direções e entender ventos. E para o coração que peregrina no deserto da vida, é essencial conhecer os caminhos do Espírito e os ventos da graça.
- Seu caminho tem “alma”? Tem “coração”? Tem “voz”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...levantai-vos e erguei a cabeça, porque a vossa libertação está próxima” (Lc 21,28)
Mais uma vez o Advento vem ao nosso encontro, e com ele o convite para continuar ampliando espaços para Deus em nossas vidas. Uma oportunidade para escutar de novo sua promessa: promessa de nova vida, de um novo ânimo, uma nova esperança.
Podemos acolher este tempo com a marca da rotina (mais um ano, repetir as mesmas palavras, a espera, o “vem, Senhor”...); ou mobilizando-nos e abrindo-nos à surpresa de Deus, que virá a nós como chamado, como possibilidade, como grito para despertar-nos... Que nos abramos ao novo!
O melhor do Deus que vem é que Ele se manifesta de maneiras inesperadas: desfaz certezas, rompe convenções, renova sonhos, não busca brilhos ou ornamentos, aplausos ou adesões forçadas. Sua chegada não exige cobranças nem condiciona com exigências desmedidas. A esperança abre passagem por onde menos esperamos. E Deus continua aparecendo onde e quando ninguém espera.
Para “conhecer” a realidade e a verdade do Advento precisamos de olhos novos e de um coração novo. É necessário despertar aquela “sensibilidade” escondida e abafada pelo ativismo e pelo ritmo estressante de nossa vida. No Advento, toda a humanidade é atingida como que por um raio, é tomada de surpresa. A sua noite, o seu silêncio, o seu sono, a sua rotina diária... é quebrada por uma novidade absoluta.
O Advento é, por sua própria natureza, uma surpresa que quebra a solidão das pessoas abandonadas a si mesmas, que irrompe no meio de uma vida sem sentido e sem direção, que traz luz para os ambientes fechados e frios.
A “sensibilidade” despertada pelo Advento recupera em nós o sentido da surpresa, recobra a atitude da expectativa, da novidade, do assombro... diante da vida. Porque é no traçado das horas e dos dias que Deus prepara sempre a sua novidade, a sua surpresa, o seu dom natalício. Tal surpresa faz brotar o entusiasmo para enfrentarmos os desafios da vida, despertando projetos arquivados, suscitando dinamismo novo no cotidiano pesado, fazendo-nos levantar de novo e retomar o caminho...
Precisamos conservar límpidos os olhos do espírito, prontos para perceber a maravilha que está germinando na nossa vida. O Advento quer reafirmar a possibilidade de uma alternativa, da chegada de um hóspede inesperado, porque é “boa nova”, é evangelho. Por isso, o cristão não deve jamais cair na resignação, mas permanecer em vigília, na expectativa; ele deve ser também uma surpresa para os outros, com seu gesto de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola, com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona. Ele olha o mundo com inteligência, sim, mas também com a simplicidade das pombas; sabe intuir o bem secreto, também sabe apreciar a poesia da vida e da natureza.
No evangelho de hoje(1º dom advento), Jesus dá por suposto a existência de situações desastrosas que nos sacodem, enchendo-nos de ansiedade e preocupação; mas, onde nós só vemos catástrofes, Jesus vê “sinais”. E a condição para descobri-los é erguer a cabeça, levantar os olhos, ir mais além do imediato que nos cega e nos prende em redes de desejos insatisfeitos, em obsessões por conservar modos de vida que considerávamos definitivos, em temores que embotam nosso coração impedindo o fluir da vida.
Curvados sobre nós mesmos, sem horizonte, sem poder olhar de frente, nem entrar em relação de reciprocidade, carregando durante longo tempo um peso excessivamente grande (culpa, ressentimento, vergonha), bloqueados, privados de nosso próprio potencial: este é o drama que nos desumaniza. Nossos corpos encurvados se fazem texto, linguagem, grito, petição... para serem endireitados. Nesse contexto ressoa com força o apelo de Jesus: “levantai-vos e erguei a cabeça, porque a vossa libertação está próxima”.
Nosso corpo fala mais e com mais veracidade que nossas palavras, o que irradiamos revela algo sobre nós. E há corpos que em silêncio clamam por cura e cuidado. É preciso interrogar nossos corpos para que eles nos contem suas histórias guardadas: seus segredos, suas dores, suas vivências. Devemos ser capazes de lê-los e respeitá-los, para poder devolver-lhes sua harmonia e sua beleza originais.
É nosso próprio corpo posto de pé, é nossa própria vida circulando sem ataduras, é a libertação de nossas forças afetivas, a possibilidade de olhar outros olhos sem temor e de entrar em comunicação... que nos faz experimentar uma relação nova com a vida. Aspiração, sede, ansiedade, expectativa, estar de pé: isso é o que nos invade quando sentimos que se aproxima algo que desejamos de verdade. Pois isso é o Advento: tempo para os grandes sonhos.
Só os medíocres ou os desesperados renunciam a sonhar. Pois bem, se o desânimo nos assalta, é tempo novo para levantar a cabeça, olhar ao longe, bem para fora, bem para dentro. Deixar que ressoe como uma promessa a Voz de um Deus que atravessa o tempo para dizer-nos: “aproxima-se vossa libertação”.
Mergulhados naquilo que é margem, passageiro, na superfície das coisas, perdemos de vista o essencial e caímos na resignação. Perdida a capacidade de maravilhar-nos, o Advento esvazia-se e torna-se mais um tempo litúrgico rotineiro.
Poderíamos dizer que o Advento nos apresenta uma “espiritualidade do despertar”. Se estamos adormecidos ou anestesiados, sem nos encantar com a maravilha e o desafio de estarmos vivos, precisamos despertar. Despertar para a gratuidade da vida, para o chamado à convivência e comunhão, despertar para uma presença misericordiosa. Jesus vem despertar-nos e ativar nossa esperança.
É preciso saber olhar, abrir os olhos, ler a vida e despertar-nos para aquilo que acontece à nossa volta. Se há uma palavra que perpassa todas as tradições religiosas, essa palavra é “despertar”, não no sentido individualista e moralizante, ou seja, manter um adequado comportamento moral para, desse modo, alcançar a salvação.
O chamado original a “despertar” reveste-se de uma profundidade muito maior, que conecta com aquela palavra com a qual Jesus inicia sua atividade pública: “convertei-vos”. Na realidade, trata-se de um novo modo de olhar ou de conhecer, de um “conhecer mais além da aparência”.
Quê significa “despertar”? Em quê sonhos estamos mergulhados? Como dar-nos conta de que estamos “adormecidos”? Há algo que possamos fazer?... Todas estas questões são evocadas pelo convite que aparece na boca da Jesus: “Estai sempre despertos”.
A pessoa desperta é aquela que experimentou intensamente a vida e, graças a isso, vive ancorada, enraizada e conectada com a sua verdadeira identidade, ao seu eu original e universal.
Texto bíblico: Lc 21,25-28.34-36
Na oração: Quando foi Deus, para você, o Deus inesperado?”
Em quê se concretiza para você a promessa de Deus? Quê espera ou deseja de verdade? Qual é a boa notícia na qual você acredita? Como vive você este Advento? Quê há, em sua vida, de busca, sonho, aspiração, desejo... em sintonia com Deus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“”Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37)
A liturgia encerra o “ano litúrgico” celebrando “Cristo rei”, festividade promulgada em 1925 pelo Papa Pio XI. Mas, no atual contexto sociocultural, como soa em nossos ouvidos o título de “Cristo rei”? Este título nos permite fazer uma ideia justa de quem é Jesus de Nazaré? Tem sentido falar de “Cristo rei”?
Para começar, é preciso reconhecer que se trata de um “rei” pouco convencional: seu trono é uma cruz e sua coroa é de espinhos. Um rei bem estranho, pois afirmou: “Não vim para ser servido, mas para servir”. Frente a isto, o evangelho de hoje revela-se surpreendente e até escandaloso, porque nos apresenta esse título numa situação de humilhação e impotência extrema: na Paixão, com insultos, escárnios e zombarias dos chefes judeus, de Pilatos, dos soldados romanos...
Diante dos donos do poder e das autoridades religiosas que se julgavam em posse da verdade e que tinham um Deus feito à medida de seus interesses, Jesus afirma que “veio para dar testemunho da verdade”. De acordo com o evangelista João “ser rei” equivale a ser “testemunha da verdade”; e isso a tal ponto que com essas palavras se define a missão de Jesus: “Eu nasci e vim ao mundo para isto”.
Esta afirmação desvela e define a trajetória profética de Jesus: sua vontade de viver na verdade de Deus. Jesus não só diz a verdade, senão que busca a verdade e só a verdade de um Deus que quer um mundo mais humano para todos os seus filhos e filhas. Diante dessa verdade Jesus se revela verdadeiro, pura transparência. “Por isso Jesus fala com autoridade, mas sem falsos autoritarismos. Fala com sinceridade, mas sem dogmatismos. Não fala como os fanáticos que procuram impor sua verdade. Tampouco fala como os funcionários que a defendem por obrigação embora não creiam nela. Não se sente nunca guardião da verdade mas testemunha” (Pagola).
Jesus não transforma a verdade de Deus em propaganda. Não a utiliza em proveito próprio mas em defesa dos pobres e excluídos. Não tolera a mentira ou o encobrimento das injustiças. Não suporta as manipulações. Jesus se converte assim em “voz dos sem voz, e voz contra os que tem demasiada voz” (Jon Sobrino).
Quem é verdadeiro se move com muita liberdade em direção à verdade presente nos outros; não usa máscaras, não se impõe... Sua verdade vibra e se encanta com a verdade presente no outro. Verdades que se encontram, que entram em comunhão, que humanizam...
Toda pessoa verdadeira, transparente... incomoda, é provocativa... porque desmascara as nossas mentiras, nossas falsidades ocultas... Por isso é rejeitada. É difícil até definir e discernir o que seja a verdade, sobre o que é verdadeiro ou falso.
Pilatos, no evangelho de João, pergunta a Jesus: “O que é a verdade?” (18,38). Maior dificuldade ainda reside na imposição da verdade, em querer fazer o outro aceitar como verdadeiro aquilo em que eu acredito. Tentar convencer os outros gera conflito. Mas nem sempre nos contentamos com os argumentos. Especialmente quando o assunto é religião, existe a tendência de querer impor, pela força, pelo medo, aquilo que acreditamos ser verdadeiro.
Quanto fanatismo! Quanto dogmatismo! Quanto fundamentalismo! E tudo isso em nome de Deus. “A verdade também pode ter suas vítimas”.
A verdade não é um dogma e sim um caminho. Quanto mais verdades absolutas, mais estreito vai ficando o nosso mundo. Nunca podemos abrir mão de uma busca por uma verdade que subverta.Verdade não é apenas um princípio abstrato. Verdade é a realidade existente, o fato concreto, o conhecimento comprovado. A verdade des-vela o desconhecido, salienta a dignidade da pessoa, reivindica liberdade e igualdade, sustenta o significado essencial do ser humano, preserva os valores consistentes.
“Conhecer a verdade” é aspiração humana inata. O ser humano tem sede de verdade. Vai buscá-la nas encostas do mundo e nos recôncavos de seu espírito. Descobrir a verdade é conquista alvissareira. Compensa atravessar vigílias e trilhar veredas para chegar à verdade. Uma das angústias humanas é não alcançar o manancial da verdade. Enquanto existir verdade encoberta, o ser humano vive inquieto.
A verdade clareia a vida. Sem a verdade, a existência é sombria. A verdade gera autenticidade. Onde falta a verdade, instala-se uma lacuna na existência. Quem não vive a verdade, está carunchado por dentro. Impregnar-se da verdade é humanizar-se. Onde há verdade há humanidade transparente. Há rosto fascinante. Quando a verdade se des-vela e se faz visível, o ser humano se ilumina.
A humanidade busca a verdade, mas também pode asfixiá-la. Costuma-se reprimir a verdade que incomoda. E aqui tocamos um ponto tão nuclear como habitualmente mal entendido e pior vivido. A verdade não é uma crença (um conjunto de crenças), nem uma formulação ou uma doutrina.
Quando um cristão diz: “Eu tenho a verdade, porque Jesus disse que Ele era a Verdade, e eu creio nele”, caiu numa armadilha e, com frequência, numa danosa confusão. Ter uma crença não nos garante estar na verdade. Como se explica que alguém, em nome da “verdade”, cometa violência aos outros ou simplesmente os desqualifica? Quem faz isso é claro que não está na verdade. Quando a verdade se identifica com “crenças”, “formulações” ou “doutrinas”, acontecem efeitos estranhos, como o de confessar verbalmente uma coisa e estar vivendo a contrária.
Por isso, assim como a crença forçosamente tende a separar (os que creem e os que não creem), a Verdade sempre integra. Seguir a Jesus não significa ter determinadas crenças, mas estar dispostos a realizar a Verdade, o que Ele viu e viveu. Por isso, frente ao fanatismo que revela fechamento e estreiteza, a verdade requer abertura humilde, questionamento e flexibilidade. E é precisamente a pessoa que vive isto aquela que “é da verdade”.
Ser “testemunha da verdade” requer “viver na verdade”, não em algumas crenças. E viver na verdade inclui o reconhecimento e a aceitação da própria verdade, e da verdade presente no outro. Não pode estar na verdade quem não se aceita com toda sua verdade, com suas luzes e suas sombras; não pode estar na verdade quem vive identificado com seu ego ou com sua imagem idealizada. Pelo contrário, quando alguém se aceita assim, começa a viver na humildade e isso é já “caminhar em verdade”.
Afirmando de um modo mais claro: só conhece a verdade quem é verdadeiro, sem máscara ou disfarces. Quando se é verdade, conhece-se a verdade. É significativo que os antigos gregos entenderam a verdade como “a-létheia” (“sem véu”): quando “tiramos o véu” é quando emerge a Verdade do que somos. Aqui, cabe o termo “inventar”, que significa “descobrir o que está oculto”, e também significa “criar, fazer surgir o novo”.
Importa “inventar” a verdade, ir à morada da verdade, encontrar a verdade.
Isso é o que Jesus viveu. Porque chegou a experimentar a verdade profunda de si mesmo, pode dizer: “Eu sou a verdade”. Essa não era uma afirmação egóica, nem tampouco se referia a nenhuma crença ou ideia em particular. Era a proclamação-constatação humilde e jubilosa de quem des-velou e viu o “segredo” último de sua vida.
Texto bíblico: Jo 18,33-37
Na oração: Revele-se diante de Deus e deixe transparecer a verdade de sua vida: na confiança filial, des-cubra o que está recoberto, des-vele o que está velado, des-oculte o que está escondido, des-lumbre o que está ensombreado, des-mascare o que está camuflado, des-emudeça o que está calado, des-cative o que está algemado.
- A verdade que somos nunca pode ser algo que alguém tem e possa transmitir ou impor aos outros, mas a Presença que a todos sustenta e a todos abraça. Só a presença d’Aquele que é a Verdade ativa a verdade escondida em nosso interior.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão” (Mc 13,31)
Estamos chegando ao final de mais um “ano litúrgico” (este é penúltimo domingo), e a liturgia nos propõe leituras que, fazendo referência aos “últimos tempos”, querem nos convidar à “vigilância” e a atenção ao tempo presente.
O Evangelho de hoje é parte do cap. 13 do Evangelho de Marcos, que contém um breve “apocalipse”, ou seja uma revelação, um des-velamento, um des-nudamento dos múltiplos véus que revestem o palco, lúdico e trágico, da encenação do drama humano, com suas contradições, incertezas, promessas e esperanças.
Devido às imagens que este gênero literário utiliza, com frequência atribui-se ao termo “apocalipse” um significado de “catástrofe” ou “destruição”. A realidade, no entanto, é diferente. Etimologicamente “apo-kalypsis” significa “destapar o que está escondido”, “tirar o véu”, “des-velar”, ou seja, “re-velação”.
À mesma raiz pertence a palavra “eucalipto”, cujo significa etimológico é: “eu-bem”; “kalypsis- escondido”, fazendo referência ao fato de que tem perfeitamente escondidas suas minúsculas sementes.
Assimpois, etimologicamente, “apocalipse” equivale a “verdade” (“aletheia”=sem véu). E, como consequência, o escrito apocalíptico pretende “retirar o véu” que nos impede reconhecer as coisas como são, ou seja, revelar-nos o que se encontra por debaixo da superfície, em um nível mais profundo. É como se o autor quisesse nos dizer: “as coisas não são o que parecem ser”.
Em cada momento histórico o texto do Apocalipse é lido e interpretado em função dos acontecimentos. Este gênero literário é uma luz que nos ajuda a “ler” a realidade (interior e exterior), desvelando tudo o que acontece nela e assim poder assumir uma atitude mais coerente com a proposta do Evangelho. Assim, pode-se “ler” esse texto como se escutasse um sonho revelador.
O Apocalipse, portanto, é um empenho da comunidade cristã em dar sentido a tudo o que está acontecendo e assim reencontrar sua dignidade no coração das situações mais difíceis.
A revelação que ocorre no interior de cada um e na realidade que nos envolve é o desvelar (tirar o véu) de uma Presença. No centro de nossa solidão e de nosso exílio não estamos sozinhos, mas temos a visão de Alguém, que vem ao nosso encontro.
No texto evangélico de hoje nos é revelado, através de sinais (abalos celestes e terrestres, tribulações...), que esta ordem das coisas (o “mundo”) vai ser renovado em profundidade. Tudo desmorona à nossa volta, tudo vai desaparecer; mas o que o texto parece resgatar é a contundente confiança na afirmação e na promessa de Jesus: “O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão”. As Palavras do Filho do Homem constituem o nosso rochedo, são a nossa força. É um convite a nos recentrar.
Quando somos transformados pelos acontecimentos e somos levados pelas nossas emoções, pelas nossas reações, pelos nossos medos, é preciso voltar ao centro. O ciclone tem uma violência enorme e gira velozmente, mas seu centro é calmo, imóvel.
É preciso voltar ao centro do ciclone onde está o “Filho do Homem”, onde está o coração, onde está o Cordeiro. Esta vida nova está no centro da situação que vivemos, no centro desse mundo que é o nosso.
É a partir do interior que algo pode mudar.
Nesse sentido, o gênero “apocalíptico” vem nos dizer que, para além daquilo que possa ocorrer na superfície da história pessoal e coletiva, há uma Realidade estável que nos sustenta e que podemos experimentá-la como “rocha firme” sobre a qual firmar nossos pés. A velha ordem virá abaixo para ser substituída por um mundo novo que será inaugurado pela presença do Filho do Homem, reunindo toda a humanidade (“os quatro cantos”) e estabelecendo o “Reinado de Deus”.
Trata-se de um anúncio esperançador e certo. Esperança representada pela imagem da figueira que, carregando-se de brotos, anuncia a primavera. Esse é o nosso destino: caminhamos para uma Primavera que não conhecerá ocaso.
Na realidade, os discursos apocalípticos, a pesar de sua aparência, são sempre um chamado à esperança, que não é uma projeção para um determinado futuro, que serve para fugir do presente ou para poder “suportá-lo”; nem pode ser entendida como mera “expectativa” que nos afasta do presente, senão que nos faz ancorar nele, ou seja, viver na Plenitude do que é, no Presente pleno e com sentido.
A esperança, talvez mais do que qualquer outra inclinação ou disposição, está bem no cerne do ser humano e de sua existência, fazendo-o viver e dando sentido à aventura de sua existência. Basta pensar no que significa o desespero, a ausência de horizonte, a falta ou a perda de todo projeto possível, para compreender que a esperança emerge das profundezas do ser humano. Sem esperança , ele não pode viver.
O ser humano é ser “esperante”.
Segundo Rubem Alves, a esperança é o oposto do otimismo. Otimismo é quando, sendo primavera do lado de fora, nasce a primavera do lado de dentro. Esperança é quando, sendo seca absoluta do lado de fora, continuam as fontes a borbulhar dentro do coração. Otimismo é alegria “por causa de”: coisa humana, natural. Esperança é alegria “apesar de”: coisa divina. O otimismo tem suas raízes no tempo. A esperança tem suas raízes na eternidade.
A esperança carrega uma força misteriosa, um sopro criador, um alento espiritual que nos leva a olhar tudo com fé e encantamento; é um princípio vital, expresso na sábia e verdadeira constatação de que “enquanto há vida há esperança”. Mesmo diante de intransponíveis situações, vislumbramos possibilidades de saída, achamos possível ser de outro modo, inventamos e reinventamos alternativas, recusamos a possibilidade de as realidades nos dominarem e, sem cessar, sonhamos com o mais e o melhor.
A esperança é gestora do futuro e rompedora da dureza do existir.
Paulo Freire insistia que não se pode confundir esperança do verbo “esperançar” com esperança do verbo “esperar”. Esperançar é se levantar, é ir atrás; esperançar é construir e não desistir. Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo.
Uma das coisa mais perniciosas que vivemos no atual momento é o esvaziamento da esperança, que se expressa no desalento, desânimo ou até na covardia tolerante. Michelângelo dizia que “Deus concedeu uma irmã à recordação, e chamou-se esperança”.
A esperança, portanto, é como esse impulso que desafia o presente imediato, sempre curto e sem raízes no futuro; é ela que nos permite escrever nossa história com mais criatividade e ousadia, nos abre à invenção de possibilidades que nos fazem viver, corrige o passado e nos faz recomeçar, mantém a coragem de ser, transforma em nós o ser de puras exigências e de simples necessidades em seres capazes de dom e de desejo. Na esperança, encontramos a abertura e a amplitude de nossa vida.
Não basta esperar, é preciso uma paixão de esperança, a qual somente é possível se conduz para um horizonte plenificante, para um além da vida do dia-a-dia.
Texto bíblico: Mc 13,24-32
Na oração: Como se situa diante dos desafios que é chamado a assumir? Não se sente cansado por já ter vivido tantas mudanças?
- Você se arriscaria por um novo começo?
- Ou talvez desanimado porque as coisas não aconteceram como havia previsto? Ou, ao contrário, cheio de energia, entusiasmado por ser protagonista de uma época considerada de graça e de bênção?
- Quê esperanças você carrega no coração?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
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