A nossa humanidade enriquece-se muito se estamos com todos os outros e em qualquer situação em que se encontram. É o isolamento que faz mal, não a partilha. O isolamento desenvolve o medo e a desconfiança e impede de beneficiar da fraternidade. É preciso com efeito dizer que se correm mais riscos quando nos isolamos do que quando nos abrimos ao outro: a possibilidade de nos fazermos mal não está no encontro mas no fechamento e na rejeição. A mesma coisa vale quando assumimos o cuidado de alguém: penso num doente, num idoso, num imigrante, um pobre, num desempregado. Quando tomamos conta do outro complicamos menos a vida do que quando estamos concentrados em nós mesmos.
Estar no meio das pessoas não significa só estar abertos e encontrar os outros, mas também deixar-se encontrar. Somos nós que temos necessidade de ser olhados, chamados, tocados, interpelados, somos nós que temos necessidade dos outros para nos podermos fazer participantes de tudo o que só os outros nos podem dar. A relação pede este intercâmbio entre pessoas: a experiência diz-nos que habitualmente dos outros recebemos mais do que damos.
Entre a nossa gente há uma autêntica riqueza humana. São inumeráveis as histórias de solidariedade, ade ajuda, de apoio que se vivem nas nossas famílias e nas nossas comunidades. É impressionante como algumas pessoas vivem com dignidade a restrição econômica, a dor, o trabalho duro, a provação. Encontrando estas pessoas tocas com a mão a sua grandeza e recebes quase uma luz através da qual se torna claro que se pode cultivar uma esperança para o futuro; pode acreditar-se que o bem é mais forte do que o mal porque elas estão ali. Estando no meio das pessoas temos acesso ao ensinamento dos fatos.
Dou um exemplo: contaram-me que há pouco tempo morreu uma jovem de 19 anos. A dor foi imensa, muitas pessoas participaram no funeral. O que a todos tocou foi não só a ausência de desespero, mas a percepção de uma certa serenidade. As pessoas, após o funeral, falavam da admiração de terem saído da celebração aliviadas de um peso. A mãe da jovem afirmou: «Recebi a graça da serenidade». A vida quotidiana é entretecida destes fatos que marcam a nossa existência: eles nunca perdem eficácia, mesmo se não fazem parte dos títulos dos jornais. Acontece precisamente assim: sem discursos ou explicações compreende-se o que na vida vale ou não vale.
Estar no meio das pessoas significa também dar-se conta de que cada um de nós é parte de um povo. A vida concreta é possível porque não é a soma de muitas individualidades, mas a articulação de muitas pessoas que concorrem para a constituição do bem comum. Estar juntos ajudar-nos a ver o conjunto. Quando vemos o conjunto, o nosso olhar é enriquecido e torna-se evidente que os papéis que cada pessoa desempenha no interior das dinâmicas sociais nunca podem ser isoladas ou absolutizadas. Quando o povo está separado de quem comanda, quando se fazem escolhas por força do poder e não da partilha popular, quando quem comanda é mais importante do que o povo e as decisões são tomadas por poucos, ou são anônimas, ou são impostas sempre por emergências verdadeiras ou presumidas, então a harmonia social é colocada em perigo, com graves consequências para as pessoas: aumenta a pobreza, a paz é posta em risco, manda o dinheiro e as pessoas passam mal. Estar no meio das pessoas, por isso, faz bem não só à vida de cada um mas é um bem para todos.
Estar no meio das pessoas evidencia a pluralidade de cores, culturas, raças e religiões. As pessoas fazem-nos tocar com a mão a riqueza e a beleza da diversidade. Só com uma grande violência se poderia reduzir a variedade à uniformidade, a pluralidade de pensamentos e de ações a um único modo de fazer e de pensar. Quando se está com as pessoas toca-se a humanidade: nunca é só a cabeça, há sempre também o coração, há mais concretude e menos ideologia.
Para resolver os problemas das pessoas é preciso partir de baixo, sujar as mãos, ter coragem, escutar os últimos. Penso que é espontânea a pergunta: como é que se faz assim? Podemos encontrar a resposta olhando para Maria. Ela é serva, é humilde, é misericordiosa, está a caminho conosco, é concreta, nunca está no centro da cena, mas é uma presença constante. Se olharmos para ela encontraremos a melhor maneira de estar no meio das pessoas. Olhando para ela podemos percorrer todas as sendas do humano sem medo e preconceitos, com ela podemos tornar-nos capazes de não excluir ninguém.
Papa Francisco
Excertos da mensagem em vídeo para o Festival da Doutrina Social da Igreja (Verona, Itália)
24.11.2016
Publicado em 25.11.2016 no SNPC
«Ide aprender o que quer dizer “misericórdia quero, e não sacrifícios”» (Mateus 9, 13). Assim Jesus se dirigia aos homens religiosos do seu tempo que o censuravam porque se sentava à mesa com publicanos e pecadores. Ele, com efeito, veio «não para os justos, mas para os pecadores». E sobre este «aprender a misericórdia» o papa Francisco quis configurar o jubileu que se encerrou no domingo: não uma rejeição daquilo que é bem e daquilo que é mal em absoluto, não uma relativização da gravidade de certos comportamentos, mas a convicção evangélica de que, para usar as palavras do papa João XXIII na abertura do Vaticano II, «no tempo presente a Igreja prefere usar o remédio da misericórdia em vez de pegar nas armas do rigor; pensa que se deve ir ao encontro das necessidades contemporâneas, expondo mais claramente o valor do seu ensinamento, em vez de condenar».
Não fez outra coisa o papa Francisco durante este ano senão evidenciar algumas das «necessidades contemporâneas» a que a Igreja deveria responder com o remédio da misericórdia para curar os doentes ou aliviar-lhes o sofrimento, não para contentar os justos que não carecem de conversão. E esta, naturalmente, é uma tarefa que não se pode esgotar num ano, não se pode deter nos umbrais das portas das catedrais, agora simbolicamente a nível litúrgico infelizmente “encerradas”: trata-se, efetivamente, de “aprender” uma arte, “aprender” o que quer dizer usar misericórdia nas nossas relações no interior da Igreja e na companhia dos homens.
O âmbito que suscitou maior ênfase foi o da vida familiar: infelizmente da exortação pós-sinodal “Amoris laetitia” foram explorados só poucos parágrafos e algumas notas relativas à possibilidade ou não de acesso aos sacramentos da parte dos divorciados recasados, enquanto se negligenciou a solicitude pastoral que atravessa o conjunto do texto e abraça os muitos aspetos de alegria e de sofrimento ligados à vida concreta de milhões de famílias nas realidades sociais e culturais mais díspares.
É nesta ótica autenticamente global que o papa recordou vigorosamente que usar misericórdia não significa calar as realidades que ferem os seres humanos e a sua dignidade: as guerras e a fome, antes de tudo, que semeiam morte e obrigam milhões de pessoas a fugir em condições desesperadas da sua terra e, depois de terem ultrapassado territórios e mares de morte, a encontrarem muros de recusa da parte de quem não sabe abrir o coração e a casa ao pobre que bate à porta.
Mas também a superação das injustiças econômicas estruturais é obra de misericórdia: garantir “terra, casa e trabalho” a cada ser humano significa salvaguardar-lhe a dignidade mais profunda, dignidade que nenhuma lei ou sociedade podem negar, nem sequer a quem está na prisão. Neste sentido, o papa Francisco não hesitou em estigmatizar o mercado quando percorre caminhos desumanos ou mortíferos – como no caso dos traficantes de armas – ou a própria justiça humana quando por um crime, ainda que brutal, prevê a pena de morte evidente ou a “oculta” da prisão perpétua.
Misericórdia, recordou-nos o papa durante este jubileu, é também revisitar as divisões históricas entre os cristãos para regressarem juntos ao Evangelho e juntos caminharem para a unidade querida por Jesus para os seus discípulos.
Nos últimos dias alguns tentaram fazer um balanço deste ano jubilar a nível turístico e econômico para a cidade de Roma, mas torna-se impossível elaborar a nível mundial o único balanço que conta para quem leva a peito o Evangelho: o da conversão das consciências e da mudança de comportamentos por parte de quem se professa cristão. Sem dúvida que a centralidade do Evangelho manifestada e afirmada de muitos modos e em diversas ocasiões sacudiu e até escandalizou quantos estão mais preocupados pela religião do que pela mensagem de Jesus Cristo. Neste sentido, se a hostilidade para com o papa Francisco se manifestou ou cresceu é por causa do seu arrojo no mostrar e pregar a misericórdia.
É certo que não basta um ano para “aprender” o que quer dizer misericórdia e agir em consequência, mas o papa Francisco quis recordar que sobre ela se mede para os cristãos a fidelidade ao Evangelho e para todos a possibilidade de percorrer caminhos de humanização.
Enzo Bianchi
Prior do Mosteiro de Bose, Itália
Trad: Rui Jorge Martins
Publicado em 25.11.2016 no SNPC
Não leve a mal o silêncio, meu amigo. São horas de equilíbrio instável até chegar a uma trilha arborizada, depois mais algumas horas até poder pensar uma palavra. E assim vão as semanas. Passando um tempo imenso sem registro. Um tempo imenso livre de ser registrado. Nenhuma peripécia aparente. Nada de prazeres transatlânticos. É só um café depois do almoço. Uma hora a mais de sono de vez em quando. Um banho morno. Um chá à noite. Prazeres inversamente proporcionais a seu nível de extravagância, mas como fossem graças, pequenas graças. Uma cópula aérea de borboletas. Seis hibiscos abertos mais três brotos. Um reflexo de fogo no vidro do apartamento em frente. Coisa pouca, para cuidar que os ecos do mundo não quebrem uma alma através dessas janelas para os muitos cantos da Terra com seus meninos cobertos de cinzas, como tatus enfiados em abrigos, retirados de escombros, meninos salvos de bombardeios, meninos em botes apinhados de gente em pânico, bichos enlouquecendo em cativeiros, essas imagens do dia que entram por nossos olhos e depositam seus ovos aqui dentro. Então o silêncio. Então um tempo imenso sem registro, mas de íntimas batalhas. Para colher do mundo um mundo que mereça uma criança. Como aquela mulher que caminhava debaixo de chuva, com bolhas nos pés, em tempos de guerra, procurando um ramo de rosas para trazer para casa. Como o passarinho que vai preparando seu ninho contra o vento com centenas de minúsculos gravetos: ainda cuidar de fazer dentro de um dia uma cama de pequenas graças. Não são as palavras que custam a ganhar forma, custa é colocar alento nelas. Não leve a mal, meu amigo. Uma palavra demora um milagre a nascer.
Mariana Ianelli
Escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli, da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre (ed. ardotempo, 2013). Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.
in: RUBEM, revista de crônica
A verdadeira emenda deve ser capaz de configurar os funcionamentos governamentais e de outras instituições para torná-los instrumentos capazes de eliminar certas dinâmicas produtoras de exclusão social. Processos que só servem aos interesses de pequenos grupos detentores do poder econômico. Nesse sentido, quando se fala em “emendar o Brasil” na perspectiva fiscal, por exemplo, não é possível tratar, igualmente, ricos e pobres. Inteligente e nobre é ter a coragem de encontrar intervenções capazes de gerar mais avanços e conquistas no âmbito dos direitos sociais. Assim, emendar o Brasil não pode ser simplesmente a proposição estática de um congelamento dos gastos públicos, sem garantias de que essa medida preservará os direitos fundamentais de todos, particularmente dos que mais sofrem. Há incredulidade e desconfiança a respeito da sensibilidade social da classe política e, assim, decisão tão impactante não pode se restringir apenas aos que têm demonstrado falta de competência para o diálogo. Por isso, o primeiro passo para emendar o Brasil é recuperar o verdadeiro fundamento e finalidade da comunidade política: o povo.
Não é correto decidir um projeto de emenda constitucional, como a PEC 241, sem mensurar as consequências todas. Exige-se mais lucidez para regular a máquina pública, extirpando, primeiramente, privilégios e regalias de uma sociedade desigual. Esse processo requer também a disciplina para não se gastar mais do que se arrecada e o compromisso de discernir prioridades, considerando, sobretudo, as necessidades do povo. Fundamental é superar as dinâmicas viciadas da organização social e política no Brasil que geram clara divisão: de um lado, os poucos privilegiados e, do outro, o grande contingente de excluídos. Essa é uma urgência e a essência para se viver uma evolução civilizatória no país. Porém, para que o Brasil avance, a classe política, no Executivo e no Legislativo, precisa considerar a dignidade humana como fundamento e finalidade.
Nesse sentido, torna-se possível reconhecer como tarefa prioritária dos políticos ouvir os diferentes segmentos da sociedade e jamais excluir a participação popular. Também deve ser compromisso evitar a intervenção pública fora dos parâmetros da equidade, racionalidade e eficiência. Evidentemente, o Estado não suporta o crescimento excessivo de seus aparatos, principalmente quando esse processo é guiado por lógicas burocráticas pouco criativas, pois a conta é sempre paga pelos mais pobres. A arrecadação fiscal e a despesa pública são questões econômicas fundamentais para qualquer comunidade civil e política. Mas, na contramão da proposta de emendar o Brasil com um projeto que, no horizonte, cega o compromisso com o social, particularmente com a educação e a saúde, os políticos e governantes, principalmente, têm que assumir um desfio: encontrar a saída para fazer da finança pública instrumento de desenvolvimento e de solidariedade.
Como bem sublinha a Doutrina Social da Igreja Católica, a exigência é o pensar inteligente, com sensibilidade social, para estabelecer uma finança pública eficiente, equitativa, eficaz, geradora de empregos, capaz de amparar as atividades empresariais e as iniciativas sem fins lucrativos, fazendo com que o Estado reconquiste sua credibilidade, pela garantia de sistemas de previdência e proteção social, destinados especialmente aos excluídos. Não há outro caminho para emendar o Brasil.
Colocar a sociedade brasileira nos trilhos sob os parâmetros da justiça social e do desenvolvimento integral é um caminho complexo. Por isso, todos os cidadãos devem buscar se envolver no necessário processo de discernimento relacionado à Proposta de Emenda Constitucional 241 (PEC 241). Em pauta, estão importantes definições que vão impactar nossas vidas ao longo de duas décadas. Imagine o que significa vinte anos para o país. Podem ser décadas de avanços rumo ao desenvolvimento integral, um caminhar promissor para todos, especialmente para quem é mais pobre. Mas, é preciso atenção para a permanente ameaça de se seguir na direção oposta, com a multiplicação dos vergonhosos cenários de miséria e exclusão já presentes no país. Por isso, a escolha dos rumos com a PEC 241 merece uma mobilização nacional, que contemple análises e discussões, envolvendo os mais diversos atores: economistas, especialistas e movimentos da área social, igrejas, universidades e, de modo particular, o parlamento brasileiro, que a partir do voto, fundamentado nas necessárias ponderações, indicará o passo a ser dado.
Não se pode, imprudentemente, apoiar ou definir escolhas que, se equivocadas, pesarão crucialmente sobre os ombros de todos - mais perversamente atingirá os excluídos. Isso não significa deixar de investir nos ajustes e readequações que são necessários, adotando lógicas de gestão capazes de extinguir as dinâmicas que garantem certas regalias a determinadas classes, grupos e indivíduos, privilégios que estão na contramão da equidade e da justiça social. O Governo Federal e o Parlamento têm o dever de encontrar, criativamente, saídas para as crises e apresentar soluções para os graves problemas enfrentados pela nação brasileira. Evidentemente, isso não é tarefa fácil e exige complexas ponderações para não se perder as conquistas alcançadas na Constituição Cidadã de 1988, marco para o início do pagamento de dívidas sociais históricas.
Em um momento tão determinante para o futuro, nada de precipitações. São esperadas análises e um amplo processo de escuta da sociedade para que os mecanismos escolhidos, diante da necessidade de se colocar o Brasil nos trilhos, não ameacem, irreversivelmente, a vida de todos, principalmente a vida de quem já sofre. Assim, oportuno é sublinhar que as mudanças propostas não podem ser justificadas e definidas apenas pelas avaliações do ponto de vista econômico. É preciso considerar e buscar intervir, de modo mais profundo, no tecido cultural brasileiro, habituado a funcionar nos trilhos dos privilégios e das regalias.
Nesse sentido, a PEC 241 não pode ser, simplesmente, fruto da interlocução entre Executivo Federal e o Parlamento. Sua análise e discussão têm que se tornar um fato político e social mais amplo, permitindo o envolvimento dos segmentos todos da sociedade. É preciso haver debates entre especialistas, de diferentes áreas, e também uma convocação do povo, por diversos modos, para uma ampla mobilização nacional, de modo a criar entendimentos. Restringir a definição de uma diretriz que terá impacto nas próximas duas décadas à Praça dos Três Poderes em Brasília é algo desrespeitoso e temerário. Afinal, não se pode definir o futuro de um país sem análises e clarividências capazes de incluir, junto com a busca pela regulamentação e limitação dos gastos públicos, outros graves desafios que precisam ser enfrentados. Não bastam as afirmações políticas, em tom de promessa acalentadora, diante de mecanismos que podem funcionar, mais uma vez, como guilhotina destinada aos mais pobres e indefesos. Esses mecanismos precisam ser configurados a partir dos parâmetros da justiça social.
Entre os pares envolvidos na ampla discussão que o momento politico requer está a Igreja Católica, cujo tom de voz deve estar sempre em sintonia com as orientações do Papa Francisco. O magistério e a singularidade pastoral de Francisco impulsiona essa instituição bimilenar a contribuir com a construção de uma sociedade justa e solidária. Por isso, antes de qualquer elogio ou apoio apressado, embora sempre reconhecendo e dialogando com os interlocutores e agentes da sociedade pluralista, particularmente nos âmbitos governamentais, a Igreja recorda o que pede o Papa Francisco, em sua Exortação Apostólica Alegria do Evangelho: não à economia da exclusão, não à idolatria do dinheiro, não a um dinheiro que governa em vez de servir.
No cumprimento de sua tarefa missionária, a Igreja está atenta às transformações vividas pela humanidade, às singularidades próprias da realidade brasileira. Reconhece tudo o que contribui para o bem-estar das pessoas, nos âmbitos da saúde, educação, da comunicação e em tantas outras áreas. Mas também é, diante das graves situações sociais e políticas, porta-voz de quem vive precariamente. Cada vez mais, crescem o medo e o desespero no coração de inúmeras pessoas. A alegria de viver, frequentemente, se desvanece por falta de respeito à dignidade humana, pelo crescimento da violência e da desigualdade social. Urge reverter a fonte desses males, a cultura do descartável. Isso inclui avaliar medidas necessárias, ponderar suas consequências, contemplando a exigência de não se correr o risco de acertar de um lado, mas, por outro, favorecer o aumento da vergonhosa exclusão. Somente com o fim da exclusão de quem vive nas periferias de todo tipo é que se pode constituir um verdadeiro projeto capaz de colocar o Brasil nos trilhos.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
In: Opinião e notícias 14.10.2016
Quando penso no contributo que a experiência religiosa dá no presente e poderá dar, num futuro próximo, à cultura, ao tempo e ao modo de existência humana, penso no imenso património espiritual que nasce da amizade com os pobres. Os pobres sentam-se muitas vezes às portas das igrejas. Na realidade, eles não estão sentados à frente da porta, são eles a porta para chegar a Deus, este Deus que nos pergunta sempre: «Onde está o teu irmão?» (Génesis 4, 9). Os pobres mostram-nos Deus. Eles são testemunhas e mestres da fé na sua forma mais concreta, porque são os últimos, os pequenos, os marginalizados, os esquecidos, as vítimas, aqueles que sem voz gritam pela justiça, os esfomeados, os que podem só contar com Deus. As religiões nunca podem esquecer a centralidade dos pobres na sua missão. Os pobres são a porta santa. São a mais santa das portas santas.
Os pobres ensinam-nos muito sobre a vida espiritual. Ensinam-nos a escuta. A escuta não é apenas aprender o discurso verbal. Antes de tudo é atitude, inclinar-se para o outro, é dedicar-lhe a nossa atenção, é disponibilidade para acolher aquilo que foi dito e não dito. Escutar significa oferecer um ombro onde o outro possa apoiar a mão, para rapidamente se levantar. Poder ser escutado relança-nos no caminho. Um dos textos que mais impressionam sobre o valor da escuta é o conto "Angústia", de Tchekhov. Descreve a história de um cocheiro, Iona, que perdeu um filho e não encontra, entre os humanos, nenhum disposto a confortá-lo. «Sente a necessidade de contar como adoeceu o filho, os seus sofrimentos, o que disse antes de morrer e como morreu (...). Sente a necessidade de descrever o funeral, de contar quando foi ao hospital procurar as roupas do defunto. Na vila ficou a filha, Aníssia (...). Quer falar também dela (...)» mas ninguém escuta. O cocheiro dirige-se então ao seu cavalo, e enquanto lhe dá de comer começa a expor-lhe, num longo e dolente monólogo, tudo aquilo que viveu. As últimas palavras do conto de Tchekhov são estas: «O cavalo continuou a mastigar, enquanto parecia que escutava, porque soprava na mão do seu dono... Então Iona, o cocheiro, animou-se e contou-lhe tudo».
Os pobres ensinam-nos a força terapêutica da presença: um simples toque ajuda a dissipar as perturbações, tranquiliza um espírito agitado e transmite um conforto que nenhuma máquina ou fármaco pode dar. Jesus, por exemplo, vai tocar o intocável. Estende a mão àqueles que é proibido tocar. Um homem doente de lepra quebra o cordão sanitário e aproxima-se de Jesus para dizer: «Senhor, se quiseres, podes curar-me» (Lucas 5, 12). Naquele tempo os leprosos tinham a obrigação de viver longe das povoações, separados da família, num afastamento que servia para evitar o contágio. Pois bem, Jesus não se limita às palavras - «Eu quero» -, mas estende a mão e toca-o. Prefere correr o risco do contágio, no desejo de tocar a ferida do outro; querendo partilhar, como só através do toque se partilha, aquele sofrimento; ajudando a vencer o ostracismo, interiorizado com a separação forçada. O que é que cura o homem? O que é que cura a mulher que, noutro ponto do Evangelho, segue Jesus e o toca (cf. Lucas 8, 43-48)? A curá-los está certamente o poder de Deus que se manifesta em Jesus, mas num processo onde a forma não é de todo indiferente. Cura-os o facto de se saberem tocados, e tocados no sentido de encontrados, assumidos, aceites, reconhecidos, resgatados, abraçados. A mística não é um estado de impermeabilidade, mas exatamente o seu contrário: uma radical porosidade sobre a vida e sobre os outros. Uma pele, uma presença, um batimento do coração, um encontro, uma alegria partilhada com os pobres.
Os pobres ensinam-nos o acolhimento de Deus. Recordo sempre esta história: era uma vez um homem devoto que, na sua oração, pede a Deus uma coisa desmesurada, mas Deus imediatamente satisfez. O homem pede que Deus fosse visitá-lo na sua casa. Tendo obtido o sim de Deus, o homem iniciou grandes preparativos (limpeza, reparações, ornamentos...) para receber o seu Hóspede. No dia estabelecido para a visita, o homem coloca-se à porta de casa, à espera de Deus. De manhã cedo vem um rapazinho que procurou, da janela, roubar-lhe uma maçã sobre a mesa, mas ele impede-o, repreendendo-o duramente. Ao meio dia um mendigo vem perturbá-lo com os seus pedidos, mas ele explicou-lhe que estava à espera de uma visita ilustre, que viesse noutro dia. À tarde um viajante exausto pede-lhe hospitalidade, que ele lhe negou, porque esperava Deus. Só que Deus não vem. Por isso, quando cai a noite, também o homem cai num grande desânimo. E durante a sua oração protestou contra Deus, que não tinha mantido a sua palavra. Mas Deus responde-lhe: «Por três vezes procurei entrar em tua casa, mas tu próprio mo impediste».
José Tolentino Mendonça
Assis, Itália, 19.9.2016
In "Assis 30 - Sede de paz"
Trad. Rui Jorge Martins no SNPC de Portugal
«Havia bom senso; mas estava oculto, por medo do senso comum»: esta é uma famosa frase do romance "Os noivos", de Alessandro Manzoni, que distingue os dois «sensos», colocando-os em contraste.
O primeiro, com efeito, poderia ser reconduzido à ideia de "sabedoria". Ele traduz a capacidade de examinar pessoas, coisas e acontecimentos com critério e juízo. É o dom do discernimento e da sensatez, é o evitar os extremos passionais, é o esquivar-se ao facciosismo, é o equilíbrio no saber julgar, e assim por diante.
Trata-se de um dom precioso que o cristão deve implorar ao Espírito Santo, fonte, precisamente, dos dons da sabedoria e do conselho.
Emboscado, todavia, há uma espécie de momice do bom senso, o «senso comum», que se disfarça com as características do critério, equilíbrio e sensatez acima evocadas, mas que na realidade é lugar comum, banalidade, tacanhez, conformidade, mesquinhez, hipocrisia.
François de La Rochefoucauld, moralista francês do século XVII, descrevia assim, nas suas "Máximas", um aspeto deste falso bom senso: «Raramente atribuímos o bom senso aos outros, a não ser àqueles que estão de acordo connosco».
Sim, porque o senso comum é muitas vezes usado para vantagem própria, é colocar ao próprio serviço a verdade de tal modo que se deixa a aparência mas corrói-se a substância.
Como Salomão no dia da sua entronização, peçamos a Deus «um coração que saiba sempre distinguir o bem do mal» (1 Reis 3, 9). É este o verdadeiro «bom senso».
P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 12.09.2016 no SNPC
Madre Teresa: A misericórdia como prática, a defesa da fé, o papel da mulher na Igreja
A santidade de Madre Teresa de Calcutá é a principal razão para ser declarada santa, no próximo domingo, mas esta canonização também tem algo a dizer a outros níveis: a misericórdia tornada prática, a defesa da fé face aos críticos e o papel da mulher na Igreja católica.
Quando Madre Teresa se tornar Santa Teresa de Calcutá, a 4 de setembro, 19 anos menos um dia após a sua morte (5 de setembro de 1997, aos 87 anos), espera-se que a celebração, no Vaticano, presidida pelo papa Francisco, seja o maior evento do Ano da Misericórdia. A sua beatificação, em 2003, atraiu cerca de 300 mil pessoas à praça de S. Pedro e imediações, e os organizadores antecipam que a afluência deste domingo seja maior.
Nos últimos dias é provável que tenhamos ouvido, mais do que uma vez, que Francisco está "a fazer" de Madre Teresa uma santa. Os teólogos dirão, porém, que nada está mais longe da verdade. A crença católica sustenta que se alguém é verdadeiramente santo, então já está no céu. Uma canonização é entendida como um reconhecimento do que já aconteceu.
Por outras palavras, a canonização não é para o santo, é para nós, que erguemos um novo modelo de santidade e uma nova amizade no céu, a quem toda a Igreja pode rezar. Vale também a pena relembrar que a santidade, pelo menos em teoria, é um dos processos mais democráticos na vida católica. É suposto começar com o que é tradicionalmente conhecido como "culto", ou seja, a devoção popular a uma dada figura que teve reputação de santidade. A declaração oficial ocorre só depois da investigação do candidato e, por fim, se todos os critérios estiverem preenchidos, for aplicado o selo de aprovação.
Com toda a honestidade, houve alguns poucos casos ao longo dos anos onde essa vontade popular é algo difícil de encontrar, mas não é definitivamente este o caso. Como João Paulo II, de quem a multidão gritava "Santo subito!" na missa do funeral, Madre Teresa foi uma santa nos corações da maior parte dos católicos muito antes de o seu nome ter entrado no cânone oficial.
Contudo, há três outros aspetos que se combinam para fazer da celebração um dos mais fascinantes e potencialmente influentes acontecimentos na vida católica recente.
Manual de como fazer misericórdia
A misericórdia é, no seu núcleo, uma virtude espiritual, mas o papa Francisco tem insistido ao longo deste Ano que, para ela ser sincera, deve ter uma expressão tangível em ações concretas de serviço. Na tradição cristã, os exemplos tornam-se presentes nas obras corporais de misericórdia, que incluem alimentar os esfomeados, dar abrigo aos sem-teto, visitar os doentes, e assim por diante.
Poucas figuras católicas alguma vez, e provavelmente nenhuma no seu tempo, ilustraram melhor esse impulso para a misericórdia concreta do que Madre Teresa, desde os centros para doentes com SIDA às casas de acolhimento para crianças perdidas e refugiados. Não houve virtualmente qualquer espécie de sofrimento humano a que ela não tivesse dado uma resposta prática.
Nesse sentido, Santa Teresa de Calcutá ficará para sempre como um "manual de como fazer misericórdia" em carne e sangue, uma espécie de guia do utilizador para o que a misericórdia é na prática. Daqui por diante Francisco não tem de oferecer qualquer explicação detalhada do que deseja que as pessoas façam; tudo o que tem de fazer é apontar para Madre Teresa e dizer: «Tenta ser como ela». Por outras palavras, é possível sustentar que o Ano da Misericórdia alcança o seu auge espiritual no próximo domingo.
Como veículo para a aplicação prática da misericórdia, Francisco apelou a todas as dioceses do mundo para lançarem uma nova iniciativa durante este Ano Santo, como uma clínica, escola ou hospital, para assegurar que o seu espírito continua após o encerramento formal do Jubileu, a 20 de novembro. Se os responsáveis diocesanos estão tentados a murmurar sobre a falta de tempo ou recursos, Madre Teresa também oferece outro valioso exemplo. Não é realmente necessário ter grandes bolsos para infraestruturas gigantes que respondam ao apelo, só a inabalável vontade de o tornar real.
Defesa da fé em ação
O bispo auxiliar de Los Angeles, Robert Barron, uma das figuras mais entendidas na paisagem católica americana no que diz respeito à fé na cultura secular, disse-me recentemente que acredita que um dos "evangelistas" mais efetivos das últimas décadas foi Christopher Hitchens, cuja agressiva argumentação a favor do ateísmo inspirou uma geração de novos e determinados discípulos.
Quando Hitchens começou a aparecer em debates públicos com líderes religiosos, referiu Barron, normalmente limpava-os todos: «Era como dá-los aos leões... ficavam completamente destruídos».
Porém Hitchens perdeu claramente pelo menos um dos seus principais argumentos, que foi a sua famosa tentativa, em 1995, de roubar a Madre Teresa a sua auréola com o polémico livro "A posição missionária".
Hitchens acusou Madre Teresa de uma variedade de duvidosas práticas morais, desde levar dinheiro de ditadores a gerir instalações médicas abaixo dos padrões. A sua objeção geral era de que Madre Teresa não estava realmente interessada em servir os pobres, mas em fazer propaganda das suas obscurantistas crenças católicas.
Foi um ataque devastador, talvez o melhor murro que uma crítica secular tenha acertado numa proeminente figura católica além do papa, e certamente voltará a estar em debate nestes dias que antecedem a canonização.
Contudo, no tribunal da opinião popular, Hitchens foi um fiasco. Em dezembro de 1999, no fim do século XX, a empresa de sondagens Gallup perguntou a norte-americanos qual a pessoa que mais admiravam nos últimos 100 anos. Madre Teresa surgiu destacadamente em primeiro lugar, com 49 por cento, seguindo-se Martin Luther King Jr., com 34 por cento.
Ironicamente, Madre Teresa prevaleceu sem que alguma vez tenha pronunciado uma palavra de refutação - o máximo que alguma vez falou sobre Hitchens foi «eu rezarei por ele». Na verdade, claro, ela não precisava de dizer nada, porque as pessoas viram toda a sua vida como uma refutação da crítica de Hitchens.
Mulheres na Igreja
Se alguém quisesse compor uma pequena lista das mais icónicas figuras católicas da segunda metade do século XX, em termos de personalidades mais faladas, celebradas, fotografadas, ímanes de multidões, capas de revistas, prémios, altas taxas de aprovação e assim por diante, há provavelmente três que se destacam: papa João XXIII, papa João Paulo II e Madre Teresa.
Os dois primeiros foram significativamente ajudados pelo facto de se terem tornado papas. Se Angelo Roncalli tivesse permanecido como patriarca de Veneza ou Karol Wojtyla como arcebispo de Cracóvia, é improvável que tivessem subido ao palco mundial como veio a suceder.
Madre Teresa, porém, fez tudo sem mais. O único cargo que alguma vez ocupou foi o de superiora das Missionárias da Caridade, congregação por ela fundada, dado que estava demasiado ocupada a servir os pobres.
O papa Francisco criou recentemente uma comissão para ponderar a ordenação diaconal de mulheres, levantando um tabu de longa data na discussão oficial de tal ideia. Ainda que ele tenha afastado a possibilidade da ordenação sacerdotal de mulheres, isso não afastou o debate sobre o assunto nos círculos católicos.
Os pronunciamentos oficiais podem dizer o que quiserem sobre a «complementaridade» e o sacerdócio como serviço, mas há algumas pessoas, incluindo dentro da Igreja, que nunca acreditarão que as mulheres no catolicismo sejam mais do que cidadãs de segunda classe enquanto estiverem excluídas da ordenação.
O que a Madre Teresa claramente ilustra, todavia, é que não é preciso um cabeção ou uma cruz peitoral para exercer influência na Igreja católica.
Ela foi uma mulher, afinal de contas, que não teve hesitações em dizer a bispos e padres o que fazer, e ao longo dos anos a maior parte deles fê-lo - não por causa da cadeia de comando, mas porque foram inspirados, e frequentemente até impressionados, pelo poder espiritual que ela libertava.
Quaisquer que forem os argumentos a favor das diaconisas que a nova comissão vier a considerar, há pelo menos um que podem afastar da mesa, que é o de que sem se tornarem parte do clero, as mulheres (ou os leigos em geral) não têm acesso à liderança.
Se alguém foi um modelo de líder católico de sucesso foi Madre Teresa. Como mais nova santa da Igreja, ela continuará sem dúvida a liderar num modo completamente novo.
John L. Allen Jr.
In "Crux"
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 29.08.2016 no XNPC
«O sapato que fica bem a uma pessoa é pequeno para outra: não há uma receita de vida que vá bem para todos.» Esta consideração é de um dos pais da psicanálise, Carl Gustav Jung, no seu ensaio "O homem moderno à procura de uma alma". Encontro-a citada num semanário alemão que realiza um inquérito sobre modelos de vida na sociedade contemporânea.
Parte-se precisamente daquela observação para chegar a uma conclusão antitética: a homologação, favorecida pela comunicação de massa, impôs "receitas de vida" comuns. Não havia seguramente necessidade de um inquérito para saber que se avança em rebanho: basta examinar certa modas dos jovens e a sua linguagem (mas isto, mais ou menos, vale também para os adultos).
É também fácil compreender que Jung está errado e tem razão ao mesmo tempo. Está errado porque existe um tecido comum de humanidade, porque há valores permanentes universais, porque o bem e o mal nunca se devem anular segundo as situações e as conveniências. Mas tem fortemente razão porque nos remete para a singularidade da pessoa, melhor, de cada pessoa, para a identidade do indivíduo, para a multiplicidade das experiências.
É por isso que uma moral genuína deve ser firme nos princípios e apoiada em valores objetivos, mas deve ser respeitosa das consciências e capaz de incarnar com rigor, mas também com compreensão e misericórdia, esses princípios e valores na concretude da vida de cada um. Em suma, como dizia o escritor americano Oliver W. Holmes (1809-1894), «a vida é como pintar um quadro, não como fazer uma soma».
P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 30.08.2016 no SNPC
Essas exigências, de avanços e novas conquistas, perpassam as lições deixadas como legados pelos Jogos Olímpicos. Conta muito a responsabilidade que advém da expressiva visibilidade que o Brasil conquistou no cenário mundial. Os bilhões de expectadores e os milhares de visitantes que viram a face espetacular e admirável do nosso país enxergaram também nossas necessidades: novas respostas, caminhos diferentes, nos mais diversos âmbitos. Certamente, esses legados cobram as necessárias correções das muitas anomalias que incidem sobre o tecido cultural, responsáveis pela perpetuação de dinâmicas, modos e escolhas que atrasam progressos, alimentam privilégios, favorecem grupos com poder político e econômico e deseducam o povo, afastando-o de posturas cidadãs.
De modo simples e abrangente, cultura refere-se à maneira particular como o povo constrói suas relações, elege seus parâmetros de vida e conforma sua visão de mundo. É pela cultura que se compreende a própria vida, se configura o conjunto de valores e a consciência político-antropológica que permitem a um povo reconhecer o que é, valorizando o que possui. Assim, a dimensão cultural é determinante para o desenvolvimento da sociedade. No que se refere ao contexto brasileiro, fundamental é reconhecer a experiência histórica de uma nação com dimensões continentais e, ao mesmo tempo, resgatar patrimônios próprios de regionalidades, que integram uma diversidade de riquezas. Trata-se de caminho para os avanços fundamentais. Nesse sentido, os entraves na cultura devem ser seriamente combatidos, reconhecendo que cada pessoa nasce e se desenvolve em determinado contexto cultural já estabelecido, mas pode contribuir para fazê-lo avançar rumo a novos patamares.
Pode-se compor uma enorme lista de hábitos, modos de compreender, de reagir e de pensar a realidade que impedem novos passos na direção de conquistas fundamentais. São impeditivos de todo o tipo, a exemplo da resistência às mudanças. “Por que mudar? Sempre foi assim!” Eis uma observação muito comum de se escutar, que frequentemente revela resistência a novos projetos e a audaciosas propostas, por querer se manter na “zona de conforto”, muito comumente arquitetada pela mediocridade. Preocupante também é a baixa estima de um povo ou de uma região que se autodesprestigia, com jargões que desvalorizam microrregiões. Uma postura prejudicial à constituição de um conjunto harmonioso e rico, formado justamente pela diversidade. Terríveis são as práticas na política que reduzem o exercício da representatividade - na governança ou na legislatura - aos projetos partidários e grupais, em detrimento do interesse por conquistas maiores, que verdadeiramente objetivam o bem do povo.
Atravanco na cultura é a vesguice de, fincado os pés na própria terra, só enxergar o que está distante e apenas valorizar outras realidades culturais. Trata-se de problema crônico a incapacidade para reconhecer o próprio patrimônio, seu potencial, e tratá-lo com a inventividade que permita conduzi-lo a patamares de importância e de atenção reconhecidos por todos, dos mais diversos lugares do mundo. Não menos grave é a preguiça, o comodismo e o incompreensível gosto pela mediocridade, características que levam à pouca valorização do próprio patrimônio histórico, cultural e religioso.
Terrível é o transtorno de visão que parece reconhecer como bom apenas o que está “do lado de fora” do próprio território, comprometendo a criatividade audaciosa para cultivar a riqueza do patrimônio legado pela história e pelas singularidades da própria natureza. Destrutiva é a cultura da inveja e da disputa, que cria o costume de não ter gosto por valorizar o que é do vizinho - passageiro do mesmo barco -, criando segregações. Consequentemente, perde-se a força própria da articulação, do corporativo. Reconhecer esses males e superá-los exige o combate a tudo o que constitui atravancos na cultura.
As festas de Olímpia no Peloponeso eram as mais antigas e celebradas da Grécia clássica, ao ponto de se tornarem, na sua cadência quadrienal a medida de rferência da própria cronologia. As várias competições desportivam tinham como base uma visão geral da pessoa, da sociedade e da própria cultura. A "paideia", isto é, a formação grega da pessoa, associava-se à "euritmia", ou seja, a harmonia física (pense-se nas imagens das pinturas vasculares ou no "Discóbolo" do escultor "Míron). As mesmas Olimpíadas ligavam-se à poesia, como atestam as "Olímpicas", célebres odes de Píndaro (séc. V a.C.) e as dos poetas Simónides e Baquilides.
Por ocasião do acontecimento olímpico do Rio de Janeiro, tentaremos um esboço sobre a relação entre desporto e espiritualidade no cristianismo. O judaísmo, a esse respeito, foi mais reticente, por causa do risco de contaminação idolátrica, como aconteceu em alguns judeus "traidores" durante a grande epopeia dos macabeus. Eles, com efeito, entravam nus nos "ginásios", as sedes educativas e desportivas helenistas, e chegavam ao ponto de se submeter a uma intervenção cirúrgica, dita em grego "epispasmós", para eliminar o sinal da circuncisão.
A reserva anti-idolátrica estava presente também em alguns Padres da Igreja - reserva que se alargava aos espetáculos teatrais -, que se opuseram aos Jogos Olímpicos, como Ambrósio, que impede o imperador romano Teodósio de os repropor em 393. Na raiz, além do risco de contaminação com a idolatria e o paganismo, havia a crítica ao exibicionismo dos atletas que, através do exercício físico, pareciam contradizer ou deformar a obra do Criador em relação ao corpo humano.
Todavia, diferente foi a atitude nas origens cristãs primordiais. O próprio Jesus, efetivamente, tinha partido do jogo das crianças para definir a geração que o estava a ouvir, incapaz de uma opção como aqueles jovens que, «estando sentados na praça gritam aos companheiros: tocámos a flauta e não dançastes, entoámos lamentações e não batestes no peito» (Mateus 11, 16-17). Dito por outras palavras, àquelas crianças tinham sido propostos os jogos mais díspares, como imitar uma festa de casamento ou um funeral, mas elas tinham sempre oposto uma recusa pouco amigável.
É, contudo, sobretudo S. Paulo que, por diversas vezes, recorre a metáforas desportivas para delinear o compromisso apostólico e do cristão. Em particular, ele faz referência à corrida no estádio e ao pugilismo, dois desportos muito praticados na sociedade greco-romana.
Interessante é um parágrafo da Primeira Carta aos Coríntios onde é usado o léxico técnico desportivo: «Não sabeis que nas corridas no estádio todos correm, mas só um conquista o prémio? Correi também vós de modo a conquistá-lo. Mas cada atleta ("agonizómenos", "que compete lutando") submete-se em tudo à disciplina. Fazem-no para onter uma coroa corruptível, nós, ao contrário, incorruptível. Eu, portanto, corro mas não como quem está sem meta. Faço pugilato ("pyktéuô", "faço com murros"), mas não como alguém que bate no ar. Na realidade, atinjo duramente ("hypopiàzô", literalmente "atinjo sob os olhos", isto é, no ponto mais fraco do adversário) o meu corpo e reduzo-o à escravidão, para que não suceda que, depois de ter pregado aos outros, eu próprio seja desqualificado» (9, 24-27).
Também naquela espécie de testamento que ele endereça ao seu fiel colaborador Timóteo, o apóstolo, depois de ter usado imagens rituais (o ser «entregue em libação»), náuticas ou nómadas («desfazer as velas» ou «as tendas») e militares («combati a boa batalha»), recorre à cena desportiva da corrida no estádio para exprimir o seu compromisso total em conservar alta a chama da fé. A frase em grego é até ritmada, "ton drómon tetélexa, ten pístin tetéreka", «levei ao termo a corrida, conservei a fé» (2 Tomóteo 4, 7). E continua, referindo-se sempre à simbologia desportiva: «Resta-me a coroa de justiça que o Senhor, justo juiz, me entregará nesse dia, não só a mim mas a todos aqueles que esperaram com amor a sua epifania» (4, 8).
Chegados aqui não podemos, contudo, ignorar um capítulo que é dramaticamente verdadeiro também para o desporto. Em termos religiosos é o exercício da liberdade no pecado que atinge também este âmbito. Assim, o jogo-desporto torna-se lucro económico, e já não é mais livre exercício; o espetáculo transforma-se em doença violenta (a palavra italiana "tifosi", "adeptos", baseia-se no grego "typhos", "febre"); a beleza e a força física são devastadas pelo "doping", falsificando o exercício desportivo que nas Olimpíadas gregas era dito "àskesis", isto é, "ascese". Ela amplia ao máximo a potencialidade do organismo, tornando o ato físico natural e espontâneo, como acontece à dançarina clássica ou ao atleta autêntico. Além disso, o jogo, de instrumento até de cura ("ludoterapia"), degenera em formas maníacas ("ludopatia"). As sublevações mais ameaçadoras e obscuras do ser humano revelam-se através da brutalidade, a vulgaridade e o racismo nos estádios.
Uma nota particular de partilha e de apoio merecem, ao contrário, os atletas dos Jogos Paralímpicos que não se deixam vencer pela sua deficiência, empenhando-se em superá-lo num desafio contínuo a ir mais longe, em direção a uma meta mais prestigiosa. Assim, além de representarem um verdadeiro e próprio exemplo no desafiar os limites das possibilidades físicas - alma de toda a competição desportiva -, são chamados a superar também a fasquia da sua deficiência. São, por isso, pessoas que podemos legitimamente considerar "duplamente atletas".
As Paralimpíadas nasceram oficialmente nos anos 60 do século passado, contribuindo para contar e representar inúmeras histórias de feitos atléticos, acompanhadas de emoções, sentimentos, lágrimas e sorrisos, alegrias e sofrimentos. Permitiram descrever autênticos feitos heróicos, ajudando-nos a superar preconceitos ancestrais, lugares-comuns destituídos de qualquer fundamento. Comovemo-nos com estas mulheres e estes homens, vendo demolidos os muros da indiferença e do ceticismo, da suficiência coberta de comiseração, admirando-os pela coragem e pela orgulhosa dignidade dos seus gestos atléticos, convictos de que as medalhas por eles conquistadas não valem menos do que as olímpicas.
Concluímos regressando à relação entre jogo e religião, fazendo-o, em espírito ecumênico, com uma bela representação que Lutero delineia da meta paradisíaca precisamente na base da analogia do jogo: «Então o homem com o Céu e com a Terra, jogará com o Sol e com todas as criaturas. E todas as criaturas experimentarão um prazer imenso e uma felicidade lírica e rirão contigo, Senhor». Também o monge Notker, da abadia de S. Galo, falecido em 912, poeta, músico e bibliotecário, descreveu assim a Igreja que joga em paz sob a videira fecunda, símbolo de Cristo, no jardim celeste: «Eis, ó Cristo, a tua Igreja que joga serena e em paz á sombra de uma videira luxuriante».
Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In "Italpress"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 31.07.2016 no SNPC
Para contemplar essa cena é preciso voltar no tempo e viajar no espaço. Quase 500 anos atrás, estamos num castelo da Espanha onde vamos encontrar um homem deitado num leito.
Ele chama-se Inácio e pertence à família de Loyola. Criado na corte, é um homem cheio de sonhos e vaidades. Mas agora, ali, naquela cama, tudo nele é a humilhação e o sofrimento de um soldado derrotado na guerra.
Mas, vamos observá-lo, contemplar seu rosto e ouvir o que nos diz o seu coração.
De repente o guerreiro acorda de um longo, doloroso e sobressaltado sono. O corpo dói horrivelmente. Qualquer movimento na cama, por menor que fosse, era como se mil punhais se cravassem em suas pernas, com a dor subindo como fogo até o cérebro.
Inácio tenta lembrar. As imagens eram confusas. A febre ainda lhe queima a fronte. Aos poucos, entre mil dores, cena de batalha vem à sua mente.
O bombardeio intenso. O ataque à muralha. A resistência teimosa, heróica, mas inútil, impossível. Pamplona em chamas. A explosão, o vazio, o nada. Lembranças truncadas pela ferida aberta, o sofrimento, a dor.
Acorda mais uma vez sem noção de tempo e espaço. Apenas as paredes em volta, a cama, as pernas imobilizadas por ataduras sob as quais parece haver ferrões em brasa. Então, aos poucos, vai tomando consciência de tudo.
Há meses esta cena se repete.
Inácio se recupera lentamente dos terríveis ferimentos da batalha. É uma surpresa o fato de estar vivo, apesar de ainda haver riscos.
Ao lado, na cabeceira, os dois únicos livros que havia para ler. Ele estende a mão e toma “A vida dos santos”. Folheia o texto que quase decorara, tantas vezes o lera, mas seus olhos estão longe, atravessam as páginas do livro como se fossem transparentes e fixam-se na lembranças de outros tempos. O ambiente da corte, as festas, o luxo e a riqueza. Belas mulheres e belos sonhos. Conquistas e vitórias.
Feitos heróicos a serviço do rei, títulos de nobreza...
Tais recordações enchiam o seu coração de entusiasmo. Mas logo uma fisgada na perna traz outra lembrança... a derrota, o fracasso. Aquela batalha perdida não havia destroçado apenas sua carne e seus ossos. Muitos sonhos foram também dilacerados...
Inácio, então, vê-se tomado por uma grande melancolia. Seu coração se aperta e um nó na garganta anuncia mais uma madrugada de insônia.
Se vivesse em nosso tempo, Inácio talvez se espantasse com a letra de uma canção de Guilherme Arantes que retrata bem o seu momento...
Quando eu fui ferido, vi tudo mudar, das verdades que eu sabia.
Só sobraram restos que eu não esqueci. Toda aquela paz que eu tinha.
Eu que tinha tudo hoje estou mudo, estou mudado à meia-noite, à meia luz
Pensando!
Daria tudo, por um modo de esquecer...
Eu queria tanto estar no escuro do meu quarto, à meia-noite, à meia luz
Sonhando!
Daria tudo, por meu mundo e nada mais...
Não estou bem certo se ainda vou sorrir sem um travo de amargura.
Como ser mais livre, como ser capaz, de enxergar um novo dia...
Eu queria tanto estar no escuro do meu quarto
À meia-noite, à meia luz
Sonhando!
Daria tudo, por meu mundo e nada mais...
Sem um rádio ou uma canção a que recorrer, os olhos de Inácio abrem-se para o livro em suas mãos. Lê, a princípio, para ocupar o tempo, mas, aos poucos, as histórias ali narradas fazem brotar em seu espírito outros sonhos, um entusiasmo novo, diferente...
Naquele leito, reduzido ao repouso absoluto, Inácio de Loyola, o guerreiro orgulhoso, não tinha outra coisa a fazer a não ser sonhar, pensar e repensar a vida.Contemplando seus sentimentos, a partir das lembranças que lhe vinham ao coração, iniciou um processo de redescoberta de si mesmo, do sentido da própria vida. Inácio sai daquela cama para começar de novo. Mais que isso; para começar DO novo.
Uma novidade que vinha do gênesis dos milênios.
Aos poucos ele irá descobrir que foi amado primeiro, e que a única forma de responder a este amor é com uma vida de amor. Uma vida em que, em tudo, ele se sentirá chamado a amar e servir...
Retomando a caminhada do ano, após a pausa de Julho, rezemos como Inácio de Loyola rezou.
Senhor, nosso Deus, dá-nos a Tua força, para que cada um de nós,
assim como teu filho, Inácio de Loyola,
possa RECOMEÇAR a vida, a cada dia com o coração cheio de entusiasmo, alegria, disposição.
Que a tua graça esteja em nós,
recriando sempre o desejo de “em tudo, amar e servir” aos que estão ao nosso lado,
companheiros de caminhada pela vida.
Toma em tuas mãos os dons que Tu mesmo nos deste
e faz com que tudo em nós e à nossa volta possa acontecer para a maior glória do teu Reino.
Fica conosco, Senhor, agora e sempre,
Amém!
Eduardo Machado
Educador
Ainda que um homem misture a massa, é sempre Deus o construtor. O destino mistura as cartas, mas somos nós a jogá-las.
Juntamos duas frases distantes entre elas quase três milênios, mas tematicamente complementares. A primeira provém da antiga cultura egípcia: trata-se de um dito da Sabedoria de Amen-em-ope, escrito do século IX-VIII a.C., que deixou um importante traço também na Bíblia (no livro dos Provérbios 22,17 - 24,22). A segunda citação está presente nos Aforismos da Sabedoria do Viver, do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860).
São duas as perspetivas com que se examina o destino ou, para o crente, a Providência. De um lado, exalta-se a eficácia da ação humana, com a sua liberdade; do outro, reconhece-se que existe qualquer coisa, ou Alguém, que nos ultrapassa e que intervém no projeto da história humana.
Esta duplicidade deve conservar-se, segundo um equilíbrio que não é nem garantido nem simples. É preciso continuar a misturar a cal necessária para a construção do edifício da nossa existência, trabalhando com empenho e responsabilidade.
Mas deve ter-se também a consciência de que não somos os únicos árbitros do resultado: não só porque nos apoia a graça divina, mas também porque há um mistério no projeto global do ser e da história.
Temos, portanto, nas mãos cartas que não valem uma sequência lógica e definida, mas somos nós que as devemos jogar com inteligência e habilidade para que obtenham um resultado positivo.
Os extremos da resignação desencorajada, convencida de que os jogos já estão todos decididos, e da eficácia orgulhosa, certa de que tudo depende de nós, devem por isso ser evitados. A vida é dom e compromisso, é surpresa e certeza, é aceitação e reação ao mesmo tempo.
P. [Card.] Gianfranco Ravasi
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 10.05.2016 no SNPC em Portugal.
O sinal revelador de que já se deixou de amar torna-se manifesto quando os sacrifícios começam a custar; o sinal de que se ama pouco acende-se quando te dás conta de que os estás a fazer.
É verdade que há outros sinais: por exemplo, um escritor afirmava que quando dois namorados começam a explicar-se e a justificar-se, é porque estão prestes a deixarem-se.
Mas não há dúvida de que é o egoísmo, quando aflora de maneira prepotente, o indício de que o amor está a regredir. Sente-se o peso daquilo que se faz pelo outro, começa a calcular-se quanto se dá e quanto se recebe.
Quando alguém se dá conta de que está em crédito de bem em relação a outra pessoa, então está aí o sinal claro de que começou o declínio do amor.
Uma mãe ou a um pai, se são verdadeiramente tais, não são esmagados pelo cansaço de um trabalho stressante, de vigílias e de sacrifícios vários quando o fazem pelo seu filho.
A característica fundamental do amor é a gratuidade, não se admite o interesse ou o cálculo; não se espera recompensa nem gratidão, porque para a pessoa amada tu só queres o seu bem e a sua felicidade.
A sociedade contemporânea, que é decididamente mais egoísta, desabituou-nos ao gratuito puro, ao dar sem pedir em troca, ao sacrifício de si por amor. É por isso que não conhece a verdade daquela frase de Jesus, referida por Paulo: «Há mais alegria no dar do que no receber» (Atos dos Apóstolos, 20, 35).
P. [Card.] Gianfranco Ravasi
In "Avvenire"
Publicado em 30.04.2016
O maior e mais grave desafio da sociedade brasileira é recompor o tecido da cultura, cheio de buracos. Aí está um dos mais relevantes desarranjos a serem enfrentados para encontrar saídas diante dos muitos problemas que afligem o país. A cultura sustenta as dinâmicas da sociedade e, por isso, os muitos buracos em seu tecido são preocupantes. Não se pode deixar de constatar que a extrema fragilidade no mundo da política deve-se a este horrendo fenômeno: o esgarçamento da cultura. No conjunto de tudo o que precisa ser corrigido está a política partidária, atualmente uma das mais potentes ameaças ao tecido cultural. Fragilizado, esse tecido não contribui suficientemente para o surgimento de líderes capazes de apontar novos rumos e promover a união.
Pensar o Brasil, neste momento, não é apenas uma questão de intervenção no mundo da política. Incontestavelmente, isso se configura em necessidade urgente em razão do lamaçal que se permitiu formar. Contudo, é preciso ir além e considerar o seríssimo problema de ordem antropológica, que é mais abrangente. A cultura brasileira precisa de reparos, seu tecido carece de remendos para que não aumentem os rasgões. Necessita de investimento para recompô-la, permitindo-a sustentar dinâmicas exigidas pela complexidade da vida moderna. No palco das discussões e preocupações não podem estar simplesmente mudanças de poder partidário, nem mesmo o considerável e relevante cumprimento da Constituição. A sociedade brasileira precisa de algo mais: uma correção de relevância antropológica que qualifique a cultura, sustentáculo indispensável para o funcionamento social, configuração com capacidade para fazer surgir ações inspiradas no bem e na justiça.
Essa urgente necessidade precisa estar na pauta de todos os segmentos da sociedade. Não se pode ficar somente, e o tempo todo, vendo “o circo pegar fogo” na política. Desconsiderar a importância de reformular a cultura é assistir passivamente o suicídio de uma sociedade, com tristes consequências. Todos estão ameaçados diante dos graves desarranjos culturais, como a generalizada indiferença relativista, apontada pelo Papa Francisco na sua Exortação Apostólica Alegria do Evangelho, relacionada com a desilusão e a crise de ideologias. Por um lado, há uma reação a tudo o que parece totalitário. Por outro, recrudescem-se os fundamentalismos, inclusive religiosos, que alavancam terrorismos de todo o tipo. A vida social está prejudicada, portanto, não apenas pelos números da economia, mas, dentre outros fatores, por uma cultura em que cada um pretende ser portador da verdade. Isso compromete a cidadania, pois inviabiliza a união de cidadãos em busca de projetos comuns, necessários ao bem de todos, que estão além de simplesmente contemplar ambições pessoais.
Os desgastes da cultura que a incapacitam na tarefa de sustentar o bem e a justiça têm uma lista enorme de razões. Consequentemente, para corrigi-la, várias atitudes precisam ser assumidas, a cada dia, e por todos. Uma exigência que pede, de todos os segmentos, urgente inovação para que possam contribuir na busca da solução dos problemas da contemporaneidade. É triste constatar que instituições - religiosas, governamentais, educacionais e tantas outras - continuem a funcionar como há trinta, quarenta anos, sem se atualizar. Gastam muito, inclusive tempo e a paciência alheia, e não trazem novas respostas. Não conseguem ser força para refazer o tecido da cultura e alavancar mudanças. As consequências são muitas e graves, a exemplo da crescente violência, claro reflexo do desgaste da cultura. O número de homicídios na capital mineira ultrapassa índices de guerra. No entanto, parece algo normal. Há lugares na região metropolitana que, em apenas uma noite, já se alcança o patamar de tolerância indicado pela ONU. Imagine se essa realidade for ainda mais temperada por fundamentalismos, pela cultura das facções e pelo ódio. A cultura brasileira não pode, inclusive, viver mais da ilusão de se considerar como pacata, de índole fortemente solidária e outros adjetivos que não correspondem aos cenários de desafeição, desrespeito e massacre, sobretudo dos indefesos e mais pobres. A situação é grave. Há de se incluir diariamente na pauta, e envolver, a partir de programas e ações, as instituições e segmentos todos da sociedade brasileira na recomposição do tecido de nossa cultura.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
A página A9 da Folha de SP da última segunda feira, (28/03/2016), traz um retrato do momento que vivemos, dentro e além das nossas fronteiras, retratando momentos dramático que trazem um alerta e um desafio.
Desde os ataques terroristas do 11 de setembro de 2001 que o mundo vem quase se habituando a notícias como as que estão estampadas na referida página (fac-símile ao lado).
O terror ataca de um lado, o terror responde de outro. No terror, os extremos se tocam. Pior que isso, se igualam.
Com já disse em outros artigos e crônicas, gosto de observar a História e ver o que ele tem a nos ensinar.
Nos dois primeiros séculos do cristianismo houve uma grande e orquestrada perseguição à nascente comunidade dos chamados cristãos, nome dado aos seguidores do profeta galileu executado em Jerusalém.
Atacados, primeiro, pelos chefes dos judeus, de cuja religião o Cristianismo era visto como uma seita ou ramificação, e depois pelos imperadores romanos, que controlavam grande parte das terras onde o cristianismo primitivo se distribuía, os cristãos foram caçados como criminosos e tinham que praticar clandestinamente a sua fé.
Os identificados eram presos, torturados, e martirizados, muitas vezes em espetáculos públicos no Coliseu Romano.
É desta época a frase: “o sangue dos mártires é semente de cristãos”.
Dois mil anos depois não é esse o discurso dos líderes das correntes radicais do Islã? Seus líderes não apelam para a guerra santa, criando os mártires de Alá que se explodem em troca da promessa de uma vida no paraíso?
Cada atentado brutal reforça, do outro lado, a ideia de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. E aí tropeçamos numa dúvida: há vigilância possível e eficaz quando se trata de conter alguém que está disposto a morrer? Nem o alvo é possível prever. Não será um quartel, um palácio governamental, um político, um general. O ataque pode acontecer numa fila do check in do aeroporto, na arquibancada de um campo de futebol, numa maratona, numa boate onde rola um show de rock, numa praça onde brincam crianças, num mercado onde as pessoas fazem compras, numa Olimpíada...
Como prevenir, combater, evitar esse inimigo invisível e cruel? Praticando ainda mais crueldade?
Na mesma página A9 há uma pista que aponta uma saída. Ela está quase invisível, no alto, à direita, onde uma pequena manchete diz: “Pela paz: Papa pede o uso de ‘armas do amor’ contra o terror”.
Não, meus amigos, o Papa Francisco não é ingênuo ou alienado. É corajoso e realista, além de coerente com quem o inspira, Jesus de Nazaré.
Entre a loucura suicida dos homens bomba e o extremismo racista dos neofascistas e neonazistas, o Papa propõe o radicalismo cristão: “amai os vossos inimigos, respondei ao mal com o bem, perdoai àqueles que te fazem o mal...”.
Não se trata de simples retórica. É um caminho. Nele haverá, com certeza, dor e sofrimento. Mas já não há dor e sofrimento nesta guerra que ninguém pode ganhar? Ao escolher o caminho da paz, pelo menos damos uma chance às gerações que virão.
O apelo do Papa não propõe confrontar os que, hoje, estão em guerra. Essa batalha já está perdida. Para os dois lados. Ele nos desafia e convida a pensar na criança que, hoje, está nascendo num campo de refugiados sírios e naquela que vêm à luz num moderno hospital belga. No adolescente que cresce na periferia de Bagdá e naquele que vai à escola num bairro de Nova York. No jovem que busca trabalho no Iraque e naquele que entra para uma Universidade na Inglaterra.
Para esses, a Paz não será a ausência da guerra, mas a presença do Amor.
Eduardo Machado
30/03/2016
João Delicado
“A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o abismo...”. Assim começa a narração do Livro do Gênesis, permitindo uma analogia com o atual momento político do Brasil. A política partidária instalou incontestavelmente o caos na sociedade. Está perdida a capacidade para o diálogo que gera consensos e entendimentos. Não paira, absolutamente, o Espírito de Deus no mundo da política. É uma escuridão que fomenta o caos - um “salve-se quem puder” que passa por cima do bem comum como um trator. Não há esperança de que a política partidária consiga, rapidamente, oferecer contribuições para os rumos da nação. A lista de desmandos, escolhas absurdas, interesseiras e manipulações é interminável. Comenta-se, em muitas esferas da sociedade, sobre a expectativa do surgimento de um líder político capaz de gerar agregação e apontar novas direções. Isso parece ser difícil de ocorrer, justamente pelo atual cenário vivido pela política partidária. Quem seria capaz, agora, de reverter essa difícil situação? O mundo da política partidária no Brasil configura-se como um devastador desastre humano à semelhança das incidências horrendas que ferem o meio ambiente.
A deterioração da esfera política e o tratamento inadequado das questões ambientais se desenvolvem a partir da mesma raiz. Aqui vale relembrar as palavras do Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica Alegria do Evangelho, quando se refere à nova idolatria do dinheiro. O caos vem dessa idolatria. É inexistente a nobreza de fazer política pelo bem comum, com o objetivo de ajudar a nação a alcançar patamares de civilidade e de funcionamentos que promovam, sem populismos, os seus cidadãos. A falta dessa nobreza é resultado de carência na formação humanística que ilumina intuições, capacita para o bem, muito acima do interesse de enriquecimentos ilícitos. O Papa Francisco afirma que “uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e nossas sociedades”. Essa verdade explica os desajustes no tecido da cultura, que delineia a identidade da sociedade e influencia suas direções.
O Papa Francisco oferece a chave de interpretação desse caos instalado que produz, por exemplo, a crise financeira que pesa sobre os ombros de todos. A base da desordem é a negação da primazia do ser humano. Esse colapso antropológico tem muitas feições. Descompassa relações, articulações de grupos e segmentos na sustentação de uma sociedade que deve se mover no horizonte da justiça e da solidariedade. É triste constatar o que ocorre na política partidária. O desejo de ocupar cargos públicos não vem acompanhado do sentido cidadão mais profundo de ajudar decisivamente na construção de uma sociedade solidária e justa. Trata-se de interesse doentio pelo dinheiro, para alimentar ilusórias sensações de poder e segurança. Uma ambição que produz essa economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano.
Ora, a idolatria do dinheiro é perigosa, gera ilusões e desgasta o mais nobre sentido da política, que é promover o bem comum. Essa idolatria é tão terrível que faz crescer, de modo generalizado, a sensação de que não há mais tempo para fazer o que é necessário. Isto fica explícito nas muitas lamentações e ladainhas exaustivamente propaladas. O interesse mesmo é ganhar sempre mais, produzir menos. Nada de sacrifícios e esforços para alcançar o bem de todos. Uma luz precisa brilhar para iluminar essas trevas. E de onde ela pode vir? Em primeiro lugar, da corresponsabilidade e seriedade cidadã de cada indivíduo. Sistemicamente, essa luz pode e precisa brilhar com o fortalecimento, em seriedade e audácia, dos diferentes segmentos da sociedade - empresarial, religioso, judiciário, acadêmico e intelectual, artístico e outros mais. Cada setor, pela seriedade e honestidade, tem o dever de dissipar as trevas que preenchem o abismo onde está inserida a sociedade brasileira. Que venha de todas as pessoas e grupos, pelo compromisso com o bem, a justiça e a verdade, essa a luz que tem a força para resgatar o país do caos.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
In: Opinião e notícias
18/03/2016
Assim se chama o livro de Christiane Singerque que nos desafia a encontrar um ângulo, primeiro cultural e depois civilizacional, para olharmos para as crises que todos atravessamos, quer se conjuguem no plural, quer simplesmente se declinem no singular. A autora propõe essencialmente três coisas.
1. Que num tempo em que escasseiam os mestres, e todos estamos mais ou menos entregues a uma autogestão (para não dizer a um isolamento) devorante da própria vida, as crises «são realmente os grandes mestres que têm alguma coisa a ensinar-nos». Não escutar, a fundo, o que as crises nos dizem é desperdiçar a ocasião para aceder àquela profundidade que pode devolver sentido à vida. Mesmo sabendo que uma crise é sempre um austero mestre para o qual raramente nos consideramos preparados.
2. Numa sociedade que tantas vezes concorre para afastar-nos daquilo que é importante e vital, as crises funcionam quase como um rito secularizado de iniciação à liberdade e à verdade de Ser. Christiane Singer relata o que um seu amigo antropólogo lhe disse ter escutado a um aborígene: «Não senhor, nós não temos crises, nós temos iniciações». As nossas sociedades modernas e democráticas têm um elevado ideário para a realização humana: basta pensar nessa tricolor herança da liberdade, igualdade e fraternidade. O problema, porventura, não é o das metas, mas o dos caminhos. Como é que se faz a aprendizagem dos valores que melhor nos podem expressar a nós próprios, nesta dinâmica construção do que é viver e viver com os outros? Aí é que surgem os hiatos, os bloqueios, as incertezas, as demissões. Só os ritos de passagem, desenvolvam-se eles em que quadro for, é que nos colocam realmente em contato com a vida e com a morte, isto é, com a inteireza do destino humano.
3. Por fim, talvez precisemos compreender que no curso do nosso caminho, coletivo e pessoal, as crises «nos acontecem para que seja evitado o pior». E o que é o pior? Singer escreve: «O pior é ter tido a infelicidade de atravessar a vida sem naufrágios, é ter ficado apenas à superfície das coisas, ter dançado um baile de sombras, ter ficado a chapinhar no pântano do diz que diz, das aparências» e nunca ter habitado uma vida que lhe pertencesse.
Pe. José Tolentino Mendonça
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