INICIAÇÃO
Se vens a uma terra estranha
curva-te
se este lugar é esquisito
curva-te
se o dia é todo estranheza
submete-te
- és infinitamente mais estranho.
Fontela, Orides. Trevo.
São Paulo: Duas Cidades, 1988.
Acorda bem cedo o homem
da casa de telha vã
e abre janela e porta
como se abrisse a manhã.
E eis que a vida não é mais
nem triste, nem só, nem vã.
É doce: cheira a goiaba
e brilha como romã
orvalhada. E ele caminha,
o homem, com passos de lã
para em nada perturbar
a quietude da manhã.
Já não há mágoas de perdas
nem angústias de amanhã,
pois a alma que há na calma
entre a goiaba e a romã
é a própria alma do homem
da casa de telha vã,
que declara a noite morta
e acende em si a manhã.
Ruy Espinheira Filho
"Deus mastiga com dor a nossa carne dura,
Mas nem por chorar estamos abandonados.
A água do regador alçado sobre as couves
alvoroça os insetos.
A larva na hortaliça nos distrai.
Não inventamos nada.
O ponto de cruz é iluminação do Espírito;
o rei, a dama, o valete, são sérios farandoleiros.
Se nos mastiga com dor,
é por amor que nos come.
Vamos rezar as matinas".
Adélia Prado
In: Coração Disparado, Editora Record.
“Apenas sei que caminho
Como quem é olhado, amado e conhecido.
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco”.
Sophia de Mello B. Andresen
(poeta portuguesa)
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender.
Fernando Pessoa
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Fernando Pessoa
O Paraíso é tão longe
Quanto o quarto mais perto
Se nesse quarto se aguarda
Felicidade ou deserto
Forte é o coração
Que suporta
O estalido
De um passo na porta.
(Emily Dickinson, Um Livro de Horas. Tradução de Ângela Lago)
por arrancar nossos olhos
da pedra.
Bendita a sede
por ensinar-nos a pureza
da água.
Bendita a sede
por congregar-nos em torno
da fonte.
Orides Fontela
Um monge descabelado me disse no caminho: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos que a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo”. E o monge se calou descabelado.
Manoel de Barros
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles
Pior que o cão é sua fúria,
Pior que o gato é sua garra,
Pior que a sanha de ferir
a que se enconde
sob feição de amor.
Pior que a vida é a não-vida
Do que se faz espectador;
nem mergulha, nem nada, nem conhece
o mar fundo:
está sempre à beira da estrada.
Marly de Oliveira
Do interior, quero
um vestido semeado de flores
a repetir em seus botões de vidro,
em suave reticência:
o musgo do beco
a luz pungente do meio-dia,
a praça,
a poesia de um cemitério pequeno...
Quero do meu interior
o caminho sombrio das entranhas
e seus quentes humores...
Do interior do interior
quero
a intensidade do fogo,
o sangue,
e deles
a coragem para os abismos.
Elizabeth Gontijo
in: De um segredo.
Um rio jorra entre o porão e o sótão:
leva dores e amores, e nosso último riso
há tanto tempo.
Mas numa curva qualquer, porque de novo amamos,
tudo pulsa e brilha de ousadia,
sabendo que temos pela frente
esse calor, esse rumor de águas na areia.
Passa no meio de nós, entre o sonho do sótão
e o medo dos porões, o rio da vida:
que me leve para ti ainda uma vez e muitas,
que venhas até mim antes daquela curva
com a audácia e o fervor que tínhamos perdido.
Lya Luft
In: Secreta Mirada. São Paulo: Mandarim, 1997.
“Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”.
Clarice Lispector
O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.
Clarice Lispector
Enquanto não superarmos
a ânsia do amor sem limites,
não podemos crescer
emocionalmente.
Enquanto não atravessarmos
a dor de nossa própria solidão,
continuaremos
a nos buscar em outras metades.
Para viver a dois, antes, é
necessário ser um.
Fernando Pessoa
“De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro”.
Fernando Sabino
In: O Encontro Marcado
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo…
Fernando Pessoa
A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como
sou - eu não aceito.
Não agüento ser apenas um
sujeito que abre
portas, que puxa válvulas,
que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora,
que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem
usando borboletas.
Manoel de Barros
In: Retrato do artista quando coisa, Editora Record.
Quando pensei que estava tudo cumprido,
havia outra surpresa: mais uma curva
do rio, mais riso e mais pranto.
Quando calculei que tudo estava pago,
anunciaram-se novas dívidas e juros,
o amor e o desafio.
Quando achei que estava serena,
os caminhos se espalmaram
como dedos de espanto
em cortinas aflitas. E eu espio,
ainda que o olhar seja grande
e a fresta pequena.
Lya Luft
In: Pra não dizer adeus, Editora Record, 2005.
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem inseto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço.
Mia Couto, in: “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”.
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