As mulheres do calvário
Algumas mulheres
seguiram a Jesus
desde a Galileia
até essa colina ensanguentada
onde o império masculino
desdobrava com frieza
de lança e de martelo
sua malícia treinada.
O olhar ofegante de Jesus
viu-as ao longe tão próximas,
em cachos,
imprensadas umas contra as outras
pelo espanto solidário,
que uma gota de ternura
pousou em seus olhos,
e deslizou como um beijo
por sua garganta arada
e seu coração amigo.
Contemplaram lentamente,
fiéis à realidade de sangue
e ao amor nú.
Só elas poderão nos contar
até a última ferida.
Só elas poderão nos dizer
a última palavra de Jesus,
que apenas aparecia nos seus olhos,
como um segredo inesgotável
que só ao terceiro dia
pôde pronunciar seu vôo.
Elas,
as mulheres da Galileia,
as mulheres da margem,
tão próximas à dor,
sabem bem
que as feridas ressuscitam
quando são ungidas
com lágrimas, olhares,
carícias e perfumes.
Por isso saíram
de madrugada,
quando as criaturas
emergiam da noite,
para ungir um cadáver
na manhã de domingo.
Benjamim Gonzalez Buelta SJ
HOUVE um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente feliz.
HOUVE um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém a minha alma ficava completamente feliz.
HOUVE um tempo em que minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, a às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.
HOUVE um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma regra: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
MAS, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
Cecília Meireles
BASTA-ME um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve…
– mas só esse eu não farei.
Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes…
– palavra que não direi.
Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,
– que amargamente inventei.
E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...
— e um dia me acabarei.
Cecília Meireles
In: ‘Viagem’ (1973)
Ouça aqui a interpretação de Monika Dockemdorff – Timidez (Cecília Meireles and Trenza Trio)
CANÇÃO
Pus minha vida num barco
e pus o barco no mar —
cometi erro e façanha
e estou ficando velho.
À mesa deste Café,
vejo as pessoas que passam:
algumas parecem tristes,
outras carregam embrulhos.
Nunca sabemos quem somos
e aonde vamos chegar.
A vida num barco pomos
— e o barco no mar.
Antonio Brasileiro
Claudia R. Sampaio
MEMÓRIA É MEDO
memória é medo
que se entreva
entre as teias
do corpo
memória é osso
sem carne
que cobrimos
da melhor forma
possível
para que não
sangre
Vera Lúcia de Oliveira
in Minha Língua Roça o Mundo
Patuá, São Paulo, 2018
Ofertas de Aninha
(Aos moços)
Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.
Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.
Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências do presente.
Aprendi que mais vale lutar
Do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.
Cora Coralina
In: “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”. 6ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p.145.
“O Rimbaud dizia “Je suis un autre” [Eu sou um outro]. Há, em todas as vidas, uma dimensão de alteridade em relação a nós próprios. Não somos apenas uma coisa só. Somos um conjunto de componentes, de desejos, de memórias, de caminhos, de projetos. E é interessante sentir esse lado quase laboratorial da vida interior de cada pessoa. É também assim que me sinto, a habitar o ‘entre’: entre projetos, entre caminhos, entre memórias, entre visões. Não sinto uma falta de unidade. Sinto que aquilo que, aos olhos de outros, pode aparecer como uma dispersão, é a resposta ao apelo polifônico da própria vida. A vida não nos chama de uma maneira só, chama-nos com vozes diferentes que são no fundo a única voz. A escrita é uma espécie de ponte, funciona como uma espécie de resíduo, um lugar, por onde tudo passa e algumas coisas ficam.”
José Tolentino Mendonça
Compras de Natal
São as cestinhas forradas de seda, as caixas transparentes os estojos, os papéis de embrulho com desenhos inesperados, os barbantes, atilhos, fitas, o que na verdade oferecemos aos parentes e amigos. Pagamos por essa graça delicada da ilusão. E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e alegrias. Durável apenas o Meninozinho nas suas palhas, a olhar para este mundo.”
Cecília Meireles
"O certo é que um menino nasceu e partiu.
Deixou um recado para ser lido no cosmo infinito, no espelho da água, no silêncio da pedra, no percurso do vôo, no silencio das dúvidas.
Mas só quem olha com dois olhos pode decifrar.
A sua presença ficou no sopro do vento, no ruído do inseto, no canto da cigarra, na queda da chuva, na maré do mar, no rumor da cachoeira.
Mas só quem escuta com os dois ouvidos pode entender.
Nas palavras que trocam a guerra pela paz, o amargo pelo doce, o nunca pelo sempre, sua visita breve fica mais confirmada.
Mas ninguém contesta que há um “antes” e um “depois”, e que houve uma noite feliz".
Bartolomeu Campos Queirós
Alvará de demolição
O que precisa nascer
tem sua raiz em chão de casa velha.
À sua necessidade o piso cede,
estalam rachaduras nas paredes
os caixões de janela se desprendem.
o que precisa nascer aparece no sonho buscando frinchas no teto,
réstias de luz e ar.
Sei muito bem do que este sonho fala
e a quem pode me dar
peço coragem.
Adélia Prado
In: A duração do Dia, Editora Record, 2ª Edição, 2011, página 37.
(...) "Tomara que a gente não desista de ser quem é por nada nem ninguém deste mundo. Que a gente reconheça o poder do outro sem esquecer do nosso. Que as mentiras alheias não confundam as nossas verdades, mesmo que as mentiras e as verdades sejam impermanentes. Que friagem nenhuma seja capaz de encabular o nosso calor mais bonito. Que, me......smo quando estivermos doendo, não percamos de vista nem de sonho a ideia da alegria. Tomara que apesar dos apesares todos, a gente continue tendo valentia suficiente para não abrir mão de se sentir feliz. As coisas vão dar certo. Vai ter amor, vai ter fé, vai ter paz – se não tiver, a gente inventa!” (...)
Caio Fernando Abreu
Estranho paradoxo
CANÇÃO
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e minhas duas mãos quebradas.
Cecília Meireles
De Viagem (1939)
“A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.”
Manoel de Barros
In:Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001).
DESCOBRIMENTO
a infância é um barquinho
a transportar nossos sonhos
da enxurrada até o rio
a juventude um caiaque
a descer a correnteza
sem pensar em desembarque
a velhice é caravela
terra à vista
Líria Porto
In: Olho Nú - Ed. Patuá, 2018
"A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre."
José Saramago
Estou lá onde me invento e me faço:
De giz é meu traço. De aço, o papel.
Esboço uma face a régua e compasso:
É falsa. Desfaço o que fiz.
Retraço o retrato. Evoco o abstrato
Faço da sombra minha raiz.
Farta de mim, afasto-me
e constato: na arte ou na vida,
em carne, osso, lápis ou giz
onde estou não é sempre
e o que sou é por um triz.
Maria Esther Maciel
Há inevitalmente, em qualquer período
entre catástrofes, uma noite de chuva boa.
O trabalho termina mais cedo e pensamos
ainda ontem tudo era cálculo, sordidez
e sangue, mas agora a paz respira amplamente.
Ainda há, inevitavelmente, o amor
que ainda se ergue, que ainda caminha
como um animal sem medo dos relâmpagos.
Daniel Francoy
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