"O AMOR é ESTRANHO" –
Ira Sachs –
Estados Unidos/França – 2014
Ode ao AMOR no COTIDIANO
Cena final: É preciso o horizonte aberto e a luz do sol batendo no rosto dos jovens para que a esperança seja a última palavra. É preciso que eles caminhem e se sintam próximos para que existir e confiar sejam possíveis. Em suma, precisamos de esperança: horizonte e luz; precisamos existir e confiar: caminhar no afeto e na cumplicidade.
Música cantada pelo casal: “You’ve got what it takes”(Dinah Washington/Brook Benton). “Você tem o que é preciso”. E do que precisamos? A resposta pode ser escutada como um chavão, mas: Precisamos de AMOR! Todos! Todos nós! Em qualquer tempo e lugar, em qualquer idade e gênero! Sem exceção! E é o que os amigos celebram e cantam, após a cerimônia do casamento de Ben e George, que decidem oficializar sua união, após 39 anos de vida em comum. Valioso atentar ao fato de que o celebrante pede a todos os presentes que se esqueçam de sua vida pessoal e afazeres, e concentrem-se naquele momento único, oferecendo energia e amor ao casal; e ainda pergunta se eles se comprometem a honrá-los e apoiar no amor, vida e casamento, ao que todos alegremente dizem “sim”. Fundamental depreender disso que casamento não implica apenas as “duas pessoas” envolvidas, mas todos os que delas são próximos, e com elas partilham um viver relacional mais amplo. No entanto, no cotidiano temos que admitir que o mais comum é nos esquivarmos de ajudas mais concretas e pontuais. E mesmo o casal, homo ou hetero, muitas vezes termina por não saber o que é partilhável, aquilo que pode ir além do âmbito privado.
Após o casamento, George perde seu emprego. A escola religiosa em que ele ministra aulas e rege o coral demite-o após 20 anos de trabalho, devido à difusão de seu casamento oficial pelas redes sociais, inclusive de alunos do colégio. Embora a instituição soubesse de sua vida conjugal, a propagação do evento criou uma “saia justa” junto às autoridades, e a decisão foi tomada.
Como qualquer família que repentinamente se vê frente a problemas financeiros, decisões têm que ser tomadas. Decidem vender o apartamento; e pelo menos temporariamente não têm condições de alugar outro. Pedem a ajuda dos amigos. E eles a dão. É a partir daí que vamos acompanhar não apenas os caminhos difíceis de uma relação homoafetiva de quase 40 anos, mas também as oscilações do amor entre todos, o que não o faz “menos amor”, mas que o faz “amor real”. Vamos acompanhar a delicadeza e os perigos que sempre rondam nossa relação com quem quer que seja. Vão surgir momentos de aceitação, abnegação, entrega e doação, assim como de incômodo, esquiva, embates, frases irônicas e provocativas. Situações como: – Quem vai receber quem em sua casa? – “Ele é seu tio, mas quem o ‘agüenta’ o dia todo sou eu” (tensão entre o casal). - “Quero minha privacidade” (sobrinho incomodado com a nova presença, e vivendo momento de embate com autoridade e de busca de identidade de gênero). – Os problemas sociais de especulação imobiliária e impostos, dificultando retomada de vida. – Perder espaço pessoal e ter que ouvir música detestável. - Como dirá Ben: “Teria sido melhor não conviver tão próximo, para não ver o que preferia não saber”. – E a resolução surge, quando e de quem não se espera. Ben e George mantêm-se afetivos um com o outro.Mas a fragilidade ganha espaço, e Ben sucumbe a tanta mudança. Mas sua arte ficará; seu último quadro provavelmente será o começo de um reconhecimento tardio. O jovem busca reparação junto a George, entregando-lhe o quadro que o tio pintara de seu amigo (amigo?); entrega também a resolução de suas dúvidas de gênero?... Talvez...
Muito delicadamente o filme mantém o tema da questão de gênero, insinuada até mesmo nos quadros de nu feminino e masculino, no quarto de um casal homossexual (!). E o filme termina com o que se presume ser um casal jovem e hetero. O que podemos pensar? Talvez que a despeito de hoje falarmos clara e abertamente da vida homoafetiva, o padrão introjetado é o do casal hetero.
No entanto, o que de fato importa é o AMOR trocado entre todos, fio condutor do filme.
Maria Teresa Moreira Rodrigues
psicanalista, espiritualidade inaciana - Campinas-SP
O tempo que vivemos é favorável à revisitação das reconstruções fílmicas dos rostos de Jesus. Regresso a um filme menos frequentado, oJesus de Montreal do canadiano Denys Arcand, filmado em 1989. O realizador era conhecido sobretudo pelos seus documentários militantes ao serviço de causas sociais. O seu Jesus de Montreal, que ganhou o prémio do júri do Festival de Cannes, merece um aviso: não se trata de mais uma “vida de Jesus”. A narrativa é ingênua. Daniel Colombe é um jovem ator. Um padre, responsável por um santuário em Montreal confia-lhe a montagem de uma representação da Paixão de Cristo. Mas não pretende a reprodução dos modelos devocionais paroquiais, nem a repetição de uma encenação por ele próprio criada e repetida durante os últimos anos. Quer algo que promova a atualização dessas práticas da memória cristã, de modo a que a via sacra possa interessar à urbanidade moderna dos fiéis crentes. A remodelação terá passado os limites da elasticidade simbólica tolerada pela instituição. As autoridades eclesiásticas, vigilantes, acabaram por interditar essa versão atualizante. Nesse confronto, e em plena representação, o protagonista acaba por ser vítima de um acidente com a cruz. O traumatismo vai conduzir à “morte do artista”. O ator transmuta-se em atuante crístico, que atualiza em si próprio a memória de Jesus – essa colagem do itinerário biográfico do ator ao destino pascal do personagem Jesus é, em meu entender, a chave da narrativa. A remodelação daquela representação da Paixão permite criar um filme (teatro) dentro do filme, numa progressiva sobreposição até à identificação final de uma única narrativa. Tal identificação é sugerida e antecipada pela figura de uma mulher que continuamente interrompe a representação com verdadeiras confissões de fé, identificando ator e personagem (vestígios dos modelos de identificação da soap opera). Descubram-se os meandros desse percurso de identificação.
Chamamento e discipulado. Daniel Colombe, primeiro prêmio do Conservatório, com estágios internacionais, chama para a sua companhia uma atriz sem palco que ocupa parte do seu tempo na distribuição da “sopa dos pobres”, um ator que dá voz a dobragens de filmes pornográficos, um outro que faz a locução de documentários televisivos, e uma atriz/modelo que faz publicidade. O padre tem um lugar charneira. Ele será o fariseu vigilante da instituição, mas ele próprio, apaixonado pelo teatro e por uma mulher, não tem a coragem necessária para refazer a sua vida.
O evangelho. O filme de Denys Arcand transporta o rasto de uma vulgata teológica, corrente nos anos setenta e oitenta em muitos meios cristãos, que atualizava o velho axioma: a Igreja traiu os ideais do Reino de Deus. A descontinuidade entre o evangelho do Jesus histórico e o Cristo ortodoxizado pela instituição tornou-se o mote de muitas querelas teológicas, já desde o século XVIII. No trabalho de releitura da Paixão, o encenador serve-se das indicações dadas por um teólogo que pediu o anonimato, indicações que pretendem corrigir a narrativa religiosa visando quer a verosimelhança histórica, quer a atualização desmitologizante. Jesus é o filho natural de um soldado romano. Pilatos é agnóstico. Dos Evangelhos recolhe-se o discurso profético que anuncia a recuperação dos excluídos, a condenação dos poderosos e propõe um novo código, o mandamento novo – precisamente, a narrativa religiosa mais facilmente apropriável pela linguagem eticizada das sociedades tardo-modernas. Quanto à ressurreição de Jesus, Denys Arcand encena o axioma bultmanniano e pós-bultmanniano: Jesus ressuscita na fé dos discípulos.
As tentações. A sedução do maligno vem na figura de um advogado especializado na gestão de carreiras artísticas, Richard Cardinal. Num restaurante panorâmico, Daniel Colombe é chamado a responder a propostas arrebatadoras que o transportariam aos altares do show-business. Cardinal é persistente: «Tento fazer-lhe compreender que, com o seu talento, pode ter esta cidade a seus pés».
A expulsão dos vendedores. O zelo do Templo é vertido na reivindicação de respeito pela arte e pela pessoa dos artistas, encenado numa sequência em que Daniel Colombe destrói o equipamento montado num casting de atores para a campanha de publicidade de uma cerveja – testemunho exemplar da cólera profética («A minha casa será chamada casa de oração para todas as nações. Mas vós fizestes dela uma caverna de bandidos» – Mc 11, 17).
Conflito com os poderes. Muitas leituras teológicas e espirituais das narrativas cristãs privilegiam tudo o que diz respeito ao conflito entre Jesus de Nazaré e a religião do Templo. Esse conflito entre o profeta e a instituição sacerdotal verte-se aqui no confronto entre a carismática companhia teatral e os poderes eclesiásticos: «As instituições vivem mais tempo que os indivíduos», dirá o padre, numa tradução da lógica política do sacrifício, tal como na narrativa cristã («É melhor que um só homem morra pelo povo do e não pereça a nação inteira»- Jo 11, 50). Esse conflito contrasta com a recepção do público. O entusiasmo é a nota dominante entre os habitués, os críticos e o público anónimo (não falta um crente que mistura a narrativa cristã com os segredos da ufologia num caldo esotérico).
A cruz. O instrumento de condenação e salvação para os cristãos é descrito segundo critérios arqueológicos e historiográficos, mas não deixa de ser o lugar crucial de elaboração simbólica da metáfora viva que alimenta esta cinematografia. Numa cena trágico-cómica, os seguranças procuram pôr termo a uma representação não autorizada. Um indivíduo presente no público, de proporções avantajadas, toma a defesa dos atores injustiçados, mas o zelo provocará acidentalmente a queda da cruz, fazendo do elemento cenográfico autêntico instrumento sacrificial. A queda provocará um traumatismo craniano a Daniel Colombe. A crucifixão passa-se fora dos muros da cidade. Daniel não tem lugar nos hospitais centrais, sendo obrigado a uma passagem por um hospital periférico onde abundam filas de doentes por todos os corredores.
A descida aos infernos. O ator recupera ainda o suficiente para abandonar o hospital pelo próprio pé. Numa estação de metropolitano, um não-lugar urbano e subterrâneo, tem um discurso terminal à espera do (último) metro que passa – discurso terminal antes de mais porque apocalíptico (“o mundo das trevas e da solidão”). Esse é o momento de interceção em que a identificação crística do ator Daniel Colombe se consuma – com mais ousadia teológica poderia falar-se de incarnação. Se antes as narrativas permaneciam paralelas, agora é o próprio ator, sem a máscara da personagem, que se mostra profeta de um evangelho apocalíptico para os homens e mulheres da metrópole contemporânea. O corpo moribundo regressa ao hospital para uma intervenção sem sucesso. Daniel morre, mas para dar vida. Os seus órgãos inscrevem-se no circuito da dádiva permitindo que a alegoria conquiste conotações salvíficas.
A Igreja. A companhia teatral sente-se órfã do seu fundador. O advogado-sedutor-maligno tem a chave do futuro: a instituição de uma companhia teatral com o nome do ator-mártir, perseguindo a perpetuação dos seus valores éticos e estéticos.
Jésus de Montréal, Prémio do Júri no Festival de Cannes de 1989. Realização: Denys Arcand. Com: Lothaire Bluteau, Catherine Wilkening, Johanne-Marie Tremblay, Rémy Girard, Robert Lepage, Gilles Pelletier, Yves Jacques. Diretor de Fotografia: Guy Dufaux. Música: Yves Laferrière. Produtores: Roger Frappier, Pierre Gendron. Produção: Max Films Productions, Gérard Mital Produtions, Office National du Film du Canada.
(Revisitação abreviada de: Alfredo Teixeira, «As instituições duram mais tempo que os indivíduos»: uma leitura do Jésus de Montréal, in: Susana Bastos Mateus & Paulo Mendes Pinto (org.), A sétima arte no sétimo céu: o cinema e a religião, Lisboa: Ed. Firmamento, 2005, 81-83)
Alfredo Teixeira
Universidade Católica Portuguesa
Publicado no SNPC em 26.03.2015
Um filme para crianças que ensina aos adultos que no fim há sempre um começo.
Na pré-história os Croods são uma família de seis que vive ao abrigo do sentido de proteção do patriarca. Confinando-os à caverna onde habitam e a uma escassa área em seu redor, Grug, o pai, crê ser esta a melhor forma de cuidar dos seus, não os expondo a nenhum tipo de ameaça... desnecessária.
Porém, quando um fenómeno incontrolável destrói a caverna e o idílio em que Grug imaginava poder viver para sempre, não resta aos Croods senão partirem em busca de um novo lugar para viver. Assim começa uma grande aventura que, sem evitar perigos lhes, proporcionará inúmeras descobertas e ótimas surpresas.
Desde 1998 que a Dreamworks Animation mantém em pleno o seu ritmo de produção cinematográfica pensado para o público mais novo, destacando-se filmes como o primogénito "Ant Z - Formiga Z", "O Príncipe do Egito", "Shrek", "Pular a Cerca", "Madagáscar", "O Panda do Kung Fu" e, mais recentemente, "O Gato das Botas".
Na sua linha, variando embora os estilos, temas abordados e equipes encarregues da concretização de cada projeto, permanecem o espírito de aventura e a preocupação de uma mensagem pedagogicamente válida. Os filmes da Dreamworks veiculam valores universais como o espírito de entreajuda, a amizade, a abertura ao outro, sobretudo o desconhecido ou diferente, o respeito pela natureza, as virtudes da esperança ou da caridade e a importância do sentido para a vida – o que normalmente move as personagens a ultrapassar o que crêem ser os seus próprios limites.
Com pouco mais de hora e meia de animada aventura, esta história de risco em que os ganhos resultam sempre superiores às perdas não evita o facilitismo de estereótipos que pouco contribuem para diferenciar o cinema como proposta de genuína interpelação humana.
Por outro lado o filme cumpre uma fórmula certeira com a passagem de uma mensagem positiva relativamente à disponibilidade para o desconhecido e à importância de se sair da zona de conforto para se poder ir mais longe – como pessoa e como família. Rejeitando o heroísmo individualista e transformando o que parece ser "o fim" num surpreendente "reinício". O que nos tempos atuais faz bom sentido.
Margarida Ataíde
In Agência Ecclesia
Wadjda, uma menina de dez anos de idade, vive num subúrbio de Riade, capital da Arábia Saudita. Não obstante o conservadorismo da sua família, que preza o recato da mulher desde o nascimento, Wadjda é uma criança extrovertida, afoita e decidida, a quem é difícil impor limites na sua condição feminina e visão infantil. É o caso das brincadeiras com alguns amigos, como Abdullah, de que, mesmo mal vistas pela família e vizinhança, Wadjda não prescinde.
Precisamente na sequência de uma discussão com Abdullah, Wadjda aposta que é capaz de andar tão bem de bicicleta quanto ele. Uma prática olhada como desvirtuosa para as raparigas, transforma-se num sonho a conquistar. Wadjda está decidida a consegui-lo, mas convencer a família e a comunidade de que uma brincadeira de rapazes não põe em causa nem a sua feminilidade nem a sua virtude não vai ser fácil.
Aberto um concurso de memorização e recitação do Corão na escola, Wadjda encontra a oportunidade de conciliar o seu desejo com as expetativas que sobre si recaem…
Primeiro filme realizado por uma mulher na história do cinema da Arábia Saudita, “O Sonho de Wadjda” é uma proposta atraente para um Ocidente com vasta criação cinematográfica no feminino. Haifaa Al-Mansour, oitava filha do poeta Abdul Rahman Mansour, cresceu com a sétima arte graças à visão do seu pai e a um circuito maioritariamente clandestino de vídeo, num reino, o segundo maior estado do mundo árabe, onde não existem salas de cinema.
Formada em Literatura pela Universidade Americana do Cairo, prosseguiu o mestrado em Estudos Cinematográficos e Realização na Austrália, tendo apresentado esta sua primeira longa metragem no festival de Veneza, em 2012, com aclamação do público, da crítica e de diversos júris, arrecadando três prémios. A estes, outros se têm somado à passagem do filme por países tão diversos como o Canadá, Noruega, Estónia, Estados Unidos, Suécia, Omã e África do Sul.
Inevitavelmente, a história de Wadjda tem algo de biográfico, não obstante a rara sorte da realizadora em ter um pai e uma mãe atentos aos sonhos das filhas, os primeiros a encorajá-las a estudar e a perseguir a sua vontade, sem ceder à pressão do meio cultural em que cresceram, o que lhes custaria algum isolamento.
Precisamente por ter experimentado a constrição humana da condição feminina no seu país, ditada por um rígido normativo cultural, mas também a possibilidade de dilatação, a personagem criada por Haifaa, igual a tantas meninas cheias de potencial que sabe existirem, pelo menos, na sua cidade natal, surge como porta de esperança, consistentemente aberta, para uma Arábia Saudita mais justa e igualitária. E para um mundo, desperto pelo cinema, mais atento a esta realidade.
Bom mote para o diálogo inter-religioso, “O Sonho de Wadjda” ganha pelo sentido positivo que prevalece no tratamento de uma realidade certamente trágica para as mulheres que ousem desafiar o código moral sob o qual nasceram, pela integridade da protagonista e pela justa combinação de vigor e elegância na construção narrativa.
Margarida Ataíde
Grupo de Cinema do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura de Portugal
(in: SNPC 23/04/14)
“APROXIMAÇÃO”
Diretor: Amos Gitai – “DISengagement”,
Alemanha/Itália/Israel/França, 2007
115 minutos
- Aproximação do que?! Do des-engajamento pode surgir uma aproximação?!
Saio do cinema. Ouço, no carro, a trilha sonora do filme “Bleu”, em que Juliette Binoche faz a esposa do maestro e compositor da sinfonia de comemoração da Unificação da Europa. Um comboio do exército brasileiro para, do meu lado, no sinaleiro. Olho os rapazes da cabine. Penso no quanto nós, brasileiros, estamos distantes de conflitos armados, e não temos a dimensão do que significa a ameaça de não ter, ou ter que perder, a terra em que se assenta os pés. Penso na Unificação da Europa e nos seus quantos e tantos problemas políticos, sociais e econômicos, os quais também não alcanço compreender. E penso na milenar questão belicosa no Oriente Médio. E me entristeço.
Mas, logo me lembro do BEIJO, nas cenas iniciais. A mulher, palestina. O jovem, judeu. De onde você é? Você porta um documento que lhe dá a passagem entre os países? Palestina. Onde está? Judeu. É de onde? O cobrador italiano: mas de onde você é, precisamente? Quando tratam de questões várias, é em inglês. Quando ela diz: “por amor”, o faz em francês. Quando querem falar só entre eles, é em hebraico (?). Qual é a língua que nos cabe falar? Como nos comunicaremos? Entre tantos idiomas sabidos e falados, mostrando o trânsito entre países e línguas, entre ele e ela surge um idioma simples, básico e unificador: o beijo. Quisera fosse possível resolver tantos conflitos entre povos, países, homens e mulheres, com o que nos é tão necessário e imprescindível: o afeto! E por aí seguirá o filme: família, morte, busca, desencontro, reparação, separação, exército, poder, oração, educação, continuidade...
Há um drama de consciência familiar e pessoal, que se entranha num drama maior, de consciência e responsabilidade internacionais, entre povos e nações. Amos Gitai desfila sua sensibilidade, densidade e seriedade à nossa frente. Ele parte do fato real da evacuação dos judeus da Faixa de Gaza, em setembro de 2005, e o entremeia com fatos familiares e pessoais, em que estes são também o pano de fundo do drama político Europa (Ana) e Oriente Médio (Uri). Fritz, o pai falecido de Ana e Uri, deixa planejado não só seu testamento, como também seu funeral. A canção da terra, de Mahler, é a comovente despedida para sempre. O compositor é tcheco, a soprano é estadunidense (Barbara Hendricks), Ana é a filha francesa-judia, Uri é o filho adotivo-judeu que vive e luta por Israel. EUA (Barbara) e Europa (Ana) fazem uma “dança” no velório. Europa (Ana) se insinua para Israel (Uri). O grande professor, que não sabia direito de suas origens, nasceu em 1925, nos EUA, e não quis que sua filha falasse hebraico. O que todos estes pequenos detalhes nos querem dizer, política e socialmente? Mais do que alcanço. Mas, não estão aí à toa. Na periferia de Avignon, há moradores de rua e conflito com a polícia. Imigrantes? Parece. E lá estão eles, no subsolo da “grande velha casa burguesa européia”, a dormir, amontoados, sem identidade, e com a bebida na mão.
Ana tenta deixar sua parte da herança para Uri. Drama de consciência da Europa com Israel/Palestina? Pode ser. Mas, Ana (mulher e continente) terá que se defrontar com a filha que foi gerada, e abandonada, pois ela é herdeira do avô, que a conheceu e adotou. Ana terá que mergulhar na zona de conflito. E vai! Claro que aqui podemos pensar, também, nas marcas que um passado mal encaminhado podem deixar no presente, impedindo um real crescimento de si mesmo (Ana se diz preguiçosa, burra, incapaz), e cobrando, no futuro, reparação e enfrentamento. E Ana quer encontrar sua filha Dana. E Uri a leva para o encontro, mas este terá que ser feito por ela, sozinha. Lindo o enquadre de foto em que Ana está no cais, sozinha, lenço esvoaçante, tendo o casco do navio como fundo. E o carro alemão, Volvo, destruído pelo soldado sem cuidado. Que alusão será essa? Valiosas as cenas do grupo dançando, no deserto. Canto e dança de resistência? A oração e a tradição judaicas, homens e mulheres, no Templo. O exército que avança e a religião que resiste. Grupos que se opõem? As crianças pintam o tronco de árvore seca. A marca dos ancestrais? A beleza do poema que o palestino declama: ... transeuntes entre palavras, saiam daqui... pedras de nossa terra construíram o telhado do céu... Só restam o choro e o abraço: uma aproximação?
Maria Teresa Moreira Rodrigues
Psicanalista - Espiritualidade Inaciana
01.11.2013
“SOUL KITCHEN”
Diretor: FATIH AKIN
– Alemanha – 2009
É preciso cozinhar a vida na “cozinha da alma”
Saí da sessão muito bem, com a alegre satisfação que nos traz um filme bem feito, envolvente, coerente, atual, urbano e profundamente sério, sob uma fachada cômica. Achei que não dava para escrever algo que me envolvesse e que lhes trouxesse o que sempre busco, que é ajudar a que a sensibilidade própria de cada um de vocês aflore, ao “entrar” na que aflorou em mim. No entanto, no decorrer da manhã de hoje, o filme foi ganhando contornos. Tentarei partilhá-los: de fato, do começo ao fim, ele aponta àquilo que veio: mostrar o desenrolar de um viver que pode encontrar um centro e um rumo melhor. Não à toa, o sobrenome dos nossos personagens gregos é Kazantzákis. Não sabia o que me lembrava. Ah, lembrei! Nikos Kazantzákis, de “Zorba, o grego”! E de “Ascese – os salvadores de Deus”!
Foi-se fechando o círculo: ordenar a vida, dar rumo e, além disso, vencer o stablisment, o furor do capitalismo selvagem e o da desumana expansão e especulação imobiliárias. Ou seja, tudo se desenrola sob um plano individual (Zinos e sua vida) e um coletivo (Z. como a classe social que está à margem do lucro a qualquer preço. Vejamos o plano coletivo: Z. é grego, “duro”, dono de uma espelunca de restaurante, e cheira a óleo de cozinha (Europa 3º. mundo); namora Nadine, alta, magra, elegante, olhos claros, neta de uma grande senhora (Europa 1º. mundo), e que vai para a China seguir carreira (Mundo em desenvolvimento, mas já rico e potente). Z. está à margem; a comida do seu restaurante reproduz o que há de pior no “fast food”, mas todos se “acostumaram” com esse “american way of life”. Digamos que aos “pobres” estimula-se com o que há de pior. No entanto, o “rico” que poderia ter o que há de melhor, está arrogante e ignorante: no restaurante chique, ele quer “gazpacho” quente (!); não reconhece tradição, não sabe o que é o que, e vale colocar tudo no “micro-ondas”! Z. é a Europa pobre, agonizante, “sem coluna” (a dor impede de estar de pé!). Com ele estão: o cozinheiro Shayn, talvez o guardião das tradições, através de sua culinária, com a qual resiste e não faz concessões. A garçonete Lucia, luz, que representa a Arte: a pintura, a literatura e é livre. O irmão Ellyas, talvez o esperto, mas ingênuo e primitivo; eterna criança viciada, que não muda, apesar do amor recebido. A figura mítica do velho, o Sócrates, guardião do barco, dos valores ocidentais; como uma Arca de Noé, pode sempre ser fonte de um mundo novo. Voltando ao enredo: O Governo exige suas taxas, a qualquer custo. Seu amigo (?) de escola, hoje grande especulador imobiliário (Brenan Thurman?), monta um esquema para conseguir comprar o barracão, restaurante-memória de uma época, a preço de banana. E a Vigilância Sanitária dá o golpe fatal em Z.. A bancarrota parece ser o inevitável. Acredita que o que lhe cabe é ir até N., ou também, ir para uma aliança com os asiáticos. Mas, em boa hora, “salvo” pela morte da “Velha Avó Europa”, encontra N. que retorna para o enterro. E ele não embarca. No entanto, ao “pegar sua bagagem-vida, sua coluna quebra”! Quase a ponto de ser “operado”, a um custo que não pode pagar, sai do “hospital”; é socorrido por Anna e pelo curandeiro turco. E volta e insiste em fazer contato com N.-Velha Europa. Vai ao enterro. Cena desastrosa e cômica!
Quando Europa e China dão-se as mãos (N. e o chinês), o Grego avança e derruba até o caixão! A Europa-pobre pode “quebrar” a Europa-rica! Então, essa se curva e reconhece que não deveria ter feito o que fez com seus “irmãos pobres” – Nadine explica-se a Zinos e empresta-lhe sua riqueza; assim ele poderá afrontar e enfrentar a “gula” dos especuladores e comprar com dignidade o que lhe é de direito. Fantástico! E é o botão do casaco de Sócrates que tampa a garganta do “homem da Bolsa” que, impedido de falar, permite que Z. “bata o martelo” e recompre sua propriedade por apenas 0.15E a mais!
- há muito a dizer, mas não há mais espaço! rsrrs... acrescentem o que já lhes ocorreu! -
Maria Teresa Moreira Rodrigues
Psicanalista – Espiritualidade Inaciana
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