Há um dado que nos afeta a todos nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da experiência humana. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana.
Mas o confronto com a morte não precisa desembocar em um desespero que possa destituir a vida de todo sentido. Ao contrário, ela pode ser uma experiência que nos faz despertar, nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada.
A negação da morte sempre cobra um preço – o encolhimento da nossa vida interior, o embaçamento da visão, o achatamento da racionalidade, a atrofia dos sonhos. Ao final, o autoengano toma conta de nós. A angústia sempre acompanhará nossa confrontação com a morte.
Na perspectiva de fé, nossa cultura prescinde do Getsêmani na nossa vida cotidiana; no entanto, este é o lugar de depuração radical, o lugar no qual devemos situar nossos fracassos e nossas solidões; é no Gólgota que devemos pôr nossas enfermidades e nossas mortes. Nossa cultura nos impede pôr a vida nesses lugares porque nega e não quer ver a fragilidade da condição humana, fonte de dor e sofrimento.
Em Getsêmani, quando todos o abandonaram e fugiram, o Compassivo permanece em radical solidão, ninguém se interessa mais por Ele; esta solidão vital lhe provoca uma angústia de morte, o sacode e o aflige, levando-o à prostração. No Gólgota, Jesus experimenta, junto ao abandono, o fracasso, tudo se dilui, o mundo lhe cai em cima.
Adentrar-nos em nosso próprio Getsêmani e Gólgota é abordar nossa radical solidão. Mesmo que produza vertigem e nos enche de angústia, é preciso olhar o túnel de frente e entrar nele. Então, invocamos Àquele que nos pode sustentar e saímos do túnel com uma solidão habitada, com o sentimento de uma presença, com a vida enraizada no único que é fonte de vida e liberdade. Começamos a ver tudo com olhos novos, o sofrimento e a angústia transformam-se em Vida.
O teólogo e mártir Bonheoeffer afirma: “Em Jesus crucificado se rompem todas as ideias sobre Deus que as pessoas construíram através da história. Nele aparece a debilidade e o sofrimento de Deus. Só um Deus que sofre pode ajudar-nos”. É a partir da Cruz onde Deus nos diz que o mais divino que há em nós é a luta solidária por fazer um mundo mais justo e mais humano. Nossa missão será a de fazer descer da Cruz os crucificados da história, e unir-nos, indignados, aos milhões de pessoas que se manifestam a favor de uma sociedade mais justa e menos desigual.
Contemplar a paixão e morte de Jesus em toda sua crueza, nos leva a mergulhar na condição humana, a descobrir dimensões de nossa própria humanidade que, nesta cultura mentirosa, são mutiladas e reprimidas de tal maneira que nos tornam incapazes de ser portadores de Boa Notícia.
Junto à Cruz somos levados a crer que aliviar o sofrimento neste mundo não é uma questão puramente analgésica, quando, na realidade, o que se trata é da implicação compassiva nesse território tão humano e tão divino no qual nossas razões, doutrinas e morais fracassam: a “loucura” de um Deus Comunidade implicado no sofrimento de suas criaturas.
A crucifixão não foi um ato isolado, mas o cume de uma vida comprometida. Não agrada ao Pai a Cruz pelo que tem de sofrimento, mas porque supõe uma vida que se entrega até esse extremo. A Cruz não é um adorno, nem um objeto de culto, nem um amuleto. É um sinal; e, como todo sinal, indica algo: nos indica até onde pode chegar a brutalidade humana, quando os interesses, as ideias políticas ou religiosas, as leis... são colocados acima do ser humano.
E indica algo mais: até onde chega o amor e a generosidade de Jesus, que não duvidou em sua entrega; até onde chega o amor do Pai que em Jesus se fez visível.
Por isso, aquele que pensa que, diante da Cruz, temos de oferecer atos dolorosos a Deus não sabe “ler” a Cruz. Aquele que pensa que carregar a cruz de cada dia é aguentar a injustiça, não sabe “ler” a cruz. Aquele que converte a Cruz em uma condecoração para premiar um ato de violência ou uma joia que pode ser presenteada à pessoa amada, não sabe “ler” a cruz. Aquele que coloca a Cruz nas paredes das repartições públicas (delegacias, hospitais, tribunais, assembleias legislativas, câmara e senado federal), onde as sentenças são barganhadas e compradas, onde a corrupção é a moeda mais forte, onde os pobres morrem sem atendimento... não sabe “ler” a Cruz.
Sabemos “ler” este sinal, quando escutamos Jesus que nos diz: “Ninguém tem maior amor que aquele que dá a vida por seus amigos”. Não podemos tirar nenhum espinho da coroa de Jesus, nem diminuir as chicotadas nas suas costas, nem a humilhação e a dor de sua tortura. O que podemos hoje fazer é tomar posição solidária ao lado dos excluídos, humilhados e desgraçados de nosso mundo, como Ele fez; nossa primeira responsabilidade é aliviar o sofrimento do outro, lutar contra o sofrimento provocado pela injustiça sobre os mais pobres e excluídos.
O mistério da Cruz nos des-vela (tira o véu) e re-vela que toda entrega generosa, que a prepotência esmaga com a morte, não acaba em morte, mas em vida, e em vida que não termina. Podemos, então, fazer dois tipos de Via Sacra: uma, fixando-nos em Jesus, porque assim nos aproximamos da fonte do Evangelho; outra, fixando-nos nas brutalidades, violências, sofrimentos de nosso povo para ativar em nós uma generosidade ainda tímida. E, então, é quando começaremos a compreender o Evangelho.
Com os olhos fixos no Crucificado vamos aceitando com maior cordialidade e gratuidade que somos “faíscas da criação”, que nos cabe redimir a parcela da criação que nos foi encomendada e que a compaixão solidária é tecida com muita humildade, sem prepotência; ao mesmo tempo vamos descobrindo que a vida começa a emergir ali onde o mundo só vê fracasso e morte, e que orar a partir de nossas fragilidades nos põe no caminho para experimentar o dom da Páscoa.
Texto bíblico: Jo 19,31-37
Na oração: No silêncio, convém permanecer um bom tempo olhando “Aquele que traspassaram”. Para muitos olhos é só a imagem de um entre tantos “terroristas” que cruzavam as ruas de Jerusa-lém a caminho do Gólgota. Você pode se perguntar como é que, de todos aqueles, só a imagem e o nome deste Compassivo atravessaram a espessura dos tempos, chegaram até nós e hoje nos congrega em seu entorno.
E, dando um passo a mais, pergunte: creio de verdade n’Aquele crucificado que gritava: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
“Se eu, o Senhor e mestre, vos lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns dos outros”
(Jo 13,14)
Jesus sente que sua “hora” se aproxima, reúne os seus discípulos e manifesta-lhes o último desejo com um gesto que marcará para sempre a história da humanidade: o “lava-pés”.
O texto joanino nos diz que Jesus realizou o “lava-pés” durante a ceia. Todas as refeições tinham o “lava-mãos”. Algumas ceias especiais tinham o “lava-pés” no início como sinal de acolhida e de hospitalidade.
Jesus realiza seu gesto enquanto a refeição está acontecendo. Pode ser que Ele esteja colocando uma relação muito estreita entre o comer e o servir, melhor dizendo, entre a Eucaristia e o serviço solidário.
Até Jesus, os convidados para a refeição eram servidos e saiam satisfeitos. A partir de Jesus, os convida-dos para a refeição servem-se uns aos outros e saem da refeição para servir outros. O dom recebido é partilhado entre os seus, mas isso não basta, ele precisa ser colocado à disposição de todos, a começar pelos mais carentes. O dom é, ao mesmo tempo, graça e missão. A força que ele traz é para conduzir à vida em abundância.
Jesus “levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a à cintura”.
“Levantou-se da mesa”: este gesto de Jesus assume um significado especial. Revela-nos que não se pode servir permanecendo em nosso comodismo. O gesto de levantar denota que há algo por ser feito.
“Ficar de pé” é posição que expressa prontidão para servir; para isso é preciso deslocar-se do próprio “lugar” e descer até o “lugar” do outro. É desinstalar-se do próprio bem-estar, é dinamismo.
Jesus não faz um gesto teatral; Ele revela aos apóstolos um “novo ângulo” ou um novo modo de ver as coisas: não a partir do lugar dos comensais, mas a partir da perspectiva de quem não está sentado à mesa.
O gesto de Jesus nos convida a deslocar-nos, ou seja, ocupar o lugar da pessoa que não participa da mesa. Quê novidade percebemos a partir deste lugar?
“Estar à mesa” é sempre sinal de fraternidade, de comunhão, mas é necessário saber levantar-se na hora certa para poder servir com amor.
“Tirou o manto”: Ele mesmo se despoja. Abrir mão do manto é uma iniciativa livre e soberana, que nasce de seu próprio interior. O manto impede a liberdade de movimentos, não permite fazer o serviço com facilidade. Há “mantos” que são sinais de poder.
O Senhor assume, em tudo, a condição de servo, para servir. Troca o manto pela toalha-avental: este parece ser o distintivo fundamental, divisor de águas entre a religião antes e depois de Jesus Cristo.
As autoridades religiosas vestiam-se do distintivo de autoridade-poder para servir o povo. Jesus despe-se dele para servir. Ele serve verdadeiramente como servo. Os outros serviam como senhores.
É necessário arrancar “todos os mantos do poder” para poder redescobrir a verdadeira dignidade humana desnuda e despojada de todas as aparências. Não há serviço sem se despir de todas as aparências de poder, de força, de prestígio. Não é possível amar colocando-se longe do outro.
“Coloca água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido”. Normalmente os preparativos ficam por conta de outros; é o servo que prepara a bacia com água para que o senhor lave os pés de outro. Aqui Jesus assume os preparativos, não faz trabalho pela metade. A água derramada não é feita com violência, nem com força, mas com extrema delicadeza, com atenção e amor. Amar é tocar de perto, ajudar, caminhar juntos...; nesse gesto de elevação Jesus revela um amor “físico”, de contato corporal e de serviço, de ajuda humana e de dignidade. Ele não quis só ensinar, dar comida, mas aproximar-se, ajoelhar-se, lavar.
O gesto que Jesus faz expressa o que Ele é. Ele é inteiramente servo. Todo o seu ser está a serviço. Ele se dá naquilo que faz, e faz o que propõe aos discípulos.
Lava os pés dos discípulos. Inclina-se aos pés deles, até o chão. Com reverência, o mestre lava os pés dos discípulos: essa é a dinâmica que revela a novidade do Reino de Deus. “Lavar os pés” dos discípulos é cuidar dos que servem os servos.
Jesus sabia que seus discípulos tinham pés frágeis, pés de argila. E se os pés são, na mentalidade judaica, símbolo de infância e prazer, seus pés precisariam, sem dúvida, ser lavados de todas as suas memórias negativas. Cada discípulo era uma criança doente, e era preciso, em primeiro lugar, curar essa criança antes que ela se colocasse a caminho para anunciar o Evangelho, a Boa-Nova.
“Depois que lhes lavou os pés, retomou o manto, voltou à mesa e lhes disse: ‘compreendeis o que vos fiz?’” Jesus volta ao lugar em que estava antes, mas volta diferente. Ele repõe o manto, mas não depõe a toalha-avental. Ele assume e visibiliza uma nova realidade que caracteriza o novo modo de ser, que é próprio dos cristãos. O amor-serviço tem como primeiro símbolo o avental. O avental é o selo de autenticidade que orienta, credita e dignifica a autoridade que se faz serviço. A autoridade cristã nasce do serviço, se sustenta nele, só persevera servindo.
Jesus pede que a dinâmica iniciada por Ele tenha continuidade, seja progressiva e circular, partindo do meio para a periferia em forma de círculo a fim de atingir a todos. O novo modo de exercer a autoridade é praticado primeiro entre todos os que participam da ceia, mas deve ser exercido sem limite de tempo ou de espaço, isto é, deve atingir toda criatura em todos os tempos até a plenitude.
Todos os gestos do lava-pés possuem uma sacralidade própria, uma reverência, uma paz e calma especial. Não há pressa, não há agressividade, não há nada que possa dar a mínima aparência de algo que fosse obrigado. No corre-corre da vida é urgente reassumir a linguagem dos gestos que se perdem na pressa, na mania de fazer muitas coisas porque outras nos atropelam e nos distraem do essencial.
Texto bíblico: Jo 13,1-15
Na oração: Seja você alguém que, na admiração da gratidão, se aproxima deste gesto ousado de Jesus (tirar o manto e vestir o avental), a fim de purificar sentimentos, endireitar caminhos e aprofundar a caminhada na convivência com os irmãos.
A sua identificação com Jesus lhe confere um novo modo de ver, avaliar, escolher e posicionar. É a contemplação, a postura mais envolvente, que lhe pode fazer enxergar o milagre; e, sensibilizado, abrir-se-á à dimensão do maior serviço, por pura gratuidade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“...encontrareis amarrado um jumentinho que nunca foi montado; desamarrai-o e trazei-o aqui”
Nas celebrações da Semana Santa, muitas vezes corremos o risco de nos deter no secundário e esquecer o essencial. E o mais essencial é que as diversas celebrações (procissões, via sacra, liturgias...) nos aproximem e nos façam crescer na identificação com o protagonista principal: Jesus de Nazaré.
Por isso, precisamos voltar constantemente ao Evangelho para compreender o mais essencial sobre Jesus. Recuperemos, como diz o papa Francisco, o frescor original do Evangelho.
E a primeira coisa que o Evangelho nos diz é que Jesus foi um buscador de alternativas.
Ele não foi conivente e nem compactuou com a estrutura social-política-religiosa de seu tempo, que era profundamente desumanizadora. Sonhou novas possibilidades de vida e novas relações entre as pessoas. Por isso, ao anunciar o Reino, transgrediu a situação vigente e, a partir das periferias, foi despertando uma alentadora esperança nos corações dos mais pobres e excluídos, vítimas de um mundo fechado.
Com sua entrada em Jerusalém, Jesus quis recuperar a cidade como lugar do encontro e da comunhão, como espaço da paz e da solidariedade... desalojando aqueles que se fechavam a qualquer tentativa de mudança. Por isso, seu gesto provocativo e escandaloso de entrar na cidade montado num jumentinho, símbolo da simplicidade e do despojamento de qualquer pretensão de poder e força, causou violenta reação naqueles que se beneficiavam da estrutura política e religiosa da cidade.
Jesus participava do sonho de todo o povo de Israel que via em Jerusalém a cidade da promessa de paz e plenitude futura, lugar onde deviam vir em procissão todos os povos da terra. A tradição profética havia anunciado uma “subida” dos povos, que viriam a Jerusalém para iniciar um caminho de comunhão e justiça e adorar a Deus no Templo, que estaria aberto para todos. Toda a cidade se converteria num grande Templo, lugar onde se cumpre a esperança dos povos.
Jesus sobe a Jerusalém anunciando a chegada do Reino de Deus que deveria manifestar-se ali, mas de uma forma diferente: com um Templo sem culto sacrifical, aberto para todas as gentes, com uma nova estrutura humana aberta ao senhorio de Deus.
Jesus, Filho de Davi, tinha que subir à cidade de seu antepassado Davi, não para conquistá-la militarmente e reinar, a partir dela, sobre o mundo, mas para instaurar ali outro Reinado, fundado precisamente nos pobres e expulsos dos reinos da terra. Para Jesus, Jerusalém deveria ser entendida como centro da nova humanidade messiânica, capital do Reino dos excluídos da velha história humana.
Jesus tomou a cidade sem conquistá-la. Dom do Reino. A subida a Jerusalém foi um gesto profético, de caráter pacífico (não violento) e por isso de forte conotação política, não na linha da tomada do poder (Jesus não conquistou Jerusalém), senão de oferecimento e comunicação de vida. Não quis invadir a capital com armas e exército, para que mudasse simplesmente de dono (sentando-se sobre o trono de Davi para reinar), nem quis estabelecer um Estado melhor (com bons administradores), senão algo mais revolucionário: “tomou” a cidade sem dominá-la, com seu anúncio do Reino e com seu ensinamento.
A entrada de Jesus em Jerusalém nos revela que Ele foi transgressor e rebelde frente ao poder estabelecido, sobretudo o poder religioso que impõe suas normas de verdade e de pureza acima da vida. Jesus sabia que com isso arriscava a vida. Mas, ao pressentir seu final violento, não arredou pé, senão que fez frente ao Templo e ao Palácio. O que estava em jogo era mais que sua vida, era a Vida: era a antiga promessa de todos os profetas, era a libertação universal esperada, era a igualdade de homens e mulheres ainda sem construir, era a erradicação de toda violência e poder, era a instauração do Reinado da justiça e da paz. Tudo isso estava em jogo, e a fé de Jesus, mansa e rebelde, foi maior que seu medo. Montou sobre um humilde jumentinho e desafiou o Império e o Templo, com suas cortes e legiões e todas as suas inumanas ordens sagradas.
Jesus entra em Jerusalém rodeado do povo, das pessoas simples. Este povo escravo e oprimido o aclama porque vê em n’Ele uma luz de esperança, de vida, de libertação. Escutaram suas palavras e viram seus feitos durante alguns anos. Escutaram palavras de vida, de justiça, de amor, de misericórdia, de paz...
Viram seus gestos de cura dos enfermos, de defesa dos fracos, de dar alimento aos famintos, de reabilitar os desprezados, de acolher os marginalizados, de enfrentamento dos opressores...
Jesus quer continuar anunciando e realizando na cidade de Jerusalém aquilo que fizera na região excluída da Galiléia; quer também humanizar esta cidade para que ela seja sol de justiça e paz para todos os povos.
E nós, se queremos continuar a percorrer o caminho que Jesus abriu, temos de ser também buscadores de alternativas. Vivemos em uma sociedade na qual parece que já não é possível outra economia nem outra política, que temos de nos resignar com o que é imposto, que não há alternativas, que só são possíveis pequenos retoques no sistema sócio-econômico que nos rodeia.
Hoje, nós seguidores do Nazareno, temos de crer firmemente que é possível um mundo diferente, uma cidade diferente, uma sociedade diferente onde a fraternidade, a igualdade e a verdadeira democracia se façam realidade. Um mundo, em definitiva, em que se respeitem os direitos de todas as pessoas e os direitos da mãe Terra, onde o compartilhar seja o mais normal e natural.
“A fé nos ensina que Deus vive na cidade, em meio a suas alegrias, desejos e esperanças, como também em meio a suas dores e sofrimentos. As sombras que marcam o cotidiano das cidades, como exemplo a violência, pobreza, individualismo e exclusão, não nos podem impedir que busquemos e contemplemos o Deus da vida também nos ambientes urbanos. As cidades são lugares de liberdade e oportunidade. Nas cidades é possível experimentar vínculos de fraternidade, solidariedade e universalidade. Nelas, o ser humano é constantemente chamado a caminhar sempre mais ao encontro do outro, conviver com o diferente, aceitá-lo e ser aceito por ele” (Doc. Aparecida, n.514).
A espiritualidade da presença cristã no meio urbano convida a descobrir e indicar as presenças reais do Deus que in-habita em pessoas, casas, bairros, povos, cidades e metrópoles. “O coração dos povos é o santuário de Deus”. Trata-se de “passear com o Absoluto pelas ruas da cidade” (Michelstaeder)
O Deus presente nas cidades é um Deus que nos chama e interpela a partir do reverso da história, a partir dos lugares ocultos, dos “outros-espaços” de nossas cidades.
A cidade que Deus quer: uma praça e uma mesa para todos. A praça é de todos e todos podem caber na praça quando esta começa pelas vítimas e pelos últimos, onde todos podem circular livremente, criar relações e convivência, com a experiência de ser aceito e reconhecido como humano.
A mesa, no centro da praça, é lugar de hospitalidade, de aceitação e de encontro, lugar de chegada e entrada da pluralidade e diversidade como a Nova Jerusalém.
“Entrar na nossa Jerusalém” é comprometer-nos com uma cidade mais humana e humanizadora; a cidade que sonhamos e que queremos: a Cidade Nova. E o seguidor de Jesus tem em quem se inspirar.
Texto bíblico: Mc 11,1-10
Na oração: rezar sua presença na cidade onde mora: é presença inspiradora, profética, de compromisso com a construção de relações humanizadoras?...
Fazer “memória” daquilo que é mais desumano na sua cidade: como você reage diante disso? passivo? o suporta? denuncia? atua?...
Você participa de alguma instituição, organismo, Ong... que ajuda a humanizar mais a sua cidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Se o grão de trigo que cai na terra não morre, permanecerá só; mas, se morre, produz muito fruto”.
Declaração impactante e central na mensagem de Jesus. Qual é a pérola de grande valor que se esconde por detrás desta afirmação? O sentido profundo está na descoberta de que só existimos na medida em que nos doamos aos outros, que a razão de nossa existência a encontraremos na entrega e no serviço. Só através de contínuas perdas e mortes é que poderemos ter acesso à verdadeira Vida.
O transcurso de nossa vida é uma inevitável sucessão de perdas e mortes; aceitá-las é dar-nos conta de nossa limitação fundamental como criaturas, como seres vivos, e descobrir a possibilidade de ser mais naquilo que temos de especificamente humano.
As perdas e mortes trazem mudanças para a vida em suas raízes: o que antes era o centro de nossa vida (uma pessoa, uma posição, um trabalho, um estilo de vida...) já não existe; nossa vida já não voltará a ser a mesma, pois o que antes nos dava identidade, sentido e direção, conforto e apoio, desaparece.
A função das perdas e das mortes é libertar-nos para avançar para o futuro, não nos deixando determinar pelo passado. Então elas, uma vez aceitas e acolhidas, se convertem em um dom precioso. Já não somos os mesmos de antes, mas podemos nos converter em uma pessoa completamente nova. Estamos na disposição de aprender precisamente quando não temos nada, quando parece que não nos sobra mais nada. E é que possuímos no mais profundo de nós mesmos algo que ninguém pode nos tirar e que é impossível perder: dons em abundância nunca descobertos nem tocados antes, um desejo que está esperando que lhe abramos a porta, uma inspiração pronta a se tornar realidade...
Esta ideia de “morrer para produzir fruto” é original de João. Sabemos que o grão de trigo morre no acidental e revela o essencial: na semente há vida, mas está latente, esperando a oportunidade de expandir-se. Comunicar Vida foi a missão de Jesus; por isso, sua mensagem não implica um desprezo à vida, mas pelo contrário, só quando nos atrevemos a viver intensamente, dando pleno sentido à vida, alcançaremos a plenitude à qual somos chamados.
A vida não se perde quando se converte em alimento da verdadeira Vida. A vida humana chega à sua plenitude quando transcende o puramente natural. O biológico não fica anulado pelo espiritual, mas potenciado e “plenificado”.
O grande segredo revelado no Evangelho, é que o ser humano, partindo da vida biológica aspira outra realidade que chamamos Vida. Esta é a verdadeira meta do ser humano. O sentido dessa Vida com maiúscula está em destravar todas as ricas possibilidades de plenitude que pulsam por expressar-se e que se encontram no mais profundo de nossa interioridade.
Se investimos todas as nossas energias na vida minúscula (apegos, medos, resistências...) nunca descobriremos a Vida maior. Aquele que se empenha a todo custo em salvar sua vida menor, terminará perdendo-a. Mas dará pleno sentido a esta vida se descobre e ativa outro nível mais profundo e encontrar a verdadeira Vida. Estamos aqui para pôr Vida onde só há vida.
Se queremos dar fruto, ou seja, dar sentido à nossa existência, teremos que nos desgastar, consumindo-nos. A vela só adquire sentido quando está acesa; mas se está acesa, ela se consome. A rosa, ao espalhar sua fragrância, entrega algo de si mesma; e assim está manifestando seu verdadeiro ser.
A vida é movimento e, portanto, energia expansiva. Podemos consumi-la em benefício do ego (falso eu) e então vem o fracasso. Podemos consumi-la em benefício dos outros e da causa do Reino, e então, consumá-la, dando-lhe plenitude. Ter apego à própria vida é destruir-se, é desprezar a própria vida. Entregar a vida por amor não é frustrá-la, mas levá-la a seu completo êxito.
Aquí há uma inversão na lógica natural das coisas; ganha-se quando se perde, vive-se quando se morre, multiplica-se quando se divide.
“Morrer” e “perder” é este instante de ruptura, onde toda uma vida incubada, trabalhada no silêncio e no sofrimento, marcada de alegrias e tristezas, vitórias e fracassos, desponta luminosa para a vida eterna.
Uma vida pensada sem “mortes” e sem “perdas” acaba-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
“A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter). Pois vida é um contínuo despedir-se e partir; ela nos desaloja de nossos “lugares estreitos” e nos faz caminhar em direção a novos horizontes.
Alguém já afirmou que a morte é a realidade mais universal, pois todos morrem, mas nem todos sabem viver. Por isso, viver é uma arte; é necessário reinventar a vida no dia-a-dia, carregá-la de sentido. A maior perda da vida é aquilo que “resseca” dentro de nós enquanto vivemos: sonhos, criatividade, intuição. A vida é fecunda, é um turbilhão energético, é explosão de criatividade, é potencialidade.
Mais ainda: tudo aquilo que fomos desenvolvendo no centro de nós mesmos (valores, a esperança, a busca, a absoluta confiança em Deus, os sonhos...) está agora em nós como o ouro escondido em uma mina, para ser extraído, contemplado e admirado e para brilhar como nova vida. Temos em nós o material da vida ainda bruto para ser lapidado.
Com frequência, só a perda permite valorizar toda essa riqueza acumulada. Privados da segurança do passado, livres dos “afetos desordenados”, estaremos livres para encontrar em nossa interioridade a força espiritual que nos permite viver de um modo expansivo. A perda é, ironicamente, a ocasião da novidade, a porta aberta para outras dimensões da interioridade que ainda permanecem em estado letárgico em nós, mas nelas está pulsando a vida.
Nesse sentido, a vida tem a dimensão do milagre e até na morte e na perda anuncia o início de algo novo; ela carrega no seu interior o destino da ressurreição. A Vida é fruto do amor, mas o egoísmo é a casca que impede germinar essa vida, mesmo que esteja dentro de cada um de nós. Amar é romper a casca e doar-nos, desfazendo-nos, consumindo-nos.
A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira Vida se liberte. É preciso passar pela morte do que é terreno, caduco, transitório (paixões, apegos desordenados...) para deixar emergir a vida interior, a vida divina, a vida de Deus em nós.
Quaresma é um convite a começar outra vida, a concentrar nossas energias e nos deslocar em outra direção. A vida não é um caminho só: são muitos caminhos, muitos deles inexplorados; e quando chega a perda (romper a casca), Deus como criador vem a nós abrindo-nos caminhos que podem nos conduzir para a nova criação que Ele tem começado em cada um de nós. Por isso, temos que continuamente nos perguntar: o que ainda existe em nós sem terminar e que está começando a ser?
Todo caminho escolhido não nos deixa formatados e fechados; ele é ocasião para ampliar nossa vida e permitir que “Aquele que começou em vós a boa obra, a levará termo até o dia de Cristo Jesus” (Fil. 1,6)
Texto bíblico: Jo 12,20-33
Na oração: Quando vou começar a viver como ressuscitado? Há na vida muitas coisas – pequenas ou imensas – que vão morrendo e nascendo de novo, diferentes, melhores, reconciliadas...
Há sepulcros esperando esvaziar-se, em mim e nos outros.
Quais são minhas pequenas mortes, meus espaços sepultados, minhas feridas incuradas?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“...porque Deus amou tanto o mundo...” (Jo 3,16)
Esta afirmação faz parte do núcleo essencial da fé cristã. Deus ama o mundo, e o ama tal como é: inacabado e imperfeito, cheio de conflitos e contradições, capaz do melhor e do pior... Este mundo não percorre seu caminho sozinho, perdido e desamparado. Deus o envolve com seu amor de ternura.
Isto tem consequências de máxima importância. O mundo inteiro transforma-se em objeto do nosso interesse e da nossa preocupação.
Se há um “hábito do coração” que poderia ser ativado nesta Quaresma é este: a “leitura orante da realidade do mundo”. Este “hábito do coração” tem suas raízes no relato evangélico de hoje, onde Jesus nos convoca a olhar o mundo como Deus olha: com amor e compaixão.
Assim como a Salvação do mundo foi determinada a partir de um “olhar” que saiu do coração de Deus, que pousou sobre o mundo e que voltou ao seu coração, estremecendo-O de compaixão e movendo-O à ação, assim também toda nossa presença no mundo tem de ter sua origem num olhar misericordioso e compassivo, amoroso e esperançoso...
Inspirados na afirmação de Jesus, contemplamos com o olhar do Deus compassivo nosso mundo fragmentado, cheio de conflitos que geram sofrimento, exclusão, morte... E esses espaços e fronteiras são cada vez mais extensos e problemáticos; mas, nas profundezas de todos esses “mundos que nos são estranhos” se revela a presença amorosa do Pai. Pois tudo foi alcançado e redimido pelo amor expansivo de Deus.
A Quaresma nos conduz à contemplação da realidade na qual vivemos e à qual somos enviados apostolicamente; tal exercício nos possibilita ter presente, como uma visão de conjunto, as grandes questões sociais e eclesiais que desafiam hoje os cristãos, enquanto seguidores de Jesus e comprometidos com a fé e a justiça, em diálogo com a cultura e com as tradições religiosas.
Esta contemplação da nossa realidade (“ver o mundo”) nos ajudará a nos aproximar e a conhecer mais profundamente o mundo no qual estamos imersos. Nesse sentido, contemplar o mundo a partir de Deus será um convite a encarnar-nos nele para transformá-lo.
Tal aproximação e conhecimento deste mundo devem ser feitos a partir de uma atitude de compaixão: não de confrontação ou enfrentamento, mas movidos pelo desejo de compreender as entranhas do mundo no qual vivemos. Não se trata de fazer um juízo moral sobre ele, nem para aprová-lo nem para condená-lo. Assumimos uma atitude crítica valorizando o que nele há de potencialidades abertas e emergentes, bem como detectando suas limitações, desvios... Ao mesmo tempo queremos nos deixar interpelar por ele, fazendo com que ressoem em nós suas perguntas e suas inquietações, suas luzes e suas sombras, suas riquezas, seus paradoxos e suas contradições.
Estamos mergulhados no mundo trabalhando junto e com as pessoas, mas na mesma ação somos contemplativos porque “encontramos a vida divina no mais profundo da realidade”.
Existe uma forma contemplativa de viver no meio do mundo, ou seja uma forma diferente de descobrir o Deus oculto no centro das realidades. Como um pêndulo, o cristão oscila entre o mundo e Deus. É tão familiar com Deus que admira a variedade e a multiplicidade do mundo, e não teme o mundo com todo seu “mundanismo” e complexidades. É tão familiar com o mundo que sente o Espírito de Deus, que trabalha no mundo, em todos os lugares e da maneira mais inesperada.
O tempo Quaresmal nos sensibiliza e nos capacita para nos aproximar do nosso mundo com uma visão mais contemplativa. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da humanidade.
A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo, entra em comunhão com a realidade tal como ela é. É olhar o mundo como “sacramento de Deus”. Um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que existem no mundo; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e por isso gerador de misericórdia; um olhar que compromete solidariamente.
As grandes fronteiras do mundo (globalização, diferentes culturas, ciência e tecnologia, ecologia, bioética, migrações...) vão adquirindo cada dia proporções novas e surpreendentes; elas constituem os grandes desafios que pedem de nós, seguidores de Jesus, uma presença inspiradora e samaritana.
Esta é a atitude contemplativa: ver Deus no mundo e o mundo em Deus.
Tal atitude fundamenta uma grande paixão e interesse pelo mundo. Para descobrir Deus não é preciso fugir do mundo; o seguidor de Jesus não é aquele que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele que, movido por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí, “esvaziando-se”, participa ativamente da solidariedade de Deus com a humanidade, que é o centro da salvação; ele estabelece sua moradia no mundo, inserido nos “extremos” do trabalho, da vida, dos direitos, da ética na política..., ali onde se faz mais necessária a atividade profética.
Neste momento em que tudo parece confuso, incerto e desalentador, nada nos impede introduzir um pouco de amor, de compaixão, de sensibilidade e justiça, no mundo. É o que fez Jesus. Sua presença nas periferias da pobreza e exclusão deixou transparecer o rosto humano e compassivo do Pai.
O mistério Pascal nos convida a “olhar” nossa terra cotidiana, nossa humanidade, fragilidade, paixões, sentimentos, fracassos, imperfeições... Deus se encontra misturado com tal realidade, salvando-a.
Nesta contemplação vai se purificando nossa imaginação e nosso mundo afetivo para poder seguir a Jesus em um serviço como o seu, no lugar mesmo onde Ele se fez presente para fazer Redenção.
A espiritualidade quaresmal abre-nos à missão apostólica, desvelando os aspectos criativos e esperançosos da realidade, denunciando as forças que desagregam ou excluem, propondo novos modos de viver o compromisso eclesial e social..., enfim, impulsionando a sermos agentes de transformação e atuantes no âmbito público.
Isso demanda lucidez, conhecimento rigoroso e sapiencial da realidade; para isso é preciso deixar-se afetar pela realidade (compaixão), incorporar uma leitura compassiva e entrar no fluxo da graça expansiva de Deus, que tudo redime.
Texto bíblico: Jo 3,14-21
Na oração: diante de Deus responda: quê impacto tem sua vida cristã na realidade social que o(a) cerca? Verificar, diante de Deus, se a experiência quaresmal está despertando em seu interior uma sensibilidade social, um espírito solidário e um compromisso com o mundo da exclusão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do templo” (Jo 2,15)
Na história da humanidade, frente a uma ordem social e religiosa injusta estabelecida, surgiram aqueles que que se rebelaram...Há transgressores necessários, para o bem da humanidade. Eles se opõem a uma ordem social e religiosa injusta, para assim criar uma humanidade mais justa e solidária, abrindo um espaço para os excluídos, um caminho de amor para os rejeitados...
Entre esses transgressores está Jesus. Por isso o rejeitaram e o mataram. Em nome de um Deus que a todos acolhe e chama, que é Pai de todos, Jesus transgrediu a norma da “boa sociedade”, mergulhou no submundo da exclusão, da miséria...
Normalmente os transgressores rompem alguns limites para traçar outros, mudando um sistema que julgam imperfeito por outro que lhe parece mais perfeito. No entanto, Jesus, o transgressor messiânico, superou e quebrou as barreiras anteriores não para criar outras, senão para abrir um espaço e caminho de vida que pode ser universal.
Os seguidores de Jesus se identificam como “transgressores” reunidos a partir da gratuidade do amor, acima da lei. O gesto de Jesus não pode se converter em princípio de uma nova lei religiosa, mas deve ser compreendido como fonte humanizadora, manancial de autonomia criadora. Isso significa que Ele quis que os seus seguidores assumissem e deslanchassem um caminho de autonomia criadora sobre o mundo.
Segundo o relato do evangelho de João, na sua primeira subida ao Templo, Jesus, com seu gesto ousado, rompe esse mundo religioso fechado, introduzindo uma novidade; com uma audácia desconhecida surpreende a todos, abrindo um novo caminho entre nós para humanizar a religião. O mundo querido por Deus vai mais além da tirania do Império e mais além do estabelecido pela religião do Templo.
Atacar o Templo era atacar o coração do povo judeu: o centro de sua vida religiosa, social e econômica. O templo era intocável. Ali habitava o Deus de Israel. Jesus, no entanto, se sente um estranho naquele lugar: aquele templo não é a casa de seu Pai nem é o espaço da acolhida dos marginalizados, mas um mercado. O Pai dos pobres não pode reinar a partir deste templo. Com seu gesto profético, Jesus está denunciando, na raiz, um sistema religioso, político e econômico que se esquece dos últimos, os preferidos de Deus.
Jesus nasceu e viveu numa sociedade religiosa. Seguramente foi educado na religião de seu contexto. Mas em seu processo pessoal foi questionando uma religião que oprimida as pessoas e não as fazia felizes, e que, além disso, justificava a opressão de umas classes sociais (sacerdotes, grupos próximos ao Templo, ricos, fazendeiros, poderosos politicamente...) sobre outras (pobres, mendigos, camponeses empobrecidos, excluídos sociais, enfermos, viúvas, escravos...).
Jesus se encontrava com o Pai não no espaço sagrado do Templo, nem no tempo sagrado do culto religioso, mas no espaço “profano” da convivência com as pessoas. A partir de sua religiosidade Jesus foi descobrindo um Deus não distante nem cruel, mas próximo, misericordioso, a quem chamava “Abba”. E começou a anunciar que Deus queria para os seus filhos e filhas uma dignidade, uma felicidade, uma humanidade e relações de amor que as levariam a uma sociedade igualitária, fraterna, justa...
Jesus era visto como um forasteiro perigoso e um subversivo que entrou em conflito com a religião oficial (Templo e Lei). Viveu e pregou na Galileia: era o melhor lugar para anunciar sua mensagem e seu projeto, região de pobres, ignorantes e impuros. Com eles Jesus assumiu uma “conduta desviada”.
Seu conflito com o Templo o levou à ação mais violenta. Com seu gesto Jesus reprova os profissionais da religião que se servem do Templo para justificar as maiores violências. Mas Jesus não fez isso para “purificar” ou “restaurar” uma religião muito primitiva e substitui-la por um culto mais digno e ritos menos sangrentos; seu gesto transgressor tem um conteúdo mais radical: a destruição de tudo o que o Templo significa, pois Deus não pode ser conivente com uma religião tecida de interesses e egoísmos. Jesus não pode ver ali a “nova família de Deus” que começou a formar com seus seguidores.
A “religiosidade” de Jesus é radical porque se fundamenta na comunhão. Historicamente temos comprovado que as religiões normalmente separam, dividem, marginalizam, excluem, condenam. Daí tanta intolerância e violência religiosa.
De fato, o poder religioso é o mais nefasto e o mais desumanizador quando transforma a religião em um sistema opressor dos seres humanos, e é utilizada por aqueles que detém o controle dela para dominar as pessoas com argumentos religiosos (pecado, demônio, inferno, medo da condenação eterna...). Assim tem sido durante muitos séculos e em muitas culturas e civilizações.
O projeto de Jesus é radicalmente diferente do projeto da religião. Na realidade, Jesus não estava preocupado em fundar uma nova religião. Nem os primeiros cristãos consideravam o seguimento de Jesus como uma religião, mas como um “caminho” (eram conhecidos como seguidores do “caminho”), um projeto de vida, um modo de viver. Para uns eram considerados uma “seita”, para outros, como “ateus”.
Literalmente falando, podemos dizer que Jesus não “fundou” uma religião, mas Ele é o fundamento da religião cristã. O que, com certeza, se pode afirmar é que deslocou a religião: tirou-a do “espaço sagrado” e a colocou “na vida”, nas relações amorosas de uns para com os outros, no espírito de serviço compassivo para com os mais sofredores. Por isso, a única fez que o NT utiliza a palavra “religião” é para dizer que ela consiste em “cuidar dos órfãos e viúvas em suas necessidades e em não se deixar contaminar pelo mundo” (Tg. 1,27).
Da mesma maneira, quando o NT exorta os cristãos a pôr em prática o ato central da religião, o “sacrifício”, afirma que os sacrifícios que “agradam a Deus” são a “solidariedade e fazer o bem” (Heb 13,16). O NT desloca a religião, do “sagrado” ao “cotidiano”, dos ritos às relações entre as pessoas.
A religião daqueles que seguem a Jesus deve estar sempre a serviço do Reino de Deus e sua justiça.
Texto bíblico: Jo 2,13-25
Na oração: O gesto “indignado” de Jesus no Templo deve despertar em nós, seus seguidores, uma pergunta provocativa: quê religião estamos cultivando em nossos templos?
- Temos de revisar se nossas comunidades cristãs são um espaço onde todos possam se sentir acolhidos na “casa do Pai”; uma comunidade acolhedora onde não se fecham as portas a ninguém e onde não se exclui nem discrimina ninguém; uma casa onde todos aprendem a escutar o sofrimento dos mais desvalidos e não o próprio interesse; uma casa onde todos podem invocar a Deus como Pai porque todos se sentem seus filhos e buscam viver como irmãos (cf. Pagola).
- Considerar se o templo de nosso coração é realmente “casa de oração”, “casa de encontro com Deus e comunhão com os outros”, ou antes, uma espécie de “feira” onde compra-se, vende-se e negocia-se de tudo.
Se olharmos para nossa interioridade, podemos cair na conta de que carregamos uma quantidade de “bois, ovelhas, pombas e mesas de cambistas” que tornam nossa vida pesada e auto-centrada. Como se sentiria Jesus ao visitar nossos corações?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“E uma voz, que saiu da nuvem, disse: ‘Este é o meu Filho amado; escutai o que Ele diz’” (Mc 9,7)
O centro do relato da “transfiguração de Jesus” é ocupado pela Voz que vem de uma estranha nuvem, símbolo que a Bíblia usa para nos falar da presença sempre misteriosa de Deus que se manifesta e, ao mesmo tempo, se oculta. A Voz diz estas palavras: “Este é o meu Filho amado; escutai-o”.
Com este relato, Marcos quer indicar que o seguimento implica muito mais que uma simples confissão de fé no Jesus como Messias; os discípulos, no Monte Tabor, também passam por uma transformação: eles devem ser curados da cegueira e surdez espiritual que os impede de ver as exigências do amor e de escutar os apelos que os levam, como Jesus, a uma entrega radical de suas vidas.
Subindo ao Tabor interior, também nós seremos transfigurados: através desta experiência nossos olhos e ouvidos do coração se abrirão, capacitando-nos para contemplar a realidade tal como Deus a contempla.
Esta experiência igualmente nos capacita para alcançar também uma percepção diferente das outras pesso-as; não julgaremos mais as pessoas pelas suas aparências externas, mas as veremos com mais profundidade, no coração, como se estivéssemos aprendendo a “ver” com os olhos de Deus; da mesma forma, estaremos mais sensibilizados para escutar os outros com mais atenção, deixando ressoar em nosso interior as vozes que nos chegam das margens. Continuaremos descobrindo que olhar para o mundo e escutar seus clamo-res será um desafio e uma tarefa contínua que vai mais além de uma experiência isolada de encontro divi-no-humano sobre o alto da montanha.
A Transfiguração nos fala da verdade que carregamos dentro de nós, mas também de novos olhos e ouvidos abertos para entrar em sintonia com esta realidade interior. Sem escuta profunda a vida se desumaniza e o ser humano se automatiza egoísticamente.
A escuta é o caminho da originalidade, é a condição para não se viver na inércia. A verdadeira sabedoria nasce não do que está acumulado na memória, mas de uma transparente escuta no momento presente, essa simples acolhida que torna sábios os pobres, sensíveis ao sopro de Deus, este Deus sempre livre, sempre presente, desconcertante.
Já diziam os antigos: “Fides ex auditu”; a fé vem pelo ouvido; o próprio Deus deixa-se perceber pelo ouvido; faz-se “audível” para o ser humano. Dentre os seres vivos criados por Deus, o ser humano é o único capaz de escutar e de falar, porque é o único criado à imagem e semelhança d’Ele, d’Aquele que é a Palavra cheia de verdade e a escuta cheia de ternura. “Deus é a Palavra suprema e o Silêncio infinito”.
Na Sagrada Escritura, o exercício do ouvido, a escuta, é prerrogativa tanto de Deus como do ser humano. Escutar o “mistério” entranhável e sempre livre de Deus é o caminho para encontrar nossa originalidade, nosso nome, para nos encontrarmos n’Ele, como no melhor eco de nossa oculta beleza.
É Deus mesmo que abre cada manhã os ouvidos dos discípulos e os torna atentos à escuta. Em toda Palavra de Deus existe sempre um dinamismo que nos des-vela e re-vela nossa verdade original. Voltar a escutar é voltar a ser criança. Tudo é palavra e silêncio. Tudo no universo vibra, emite, transmite, fala, vive. E ao mesmo tempo tudo é escuta e percepção.
A escuta estabelece a verdadeira relação entre os seguidores e Jesus. No evangelho de hoje, o apelo à escuta nos interpela com força; é um apelo que brota da nossa própria vida, como abertura à profundidade de uma existência com sentido e horizonte; trata-se de um chamado a escutar uma palavra nova e original e que nos abre a uma dimensão transcendente, sempre apaixonante, de uma relação pessoal com o Criador e com os outros.
Desde nosso nascimento, começamos a viver uma relação com o meio ambiente que implica uma escuta e uma resposta. E assim nossa personalidade humana e espiritual vai se definindo. No contexto atual, a atitude de escuta é um desafio; inimiga número um da escuta é a pressa e a ansiedade que ela costuma trazer consigo. O ritmo da vida não nos permite “lê-la” com claridade, com a entonação que ela exige e merece. Cremos ter uma riqueza interior que queremos proclamar, e preferimos que nos escutem, mas ao falar não articulamos bem nossa mensagem, desconhecendo que nossa riqueza interior se desperta primordialmente na escuta.
É preciso destravar nossa capacidade de escuta interior, para acolher e discernir as diferentes vozes que ali se fazem presentes. Sem interioridade e sem escuta do próprio coração, nós nos desumanizamos.
Educados na escuta interior, estaremos sensibilizados para a escuta da realidade. Permitir que cada realidade fale para nós sua própria linguagem. Isso é ter ouvidos para a escuta.
Aqui não se trata de ser puramente receptivos a algumas idéias, escutar determinadas palavras, senão de escutar com o ouvido do coração, de procurar captar a vida que pulsa no coração do outro. E isto exige uma profundidade que talvez esteja faltando, quando estamos nos movendo na superficialidade da vida.
Além disso, saber escutar o outro é uma simples, mas profunda acolhida humana. Saber escutar é acolher o outro. Há muita carência dessa capacidade em nossa sociedade globalizada, individualizada e sobretudo informatizada ou tecnologizada. Estamos rodeados de aparelhos e não de pessoas; tudo são ruídos e vozerio crônico. Todo o mundo quer falar, expressar-se. Mas falta o interlocutor que escuta sabiamente.
O Evangelho nos quer colocar no caminho de uma verdadeira humanização; daí a insistência em ter uma atitude aberta e acolhedora de escuta.
Texto bíblico: Mc 9,2-10
Na oração: Como restaurar em nós essa capacidade de escutar? A escuta se restaura no Silêncio, na capacidade de acolher Aquele que fala no silêncio. Desse prolongado silêncio, acaba-se ouvindo a Palavra da qual brota todas as palavras humanas.
- Tomo consciência daquilo que obstrui os meus ouvidos e os torna “incapazes de prestar atenção”.
- Tomo consciência da superficialidade diante da voz da consciência e da incapacidade de escutar o outro, não deixando ressoar a sua voz no meu coração.
- Tomo consciência de todas as mensagens negativas que transformaram, seduziram e enganaram meus ouvidos, tornando-os surdos às mensagens celestes, à Palavra da verdade e da vida.
- Tomo consciência da hipersensibilidade auditiva que me faz reagir bruscamente frente à incompreensão ou me faz sucumbir frente aos slogans da moda.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam” (Mc 1,13)
A afirmação ousada do Evangelho de hoje, onde Jesus no deserto “vivia entre animais selvagens e os anjos o serviam”, pode servir de ocasião para nos ajudar a “des-velar” (tirar o véu) a nossa interioridade e deixar emergir os “animais” e os “anjos” que nos habitam.
Jesus, radicalmente humano, tem consciência dos diferentes animais e anjos presentes em seu interior.
Sabe conviver com eles e integrá-los ao seu processo humanizador. As tentações não significam uma “luta desgastante” que atrofia seu interior. Ele se deixa conduzir pelo Espírito, e os anjos o alimentam.
Nosso interior é morada de animais selvagens e de anjos. Todos eles tem sua importância na nossa vida.
À luz do Tempo Quaresmal, sentimo-nos envolvidos por uma grande irmandade universal que aponta para a corrente única de vida e de sua imensa biodiversidade, numa grande teia de interdependências e de comunhão de todos com a Fonte originante de tudo. Pela carne e pelo sangue, por todas as células, as fibras e as energias de nosso ser estamos vinculados com o universo.
Segundo o relato da Criação, o ser humano vem da argila, do húmus... Por isso ele carrega em si os mesmos elementos físico químicos da natureza: minerais, plantas, animais... O ser humano não está acima ou abaixo das outras criaturas; ele é “um” com elas e é chamado a cuidar delas. Sua vocação primeira é a de ser jardineiro.
Cada ser humano carrega latente em seu íntimo toda a sabedoria do universo. O poeta americano Walt Whitman nos legou uma frase maravilhosa e emblemática sobre este tema: "Eu sou contraditório, eu sou imenso. Há multidões dentro de mim".
Há multidões dentro de nós, não só de animais irracionais como também de homens e mulheres de todas as etnias, os jardineiros da criação divina. E, embora nesta grande diversidade, somos unidade na capacidade de pacificar e de fazer conviver todas as criaturas. Somos como a “arca de Noé”, no grande Oceano da vida, carregando em seu interior todos os animais, com seus instintos selvagens e primitivos, numa harmonia e convivência, onde cada um deles tem sua importância, seu papel sagrado e revelador da identidade humana. A aliança de Deus com Noé implica uma aliança com todos os animais, domésticos e selvagens. E o maior desafio é, justamente, a convivência com todos os animais que carregamos em nosso próprio interior. São eles que nos facilitarão o acesso às nossas riquezas interiores.
Nossa animalidade não deve ser esquecida, recusada, extirpada, controlada ou domesticada. Na mística judeu-cristã, nossa animalidade deve ser salva. Salvar nossa animalidade exige explorar nomes, identidades, símbolos e energias animais. O relacionamento entre humanidade e animalidade não é antagônico, excludente. Cada pessoa é chamada a conhecer, reconhecer, nomear e levar a termo os animais que a habitam. E caminhar fraternalmente com seus irmãos animais (cf. Evaristo de Miranda).
É preciso, antes de tudo, pacificar nossos animais interiores. Trata-se de conhecê-los, aprender a linguagem deles, fazer amizade com eles para que eles não nos destruam por dentro.
Faz parte da maturidade e crescimento pessoal encontrar e entender, em cada um de nós, a mensagem e o desafio de animais interiores como a rã, a pomba, o cachorro, o corvo, a serpente, a raposa, a perdiz, o lagarto, o falcão, o lobo, o leão... Cada animal deve ser verbalizado, integrado harmoniosamente no tempo certo e no lugar adequado. Ao fazer isso, descobrimos as diferentes dimensões da ecologia espiritual.
No entanto, no nosso processo formativo e a partir de uma visão exageradamente antropocêntrica, fomos coagidos a viver uma espiritualidade que nos ensinou a reprimir e a manter presos todos os animais na gruta interior e a levantar junto dela um edifício de “grandes ideais”. E com isso, passamos a viver constantemente com medo de que os animais pudessem fugir e nos devorar.
Com isso nos excluímos do prazer de viver, porque tudo é reprimido e nossa animalidade é violentada.
Sabemos que tudo quanto nós reprimimos nos faz falta à nossa vida. Os “animais selvagens” tem muita força. Quando os prendemos, gera um desgaste muito grande e fica nos faltando a sua força, de que temos necessidade para o nosso caminho para Deus, para nós mesmos e para os outros. Somos obrigados a fugir de nós mesmos, ficamos com medo de olhar para dentro de nós, pois poderíamos correr o risco de nos deparar com eles. Quanto mais os amarramos, tanto mais perigosos eles se tornam; eles nos atacam por dentro, tirando a disposição, o ânimo de viver.
Cada um deles representa os instintos, impulsos, paixões, fragilidades, sensualidade, sentimentos... que, quando não pacificados e integrados, criam uma desarmonia interior. Lutar contra os animais interiores é permanecer na superfície de si mesmo e não ter acesso às reservas de riqueza do próprio coração.
Quando todas as energias animais são ordenadas, elas colaboram para o conhecimento pessoal, o refinamento da identidade e a busca da autenticidade, elas são fonte interior de sabedoria e de desfrute espiritual. Então eles irão nos conduzir ao mais profundo e nos mostrar onde o tesouro está escondido.
Os “anjos” que nos habitam e nos servem são os “consolos” que aparecem em nosso caminho, em forma de paz, de luz, de fortaleza, de amor... O crescimento espiritual implica abraçar toda a nossa verdade, os “animais selvagens” e os “anjos”. As “tentações” de Jesus nos inspiram a avançar em direção à nossa verdade profunda, tirando-nos de nossa superficialidade, ou talvez da nossa “zona de conforto” na qual estávamos instalados, conformando-nos com um viver estreito e sem sentido. A integração dos “animais” e “anjos” nos fará criativos e ousados na missão à qual somos chamados a realizar.
Como Noé, podemos nomear e salvar - em nossa arca interior - todos os “animais” e “anjos”.
Resgatar os nossos animais interiores do dilúvio do inconsciente, é aceitar as diferenças e aprender a viver na diversidade. É fazer despertar a consciência dos nossos limites físicos, emocionais, espirituais com a certeza de que caminhamos em direção à plenitude da Criação, para um dia vibrarmos com todas as criaturas do universo no espírito do amor. Com isso, a luz e a fortaleza angelical se expandirão em nosso interior e nos impulsionarão a uma presença harmoniosa e acolhedora numa realidade tão desintegrada e conflituosa.
Texto bíblico: Mc 1,12-15
Na oração: A oração visa também atingir uma relação terapêutica com a nossa animalidade, num novo ambiente, numa ecologia espiritual paradisíaca e harmônica para bem viver a maravilha da vida plena e em abundância.
Diante do Deus criador, trazer os seus animais interiores e anjos à luz, deixá-los apresentar-se, serem reconhecidos e ocupar o seu lugar na ecologia espiritual. Trata-se de fazer uma aliança de Vida, entre viventes.
Os cantos e pios, urros e berros, zumbidos e silvos dos animais interiores despertam nossa atenção para dimensões esquecidas, reprimidas de nossa existência. O sussurro dos anjos nos apontará para as dimensões ricas de nossa vida que ainda não foram destravadas. Basta escutar e sentir.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
O Ano Litúrgico é um “tempo terapêutico” que toca, desvela e transforma todas as dimensões da vida. A partir desta perspectiva, a Quaresma e a Páscoa são consideradas tempos de intensa mobilização para a mudança interior e comunitária. A expressão bíblica para indicar essa transformação é “metánoia”, que indica mudança, conversão, fazer o retorno, ter diante dos olhos outro caminho a percorrer, tomar outro atalho com uma mudança de direção.
De acordo com este tempo litúrgico, o caminho para a transformação começa simbolicamente com a “Quarta-feira de Cinzas”. Com a imposição das cinzas, reconhecemos a necessidade de dar outro rumo à vida, com todo o nosso ser. Mudar nosso coração de pedra por um coração de carne, misericordioso, com entranhas, humano. A liturgia na Igreja expressa isso mediante uma fórmula ritual: ao traçar a cruz com cinzas a fronte de cada um, proclama: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. Ou seja, mude de caminho, com renovada decisão, e assuma a causa de Jesus de Nazaré: seu Reinado de justiça e de paz.
As “cinzas” são o símbolo daquilo que morreu e foi reduzido à sua expressão mínima. Cinzas obtidas dos ramos que na celebração do ano anterior nos ajudou a fazer memória da entrada triunfante de Jesus em Jerusalém. O modo de louvar, de rezar, de celebrar do ano passado, já não serve mais; não podemos usar os mesmos ramos, os mesmos argumentos, a mesma intensidade. Daqui brota a necessidade de não nos apegarmos àquilo que serviu alguma vez para nosso crescimento espiritual e comunitário, para fazer aparecer a novidade de uma notícia que sempre desperta mais assombro.
Os ramos transformados em cinzas, passaram pelo fogo. Essa é a nossa garantia: que aquilo que passa pelo fogo, é necessariamente renovado. Animar-nos, neste tempo de travessia, a acender o fogo para converter em cinza o que é caduco e ultrapassado em nós; e ao nos ver rodeados de cinzas, sentir-nos-emos esvaziados de nossas falsas seguranças e ilusões, de nossa prepotência e autocentramento.
Das cinzas surgirá a maturação; as folhas caídas darão lugar ao novo broto e isto implica atrever-nos a viver com mais intensidade e criatividade, fazendo a dura travessia em direção ao novo que nos humaniza. As cinzas, também, apresentam a textura e a leveza para deixar-se espalhar pelo vento, para que o “sopro do Espírito” as leve para onde quer que seja, as lance em terras novas, conferindo-lhes novas fertilidades.
Marcados pelas cinzas, deixamo-nos conduzir pelo Vento do Espírito para lugares onde seja necessário nossa presença, nosso testemunho, nossa profecia. Quaresma é tempo para confiar nas cinzas e no vento, para sair e criar o novo, preparar o novo mundo e fecundar a nova terra.
Para ajudar a fazer a “travessia” de uma vida estreita e limitada a uma vida expansiva, aberta e comprometida, a liturgia quaresmal nos convida a viver as chamadas “práticas quaresmais” ou seja, o jejum, a esmola, a oração como atitudes que nos permitem abrir e ampliar espaços em nosso coração, para Deus e para os outros. São também práticas que nos fazem crescer na identificação e no seguimento de Jesus Cristo, pois a Quaresma implica “ter os olhos fixos n´Ele”, para deixar-nos impregnar pelo seu “modo de ser e viver”, alargando cada vez mais as quatro dimensões básicas da vida: relação consigo, com os outros, com a criação e com Deus.
Fazer jejum não se limita a renunciar algo (alimento, bebida, vícios…); tal atitude pode nos levar a farisaísmos ou voluntarismos, quando o centro somos nós mesmos. Fazer jejum significa ativar e reforçar os dinamismos humanos oblativos, ou seja, aqueles que nos descentram e nos expandem na direção do serviço e do compromisso com o outro, sobretudo os mais pobres e excluídos. Se o jejum não nos faz mais compassivos, solidários, com espírito de partilha... ele se reduz a uma simples penitência, vazia de sentido. No seu horizonte, o outro não está presente.
A quaresma deverá, então, ser um tempo para “jejuar alegremente”; e isto implica duas coisas:
- jejuar de julgar os outros e festejar a nobreza escondida em cada um; jejuar de preconceitos que nos afastam e fazer festa por aquilo que nos une na vida; jejuar das tristezas e celebrar a alegria; jejuar de pensamentos e palavras doentias e alegrar-nos com palavras carinhosas e edificantes; jejuar de lamentar fracassos e festejar a gratidão; jejuar de ódio e festejar a paciência santificadora; jejuar de pessimismos e viver a vida com otimismo como uma festa contínua; jejuar de preocupações, queixas e lamentações, e festejar a esperança e o cuidado providente de Deus; jejuar de pressas e ativismos e saber festejar o repouso reparador;...
Algo disto também é vivido através da prática da “esmola”, que não se reduz a renunciar algo próprio, o que sobra. Implica fazer da vida uma contínua “oferta”, ou seja, uma atitude de vida atenta à realidade do outro, deixando-se afetar pela sua pobreza, sofrimento e exclusão. Trata-se de viver o espírito de partilha, colocando “pitadas” de misericórdia nos gestos de proximidade; ter um olhar contemplativo que sabe ler entre linhas, que está atento à sede de compaixão daqueles que o cercam; revelar uma forma de se relacionar com os outros de outra maneira, mais gratuita e desinteressada; não é tirar da bolsa, mas do coração; compartilhar o que se é e o que se tem, em suma, que seja expressão de amor.
Enfim, outra prática quaresmal que nos faz crescer na identificação com Jesus e a viver na perspectiva do outro é a oração. A oração, é vista, muitas vezes, como um modo de “terceirizar” soluções: pedir a Deus que faça o que nós não fazemos; e se Ele não faz será sua suprema vontade que tudo se mantenha igual, fechando a pessoa em sua cápsula tão distante da vida das pessoas. Quaresma é tempo propício para ter Jesus orante diante dos olhos, como referente e inspirador.
A oração de Jesus o fazia mergulhar de cheio nas dores, nas exclusões e nas injustiças cotidianas, e o provocava a revisar suas práticas concretas, para cultivar vínculos mais semelhantes aos que Ele descobria como o sonho do Pai. Na oração, Jesus exalta os pequenos e excluídos; nas experiências compartilhadas de oração vai delineando sua missão e ampliando seus próprios limites, abre-se aos “pagãos”, reconhece e aceita o novo que brota das margens.
Em atitude orante, Jesus abre os olhos e ouvidos dos cegos e surdos, põe de pé os paralíticos, anima os desfalecidos a recomeçar, cura os doentes... A solidão no monte o impulsiona a compreender com mais profundidade o sentido daquilo que vive e a comprometer suas mãos com maior decisão nas vidas daqueles com quem se encontra...
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Em nosso interior há todo um mundo de vozes, ruídos e imagens que surgem de nós mesmos, daqueles que nos rodeiam, de nossa comunidade e também de Deus. É preciso tomar consciência dos “movimentos internos” que acontecem na oração, acolhê-los, interpretá-los e verificar a direção que eles estão indicando.
Daí a importância do silêncio na oração; ele é a chave a raiz da palavra carregada de vida; o silêncio é o território da palavra ousada e criativa; a palavra mais significativa brota de uma longa espera, de um prolongado silêncio; do silêncio brota a palavra que torna nossa vida mais intensa, abrindo-nos a Deus e aos outros; na oração aprendemos a distinguir e dar nome àquilo que vem de Deus; vamos aprendendo a escolher as cores que nos ajudam a preencher nossa vida, por dentro e por fora, com as tonalidades que melhor nos harmonizem com a paisagem que Deus quer pintar no mundo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele...” (Mc 1,41)
“Se soubésseis como a pele é profunda” (Paul Valéry). Somos seres que precisamos tocar e ser tocados: o aperto de mão, o abraço, as carícias..., transmitem “vida”. É a maneira de se fazer presente ao próximo, não a partir da distância, mas a partir da proximidade corporal. Quem abraça se identifica com o outro, quem o toma pela mão lhe transmite a mensagem de que não está à margem, na solidão...
O evangelho de hoje nos recorda Jesus quando tocava os leprosos. Por que fazia isso se, segundo o Evangelho, podia curá-los só com a palavra? Para dizer-lhes que estavam vivos. Jesus conhecia a vida marginalizada dessas pessoas, e como ninguém queria ter contato com elas por medo do contágio e da impureza ritual, Ele as tocava para curá-las e fazê-las sentir que estavam vivas. E assumia a consequência de tornar-se, também Ele, “impuro”.
Tocar e deixar-se tocar. Este é, talvez, um dos gestos mais característicos de Jesus e também um dos mais desafiantes e reveladores. Não é ousadia poder afirmar isso: a “pele de Deus”, a pele do Filho, está feita para tocar e deixar-se tocar, com tudo o que isso implica.
Num tempo e numa cultura onde um leve e inocente contato corporal era motivo de impureza e de afasta-mento do sagrado, Jesus, com sua pele, quebra esta união maléfica entre pureza-impureza, santidade-peca-do, que se manifesta no epidérmico. O escândalo do toque é assumido por Jesus plena e conscientemente. Não como um capricho de simplesmente transgredir o que foi estabelecido, mas como uma proximidade, uma imersão na realidade do pecado-enfermidade que excluía tantas pessoas de qualquer interação social.
É o caso do leproso do evangelho deste domingo; tocando o pecado-impureza Jesus se faz, Ele mesmo, pecado-impureza aos olhos dos justos. Jesus é consciente de que diante da lei, também ele fica impuro e leproso. E prefere ficar legalmente leproso quando se trata de salvar a dignidade de um homem; quando se trata de recuperar a liberdade do ser humano, Jesus não se importa ser excluído pela lei.
Esta visibilização contaminada-impura de si mesmo acarreta a Jesus muitos problemas com aqueles que dizem conhecer e interpretar a Deus. Mas é uma maneira radical de dizer que tocando, com tudo o que isso implica, salva-se o ser humano.
Marcos recolhe em seu relato a cura de um leproso para destacar essa predileção de Jesus pelos mais exclu-ídos. A cena revela belos traços que nos falam da beleza do Evangelho. Jesus está atravessando uma região solitária. Subitamente um leproso se aproxima dele. Não vem acompa-nhado por ninguém; vive na solidão. Carrega em sua pele a marca de sua exclusão. As leis o condenam a viver afastado de todos. É um ser impuro.
De joelhos, o leproso faz a Jesus uma súplica humilde. Sente-se sujo; não lhe fala de sua enfermidade e nem lhe pede que o limpe. Sua oração não trata de forçar a vontade de Jesus; resigna-se aceitar e acolher o que for da vontade d’Ele. Sabe que está transgredindo a lei ajoelhando-se diante de Jesus, quando devia estar longe. Só quer ver-se limpo de todo estigma.
Jesus sente compaixão ao ver a seus pés aquele ser humano desfigurado pela enfermidade e pelo abandono de todos. Aquele homem representa a solidão e o desespero de tantos estigmatizados. Jesus “estende sua mão” buscando o contato com sua pele, o toca e o cura. Jesus também transgride a lei tocando um leproso; mas para Ele a religião não pode ser um estorvo para curar o ser humano.
Marcos indica que, a partir de então, Jesus não podia entrar nas aldeias, com o qual Ele mesmo assume o destino daquele marginalizado – o destino de todos os leprosos, que não podiam entrar nas cidades -, justamente quando o cura.
Tocar ou nos sentir tocados é, em determinadas circunstâncias, a linguagem mais inteligível do amor. Jesus demonstra seu amor... “tocando”. Ele não ama à distância, mas, a cada passo aproxima-se das pessoas, gosta de sentir-se apertado entre elas.
Com amor e por amor Jesus tocava as diferentes pessoas. Com amor e por amor estas o tocavam. O Evangelho nada nos diz a respeito de palavras ou expressões que acompanhassem esses contatos. Com toda probabilidade não as havia. Porque quando se entra em contato verdadeiramente amoroso com alguém, sobram palavras. Basta a experiência tátil da “presença”. Tocar é algo mais que uma simples experiência física e psicológica. Tocar é sentir que uma corrente de vida passa de um para o outro.
O órgão do tato é a mão. Quê mistério há em nossas mãos que constantemente querem tocas as coisas e as pessoas? Mas a mão é um órgão extremamente flexível: pode acariciar ou agarrar; pode golpear ou sustentar; pode puxar ou tocar delicadamente...
Quando estendemos os braços e tocamos o outro espontaneamente descobrimos a compaixão e a riqueza que existe em todos nós. A união humana origina-se quando tocamos e somos tocados. Sim, isto depende de como tocamos... Há pessoas que nos tocam como uma crosta, uma casca; outras que nos remexem até a seiva, até o cerne. Há mãos que nos machucam, nos coisificam; e há mãos que nos pacificam, nos curam e até nos divinizam (imposição das mãos).
A partir da experiência de fé podemos recuperar a dimensão do tato como possibilidade de viver de forma mais humanizadora e plena. Os sentidos, e de maneira especial o tato, nos fazem mais humanos, nos ajudam na descoberta dos outros, fazem palpável o amor fraterno, nos ajudam a reavivar a beleza do transcendente. A fé requer ser vivida e compartilhada de forma criativa.
Texto bíblico: Mc 1,40-45
Na oração: A religiosidade popular está repleta de atitudes que testemunham o fato de que, para quem tem o coração à flor da pele, “orar e tocar” é uma só e mesma coisa.
Orar tocando é como reeditar as palavras de S. João: “Aquele que nossas mãos tocaram, disso damos testemunho” (1Jo. 1,1).
- Ninguém toca ninguém de longe. Toque o seu Deus comungando. Você também O estará tocando ao se apro-ximar d’Ele com uma visita, um telefonema, uma saudação na rua, um favor, um serviço prestado com amor.
- Há templos famosos pela liturgia da oração tátil: orfanatos, hospitais, cárceres, periferias, sanatórios, asilos, favelas... Não deixe de frequentá-los.
- Na sua oração, sinta-se próximo de todos. Toque tudo. Acaricie todas as suas recordações. É uma forma fabulosa de rezar a vida.
- Não tenha receio dos “contágios”. Se rezar com o tato supõe proximidade, imediatez, supõe também não opôr-se a todo tipo de contágio. Quando tiver medo, recorde-se que também “Deus se contagiou de humanidade”.
- Finalmente, se você se sente “tocado” por Deus, produzir-se-á um autêntico transplante de pele.
E tornar-se-á fácil para você pôr-se na “pele” dos outros. Você se tornará negro com os negros, cigano com os ciganos, criança com as crianças, pobre com os pobres...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Ele se aproximou, segurou sua mão e ajudou-a a levantar-se”. (Mc 1,31)
A cena da cura da sogra de Pedro faz parte da chamada “jornada de Cafarnaum” (Mc 1,21-38), como se fosse o relato de um dia típico na vida pública de Jesus: na manhã do sábado dirige-se à sinagoga onde cura um endemoniado; ao meio dia entra em casa de Pedro e cura sua sogra; ao entardecer, muitos enfermos são conduzidos até Ele; de madrugada retira-se para orar.
No relato de hoje(5º dom. Comum), Jesus desloca-se da sinagoga, lugar oficial da religião judaica, à casa, onde se vive a vida cotidiana, junto aos seres mais queridos. Nessa casa vai sendo gestada a nova família de Jesus. As comunidades cristãs devem recordar que não são um lugar religioso onde se vive da Lei, mas um lar onde se aprende a viver de maneira nova em torno a Jesus.
Os olhos e as esperanças daqueles que sofrem buscam a porta dessa casa onde está Jesus. É sábado, e pela segunda vez, no mesmo dia, Jesus está de novo transgredindo um preceito sagrado, porque Ele só considera sagrado o que agrada a Deus: a qualidade da vida para todos. Para Ele o importante é a vida sadia das pessoas, não as observâncias religiosas.
O relato descreve com todo detalhe os gestos de Jesus para com a mulher enferma. Podemos contemplar o texto observando o desenrolar das três cenas: na primeira, uma mulher está na posição horizontal dos mortos, separada da comunidade e dominada pela febre. Na última, a encontramos de pé, curada e prestando um serviço, ou seja, ocupando o lugar do próprio Jesus que, segundo suas palavras “não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida” (Mc 10,45); quando Marcos nos apresenta a sogra de Pedro “servindo”, está nos dizendo: aqui está alguém que entrou na órbita de Jesus, que respondeu a seu convite de colocar-se aos pés dos outros e por isso ela começou a “ter parte com Ele” (Jo 13,8). A cena central nos oferece o segredo de sua transformação: é o primeiro gesto silencioso de Jesus, que se repetirá em Marcos, e bastam três verbos para expressá-lo com sobriedade” – “Ele se aproximou”, “segurou sua mão” e “ajudou-a a levantar-se”.
“Jesus se aproximou”. É o primeiro gesto que Ele sempre faz: quebra distâncias, faz-se próximo daquela que sofre, olha de perto seu rosto e compartilha seu sofrimento. A dor vista de longe não dói em ninguém; a dor vista de longe não chega ao coração. É preciso olhar o sofrimento de perto. Aproximar-se já é começar a identificar-se com quem sofre. E quem sofre, começa a ficar curado quando sente a proximidade solidária dos outros.
“Segurou-a pela mão”. É um gesto próprio de Jesus; toca a enferma, não teme as regras de pureza que o proíbem; quer que a mulher sinta sua força terapêutica. Esse contato sanador é que vai possibilitar a cura. Tomar alguém pela mão é gesto cheio de ternura, sinal de carinho e proximidade, sinal de amizade e confiança; sinal de solidariedade; sinal de querer ativar o ânimo em quem sofre. É um gesto simples e cotidiano com o qual Jesus não só curou a mulher da febre senão que está nos indicando um novo modo de fazer comunidade, de ir pela vida estendendo a mão para ajudar a levantar a quem, caído no caminho da vida, espera que alguém lhe dê uma mão para pôr-se também de pé.
Quantas distâncias se encurtam quando se toma alguém pela mão! Quantas suspeitas se dissipam quando se toma alguém pela mão! Quantos medos são superados quando se toma alguém pela mão!. Por fim, «ajudou-a a levantar-se», pondo-a de pé, devolvendo-lhe a dignidade. Mais um gesto próprio de Jesus. Este último verbo é o mesmo que se usa para falar da ressurreição.
Para Jesus, as mãos são para isso: levantar o outro, ajudar o outro a colocar-se de pé, devolver ao outro a capacidade de dar direção à própria vida. O Evangelho utiliza, com muita frequência, o verbo “levantar” para designar a intervenção de Jesus em favor daqueles que estão caídos, estendidos, prostrados no chão. É a postura da humilhação, opressão e aniquilamento, enquanto que “levantar-se”, pôr-se de pé, é símbolo da dignidade humana. O homem e a mulher vivos e postos de pé experimentam a liberdade e a partir desta posição podem agir, falar, cantar... É a postura da dignidade, autoridade, transcendência e altura luminosa.
Toda a ação de Jesus poderia resumir-se no gesto simbólico de levantar, endireitar e pôr de pé.
Assim está Jesus sempre presente entre os seus: com uma mão estendida que nos levanta, como um amigo próximo que nos infunde vida. Jesus só saber servir, não ser servido. Por isso, a mulher curada por Ele se põe a “servir” a todos; ela foi integrada em seu grupo de seguidores e pode então “servir”, construindo a comunidade de iguais que Jesus queria, rompendo com a mentalidade patriarcal. Seus seguidores deverão viver acolhendo-se e cuidando-se uns dos outros.
Este relato nos dá a conhecer a nova ordem das relações que devem caracterizar o Reino no qual a vinculação fundamental é a da fraternidade no serviço mútuo. A maneira de atuar de Jesus desestabiliza as relações que se estabelecem através do poder-dominação e desqualifica qualquer manifestação de domínio de uns sobre os outros; inaugura-se um estilo novo no qual o “desenho circular” desloca e declara caduco o “modelo hierárquico”. Sua maneira de se relacionar com as pessoas prostradas e marginalizadas põe em marcha um movimento de inclusão, devolvendo a todos a dignidade perdida.
Graças a muitas pessoas que se deixaram “tomar pela mão” por Jesus, “levantar-se” e “servir”, o cristianismo primitivo foi se constituindo em pequenas comunidades domésticas, reunidas em suas casas, onde muitas mulheres assumiram funções eclesiais tanto como missionárias itinerantes como responsáveis pelas igrejas domésticas, onde presidiam a oração e a fração do pão.
Muitas das dificuldades que temos na vida comunitária vem de nossa resistência a nos situar na atitude básica de um serviço que não pede recompensas, nem reclama agradecimentos. A Igreja só atrai de verdade quando as pessoas que sofrem podem descobrir, dentro dela, a Jesus curando a vida e aliviando o sofrimento. À porta de nossas comunidades há muita gente prostrada e sofrendo.
O evangelho nos convida a deslocar-nos e aproximar-nos dos lugares onde estão os prostrados da vida, tomá-los pela mão e ajudá-los a levantar-se. Então, todos juntos, nos disporemos a servir, teceremos o manto da solidariedade social e eclesial a partir da cotidianidade; seremos assim testemunhas mobilizadoras numa sociedade cansada de palavras e necessitada de experiências que se façam verdade histórica.
Texto bíblico: Mc 1,29-39
Na oração: Coloque-se diante do Pai e peça-lhe que toda sua corporalidade, como a de Jesus, se ponha a serviço daqueles que estão prostrados na vida. Contemple suas mãos: para quem as estende?
A quem elas seguram e envolvem? A quantos elas levantam? A quantos elas acariciam? A quantos elas incitam a ter ânimo?
Mãos que curam sem dizer nada; mãos que levantam com um sorriso; mãos que despertam o sentido do serviço.
Contemple seus pés: para junto de quem eles o conduzem? Criam proximidade? Rompem distâncias?
Contemple seu coração: é espaço de compaixão, ternura, amor solidário...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Ele as ensinava como quem tem autoridade, não como os escribas” (Mc 1,22)
Esta frase nos remete a imaginar a forma, o jeito, a maneira como Jesus falava das coisas, como se posicionava diante dos fatos da realidade, como era a sua atitude diante da sociedade e da religião de seu tempo. Suas palavras despertavam a confiança nas pessoas, ativando esperanças e fazendo desaparecer os medos. Suas parábolas atraiam para o amor a Deus, não para a submissão cega à lei. Sua presença fazia crescer a liberdade, não a servidão; suscitava o amor à vida, não o ressentimento.
A este modo de falar, Marcos o chama “ensinar com autoridade”. “Autoridade” é o oposto à imposição. Do latim “augere”, significa “aumentar, elevar, sustentar...” “Falar com autoridade” não significa, falar “grosso”, “falar alto” ou “falar agressivamente”, pois são formas dos autoritários quererem se impor.
Podemos fazer aqui a distinção entre “autoridade” e “poder”: este último se baseia na força; aquela, no carisma pessoal e no reconhecimento merecido pelo próprio comportamento. Um busca a submissão; a outra só tem como objetivo o bem da pessoa e seu crescimento. Frente ao poder, o ouvinte pode sentir medo; diante de quem tem autoridade, sente confiança e ânimo.
O Mestre da Galileia fala do que viu e experimentou. Por isso, se atreve a falar em primeira pessoa. Passou por um processo no qual foi aprendendo a “pôr nome” àquilo que ia vivendo. Nesse percurso, foi levado a profundezas que lhe permitiam conectar com as vivências mais profundas das pessoas que, por sua vez, se sentem reconhecidas e “lidas” em seu interior. No entanto, os “letrados e mestres da lei” de todos os tempos e lugares tendem a oferecer “doutrina enlatada”, à qual as pessoas dão assentimento, mas que não traz nada novo. Costuma ser um receituário de conceitos aprendidos, adornados com opiniões de letrados anteriores ou de superiores hierárquicos; transmite-se doutrina, mas não há vida; fixa na ortodoxia mas falta experiência pessoal naquilo que se fala e “novidade” que nasce da interioridade. É um exercício de pura erudição que costuma deixar frios os corações dos ouvintes. Corre-se o risco de esclerozar-se, afastando-se cada vez mais da vida e das preocupações das pessoas.
O contraste é patente: o mestre de Nazaré cria algo novo; os letrados e os sacerdotes buscam, acima de tudo, conservar. A mensagem destes tende a ser repetitivo e rotineiro; a do mestre, no entanto, por mais vezes que o escutemos, sempre tem sabor do “novo”. Quanto mais distante esteja uma palavra da experiência, menos dinamismo transformador ela tem sobre as pessoas.
“Falar como quem tem autoridade” significa alguém manifestar coerência entre o que fala e o que pratica; significa alguém falar o que lhe vem de dentro do seu coração, de seu interior. E, com certeza, Jesus não tinha esta dualidade: o que Ele falava era o que Ele interiormente acreditava e existia dentro d’Ele.
Geralmente as pessoas ficam assombradas quando a mensagem que ouvem lhes soa como “novo” e, ao mesmo tempo, encontra “eco” em seu interior. E isso ocorre porque quem fala “conecta” com a realidade que, talvez ainda adormecida, habita já nos ouvintes. Se não há novidade, não é fácil que se produza assombro; a rotina só provoca acomodação, adormecimento e vazio.
Mas se é só “novidade”, o assombro será superficial e passará tão rapidamente como chegou. E isso não foi o caso de Jesus. A multidão que o escuta fica “assombrada” porque se sente “tocada” por aquilo que o Mestre dizia: este soube “pôr palavras” naquilo que as pessoas já sentiam ou intuíam, embora sem ter consciência disso. Poderíamos dizer que Jesus sabia “empalavrar” a realidade; n’Ele, as palavras não se reduziam à oralidade, mas envolviam todas as expressões humanas: gestualidade, presença compassiva, postura ética, expressões corporais acolhedoras, sentimentos... Em Jesus, as palavras são, ao mesmo tempo, pensamento, ação, sentimento..., que desencadeavam um “movimento” no interior das pessoas, abrindo-lhes um novo horizonte de sentido. Daí a sedução que Ele exercia sobre elas.
Graças à interiorização da mensagem de Jesus, poderemos, também nós, levar algo de luz e de calor a tanta gente que busca, porque se sentirá “alcançada” em seu coração. Isto requer que, seguindo o “mestre interior”, passemos pela experiência, percorrendo nosso próprio caminho espiritual: “falar com autoridade” implica uma desapropriação e um esvaziamento do próprio ego. Esse caminho nos conduzirá mais e mais ao nosso “centro”, esse centro que compartilhamos com todos os seres. Por isso, quando falarmos a partir dele, notaremos vibrar os corações daqueles que nos escutam.
No fundo, estamos todos já conectados; somos como pequenas ilhas separadas na superfície, mas compartilhamos a mesma terra comum no nível subterrâneo; somos como os poços que vemos igualmente separados, mas somos portadores da mesma água que, no manancial subterrâneo, nos “une” a todos.
Talvez este seja um dos desafios mais fortes no mundo contemporâneo: cristãos que falem com autoridade, pessoas de uma rica profundidade, capazes de apontar caminhos para que outros também encontrem a vida verdadeira, plena e abundante, à qual todos somos chamados.
Nunca a humanidade esteve tão ávida de pessoas assim. Ela não quer mais discursos vazios, desenraizados, contraditórios... ela clama por caminhos seguros, verdadeiros, que deem sentido à vida. Não é a forma que vai dar autenticidade ao que se fala, mas o interior daquele que profere a palavra.
Um mundo melhor, um mundo solidário, fraterno, amigo, deve existir, antes de tudo, dentro do ser humano; somente a partir daí cada um tem condições de propagar este mundo desejado. Ou seja, se dentro da pessoa existe ódio não dá para proclamar a paz; se dentro da pessoa existe desamor, não dá para anunciar o amor; se dentro da pessoa existe cobiça, não dá para anunciar o desapego; se dentro da pessoa existe a ambição, não dá para anunciar a humildade.
Quem tem como rotina de vida “ficar enredado” em redes sociais e TV, com os programas que são “vomitados”, dificilmente terá profundidade, dificilmente terá raízes que o sustentem nos momentos desafiadores da vida, que com certeza aparecerão. No entanto, pessoas que conseguem parar, ter tempo para si, recompor-se, fazer silêncio, interiorizar-se, contemplar, perceber a alegria da vida, das pessoas, da família, das crianças, da simplicidade... estas com certeza “falarão com autoridade”; ou seja, serão farol para conduzir e apontar caminhos.
Texto bíblico: Mc 1,21-28
Na oração: Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a uma civilização que teme o silêncio (há demasiado ruído em nós e em torno a nós). Fala-se muito para dizer bem pouco; há demasiado palavrório. Carecemos de interioridade.
O silêncio não é o contrário da palavra. É sua matriz. Talhada pelo silêncio, mais significado ela possui. O tagarela cansa os ouvidos alheios porque seu matraquear de frases ecoa sem consistência.
Já o sábio pronuncia a palavra como fonte de água viva. Ele não fala pela boca, e sim do mais profundo de si mesmo. Sabem os místicos que, sem calar o palavreado crônico, é impossível ouvir, no segredo do coração, a Palavra de Deus que neles se faz expressão amorosa e ressonância criativa.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
“E, passando à beira do mar da Galiléia, Jesus viu Simão e André... e lhes disse: ‘segui-me’...
(Mc 1,16)
Agora começa o tempo do “caminho”; agora começa do tempo do “chamado”; agora começa o tempo do “seguimento”. E tudo começa pelo anúncio do grande acontecimento: podemos mudar nossa mente e nosso modo de pensar; podemos mudar nosso coração e aventurar-nos em uma nova vida.
Um forte apelo tem ressonância universal: “convertei-vos e crede no Evangelho”.
E tudo começa junto a um lago; tudo começa junto a umas barcas envelhecidas pela tarefa de pescar; tudo começa junto a umas redes gastas e que precisam ser remendadas a cada dia. E ali estão quatro trabalhadores: Simão e André, Tiago e João... Uma grande causa os espera: “o Reino de Deus está próximo”.
Deixai de pescar no lago estreito; a humanidade os espera; as pessoas esperam algo novo. E tudo começa por um apelo muito simples, cujas consequências são imprevisíveis: “imediatamente deixaram as redes e o seguiram”.
Começa a primeira aventura humana da fé; começa a primeira aventura de sonhar e construir um mundo melhor. Um novo movimento é desencadeado e algo novo surge na história. Hoje, a barca de nossas vidas recebe a ordem de zarpar. Para onde o Senhor quererá nos levar?
Todos teremos nossas barcas e nossas velas abertas ao vento do Espírito. Muitos, com medo, permanecerão na praia, contemplando aqueles que, com coragem, darão início à grande travessia. Onde me situo?
Não somos os primeiros a serem convidados; mas somos os convidados de hoje. Haverá ventos favoráveis e ventos contrários ao nosso navegar. Mas nós zarparemos hoje, agitando nossos lenços da fé, despedindo-nos daqueles que não se atrevem a deixar suas velhas barcas e suas redes remendadas.
O “mistério de Deus” nos supera. Parece que Ele se faz mais acessível pelos caminhos cotidianos da vida. É na vida pessoal ou coletiva onde Deus se revela presente e manifesta sua voz. Esta foi a experiência do povo de Israel (Dt. 26,6-10) e a experiência dos primeiros discípulos de Jesus.
Nosso Deus é um Deus de pessoas: Abraão, Isaac, Jacó, Maria, Pedro...
Um Deus de pessoas que se encontra mais na vida que nas ideias e nas doutrinas. A pessoa é o lugar de encontro com Deus. Jesus é, precisamente, a presença de Deus na vida humana. Um homem entre os homens. Ele vai em busca de pessoas, chama-as pelo nome; sua presença e sua voz arranca-as do seu ambiente, da sua rotina... e lança-as para novos desafios.
Tudo começou às margens do mar da Galileia... um encontro. Jesus entra no cotidiano de 4 homens, no meio daqueles movimentos difíceis e repetitivos, próprios de pescadores. Não estamos no templo, nem num dia sagrado, mas junto do mar, depois da fadiga de um dia de trabalho.
Jesus caminha e, ao passar ao longo do mar, entra no espaço vital daqueles homens, que estavam retornando da pesca. Exatamente ali, naquela vida tão normal, acontece algo novo.
A voz divina escutada no batismo – “este é meu filho amado” – invadiu a interioridade de Jesus e agora é o mesmo Espírito quem o impulsiona para a relação e a proximidade humana. Jesus se deixa levar por essa corrente de proximidade e começa a falar às pessoas, se aproxima, faz contatos, cria comunidade e busca colaboradores para que lhe ajudem a compartilhar o melhor que tem: a boa notícia do amor incondicional do Pai.
Ao contemplar a cena do evangelho de hoje observamos que no começo Jesus está só, enquanto que, no final, está em companhia de quatro seguidores. Jesus propõe, àqueles que chama, a entrar numa relação privilegiada com Ele. A expressão “segui-me” os convida a ficar “associados” à sua maneira de ser, de falar e de compartilhar com Ele em uma missão comum.
O chamado individualiza e personaliza de um modo irrepetível e inconfundível, dá um sentido completamente novo à própria vida. Jesus toma em suas mãos o futuro daqueles que o acompanham: junto a Ele irão adquirindo uma nova personalidade definida pela referência a outros.
Logo que ouviram a Sua voz, aqueles pescadores se dão conta d’Aquele que estava passando: eles já tinham sido vistos, conhecidos, amados, escolhidos. Aquela voz abre os olhos, a mente e o coração daqueles pescadores do lago. Sentem-se chamados pelo nome e conseguem compreender melhor a si mesmos, confrontam-se com Aquele que os chama e redescobrem um sentido novo, um significado inimaginável da própria existência.
Finalmente, não se sentem mais sozinhos.
Os quatro homens são atraídos pela voz, mais do que pelas palavras ou pela promessa do Desconhecido que passa, vê, chama, conhece também o nome de seus pais, e sabe bem quantas e quais são as barcas e as redes que lhes davam segurança. O objetivo da promessa não se refere somente a algo que haverá de acontecer, mas a Alguém que já está presente. A promessa que os atrai é, justamente, Aquele desconhecido, que, das margens, os chama pelo nome.
Depois de tê-los despojado de suas seguranças e levado a intuir que a vida não é questão de certezas, mas de busca e de desejos, Jesus chama aqueles pescadores para ficarem com Ele e entre eles, fazendo comunidade.
Aquele Desconhecido se aproxima, ainda hoje, do nosso mar da Galileia, que representa os lugares, os afetos, os segredos, os costumes da nossa vida cotidiana... nos faz a proposta para entrar em outro mar.
Seguir o Desconhecido do lago significa aceitar toda a vida como sacramento, como símbolo d’Aquele que passa, vê, conhece, ama, chama pelo nome...
Cada um de nós descobre ser chamado em nossa própria vida e respondemos de acordo com o estado e a situação em que nos encontramos. O fato de sentir, em nossos desejos, que estamos insatisfeitos, cultivar aspirações sempre novas, procurar entender quem somos, o que devemos fazer, o que nos torna realmente felizes..., no fundo, é um contínuo chamado pelo nome.
Não podemos permanecer indiferentes. É preciso ter coragem de perguntar: “Quem me chama?” e “a quê me chama?”; pedir ajuda para conseguir entender, reconhecer, descobrir o nosso nome. Deus está presente em todo o caminho do ser humano, mesmo quando este se encontra na rotina do trabalho cansativo, no silêncio, na incapacidade de entender e, até mesmo, de responder.
São muitos os chamados que, à margem do mar, se perdem no vazio. Deus pede, cada um de nós, entrar no “fluxo da vida”, evitando deixar que uma só das suas palavras, do seu chamado, possa cair no vazio. A dinâmica da relação com Deus passa através da nossa história, das nossas alegrias, dos nossos sofrimentos, e das nossas perguntas: “Quem sou eu?”, “O que quereis de mim?”.
Texto bíblico: Mc 1,14-20
Na oração: No fundo do seu coração cheio de velhas barcas, redes inúteis, mar estreito... é aí que o Senhor passa e com sua voz provocante o acorda para uma ousadia maior. Compete a você dar-lhe acolhida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana
“Quê buscais?” (Jo 1,38)
O Evangelho de hoje marca o início da atividade pública de Jesus: um relato de busca e de seguimento. Dois discípulos, que escutaram o Batista, começam a seguir o Mestre de Nazaré, sem dizer palavra alguma. Há algo n’Ele que os atrai, embora ainda não sabem quem Ele é nem para onde os leva. No entanto, para seguir a Jesus não basta escutar o que os outros dizem dele. É necessária uma experiência pessoal.
Por isso, Jesus se volta e lhes faz uma pergunta muito instigante: “quê buscais?”. Estas são as primeiras palavras de Jesus àqueles que o seguem. Não se pode caminhar atrás de seus passos de qualquer maneira.
Aqueles homens não sabem aonde os pode levar a aventura de seguir a Jesus, mas intuem que pode ensinar-lhes algo que ainda não conhecem; por isso, sua resposta é outra pergunta sábia: “Mestre, onde moras?”
Não buscam n’Ele grandes doutrinas nem sábias filosofias. Querem que lhes mostre onde vive, como vive e para quê vive. Desejam que lhes ensine a viver. A resposta de Jesus é a de um verdadeiro mestre: “Vinde e vede”. Experimentai-o vós mesmos, percorrei meu caminho, caminhai por ele... Não lhes dá explicações ou uma exortação, nem lhes impõe condições, nem exige deles algum tipo de submissão.
Jesus lhes dirige uma pergunta que os remete ao centro de seu coração, àquilo que os move: “quê estais buscando?” Sua pedagogia é a da pergunta que desvela, pois move a pessoa a entrar dentro de si e encontrar-se com a fonte que mana e corre. Com seu modo original de perguntar, Jesus abre um horizonte novo de vida àqueles dois discípulos. Pouco a pouco, Ele vai libertando-os de enganos, medos e dúvidas que atrofiavam e bloqueavam suas vidas.
“O Evangelho é um itinerário para abrir com profundidade a interioridade humana” (Rovira Belloso), e nele vemos como Jesus promove o retorno ao interior;
A pergunta nos retira da cotidianidade e da mediocridade e nos põe no movimento de busca do novo.
Somos filhos da pergunta provocada pelo mistério da vida, das coisas, de Deus, de si mesmo... Perguntar quer dizer não estar pronto, não viver em porto seguro, mas em contínua peregrinação. Só quando acolhemos as perguntas provocativas é que emergimos da cotidianidade e percebemos quão inacabada é nossa existência e quanto temos ainda de caminhar na realização de nossa missão.
Quando a pergunta ressoa em nós, aí é que descobrimos nossa mais autêntica forma de ser, nossa originalidade, nossa identidade...; ela provoca as mudanças e a transformação torna-se possível. A pergunta nos arranca da surdez e nos faz escutar aquilo que o barulho cotidiano abafa e esconde; ela nos desperta e nos faz sair da ilusão de que não há mais nada de novo para aprender e ser, nem há mais o que perguntar.
Toda pergunta ativa o “ser buscador” que nos habita. O ser humano pode ser definido como buscador; a busca é inevitável e é aquela que dá sentido à nossa existência. Em um primeiro momento, na origem da busca, podemos detectar uma insatisfação: cremos que algo nos falta, porque nos sentimos insatisfeitos. E nos lançamos em sua busca.
Geralmente, os primeiros passos nos impulsionam para fora, em busca de “objetos” – bens, posses, afetos, prestígio, poder, prazer… - que nosso eu reclama. Imaginamos que, fora de nós, deve haver “algo” que nos sacie e nos permita descansar numa sensação de plenitude. No entanto, não demoramos em experimentar que, em lugar do sonhado descanso, o que começamos a armazenar é frustração crescente: a busca não nos traz nada estável e pleno.
A busca deve orientar-nos para o interior: a Fonte que saciará nossa sede brota no mais profundo de nosso ser. Por isso, é necessário que aprendamos a escutar nosso “mestre interior”. Na realidade, o que andamos buscando é o nosso “eu verdadeiro” , o “eu profundo”, a “identidade original”. Nesse sentido, só o que nos faz mais humanos, e na medida em que nos faça mais humanos, plenificará nossa existência.
A expressão de Pascal de que “o ser humano supera infinitamente o ser humano” resume bem esta vivência da busca que nos habita, nos move e nos faz transbordar em nossa mesma intimidade. Podemos entrar dentro de nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, a dimensão “divina” que nos situa acima do vai-e-vém das coisas, acima do tempo e da contingência...
A pergunta de Jesus – “quê estais buscando” – suscita nos dois discípulos outra pergunta: - “Mestre, onde moras?”. Eles não lhe pedem uma nova doutrina nem esperam respostas teóricas. O que querem é entrar no “território” onde Jesus vive e poder também eles transitar por aí.
Trata-se do território perdido que todos andamos buscando: a verdade de quem somos nós. Esta nossa busca começa no retorno ao interior, onde o Senhor nos habita e nos move. Podemos então afirmar que a busca de Deus e o encontro com ele, a partir de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de si mesmo, de modo que buscar a Deus é buscar-se a si mesmo, na própria interioridade.
Todo o resto são “mapas”, explicações, crenças, informações, opiniões... Mapas que talvez tenham sido úteis durante algum tempo, mas que não podem saciar nosso desejo. Ninguém pode ficar satisfeito porque possui muitos mapas. A busca não se deterá até que não pisemos o território do coração. Ninguém nos pode ensinar isso a partir de fora; o máximo que pode fazer é nos oferecer “mapas”, dar ânimo, sustentar-nos e acompanhar-nos, mas é cada qual deve fazer seu caminho.
Não é comum prestar atenção ao que acontece no território interior. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio território se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.
Ampliar os espaços do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade, solidariedade e abertura às mudanças e às novas descobertas. Algumas fortalezas e seguranças pessoais caem quando os “espaços interiores”, abrasados e iluminados pela força do Espírito, começam a romper as paredes e se encarnam em “lugares exteriores”, marcados pela beleza e encantamento.
Não tem sentido transitar pelos “territórios” por onde Jesus transita se nossa mente permanece estreita, se nosso coração continua insensível, se nossas mãos estão atrofiadas, se nossa criatividade sente-se bloqueada... Ampliar os espaços interiores é convite a sonhar alto, a pensar grande, a aventurar-se... ousar ir além, lançar por terra nosso modo arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos.
Texto bíblico: Jo 1,35-42
Na oração: a pergunta de Jesus continua ressoando no interior de cada um de nós: Porquê o seguimos? Quê buscamos?
Quem se põe a caminho atrás d’Ele, começa a viver com mais verdade e generosidade, com mais sentido e esperança; tem a sensação de que começa, finalmente, a viver a vida a partir de sua raiz, com mais inspiração e criatividade. Tal experiência é expansiva, pois o faz mais humano e o move a despertar a humanidade travada no outro. Tudo começa a ser diferente.
Na Igreja e fora dela são muitos os que vivem hoje perdidos no labirinto da vida, sem caminhos e sem orientação. Alguns começam a sentir com força a necessidade de aprender a viver de maneira diferente, mais humana, mais sadia e mais digna.
Encontrar-se com Jesus pode ser para eles a grande notícia.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“...ao sair da água, viu o céu se abrindo e o Espírito, como pomba, descer sobre ele” (Mc 1,10)
Estamos no primeiro domingo do “Tempo Comum”; celebramos hoje uma das três manifestações de Jesus que, nos primeiros séculos da Igreja, estavam integradas na festa da Epifania (Magos, apresentação no Templo e Batismo).
Para o evangelista Marcos, o relato do Batismo não é mais um entre tantos, mas uma das chaves para compreender todo o evangelho. O batismo de Jesus é o acontecimento mais importante de toda sua vida, fora sua Paixão-Morte-Ressurreição.
Não foi um ato de humildade nem uma representação diante dos outros, mas uma atitude de total abertura e sintonia com o Pai e o Espírito. O fato de que se deixara batizar por João nos leva muito além de um encontro fortuito. A experiência junto ao Jordão o ajudou a descobrir o sentido de sua existência: ali Jesus viu claro o que o Pai esperava dele, e que a força do Espírito o acompanhava para levar a termo essa missão.
As três leituras indicadas para a festa de hoje nos falam do Espírito como principal protagonista. O Evangelho, para falar do Espírito, usa uma imagem sensível, “como uma pomba”. Certamente esta imagem nos faz retornar até o início da Bíblia, no relato da Criação, onde se diz que o Espírito de Deus “pairava” sobre as águas. O relato do Batismo nos revela um “novo Tempo” e um “novo começo”: esse Espírito transforma interiormente a Jesus e o capacita para levar a termo a difícil tarefa que lhe esperava.
Sobre a terra começa a caminhar um homem cheio do Espírito de Deus. Esse Espírito que desce sobre Ele é o alento de Deus que cria a vida, a força que renova e cura os viventes, o amor que transforma tudo. Por isso Jesus se dedica a libertar a vida, a curá-la e torná-la mais humana.
Conduzido pelo Espírito, Jesus “desce” e mergulha nas águas turvas da humanidade, onde se encontra com a vida ferida, violentada e excluída. Sob a ação do Espírito, Jesus vai destravando as vidas bloqueadas, oferecendo-lhes um horizonte de sentido, alimentando uma ousada esperança e abrindo novos caminhos de comunhão e solidariedade.
O Espírito não precisou vir de nenhuma parte; já estava em Jesus desde sempre, como está em cada um de nós. Descobrir essa presença é “nascer do Espírito”. O Espírito está também presente em cada um de nós; cabe a nós tomar consciência dessa presença e nos “deixar conduzir por Ele”, como fez Jesus. É necessário viver empapados do Espírito Santo, ou seja, viver guiados, sustentados e fortalecidos por Ele.
É decisivo deixar o Espírito destravar as nossas ricas “possibilidades de ser” presentes em nosso interior; se ativamos somente nossas possibilidades biológicas e psicológicas, desenvolveremos apenas uma parte de nosso ser. Somos também espírito e se queremos alcançar nossa plenitude humana, temos de abrir espaço em nós à ação do Espírito. Essa descoberta marcará um antes e um depois em nossa vida.
Aqui não se trata mais de um rito, mas de uma realidade: a mesma vida de Deus em nós. Essa é a Vida que palpita e flui em toda a realidade, a que nos constitui no núcleo do que somos. Por isso, podemos dizer com verdade que todos os seres estamos já “batizados com Espírito Santo”. Como poderíamos viver na ausência dessa Vida? Como estaríamos vivos se nos encontrássemos desconectados da Fonte da Vida?... Estamos compartilhando a mesma Vida da qual Jesus foi tão consciente.
“Batizar-nos no Espirito Santo” é descer ao nosso “jordão interior”, mergulhar em nossa própria humanidade, para dali sairmos recriados e impulsionados a um compromisso de vida. Não se trata só de que temos “recebido” a Vida divina, senão que somos essa mesma Vida, expressando-se em mil formas diferentes; mas todas elas são expressão da única Vida e do mesmo Ser.
O Espírito atua sempre da mesma maneira, silenciosamente, a partir de dentro, sem ruídos, sem ventanias, sem violentar a natureza porque atua sempre de acordo com ela. Somos filhos(as) do Vento porque estamos nascendo permanentemente da Fonte da Vida, que é nossa mesma vida. Somos seres criados, habitados, sustentados, amados pelo Sopro originante e amoroso de tudo o que é, ao qual as religiões chamaram “Deus”.
O Espírito é brisa, é vida, é movimento... A vida é vivida quando sopra a força do Espírito, que impulsiona a abrir, a avançar, progredir... Sempre foi e sempre será uma aventura apaixonante “deixar-se conduzir pelo Espírito”. Quem abre espaço para que o “Espírito desça sobre ele” não foge de si mesmo senão que se submerge em seu espaço interior, e, a partir dali, desemboca numa atitude contemplativa no mundo que o cerca; em sintonia com o ritmo da criação e da beleza, abre-se à relação com o outro, entrando em um verdadeiro dinamismo de vida.
Porque a vida autêntica é a vida movida, iluminada, impulsionada pelo dinamismo do amor, que se expressa numa relação cordial, aberta e receptiva à originalidade do outro. Precisamos de outro ritmo em nossa vida, porque a melodia espiritual está presente em nosso mundo. Precisamos de um outro olhar contemplativo, sobre nós e sobre a sociedade, e não fugir de nós mesmos, senão acolher a vida com outra sabedoria.
Em suma, a palavra “Espírito” significa vento, hálito, sopro de vida, força interior que nos transforma a partir de dentro. Para a mentalidade cristã, o seguimento de Jesus é considerado como uma vida segundo o Espírito, uma vida que tem como fundamento e inspiração o modo de ser e atuar de Jesus de Nazaré. Hoje, precisamos desta força do Espírito nas pessoas, nos povos, nas instituições e na história.
Se não nos deixamos reavivar e recriar por esse Espírito, nós cristãos não teremos nada importante que apresentar à sociedade atual tão vazia de interioridade, tão incapacitada para o amor solidário e tão necessitada de esperança. É preciso transformar nosso olhar, nossa atitude e nossa relação com o mundo de hoje. Precisamos parecer-nos mais a Jesus, ou seja, deixar-nos “batizar” por seu Espírito.
Só o Espírito pode dar à Igreja um novo rosto.
O Espírito de Jesus continua vivo e operante hoje no coração das pessoas. Estão sendo criadas condições nas quais o essencial do Evangelho pode ressoar de maneira nova. Uma Igreja mais frágil, humilde pode fazer que o Espírito de Jesus seja entendido e acolhido com mais verdade.
Texto bíblico: Mc 1,7-11
Na oração: As grandes transformações sociais e culturais pelas quais estamos passando estão pedindo hoje a nós cristãos uma fidelidade e uma escuta do que nos diz o Espírito de Jesus.
Como estamos acolhendo hoje o Espírito de Jesus?
Quê caminhos novos anda buscando hoje o Espírito de Deus para encontrar-se com os homens e mulheres de nosso tempo? A partir do nosso Batismo, como devemos renovar nossa maneira de pensar, de dizer e de viver a fé para que a voz do Espírito possa atingir às grandes interrogações, as dúvidas e os medos que brotam e afligem a humanidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“E eis que a estrela que tinham vista no Oriente ia à frente deles até que parou sobre o lugar
onde se encontrava o menino” (Mt 2,9)
Guiados pela estrela no céu e pela estrela de uma grande esperança no coração, os Magos começam a caminhar. Na sua busca, examinam o céu e auscultam o próprio coração. Porque buscam, empreendem o caminho. Põem-se a caminho porque tem perguntas e inquietações no coração.
Caminharam juntos, em comunidade. Só ajudando-se e animando-se mutuamente, carregando o peso uns dos outros, durante o calor do dia e durante a escuridão da noite, é possível chegar à meta. O símbolo dominante no caminho é a Luz que, na Bíblia, é manifestação do mistério de Deus nas suas dimensões fundamentais de vizinhança (imanência) e de alteridade (transcendência).
A luz, de fato, está fora de nós, é exterior, impalpável, intocável; mas também está em nós e sobre nós, nos ilumina, individualiza, é vida e calor. Em sua etimologia, a palavra “epifania” nos fala de um “vir à luz”, de um “aparecer” que se mostra no brilho da aparência.
A palavra epifania nos fala, portanto, do brilhar de uma luz que se “des-cobre” a nós. Esta eclosão da luz, este “brilhar-para”, acontece em um momento que não provém de uma decisão nossa, mas de uma atenção nossa.
O simbolismo da luz conduz-nos a uma outra imagem dominante na narração dos Magos, a espacial.
O quadro geográfico-espacial que decorre da narrativa de Mateus é denso: Oriente, Jerusalém, Belém, Judéia, Egito, Ramá, Galiléia, Nazaré. Mas não se trata apenas de um mapa topográfico. O espaço bíblico é dinâmico, é percorrido por um formigueiro de vida, de movimento... É a história de uma viagem arriscada, de um itinerário “abraâmico”, que partiu, “mas sem saber para onde ía”. (Heb. ll,8).
Aqui se unem a história de Abraão e dos Magos, que deixam a pátria por uma terra desconhecida.
O que os olhos dos Magos vêem ao entrar na gruta é a fragilidade e a impotência de um recém-nascido. Mas o que esses mesmos olhos – acostumados a auscultar os céus e treinados no discernimento do que o coração sente – reconhecem, depois de guiados pela estrela e ilustrados pelas Escrituras, é o Esperado de todos os povos e de toda a Criação. O longo itinerário da busca de Deus só pode terminar na adoração e na entrega.
Os Magos visitam e se vão; retomam a itinerância na fidelidade a uma estrela; isto significa novamente fazer a experiência da busca, da esperança... Toda viagem que culmina na manjedoura, é ponto de partida para novos caminhos.
A viagem dos Magos se torna, assim, o símbolo da vida cristã, entendida como seguimento, como discipulado, como procura. Para chegar ao encontro com Deus é necessário atravessar, como eles, desertos escaldantes e noites escuras, desinstalar-se e romper com o convencional, vencer novos obstácu-los e refutar velhos argumentos. Quem quer encontrar Deus, não pode ficar preso ao passado.
Precisa partir sempre de novo, com o coração cada vez mais leve, porque mais livre; mudando, cada manhã, o lugar, o modo de pensar, a maneira de esperar e a forma de viver.
A viagem exige desapego, coragem, procura, esperança. Quem está preso à terra pelo peso das coisas, pelos apegos, pelos egoísmos, não é capaz de se tornar peregrino. Quem está convencido de possuir tudo, inclusive o monopólio da verdade, não tem a gana da procura contínua. Quem está bem instalado na cidade não precisa de Belém.
Para chegar ao encontro com Jesus é necessário deixar-se comover pelos sinais percebidos e discernidos, é necessário deixar-se mover e guiar por eles ao longo de toda a caminhada. Quem parte impelido por esse dinamismo, é porque de alguma maneira já vislumbrou o que busca. Quem é movido por uma grande esperança, tem força e entusiasmo para deixar tudo e partir.
“Fazer estradas” é preciso. Caminhar consciente: nada está definido no caminho. Há rumos diversos e ritmos diferentes de andar. Em cada ser humano brilha uma luz que aponta para uma fonte e conduz a uma meta que o faz peregrinar.
Se o caminhante é uma pessoa de fé, transforma-se em peregrina diante de horizontes abertos e futuros distantes. É um engano pensar que a chegada é a parte mais importante. Em nossas entranhas, fomos feitos com “fome de estrada”. Nascemos com essa inquietude: nossa vida é uma longa jornada. “Quando descanso meus pés, minha mente também pára de funcionar”. (J.G. Hamann)
Na pequena procissão dos Magos rumo à verdade e à luz, podemos ver a grande procissão da humanidade. Para todos é indispensável a procura, a viagem, o risco. Ao fim da viagem, depois de muitas peripécias e muita escuridão, depois de silêncios e estradas erradas, eis que surge, para todos, Belém. Para quem O procura de coração sincero, Deus se faz encontro.
A estrela que guia nossa busca continua sempre apontando para mais verdade, mais entrega, mais justiça, mais comunhão. Ela continua a brilhar sempre no firmamento do coração. Sobre e em torno ao menino Jesus se projeta e se desenrola o grande duelo da história:
- à Belém, cidade de Davi se opõe Jerusalém, a cidade de Herodes;
- à busca homicida de Herodes, a busca amorosa dos Magos; ao medo sucede a alegria;
- a interrogação “onde está o rei dos judeus?” dá lugar ao festivo “viram o menino e sua mãe”;
- à noite se sobrepõe a estrela, que ilumina a escuridão; a estrela indica, mas desaparece;
- os sumos sacerdotes e os escribas conhecem a verdade sobre o Messias, mas não sabem reconhecê- lo; a meta, Jerusalém, é substituída por “uma outra estrada” para a qual se encaminham os Magos
No deserto de nossas vidas, os mapas de estradas não são muito úteis.
Nós não temos necessidade de mapas; no deserto, onde não há mais estradas, para que servem os mapas? No deserto temos necessidade de bússolas e faróis. Podemos perder todos os mapas, todos os nossos pontos de referência, todas as nossas escalas, mas não podemos perder a bússola; não podemos perder a nossa orientação, a nossa orientação para a gruta.
Isto é muito importante para nós quando estamos, muitas vezes, sem referência, porque neste momento temos de fazer uso de nossa bússola, isto é, do nosso coração. Um coração que busca o Senhor.
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração:
- saber esperar é abrir-se para a revelação do mundo enquanto Epifania, luminosidade que se manifesta no mais comum e cotidiano de nossa vida. Neste momento o Mago nos visita, nos habita.
- O presente dos Magos é a aceitação e o reconhecimento da manifestação do Deus no presente.
- Esta Presença sempre presente só é recebida por aquele que, livre e despojado, se encontra diante da
manjedoura, na plenitude da simplicidade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido” (Lc 2,20)
Somos seres de “travessia”...
Mais uma vez nos deparamos com ritos de passagem: final de ano, a expectativa surpreendente da Epifania, a renovação dos desejos que nos humanizam, a ansiedade diante dos desafios do Novo ano...
Tempo celebrativo marcado pela gratidão, para acolher as experiências vividas e aprender com elas; tempo de inspiração e criatividade diante da certeza do novo; e, sobretudo, tempo para recompor a esperança, tantas vezes reprimida ao longo do ano.
Ano Novo nos situa no clima das grandes esperanças da humanidade; neste dezembro mágico nosso coração caminha mais rápido, rompe o tempo, já está lá na frente, pronto para acolher a surpresa.
Tudo aponta para o Eterno que nos escapa e nos encontra. Aqui a imaginação trabalha e cria momentos felizes. Com essa esperança, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples. A esperança tem raízes na eternidade, mas ela se alimenta de pequenas coisas. Nos despojados gestos ela floresce e aponta para um sentido novo. É preciso um coração contemplativo para captar o “mistério” que nos envolve. É preciso um “coração de pastor” para ver numa criança a presença do Inefável.
Mesmo diante dos profundos dilemas sociais, achamos possível ser e viver de outro modo, inventamos e reinventamos opções, criamos novas saídas... e sem cessar, sonhamos com o “mais” e o “melhor”. Ainda que soframos ventos contrários e as nuvens se adensem no horizonte, sabemos e confessamos com o profeta Jeremias: “Há uma esperança para o teu futuro” (31,17).
Precisamente por vivermos tempos difíceis, precisamos mais do que nunca da pequena e teimosa esperança. Pois “a esperança é uma filhinha que todas as manhãs acorda, lava-se e faz a sua oração com um rosto novo” (Péguy).
Nesse sentido é que compreendemos a esperança como produtora e gestora do futuro; ela se revela como espera criativa e nos prepara para acolher as surpresas da vida. A esperança é algo constitutivo de nossa humanidade, ao mesmo tempo em que nos humaniza; ela carrega uma força misteriosa, um sopro criador que nos leva a olhar tudo com fé e otimismo. O nosso interior está habitado por esperanças de todo gênero. O que faz a diferença é a qualidade, a consistência e o realismo de nossas esperanças.
A esperança, hoje como sempre, não é virtude de um instante. É a atitude fundamental e o estilo de vida daqueles que enfrentam a existência “enraizados e edificados em Jesus Cristo” (Col.2,6). Ela não é a virtude própria dos momentos fáceis. Ao contrário, a esperança cristã cresce, se purifica e se enriquece em meio aos conflitos.
Frente a uma “visão imediatista” da história, sem meta e sem sentido algum, a esperança cristã leva a sério todas as possibilidades latentes na realidade presente. Precisamente porque queremos ser realistas e lúcidos, nós nos aproximamos da realidade, vendo-a como algo inacabado e “em marcha”; não aceitamos as coisas “tal como são”, mas “tal como deverão ser”. Quem ama e espera (esperançar) o futuro não pode “conformar-se” com a realidade tal como é hoje. A esperança não tranquiliza, mas inquieta, gera protesto, nos desperta da apatia e da indiferença... nos desinstala.
Santo Agostinho dizia que a esperança tem dois filhos: a indignação e a coragem. Indignação ao ver como as coisas estão e coragem para não permitir que continuem assim. Nós nos indignamos quando nos sentimos impotentes ante a injustiça, a violência, o abuso do poder, a marginalização em que vivem milhões de crianças e jovens sem futuro… Entretanto sabemos bem que a indignação não basta para mudar essas realidades que não apreciamos.
Por isso Santo Agostinho fala do segundo filho: a coragem, palavra que deriva do latim “cor”, coração. Ter coragem significa ter coração. A primeira prova de coragem é, portanto, atrever-se a escutar o próprio coração e rebelar-se diante da impotência. Coragem é colocar o coração na frente, e não os cálculos racionais da mente ou os medos paralisantes.
Aquele que vive com esperança se sente impulsionado a fazer o que espera. Desejar algo é antecipar o futuro e procurar uma maneira de torná-lo presente.
“Estamos abastecidos de futuro” (Pedro Arrupe)
Há um dado que é absolutamente evidente nestes tempos pós-modernos: o futuro que vamos construindo “carece de marcas de certeza” (Lefort). Nossa concepção de futuro se atrofiou: vivemos “tempos sem futuro”. Não podemos prever o futuro com segurança. Hoje, o futuro se apresenta a nós muito mais aberto que em qualquer outra época de nossa humanidade. Os conhecimentos, os meios de comunicação, as técnicas... não nos asseguram uma certeza do que virá. Aventurar no futuro torna-se cada dia mais complexo e difuso, pois predomina a incerteza que nós mesmos geramos.
Vivemos uma geração que teme o futuro; por isso vivemos um “presente esticado” porque o futuro nos apavora. Já que preferimos não imaginar o futuro, alargamos o presente. Precisamente porque faltam valores e um sentido para a existência é que se irrompe o medo do futuro, a acomodação, o refúgio no efêmero e no imediato, sem raízes e sem esperança. O medo do futuro nos ajuda a entender a mediocridade e o vazio do presente. Ao reduzir nossos sonhos e aspirações ao consumo, reduzimos nossa humanidade e nossa vida.
Precisamos voltar a ter um futuro onde ancorar; um futuro que valha a pena imaginar e que impulsiona as ações de nosso presente; uma esperança que nos dilate. Sem silêncio, sem profundidade, sem a sabedoria que sabe decantar, nunca seremos arrojados e audaciosos frente ao futuro. O futuro que espera se converte em projeto de ação e compromisso, alimenta a solidariedade, desperta a ternura, a acolhida compassiva...
E este compromisso é precisamente o que gera esperança no mundo. No final, seremos todos acolhidos por Aquele que nos quer “eternos”. Porque Ele é “terno”, deitado numa manjedoura, Esperança despojada que dá sentido às nossas perdidas “esperanças”.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: Esperança, indignação, coragem. Preciosas atitudes para este novo tempo em que temos o privilégio de viver. Você se atreveria de fazer suas essas atitudes? Você se arriscaria, por um novo começo? Que riscos concretos você se sente chamado a assumir?
Um Ano Novo feito de promessas, de caminhos... de ternura infantil.
Um ousado 2015, carregado de esperanças.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“O menino crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele” (Lc 2)
A liturgia de hoje nos propõe a “Família de Nazaré” como horizonte de inspiração para nossas famílias. Uma festa estabelecida recentemente para que nós cristãos pudéssemos celebrar e aprofundar aquilo que pode ser um projeto familiar entendido e vivido a partir do espírito de Jesus.
Uma família cristã procura viver uma experiência original no meio da sociedade atual, indiferente e consumista: construir o seu lar a partir da referência da Casa de Nazaré: José, Maria e Jesus que alentam, sustentam e orientam a vida humana e inspiradora de toda família.
Entre os cristãos defende-se quase instintivamente o valor da família, mas nem sempre paramos para refletir no conteúdo concreto de um projeto familiar, entendido e vivido a partir do Evangelho.
Como seria uma família inspirada em Nazaré?
Não podemos celebrar dignamente a festa de hoje sem escutar o desafio de nossa fé: como são nossas famílias? Vivem responsavelmente e comprometidas com uma sociedade melhor e mais humana, ou fechadas exclusivamente em seus próprios interesses? Educam para a solidariedade, a busca da paz, a sensibilidade para com os mais necessitados, a compaixão..., ou ensinam a viver somente para o bem-estar insaciável, o consumismo, o máximo lucro e o esquecimento dos outros? É espaço de humanização, de relações sadias..., ou ambiente limitador das possibilidades de seus membros?...
No evangelho da Infância em São Lucas, o relato do nascimento de Jesus é desconcertante: não há lugar para acolhê-lo; os pastores o encontram deitado em um presépio, sem outras testemunhas a não ser Maria e José. Temos a impressão que Lucas sente a necessidade de construir um segundo relato no qual o menino é resgatado do seu anonimato para ser apresentado publicamente. E o Templo de Jerusalém é o lugar mais apropriado para que Jesus seja acolhido solenemente como o Messias enviado por Deus a seu povo.
Mas, de novo, o relato de Lucas é desconcertante. Quando os pais se aproximam do Templo com o menino, não são os sumos sacerdotes nem os demais dirigentes religiosos que saem ao seu encontro. Também não é recebido pelos mestres da Lei que pregam suas “tradições humanas” nos átrios do Templo. Jesus não encontra acolhida nessa religião fechada em si mesma e distante do sofrimento dos mais pobres; não encontra amparo em doutrinas e tradições religiosas que não ajudam a viver uma vida mais digna e mais humana.
Somente os olhos apagados de dois idosos (Simeão e Ana) conseguem ver o Salvador; somente os braços cansados desse casal ancião conseguem abraçar o Salvador; somente eles conseguem estreitar em seus corações Aquele que é a Esperança dos povos. Uma vida cheia de promessas e esperanças; agora, marcados pela gratidão, cantam de alegria e louvam o privilégio de acolher a Quem tinham esperado durante toda uma vida.
Em seguida, a família de Jesus retorna ao cotidiano de Nazaré, onde o menino “crescia” e se “humanizava”. De fato, o ambiente familiar é o lugar privilegiado para o amadurecimento físico, espiritual, social... de todo ser humano. É também o espaço propício para que cada um vá desenvolvendo a ampliando suas capacidades, seus sonhos, seu projeto de vida... Se Jesus, mais tarde, pregou e viveu o amor, a entrega, o serviço, a solicitude para com o outro, quer dizer que Ele foi incentivado a viver tudo isso no seu ambiente familiar. Na escola da vida, comum e cotidiana, Jesus também foi aprendiz.
Ele viveu a vida como um processo lento e progressivo, a partir da própria condição humana no meio dos seus, no meio do povo e em vista do Reino de Deus, graças a uma criatividade transformadora.
A família continua sendo o espaço humanizador privilegiado para o desenvolvimento de cada pessoa, não só durante os anos da infância e da juventude, mas durante todas as etapas de sua vida. O ser humano só pode crescer em humanidade através de suas relações sadias com os outros. A família é a atmosfera insubstituível e o lugar de referência para que essas relações profundamente humanas sejam amadurecidas. Seja como casal, como filho, como irmão, como pai ou mãe, como avós..., em cada uma dessas situações a qualidade da relação os fará aproximar da plenitude humana, quando todo encontro com o outro é vivido para destravar e ativar suas ricas possibilidades e sua capacidade de amar. O espaço familiar desvela o humano que em todos habita.
A experiência e vivência familiar, portanto, vem responder a uma demanda própria deste momento pós-moderno e se revela capaz de restituir ao ser humano de hoje a espessura de humanidade e os valores que lhe são próprios.
O clima familiar não só mobiliza a pessoa em sua integralidade (corporal, afetivo, cognitiva, volitiva...), mas a acompanha para um sentido sapiencial da vida e que a faz saboreá-la como descoberta, como oportunidade, como dom.
A espiritualidade familiar, centralizada em cada um de seus membros, visa mobilizá-los em todas as suas dimensões, promove distensão, paz e alegria, propõe um caminho de plena humanização, forma para a abertura aos outros e para a doação por amor, impele, em suma, a criar as condições para que todos atinjam a maturidade e se realizem.
Esse itinerário existencial constitui-se como o impulso para aventurar-se na busca da verdade e do sentido primeiro e último das coisas, o estímulo de crescimento e descoberta de si, até fazer das suas capacidades pessoais um meio para transformar o mundo, agindo nas estruturas sociais e dando à humanidade uma contribuição que tenha o sabor do Reino de Deus.
A mística familiar situa-se, com toda a densidade, no contexto da experiência de humanidade e de fé do ser humano, de modo que cada um possa caminhar, dentro de si e diante de si, na direção daquela verdade, daquele bem e daquela beleza que constituem a positividade do mundo e a força da humanidade, fundamentados em Deus e garantidos por Ele. Por isso, a família pode ser considerada como uma tarefa humanizadora, capaz de tocar as fibras mais sensíveis do ser humano e convidá-lo para a valentia do serviço, da solidariedade e da liberdade.
O espaço familiar visa, portanto, à reorganização da vida de cada um segundo coração do Pai e, por conseguinte, um ótimo desenvolvimento dos talentos e dos carismas recebidos. O objetivo primeiro da família é ajudar o ser humano a tomar nas mãos, diante de Deus, a própria vida, ajudá-lo a tornar-se verdadeiramente ser humano. Seu verdadeiro desafio é exatamente o crescimento do ser humano enquanto descoberta de um projeto, escolha e determinação de empenhar-se pelos outros.
Ela possibilita “educar”, no sentido de “educere”: extrair a verdade da pessoa, para que consiga ter uma visão ampla de si mesma e realizar-se da melhor maneira possível em suas potencialidades. Cada um é diferente, único, com saberes, expectativas, medos, ansiedades e desejos, pontos fortes e fraquezas, com seu ritmo e modo próprios de viver.
Assim, a pedagogia familiar evoca a verdade do ser humano, comporta uma provocação, uma proposta que pede o máximo dele mesmo e, por isso mesmo, revela o que ele é capaz...Uma autêntica experiência familiar tem efeitos explosivos: é novidade que surpreende e às vezes assusta, cria novas expectativas e solicitações, traz tensão e também insatisfação, pede a mudança dos costumes e velhos estilos de vida, leva adiante o equilíbrio da pessoa em direção a horizontes imprevisíveis, abre uma nova fase de vida...
Texto bíblico: Lc 2,22-40
Na oração: contemplar seu espaço familiar: é ambiente instigante, provocativo, inspirador... onde todos se sentem livres para expressar sua identidade e originalidade? Ali educa-se para viver uma consciência moral responsável, sadia, coerente com a fé cristã? Ou favorece um estilo de vida superficial, consumista, sem metas nem ideais, sem critérios e valores evangélicos?
Em quê dimensões você sente que sua família pode e deve crescer mais, tendo como referência a Família de Nazaré?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)
A humanidade de Deus nos assusta, porque, no fundo, temos medo de nossa própria humanidade. Nesse sentido, a festa do Natal é uma ocasião propícia para que pensemos no dano que nos tem causado e continua causando o medo de nossa própria humanidade. Com certeza, nesse medo está a explicação e a raiz de tantas violências e maldades que teriam e que poderiam ser evitadas.
São muitos aqueles que, mesmo tendo fé, passam a vida aspirando ser “como Deus”. E ao forçar tanto querer ser “divinos” deixam de ser verdadeiramente “humanos”. Tanto falso apetite de “divindade” acabou despedaçando nossa própria “humanidade”.
De fato, o que há de verdade nos evangelhos da infância é que o “divino” (ou seja, Deus) se deu a conhecer, se fez presente e se manifestou no “humano”. E precisamente no mais humano: uma criança, sem “títulos”, de condição humilde e em circunstancias de pobreza, desamparo e perseguição.
O “divino” não se fez presente no portentoso, no milagroso, no assustador, como aconteceu com Moisés na sarça ardente ou no monte Sinai. O “divino” se fez presente em um recém-nascido, em um estábulo, entre palhas e animais. E foi anunciado aos pastores, um dos ofícios marginalizados daquele tempo.
A “mensagem religiosa” dos evangelhos da infância é teimosamente clara e provocadora. É a mensagem que nos diz isto: o “divino” se revela e se desvela no “humano”, no mais humano, ou seja, no fraco, no marginalizado, no excluído e no perseguido. Em Jesus, interagem, harmoniosamente, o humilde e o sublime, o divino e o humano; n’Ele o humano é entrada para o divino, o celeste se manifesta no terrestre, um contendo, reconhecendo e beneficiando o outro. Sua maneira de assumir e viver a condição humana nos revela Deus e valoriza a humanidade com toda a Criação.
O Evangelho tem algo muito forte, muito duro, que não cabe em nossa cabeça. O Evangelho é a afirmação mais sublime do humano. A partir do primeiro Natal que houve na história, devemos dirigir nosso olhar para as “margens” e contemplar a presença de Deus que não se encontra no grandioso e notável, mas naquele que é marcado pela simplicidade e despojamento.
Encanta-nos quem é poderoso, o importante, o solene, o que impressiona e chama a atenção, o que se impõe e causa admiração... Mas, o que não é nem mais nem menos que humano, o que é comum com todos os humanos..., precisamente isso que é o que tantas vezes menos valorizamos, isso é o que mais necessitamos. Porque é o que mais nos humaniza, e o que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade. Somos “educados” para sermos importantes, mas não para sermos simplesmente humanos.
Daí, a consequência mais perigosa e mais funesta que todos arrastamos. O poder nos seduz; a glória nos atrai; a vaidade nos faz autorreferentes. Queremos, a todo custo, ser importantes, destacar, ser notáveis... Tais sentimentos nos rompem por dentro e destroçam nossa própria humanidade.
Recuperemos o Natal essencial, o Natal da Vida. Na vida de Jesus, feita de carne solidária, reconhecemos a Encarnação universal, para além de todas as fronteiras de espaço, de tempo, de cultura, de raça, de religião. A Encarnação de Deus em todos os mundos, desde o primeiro Big Bang. Isto é o Natal para além das formas: acolher e viver a eterna Infância ou a Bondade eterna de Deus em todas as coisas, apesar de tudo.
A festa de Natal nos conecta com a essência de nossa própria humanidade. O que se celebra é um Deus-menino, que está chorando entre animais, e que não mete medo nem julga ninguém. É bom que os cristãos voltem a esta imagem: o eterno menino que, no fundo, nunca deixamos de ser. Eterna infância de Deus. Aquele que não cabe no universo cabe no seio de uma jovem mãe. O Criador é cuidado no colo de uma mulher. O Amor eterno necessita ser mimado e abraçado como uma criança. Ele se faz necessitado para que aprendamos a deixar-nos ajudar e aprendamos assim a ajudar os outros. Ele está desamparado, para que tenhamos lar, pátria, calor. Repousa em um presépio, para que todas as criaturas possam sentar-se junto à grande mesa de toda a Terra.
Ter o “eterno menino” diante de nossos olhos desperta em nós renovação de vida, inocência, novas possibilidades de vida que nos impulsionam em direção ao novo futuro.
- Imaginamos “outro Natal possível”, mais próximo do Menino Jesus nascido humildemente em um presépio, onde em lugar de “dar presentes”, nos “faremos presentes” junto aos famintos, necessitados e excluídos, abriremos corações e portas à chegada Salvadora do Menino Deus. A solidariedade e a ternura abrirão passagem frente ao individualismo, ao egoísmo e ao consumismo.
- Imaginamos um Natal onde aproveitamos para fazer uma viagem ao interior de nosso espírito, ali onde habita o Deus da Vida que dá fundamento à nossa verdadeira identidade.
- Imaginamos um Natal simples, solidário, alegre... sem luxos, onde faremos presentes em nossos corações a todos as pessoas que sofrem e que são as preferidas de Deus Pai e Mãe.
Estes são, pois, os sentimentos que queremos alimentar neste Natal, em meio a uma situação sombria da Terra e de toda a humanidade. Sentimentos de que ainda temos futuro, porque a Estrela é magnânima e o “Menino” é eterno e porque ele se encarnou neste mundo e não permitirá que este se afunde totalmente. Nele se manifestou a humanidade e a jovialidade do Deus de todos os povos. Todo é resto é passageiro.
Todos intuimos que o humano é uma maravilha, mas que precisa ser cuidado e potenciado. O Natal é o anúncio de que a porta para esse cuidado e essa potenciação está aberta. É inegável que temos desfigurado o Natal até torná-lo irreconhecível e anticristão. Mas continua pulsando em nós o desejo de outros natais possíveis.
Texto bíblico: Lc 2,1-14
Na oração: Belém, “a casa do pão” é muito mais que um lugar geográfico; Belém é o nome poético do mistério mais belo e real, o nome de todos os lugares onde a vida é gerada e cuidada, onde o pão é assado e com-partilhado.
Belém é o mistério da vida, tão frágil e divina. Jesus, Maria e José: um pai, uma mãe, um filho. Isso é tudo, isso é o todo: o mistério do cosmos, da Terra e da vida, do homem e da mulher, com suas alegrias e dores, seus amores e medos, suas esperanças e dúvidas.
Tua casa é Belém, quanto mais pobre mais verdadeira. É em tua própria Belém que Deus se encarna novamente.
O Natal não é ruído. O Natal é silêncio. O Natal é quietude. O Natal é paz interior. Neste silêncio é quando se sente e se experimenta, de forma vital, o interior de todo ser humano, sua dignidade compartilhada.
O Natal silencioso nos leva a contemplar esta dignidade de todo ser humano que é divina.
Um “humano” Natal a todos!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra” (Lc 1,35)
Hoje vivemos tempos conturbados e, para alguns, também bastante confusos. Muitos gostariam que, após tão longa caminhada, tudo fosse mais claro e evidente, ao invés de se sentirem outra vez tateando em busca de um caminho a seguir. Isso acaba provocando desconforto a quem desejava segurança e definições permanentes; mas, por outro, o espírito de busca lhe dá agilidade e flexibilidade para levar a missão adiante, da maneira mais adequada a cada momento histórico.
Mons. Tonino Bello, que sonhava com uma Igreja de avental, imagem que se tornou muito popular entre nós nestes últimos anos, sonha também com uma Igreja como tenda:
“A Igreja deve se parecer com uma pedra imóvel ou com uma tenda que pode ser desarmada ao nascer do sol quando o viajante se põe a caminho para enfrentar uma nova viagem? ...
A tenda ajuda a compreender que a Igreja é uma instituição transitória que simplesmente anuncia a Jesus Cristo; não se coloca ela mesma no centro e não assume aquele eclesiocentrismo da visão cristã, mas o Cristocentrismo. Jesus está no centro, e a Igreja aponta para Jesus. A Igreja está em marcha, a Igreja caminha com a humanidade, a Igreja não deve fincar raízes e se agarrar à terra para se firmar, como a ostra na pedra... A Igreja deve ser móvel, e a tenda talvez evoque melhor essa dimensão itinerante da Igreja...”
O Advento é uma boa ocasião para fazer memória do futuro: do futuro que virá e do futuro que podemos antecipar. Porque o futuro não é o que ainda não existe; ele pode se fazer presente em forma de projeto e de promessa. Nós o antecipamos quando vivemos fraternalmente, quando lutamos em favor da paz, da justiça e da solidariedade.
Ao antecipá-lo, o Senhor se faz humilde e silenciosamente presente. Porque se faz presente, podemos esperá-Lo. Se não o fazemos presente, a esperança se converte em uma ilusão sem futuro.
A essência de nosso ser encontra-se à nossa frente, um secreto desejo de escapar da pequenez do já realizado. A terra está prometida aos que se põem em marcha para alcançá-la.
Ter saudades do futuro. Pressentir. Entrever. Suspirar. Manter o coração velando, mesmo quando dorme.
Esse é o dinamismo do Advento.
“O futuro tem um coração de tenda”: assim Ermes Ronchi intitula um de seus livros. Não conhecemos por completo o caminho que orientará nossos passos, mas nos alegramos por ele e seguimos animados pelo Espírito e pela promessa do Senhor, montando e desarmando nossa tenda, sempre que necessário.
O contexto atual, social e eclesial, deve ser vivido como um tempo de reflexão e renovação, tempo para dizer “sim” ao futuro, “sim” para voltar a levantar-nos e aprender de nossos erros. Uma ruptura pode fazer emergir um “sim” a novas oportunidades, um “sim” para melhor conhecer-nos a nós mesmos, querer-nos, valorizar-nos e voltar a dizer “sim” ao novo que nos desafia. Na fé e na vida da comunidade, sempre é o “sim” que nos seduz e que abraçamos: o “sim” ao seguimento de Jesus, o “sim” a uma maneira de amar diferente, comprometida e apaixonante, “sim” ao evangelho, “sim” a um olhar contemplativo que vê o mundo com olhar admirado; dizer “sim” na Igreja é compromisso, fraternidade e universalidade, fazendo nossas as necessidades e os sonhos daqueles que também vivem motivados e inspirados por esse “sim expansivo”.
Maria diz “sim”, faz-se peregrina e o futuro se escancara diante dela. Enquanto muitos teriam buscado explicações, a ela lhe bastou uma simples saudação: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor é contigo”. Onde muitos veriam uma loucura, ela viu um horizonte aberto e um futuro de sentido; onde muitos teriam buscado provas, garantias, ela respondeu: “Faça-se em mim segundo tua Palavra”.
Inspirando-nos na atitude de Maria, queremos nos instalar no provisório, na tenda, e ir avançando junto com os outros, discernindo os chamados do Espírito. Não gostamos apenas de imaginar a Igreja como uma tenda, mas de aceitar com alegria morar nela, com tudo o que isso significa de mobilidade, de temporário, de adaptação, de viver na intempérie, porém também de acolhida, de relacionamento...
Santa Maria, tenda humilde do Verbo, movida somente pelo vento do Espírito. Como Maria, podemos nos converter em pessoas de esperança, abertas à novidade do Espírito, que espreita oculto nas dobras de nossa história. Podemos chegar a ser sentinelas da manhã, espreitando no horizonte sinais de esperança e de vida.
“Alarga o espaço de tua Tenda, estende tuas lonas sem temor, alonga tuas cordas, reforça as estacas!” (Is. 54,2)
Seja uma TENDA sempre aberta: “entrada franca”.
- Nada de “cachorros” que atemorizem o visitante: seu caráter, seu orgulho, seu egoísmo, sua inveja, sua ironia, sua rudeza, seu autoritarismo... Que o outro não se retire, suspirando: “Não tive coragem... tive medo que ele me mandasse embora, que risse de mim, que não me compreendesse...”
- Nada de longas esperas que desanimam: esteja sempre atento, nem que seja para um cumprimento, um sorriso, um aperto de mãos, caso você não tenha tempo para uma conversa.
Uns instantes de intensa atenção basta para acolher o outro.
- Nada de móveis que impeçam a circulação; mantenha sua tenda vazia, disponível. Não imponha seus gostos, suas ideias, seus pontos de vista. Nada de retribuições que custam caro: se você oferece alguma coisa, faça-o gratuitamente e nada espere em troca. Nada de contrato oneroso: “entra-se” e “sai-se” à vontade, com naturalidade, sem formalidades...
Passos para a oração
1. Formular uma oração de entrega e encontro.
2. Pedir ao E. Santo que amplie o espaço de sua Tenda.
3. Texto bíblico: Lc. 1,26-38
4. Deus não é distância e solidão. Ele é infinitamente vinda,
iniciativa, presença, libertação. Peregrino em sua direção,
Ele bate, querendo entrar e ficar... mas aguarda.
Quando Ele entra em sua tenda, tudo se modifica...
5. Deus possibilita cada um “entrar” em sua Tenda e
captar em profundidade a sua realidade, a perceber a raiz do
seu ideal de vida, como também suas contradições e ilusões,
medos e necessidades.
Neste “mergulho” interno, cada um pode construir uma espécie de mapa da Tenda, com as regiões
fortes e fracas, vulneráveis e criativas, transparentes e ainda misteriosas...
Somos TENDA, lugar de encontro. Ele vem. Sua presença causa mudança.
TENDA, lugar de discipulado – olhar, escutar e seguir.
TENDA, lugar de unção-acolhida, serviço e adoração.
TENDA, lugar de lava-pés, servo, mandamento novo, amizade.
TENDA, lugar de inspiração do Espírito, de oração.
TENDA, minha realidade pessoal e lugar de encontro com o outro.
5. Agora responda: - como está sua tenda interior? Preparada para acolher o Senhor que vem? Há um “lugar sagrado” para Ele? Há espaço para os outros?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“Eu sou a voz que grita no deserto” Jo 1,23)
É frequente ler nos jornais e na internet títulos como estes: “a canção mais ouvida da semana”, “o livro mais vendido”, “o filme mais assistido”... E se aparecesse, algum dia, um título assim: “a voz mais escutada pelos cristãos durante a semana”! Os cristãos, como todas as demais pessoas, escutam muitas vozes, muitas canções, muitas notícias, muitos comentários... Será a voz profética na comunidade, uma dessas vozes mais escutadas?
Na Igreja, como na sociedade, há excesso de palavras, há excesso de discursos, de declarações, de documentos. Sobram palavras, e nos falta a Palavra. “No princípio era o Verbo, depois só verbos”. O que as pessoas escutam de nós cristãos, hoje? Nossas palavras, nossas vozes, nossas ideias, nossas teologias, nossas ideologias..., é palavreado vazio, é palavra rotineira, improvisada, não pensada, não vivida...? Ou escutam palavras de vida e de esperança, palavras que abrem um sentido para a existência?
As pessoas escutam hoje a voz de Deus em nossa voz? Escutam a voz de Jesus na voz da Igreja? Ou elas estão cansadas de escutar sempre o mesmo, palavras que não despertam o interesse nem o gosto espiritual? Palavras que adormecem o espírito e não fazem brotar a esperança? Palavras que resvalam pela pele da alma e não conseguem atingir o centro de suas vidas? Nossa voz chega à alma das pessoas, levando consolo, inspiração e esperança?
João é a voz que grita. A verdade é o que está já aí e ninguém a reconhece. João é aquele que tem consciência de sua identidade e de sua missão; ele tem a honestidade de reconhecer sua verdade e a sinceridade de não ser considerado como Messias; ele não se faz o centro das atenções mas indica sempre o “outro”; ele não atrai os olhares sobre si mesmo mas convida a olhar o “outro”. Sua voz anuncia um Outro. A identidade de João é revelada pela sua relação com Jesus. Sua voz está a serviço de Jesus. Não é a voz que louva a si mesmo.
Neste tempo de Advento somos convidados a descer em direção à nossa interioridade, para deixar aflorar o que é mais original em nós, nossa verdadeira identidade. Desconhecemos a nós mesmos, a nossa originalidade. Somos únicos, sagrados, com uma voz única. Nossa identidade se expressa também através da voz.
Nossa voz é desvelamento de nossa interioridade; a voz revela aquilo que está cheio nosso interior. Voz descentrada ou voz centrada em si mesmo? Voz que fala de si mesmo ou voz aberta à realidade? Nossa voz está a serviço de quê? De quem? É voz que eleva e salva o outro, ou voz que critica, afunda? É voz que aponta para um sentido? Somos “voz de quem não tem voz”?
Vivemos a cultura da aparência, da massificação, do vozerio crônico. O que vale é quem fala mais alto, se impõe, não abre espaço para os outros se expressarem. Vive-se às custas dos outros, mendigando elogios, bajulações... Daí a superficialidade da vida.
São muitas as vozes que nos tocam e nos constituem. Às vezes, elas ressoam em nós como brisa suave, às vezes como punhais, mas sempre nos deixando marcas profundas de estímulos ou de desânimo: sentimentos de alegria ou tristeza, de paz ou guerra, de tranquilidade ou inquietação, de fé ou descrença... de amor ou ódio.
Ambivalentes como nós, as vozes podem criar armadilhas ou abrir portas para largos horizontes, podem embalar ou derrubar, acolher ou afastar; com elas podemos fortalecer a vida ou asfixiá-la, podemos sacudir consciências, animar, levantar, entusiasmar, provocar ímpetos de se arriscar a viver até o fundo; ou podemos desanimar, sufocar, destruir, seduzir para fazer da vida um sucesso trivial e sem sentido.
Existem vozes que podem mudar a vida, para o bem ou para o mal. Há uma voz que constrói e uma que destrói, uma voz que comunica calor e luz, outra que semeia frieza, uma que infunde confiança e restitui o indivíduo a si mesmo e ao seu futuro, outra que o arrasa.
“Morte e vida estão em poder da língua” (Prov. 18,21). Há vozes que ferem e há vozes que elevam. Há uma voz pela qual tudo começa e recomeça, outra pela qual tudo termina, deixando o silêncio atrás de si. Depois de certas vozes, não resta mais nada a dizer. Todos conhecemos pessoas destruídas pelas vozes agressivas, como também pessoas reconstruídas, recriadas pelo ressonância das vozes ternas.
Todo encontro com o nosso semelhante revela a nossa relação com as vozes, as boas e as más, as que unem e as que dividem, as que consolam e as que amedrontam, as que curam e as que matam.
Certas vozes nos acompanham por muito tempo. Todos nós lembramos de vozes proferidas por pessoas especiais em momentos de dificuldades, que nos deram luz e força.
Toda voz tem também uma força operativa, desencadeia um movimento... Quando falamos, algo acontece, muda alguma coisa dentro de nós e nos nossos interlocutores. Elas abrem e chegam ao coração, despertando as esperanças adormecidas. Aparentemente nada mudou; mas é possível que tudo tenha mudado. A voz foi além de sua vibração sonora.
Na Igreja todos somos chamados a ser microfones de Deus. Mas a voz que as pessoas tem de escutar é a de Deus. Por isso temos que anunciar sua Palavra mais que nossas palavras. Como João Batista, o cristão é chamado a ser voz que anuncia e denuncia; ele se reconhece como a “voz que grita no deserto”; ele se define como “a voz dos que sofrem”, a “voz dos que não tem voz”, a “voz dos oprimidos que buscam a liberdade”, a “voz daqueles que ninguém os ouve”, a “voz que anuncia a presença de Deus na história”... O cristão é sempre a “voz do Outro”; o cristão é sempre a voz de Deus hoje. Voz de Deus nem sempre escutada; voz de Deus que hoje parece estar em silêncio.
O cristão é a voz de Deus que está ali, apontando para o novo, e parece que ninguém a quer ouvir.
No entanto, nada o faz calar; sua presença expande a Voz de Vida.
Texto bíblico: Jo 1,6-8.19-28
Na oração: Você é atento ao que fala, o modo como fala, o tom e os sentimentos que sua voz expressa? Você consegue distinguir sua voz em contextos diferentes? É voz que eleva ou que arrasa? Voz que acalenta ou voz que julga? Voz que se fixa no passado ou voz que abre possibilidades para o futuro? Voz que anima ou voz que afunda?... Você deixa “ressoar” a Voz de Deus em sua voz?
Dê graças, não tanto por dizer palavras, mas que sua vida se converta em Palavra de Deus, em Evangelho.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
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