Título Original: Journal D’un Curé De Campagne
Título no Brasil: Diário de Um Pároco de Aldeia
Direção: Robert Bresson
Gênero: Drama
Ano de Lançamento: 1951
Duração: 110 min
País: França
Diário de um Pároco de Aldeia (em francês: Journal d'un curé de campagne) é um romance de Georges Bernanos publicado em 1936 pela editora Plon tendo recebido o Grand prix du roman de l'Académie française desse ano. Em 1950, este romance foi incluído na lista do Grand prix des Meilleurs romans du demi-siècle. O livro foi adaptado para o cinema pelo grande cineasta Robert Bresson.
Um jovem padre é nomeado pároco em Ambricourt, uma pequena aldeia em Artois, na França. Os moradores locais o recebem com certa hostilidade. Com uma personalidade frágil e saúde debilitada, o padre tem dificuldades em se impor aos paroquianos. Narra o cotidiano da sua vida como padre num diário: as dificuldades, a aridez espiritual, os confrontos com os paroquianos, sua vida de diálogo com Deus, sua saúde frágil.
Pouco a pouco o jovem padre vai conhecendo os paroquianos, tem o costume de visitar a todos. O filme mostra a hostilidade, rejeição e até maldade de alguns personagens e apostura do padre que é a de sempre ajudar a pessoa a ver a bondade de Deus. Chega a duvidar em alguns momentos da sua própria fé, mas logo percebe que nunca a perdeu. O diário é o espaço de diálogo consigo mesmo e com Deus. O encontro central do filme é com a condessa que é cética em relação a vida e à Deus. O padre a faz ver com outros olhos sua grande dor, a perda do seu filho querido. No mesmo dia em que consegue ver sua dor com novo horizonte, morre subitamente. E vários moradores criticam o padre. Mas ele sabe que ela se reconciliou consigo mesma e com Deus, antes da morte.
A amizade do padre jovem com um padre mais velho também nos brinda com diálogos interessantes. A saúde do padre se deteriora e ele descobre que sua vida está próxima do fim. O filme termina com a conclusão do padre de que "tudo é graça".
Um grande filme. Um jovem padre que coloca a sua vida serviço dos outros, quer o bem e o melhor para cada pessoa. Desdobra-se para ajudar a todos. E, no diário que escreve narra sua busca de sentido, sua fé, sua entrega a Deus, sua percepção do bem e do mal que mora em cada pessoa.
Equipe do site
Mistura aventurosa entre cinema flibusteiro, "western" e horror, o novo capítulo da saga Disney "Piratas do Caribe" apresenta ao público o enésimo rival do corsário mais amado de sempre: Salazar (Javier Bardem).
Através de recorrentes "flashbacks" é reconstruído outro mosaico do passado de Sparrow (Johnny Depp), que descobrimos ter sido apelidado pelo temido caçador de piratas espanhol. Mas as surpresas, como é óbvio, não acabam aqui.
Eis que voltam à cena o capitão Hector Barbossa (Geoffrey Rush), ligado à bela astronôma Carina por um destino que se diria pouco "estelar"; e conclui-se com a entrada de Henry (Brenton Thwaites), que deseja libertar o pai do terrível encantamento que o mantém prisioneiro no navio fantasma "Holandês voador".
O duo Rønning-Sandberg dirige com mestria um filme de ritmo avassalador e com sequências subaquáticas memoráveis, incluindo a três dimensões.
Os efeitos visuais e especiais constituem a joia da coroa de uma rodagem que não negligencia nada, recuperando elementos da melhor tradição "western", passando pelo "filme de tubarões" até ao horror mais clássico, com uma memorável interpretação de Barden e o recurso a técnicas inovadoras que todas vívida e envolvente como nunca esta nova "armada das trevas".
Mas entre episódios rocambolescos, abordagens corpo a corpo com fantasmas e aventuras impossíveis, o que o novo capítulo da saga pretende acentuar é o tema da reunificação. E se o derradeiro desafio entre Sparrow e Salazar parece ser a fase crucial de um argumento tão rico como emocionante, na realidade são enquadrados em primeiro plano os laços consanguíneos e a necessidade do reencontro.
Entre o sacrifício posto em ato por um (improvável) pai como Barbarossa pelo seu único verdadeiro "tesouro", a filha Carina, e a corajosa missão concluída por Henry para reaver o pai (Orlando Bloom) e rever a sua família unida, eis Sparrow a recuperar a sua família e a regressar ao comando do seu galeão "Pérola negra".
Olhando para o todo, o filme confirma-se uma vez mais à altura das expetativas, sabendo dirigir-se a um público amplo e tocando temas tão profundos como as águas protagonistas.
Ainda que demasiado intenso e longo no final, "Piratas das Caraíbas: a vingança de Salazar" conserva o fascínio do tesouro a descobrir, considera a comissão da Igreja católica em Itália que analisa os filmes, acrescentando que o filme é «brilhante».
Nico Parente
In "Cinematografo"
Trad. / edição: SNPC
Publicado em 25.05.2017
Inimigo Meu(Enemy Mine, 1985) é uma aventura de ficção científica, dirigida por Wolfgang Petersen, diretor alemão mais conhecido pelo primeiro A História Sem Fim (Die unendliche Geschichte, 1984).
Dois sujeitos bem diferentes forçados a conviver no mesmo espaço: um piloto terráqueo, Willis Davidge, interpretado por Dennis Quaid, e o alien “Jerry” Shigan, vivido por Louis Gossett Jr., irreconhecível atrás de uma máscara que o transforma em um sujeito reptiliano.
Jerry (o nome certo é Jeriba) é um Drac, raça alienígena que há um bom tempo vive em guerra com os terráqueos em disputas “territoriais” por outros planetas. Em um desses embates espaciais, as naves do escamoso e do virtuoso piloto Davidge caem em um planeta desconhecido, repleto de ameaças e mistérios mortais. Após um confronto inicial, a inusitada dupla reconhece que terá mais chances de sobreviver se permanecer unida, a despeito do ódio que as duas raças nutrem uma pela outra.
Inimigo Meu pode ser considerado como uma espécie de fábula, cuja narrativa é feita pelo terráqueo vivido por Dennis Quaid. A grande questão e lição que percorre a história do início ao fim é que somos intolerantes porque desconhecemos o próximo e não nos permitimos qualquer empatia em relação ao outro. Muitas vezes, nossa cegueira é resultado de ideias preconcebidas, tratadas como senso comum mesmo quando não possuem qualquer fundamento. É o que Davidge vai aprender ao longo de sua convivência forçada com Jerry. De inimigo malévolo, o alien, aos poucos, se mostra na verdade um sujeito bastante espirituoso, capaz de divagações filosóficas e forte defensor dos valores familiares. Por vários momentos, se mostra muito mais razoável do que o próprio terráqueo, que insistia até então em o ver somente como um réptil asqueroso de costumes estranhos.
O relacionamento entre os dois avança a partir do momento em que Jerry, com uma facilidade quase paranormal, aprende a falar inglês, conjugando verbos e montando frases. Alguns dos melhores momentos de Inimigo Meu surgem então daí, com as trocas de provocações entre os dois protagonistas. Vez ou outra as brincadeiras descambam para a grosseria e as vias de fato, mas nada que dois bons amigos, em uma situação “normal”, não fariam.
Com o tempo, Davidge faz o caminho inverso e aprende a linguagem dos Dracs e os ensinamentos do livro sagrado destes seres, o Tulman. Percebe que muitos ensinamentos da cultura “draconiana” são semelhantes a lições outrora compartilhadas em seu planeta natal – lições de respeito, amor ao próximo, persistência. Ao fim, Davidge e Jerry são muito mais parecidos do que imaginavam enquanto guerreavam, e as diferenças físicas e de língua surgem como meros detalhes. Não importa a origem, ambos são humanos, no sentido mais amplo da palavra.
Em tempos de intolerância, de falta de respeito pelo diferente, onde o “outro”(ser humano, o planeta...) são violentados constantemente, seja pelas guerras, pela fome, “mil” preconceitos, também em redes sociais, o filme é uma lição de respeito e cuidado com o diferente. A espiritualidade cristã nos pede para contemplar o outro como “obra de arte” de Deus, como ser inacabado e a caminho. O outro me ajuda a pensar, a viver, a experimentar coisas que nem imagino, mas que no encontro e na comunhão me são reveladas. Uma bela lição de amizade.
Equipe do site
É extraído da fábula francesa "La belle et la bête", de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, publicada em 1756 - ainda que se diga que as suas origens são incertas, até anteriores -, o filme "A bela e a fera", dirigido por Bill Condon, que vê entre os autores Emma Watson, a Hermione Granger de "Harry Potter", e Dan Stevens, conhecido do grande público pelo papel de Matthew Crawley na série televisiva inglesa "Downtown Abbey".
Trata-se de uma revisitação proposta pela Disney, após o sucesso do desenho animado de 1991 assinado por Gary Trousdale e Kirk Wise (dois Óscares ganhos), com o objetivo de divulgar novamente os grandes clássicos da infância em chave de ação, sempre na linha educacional e de entretenimento. Basta lembrar os recentes "O livro da selva - Mogli, o menino lobo" (2016), "Cinderela" (2015) ou o mais original "Malévola" (2014).
Para os amantes da versão em desenho animado em estilo musical, diga-se desde já que não ficarão desiludidos. O filme de Bill Condon faz um bom uso de partes recitadas e outras cantadas, a partir de músicas e textos compostos por Alan Menken - também autor das músicas da animação de 1991 e por elas oscarizado - e interpretadas por todos os autores.
A história é conhecida. Bela (Emma Watson) vive numa aldeia com o pai Maurice (Kevin Kline), a quem é muito ligada. Quando se perde o rasto dele, depois de partir para uma viagem comercial, a jovem mete-se a caminho para o reencontrar. E é assim que dá de caras com um castelo aparentemente desabitado, um lugar sombrio e angustiante, onde o seu pai foi aprisionado. Bela descobrirá que o dono do castelo é uma Besta (Dan Stevens) de feições humanas. Propõe-lhe então ficar ela como prisioneira em lugar do pai. Um encontro conflituoso que depressa se revelará uma oportunidade de mudança, esperançosa, para a vida de ambos.
A Disney orquestra uma operação em grande estilo, partindo antes de mais do elenco de grande nível, além dos atores citados. A encenação é sugestiva, conseguida, apostando em dar os contornos coloridos da fábula, ao mesmo tempo que confere o realismo das criaturas animadas - como a Besta ou Lumière -, graças a um cuidado trabalho de efeitos especiais.
A realização de Bill Condon, já habituado a dirigir filmes de grande orçamento - como “The Twilight Saga - Breaking Dawn 1 e 2", mas também "Dreamgirls" e "Mr. Holmes" - adere perfeitamente à linha do projeto, colocando-se ao serviço do produto, chegando mesmo a sacrificar um pouco a sua própria assinatura estilística.
O filme é indubitavelmente bom, adaptado para famílias e jovens que desejem (re)descobrir a história em todos os seus valores, mas também saborear a magia de um musical muito presente no imaginário coletivo.
Causou alguma crítica e polémica, antes da estreia do filme nos cinemas, a presumível inclusão no contexto narrativo de um personagem considerado homossexual, interpretado por Josh Gad. Não é caso de suscitar qualquer agitação porque o filme não se presta a instrumentalizações. A narração é correta, respeitando, por um lado, a linha da fábula, e de outro apostando numa revisitação apoiada por um agradável sentido de humor.
Estamos, por isso, perante um espetáculo cinematográfico envolvente e até poético, capaz de encantar o público de qualquer idade.
Massimo Giraldi, Sergio Perugini
In "SIR"
Trad.: SNPC - Publicado em 16.03.2017
Enquanto os turistas sonham com as praias da Florida, uma grande parte da população nem sequer sabe nadar. Em certos bairros a miséria e a droga fazem estragos e, como sempre, as crianças sofrem por ricochete. Chiron é uma delas, caminha de olhos baixos, apreensivo. Fala pouco porque aprendeu que é melhor não dizer nada do que deixar transparecer uma outra fraqueza. Em casa a mãe está muitas vezes ausente e na escola, onde é o bode expiatório dos mais fortes, só tem um amigo, Kevin.
Barry Jenkins divide o seu filme em três partes: infância, adolescência e vida adulta. Com uma banda sonora enérgica e uma escala de cores ensolaradas, o realizador recusa reforçar a miséria que vai mostrar. Sugere a violência das situações sem as carregar, e a câmara é sempre pudica nos momentos delicados. Pouco se verá do brilho de Miami e todas as personagens são pessoas de cor: naqueles territórios os brancos não existem... Os planos são cuidadosamente compostos para dizer sem conversa a inquietude constante que reina na casa, na escola, na rua. E para mostrar a espiral infernal em que estão mergulhados os habitantes daqueles bairros, Chiron tornado adulto é interpretado pelo ator que faz de Juan na primeira parte.
Os três atores que fazem de Chiron são impressionantes. Alex R. Hibbert, Ashton Sanders e Trevant Rhodes, ainda que não se pareçam fisicamente, sabem transmitir a inquietude permanente que construiu a criança, a fraqueza que transtornou o adolescente e a procura impossível que rói o adulto. A cada fase da vida, Chiron dá-se um outro nome: Little, Black, Tapette...
O encontro com Juan permitir-lhe-á encontrar uma figura de pai que muito lhe falta. Juan respeita-o, ensina-o a nadar (num mundo de tubarões...), oferece-lhe um refúgio onde repousar. Mas introdu-lo no círculo vicioso onde se reproduz aquilo que faz sofrer: aterrorizado pela sua mãe drogada, incapaz de tomar a vida nas suas mãos, Chiron acabará por ser um traficante, sofrendo por saber que o crack que vende às mães de famílias destrói os seus filhos. Nos bairros pobres de Miami, raros são aqueles que conseguem inverter o curso das coisas.
No fim do filme, na parte "adulta", o realizador constrói uma cena magnífica para o reencontro de Chiron e Kevin, que não se viam há 10 anos. Com muita correção, as dificuldades e as doenças de ambos tornam-se palpáveis no écran, doença que Kevin esconde sob um mar de palavras, e a mágoa de Chiron, tão mal dissimulada atrás da poderosa musculatura do seu grande corpo. Nas poucas palavras tocadas, sente-se subir a culpabilidade de um, o medo de falar do outro. É um belo momento de cinema, cheio de graça, de subentendidos e de emoção contida.
Movido desta vez não pelo desespero mas pela esperança de voltar a dar sentido à sua existência, e talvez porque Kevin lhe acaba de dizer que mesmo se a sua vida não é gloriosa, já deixou de ter medo, Chiron fala por fim. Ele diz o inconcebível para o meio de onde saiu, o reconhecimento de um desejo que não é senão sexual - «tu és o único que me tocou, o único» -, ecoando assim o que lhe dizia a mãe nos seus raros acessos de ternura, «só te tenho a ti, a ti». É reconhecendo esta fraqueza, esta angústia que escondeu durante tantos anos que Chiron encontra finalmente a possibilidade de se tornar ele mesmo, como lhe tinha incitado Juan no dia em que o ensinou a nadar. A tensão dá então lugar ao apaziguamento e o filme pode terminar.
Indicado para nove oscares, "Moonlight" ganhou os de Melhor Filme, Melhor Ator Secundário (Mahershala Ali, que interpreta um traficante de droga) e Melhor Argumento Adaptado, para Barry Jenkins.
Magali Van Reeth
Diretora da Secção de Cinema da SIGNIS - Associação Católica Mundial para a Comunicação
In: "SIGNIS"
Edição: SNPC
Publicado em 10.03.2017
O caminho para casa, o caminho para o coração
O aclamado diretor chinês Zhang Yimou (dos filmes “Nenhum a menos”, “Lanternas vermelhas”) nos brinda com um belo filme sobre os pequenos e grandes sacramentos escondidos em nossa vida. No caso, na vida de dois jovens que constroem um amor na simplicidade do cotidiano de uma pequena vila no norte da China, nos anos 1950. O filme “O caminho para casa” é baseado em um romance de Bao Shi intitulado Remembrance.
O drama começa em preto e branco com a chegada de o Luo Yusheng (Sun Honglei), um homem de negócios da cidade, na pequena aldeia onde nasceu. Ele vem para enterrar seu pai, o professor da vila, que morreu em um hospital em uma aldeia vizinha. Sua mãe idosa, Zhao Di (Zhao Yuelin), quer que seja feito o ritual conforme as antigas tradições: o corpo do marido deve ser trazido para a aldeia, a pé, carregado por homens: assim, o espírito de seu marido sempre saberá o caminho de casa.
O filho começa, então, a reconstruir a história de amor de seus pais: o filme ganha um colorido vibrante e nos transporta para os idos de 1950, na China. A partir daí, mergulhamos em pequenos gestos, olhares e palavras que, delicadamente, tecem uma relação de amor. A jovem engendra formas de se aproximar do professor, recém-chegado à aldeia: prepara seus melhores pratos e espera que ele escolha o dela, na mesa de almoço compartilhada e provoca encontros “acidentais”. A angústia dos apaixonados mistura-se à paciência de quem espera ler os sinais no ser amado...
Há algumas sequências significativas que atribuem a alguns objetos um valor sacramental. Assim é com a longa cena da mãe, num tear antigo, fiando a mortalha do marido. Não há pressa, não há angústia. Só uma dedicação e cuidado nesse último gesto antes do enterro do esposo. Outro exemplo é o do artesão consertando uma tigela quebrada, uma peça sem valor nenhum e ao mesmo tempo inestimável porque, nela, uma jovem apaixonada servira uma refeição ao seu amado. O diretor gasta vários minutos nesta cena em que entram apenas objetos, mas que é densa de significado. É que não existem objetos "em si". Todos eles estão impregnados da presença humana, tão mais comovedora quando se está falando da morte, e portanto da ausência.
Enfim, “O caminho para casa” é um desses filmes que nos trazem sentimentos bons,nos enchem os olhos de lágrimas, nos emocionam e provocam uma “saudade de não sei do quê” e, sobretudo, nos fazem acreditar no amor...eterno.
Graziela Cruz é jornalista e professora de cinema.
Numa grande cidade do Japão, Keita tem 6 anos. É uma criança calma e delicada, que faz o possível por agradar aos seus pais, uma mãe disponível e sorridente, um pai demasiado absorvido pelo seu trabalho mas exigente quanto aos resultados escolares e artísticos do filho. A vida de Keita vai ser totalmente transformada a partir do momento em que os pais são convocados à maternidade onde nasceu. Quando nasceu, foi trocado com outro recém-nascido. Esta descoberta vai mergulhar duas famílias em momentos dolorosos e sentimentos complexos.
O realizador nipónico Kore Eda Hirokazu tem, na sua belíssima filmografia, vários filmes sobre a infância e a família. Crianças entregues a si próprias com “Nobody knows” (2004), reunião familiar agridoce em “Still walking” (2008), dois irmãos magoados pela separação dos pais em “I wish” (2011).
Desta vez, se as crianças estão novamente no centro da intriga do filme, é um dos pais que é a personagem principal. Interpretado por Masaharu Fukuyama, cantor e ator célebre no Japão, Ryota é aquele que esta história de troca de bebés mais vai transformar. Persuadido de que os laços de sangue são mais fortes do que tudo, ele procura a troca o mais rapidamente possível, provocando a surpresa alarmada do outro pai, para quem não se podem trocar crianças como quem troca de roupa…
Podemos lamentar que as duas famílias sejam tratadas de forma algo caricatural. Na casa dos ricos, a decoração e o vestuário dos pais e da crianças têm cores neutras, pelas quais o olhar desliza. Compreende-se que a mãe se tenha demitido do trabalho para se tornar dona de casa a tempo inteiro, papel que desempenha com uma submissão por vezes desconcertante para os espetadores ocidentais.
Na família mais modesta, pelo contrário, as roupas têm cores vivas, e mesmo berrantes nas camisas do pai, enquanto que a mãe não hesita em repreender o marido e zombar dele. Nesta casa conserta-se o que avariou e demonstra-se corporalmente o afeto, enquanto que na outra se consome e praticamente nunca há contato.
Apesar disto, “Tai pai, tal filho” é um filme tocante. Trata com justeza uma questão muito importante: como é que uma pessoa se torna pai? Recusando o melodrama, o realizador deixa aos seus personagens, e aos espetadores, tempo para caminhar, para digerir o inacreditável. Se cada família está pronta para receber as duas crianças, nenhuma se consegue ver sem o “seu” filho.
O sofrimento infligido às crianças não pode deixar os pais indiferentes. Lentamente, e com uma realização tão brilhante como discreta, cada personagem amadurece segundo os erros cometidos, adultos e crianças. Mesmo no Japão, onde a cultura social e familiar é diferente, a paternidade não é nem uma evidência nem uma questão puramente biológica.
Magali Van Reeth
O ano acabou selado por um belíssimo filme: Ida. Um nome de mulher, a história de duas mulheres, narrada em preto e branco. Uma temática muito conhecida e trilhada, mas filmada com extrema originalidade. Sutil, inteligente, fino e exigente para a mente e o coração do espectador. E de profunda beleza. Saber que ganhou prêmios em importantes festivais dá esperanças em relação ao gosto de nossos contemporâneos. Saber que está cotado para o Oscar de melhor filme estrangeiro nos põe em expectativa quanto à famosa Academia americana.
Ida começa e acaba em um obscuro e humilde convento, em uma cidade do interior da Polônia. A personagem central é Anna, aliás Ida, uma obscura jovem noviça, que se prepara para fazer os votos perpétuos de pobreza, castidade e obediência. Antes disso, porém, deverá, por ordem da superiora, empreender uma misteriosa e longa viagem em busca de sua identidade verdadeira. Pois, embora seja uma freira católica, Anna não se chama Anna e sim Ida e não nasceu católica, mas judia.
A única pessoa que pode revelar-lhe isso é sua tia Wanda, irmã de sua mãe, uma juíza do Partido Comunista, mulher de vida livre, que bebe e fuma muito, e tem uma multiplicidade de amantes que a marcam indelevelmente em seu já muito machucado coração. Após revelar à jovem sua verdadeira origem e nome, essa dupla improvável de mulheres parte para uma jornada em busca dos restos do passado, a fim de descobrir mais profundamente quem são.
Pawel Pawlikowski narra com grande maestria a história de Ida e Wanda em admiráveis interpretações de duas Agatas: Agata Kulesza (Wanda) e Agata Trzebuchhowska (Ida), as duas atrizes que encarnam a noviça e a juíza. Enquanto buscam o fio da narrativa de suas vidas e de seus antepassados, relatam em senso invertido a história da maior tragédia que se abateu sobre o século XX, o holocausto nazista.
Em hebraico bíblico, a palavra “holocausto” significa a oferta que sacrifica algo – normalmente um animal - o qual é inteiramente consumido pelo fogo e assim sobe como fumaça até Deus. Tratava-se de um sacrifício expiatório pelo perdão dos pecados, embora também fosse celebrado em ação de graças e adoração a Deus. O específico do holocausto era o fato de que a vítima devia ser um animal macho, sem defeito e ser inteiramente queimado, dele nada restando a não ser seu sangue, separado da carne e derramado sobre o altar.
No século passado, Holocausto passou a designar outro evento, coletivo, ganhando o nome hebraico moderno de Shoá. Enquanto o holocausto bíblico significava etimologicamente “todo queimado” (holos+kaustos), Shoá é sinônimo de catástrofe, destruição e identifica o genocídio ou assassinato em massa de cerca de seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, através de um programa sistemático de extermínio étnico praticado pelo Estado nazista e que ocorreu em todos os territórios ocupados pelos alemães durante a guerra.
Dos nove milhões de judeus que residiam na Europa antes do Holocausto, cerca de dois terços foram mortos; mais de um milhão de crianças, dois milhões de mulheres e três milhões de homens judeus morreram durante o período. Enquanto o holocausto bíblico oferecia sacrifícios de animais, o holocausto nazista sacrificava pessoas, famílias inteiras.
Em sua peregrinação, Ida vai em busca do que restou de sua família em meio ao horror dos anos do nazismo. Wanda intui o que se passou, mas nunca foi verificar de perto. A presença de Ida a leva até o lugar tenebroso onde, em cena tão terrível quanto bela, ambas devem devolver ao lugar adequado o que lhes foi roubado pela violência e a crueldade de um regime inumano.
Ambas mulheres e feitas para abrigar e alumbrar a vida, Wanda e Ida reagem a essa tremenda experiência de modos diferentes. Enquanto Wanda não encontra outra maneira de libertar-se do círculo infernal da morte senão pela própria morte, o caminho de Ida é diferente. Havendo testado a vida que nunca viveu e contemplado a morte dos seus que nunca conheceu, a pergunta que lhe resta é: “Por que estou viva e não morta?“
É em busca da plenitude desta vida que seu caminho a levará. Porém, irá de encontro a uma vida que consistirá no holocausto de si mesma, oferecendo-se a Deus e aos outros através da consagração religiosa. A noviça Anna/Ida, que não pronunciara seus votos, volta a seu convento. É no caminho para esta casa que o diretor a deixa, não fornecendo detalhes sobre seu futuro. Cabe a cada espectador escrever seu final.
No ano da vida consagrada, Ida é um filme que questiona profundamente cada um de nós sobre o sentido da vida, sobre a alteridade que convoca a uma doação total de nós mesmos, sobre opções de vidas que não são para todos, mas que certamente são para alguns e algumas. Às Idas de ontem e de hoje, que atravessaram as “Shoás” diversas que se apresentaram; àquelas que tiveram a coragem de responder a um chamado e viver uma vocação por inteiro, como holocausto de amor nos altares da vida cotidiana, minha admiração e meu carinho.
Maria Clara Bingemer
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