Por vezes, dentro de uma casa, a solidão mais invisível é a dos jovens. A solidão não se mede aos palmos — isto deve ser explicado a quem pensa que ela está confinada ao mundo dos adultos. É certo que, a partir de certa idade, e de uma sucessão de acontecimentos desamparados com os quais se colide, surge esse coágulo da alma, que luta para se tornar fixo. Não admira que os adultos farejem mais recorrentemente a solidão uns nos outros, lhe reconheçam os códigos, despistem os seus ziguezagues... Mas, por serem adultos, podem também fazer uso de mais recursos internos, de forças que possuam já ou que procurem, para fazer-lhe frente. A vulnerabilidade dos (mais) velhos é ainda outro discurso, porque aí a solidão, não raro, é um eufemismo para ocultar a palavra abandono. E, sobre isso, as nossas sociedades precisariam de refletir melhor. Mas a solidão dos (mais) novos é, porventura, aquela mais submersa, mais enigmática e confusa para os próprios sujeitos, aquela sobre a qual falamos menos. Possivelmente só daqui a muitos anos, por exemplo, vamos perceber como é que a geração das crianças e adolescentes de hoje viveu esta experiência da pandemia, que medos e incertezas se alojaram neles pela primeira vez ou que perguntas sem resposta se fizeram. Só mais adiante compreenderemos o que representou para eles o fecho abrupto das escolas, a distância dos amigos e coetâneos ou este regresso a uma intensidade da família nuclear, que antes talvez não haviam tido. Contou-me uma amiga que um dos filhos à mesa, tentando interpretar a situação extraordinária que a família está a viver, disse: “Acho que estamos aqui a construir memórias.” Todos olharam para ele, espantados com a grandeza inesperada da definição na boca de um fedelho, mas seguramente aquelas palavras corresponderam dentro dele a emoções, a um esforço concreto de aproximação a uma realidade complexa, a um apaziguamento que encontrou quando foi capaz de justificar a estranheza com uma missão que unia — e unirá depois ainda — toda a sua família, pois as memórias são, como se sabe, moedas para ser usadas no país do futuro.
Muitas vezes, quem os vê armados de tecnologia, estirados pela casa, aparentemente fechados nos seus interesses, com a cabeça noutro lado, a responder com monossílabos a frases inteiras não imagina que esse é o modo possível de se protegerem de um mundo que sentem em derrapagem. Que quando vagueiam numa passividade onde só vemos desnorte e indolência eles estejam engolidos, com uma dolorosa reverberação que não captamos, pelo indizível espavento de se terem olhado ao espelho, e de se interrogarem como serão ao acordar no dia seguinte, e no mês seguinte. E que quando parecem implicativos e agressivos estão, a bem dizer, apenas assustados. Nós adultos esquecemo-nos depressa de como as vidas são fragilmente construídas sobre certezas cuja evidência depende da confiança, e que esta é um tão longo e feliz e sofrido caminho.
Ganharíamos tanto se em vez da pressa dos juízos nos déssemos ao trabalho de sintonizar com a solidão dos outros, aprendendo assim a reconciliar-nos com a nossa. A solidão é uma das primeiríssimas experiências de humanidade que fizemos. Lembro aquilo que escreveu a pedopsiquiatra Françoise Dolto: “A solidão dos bebês existe. Eles têm necessidade de que lhes falem, de que lhes cantem, mesmo se ao longe. Ouvem uma voz, não estão completamente sozinhos. O ser humano precisa de companhia. O espaço de um ser humano, desde o nascimento, precisa de ser povoado pela presença psíquica de outro ser para o qual ele existe.”
Dom José Tolentino Mendonça
In: imissio.net 15.06.2020
Quando fomos quase todos para casa por causa da pandemia, foi amplamente propalado que apenas se mantinham em funcionamento os “serviços essenciais”. Fornecimento de água, eletricidade, gás, transportes, hospitais, segurança, recolha e tratamento de resíduos, hiper, super e minimercados, farmácias, bancos, correios, órgãos de comunicação social. Enfim, o que garantisse que a vida como a conhecemos não colapsaria completamente e que algum grau de segurança e de estabilidade estaria assegurado.
Naturalmente que nada foi normal dentro desse “grau mínimo”, desde a corrida ao papel higiênico (cuja procura aumentou 75% face ao período pré-pandemia e a outros bens de primeira necessidade), como o fermento (a moda de fazer pão e bolos lêvedos em casa pegou de estaca no confinamento).
Confesso que nunca estive muito preocupada com as faltas nos supermercados, não sei se por ser incauta, por acreditar na providência ou por confiar no eficaz funcionamento do mercado. Mas abasteci-me previdentemente de ibuprofeno (versões infantil e adulta) e livros para os habitantes de casa.
Em jeito de provocação ou de aforismo, foi sendo insinuado que a circunstância provocava a distinção entre o que é essencial e o que é meramente acessório, entre o que realmente importa para o funcionamento da sociedade e o que é dispensável. Mas o óbvio rapidamente veio à tona e nele amarrada a certeza da “utilidade do inútil” (roubando a Nuccio Ordine o título – e não só – de uma obra muito aconselhável). Com teatros e cinemas fechados, com milhares de eventos culturais cancelados, a cultura, em múltiplas expressões, é uma das protagonistas da quarentena. O que seria de nós nestes dias sem filmes, sem séries, sem música, sem livros, sem wikipedia, sem priberam, sem receitas de culinária, sem poesia?
Não vivemos só das linhas escritas antes disso tudo mas também das que se escreveram durante estas semanas. Inventaram-se concertos online, criaram-se diários gráficos. Os coros cantaram a partir de muitas casas, os bailarinos dançaram coreografias trinchadas em palcos improvisados. Em cada casa, as tintas encheram telas e papéis. Barro e plasticina ganharam novas formas. Profissionais e amadores a fazer o que nos torna mais humanos porque é isso que nos distingue dos não-humanos.
Confesso: não li os dois livros que comprei para mim. Entre as edições disponibilizadas gratuitamente, as playlists geradas para diferentes ocasiões, as exposições virtuais, os folares e a massa fresca, afinal não foi preciso. E o ibuprofen também não.
É possível sair disto mais humanos. Muito graças à cultura e ao que ela transforma em nós, longe da discussão sobre o que é útil e inútil.
Cito Henry Miller, afirmado e reconhecido descrente e anti-cristão: “A arte, como a religião, não serve para nada a não ser para mostrar o sentido da vida”.
Clara Almeida Santos
In: opontosj.pt 05.06.2020
Tenacidade
s.f. Qualidade do que adere fortemente a uma superfície.
O que leva alguém a arriscar a sua vida para subir o Evereste? Ou escalar a solo (sem corda) uma parede de 1000 metros? Será simplesmente pela razão que George Mallory terá dito ao New York Times em 1923 - «Porque está lá.»- ? Penso noutra razão. Tenacidade.
Entre os significados de tenacidade encontra-se esta qualidade do que adere fortemente a uma superfície, como a essencial para escalar a solo qualquer parede. Mas a aderência maior é a interior diante da escolha de se ter colocado numa situação de vida ou morte dependente dessa aderência.
Por outro lado, a tenacidade é também uma grande persistência, perseverança e afinco, como quem escala o Evereste sabendo que ao chegar ao cume faz uma experiência de unidade com a montanha como nunca antes. Mas foi preciso a persistência para vencer a resistência de cada passo, perseverar diante da gradual dificuldade em respirar e o afinco de manter todo o olhar e vontade fixo no cume. Também a vida está em risco.
Parece haver uma ligação entre tenacidade e a atitude de fazer tudo como se a nossa vida dependesse disso. É uma qualidade que raramente entra no horizonte de tudo o que fazemos no quotidiano, mas, talvez, por não vivermos tudo como se a nossa vida dependesse disso.
Podemos criticar, procrastinar, viver distraídos, e passar toda uma vida sem sair realmente do sofá, e arriscar viver fora da nossa zona de conforto. Mas será que vivemos realmente quando a vida não está em risco?
Uma vida plena atinge-se com a totalidade daquilo que somos.
O que ousa escalar procura-a com o corpo.
O que ousa escrever procura-a com a mente.
O que ousa servir procura-a com o espírito.
Tenacidade é a qualidade de viver uma vida plena com o corpo-mente-espírito que nos caracteriza. É o que permite fazer dos atos simples, arriscados, mas totalmente vindos de um dom-de-si, gestos da grandeza que o ser humano é chamado a ser.
«A coisa mais difícil é a decisão de agir, o resto é, meramente, tenacidade.» (Amelia Earhart, primeira mulher a sobrevoar sozinha o oceano Atlântico. Desapareceu em Julho de 1937)
Mas não será a tenacidade uma decisão em ato?
Miguel Oliveira Panão
In. imissio.net 04.06.
O Pentecostes não se deixa cingir pelas nossas palavras. A própria liturgia multiplica as línguas para o dizer: na primeira leitura (Atos dos Apóstolos 2,1-11) o Espírito arma e desarma os apóstolos, apresenta-os como inebriados por alguma coisa que os atordoou de alegria, como um fogo, uma divina loucura que não podem conter. E isto após a narrativa da casa de chamas, de um vento de coragem que escancara portas e palavras. E a primeira Igreja, enrocada na defensiva, é lançada para fora e para a frente.
A nossa Igreja, tentada, hoje como então, de enrocar-se e fechar-se, porque em crise de números, porque aumentam aqueles que se declaram indiferentes ou ressentidos, sobre esta minha Igreja, amada e infiel, vem a sua paixão que nunca se rendeu, a sua energia imprudente e belíssima.
O Salmo responsorial (103) olha para longe: «Do teu Espírito, Senhor, está cheia a Terra». Uma das afirmações mais belas e revolucionárias de toda a Bíblia: toda a Terra está grávida, cada criatura é como que grávida de Espírito, mesmo se não é evidente, mesmo se a Terra nos aparece grávida de injustiça, de sangue, de insanidade, de medo.
Cada pequena criatura está preenchida do vento de Deus, que semeia santidade no cosmo: santidade da luz e do fio de erva, santidade da criança que nasce, do jovem que ama, do ancião que pensa. A humilde santidade do bosque e da pedra. Uma divina liturgia santifica o universo.
A terceira via do Pentecostes é dada pela segunda leitura (1 Coríntios 12,3b-7.12-13). O Espírito vem consagrando a diversidade dos carismas: beleza, genialidade, unicidade própria para cada vida. O Espírito quer discípulos geniais, não banais repetidores. A Igreja como Páscoa pede unidade em torno à cruz; mas a Igreja como Pentecostes quer diversidade criativa.
O Evangelho (João 20,19-23), por fim, coloca o Pentecostes no entardecer da Páscoa: «Soprou sobre eles e disse: recebei o Espírito Santo». O Espírito de Cristo, que o faz viver, vem para nos fazer viver, leve e quieto como um respiro, humilde e obstinado como o batimento do coração.
O poeta Ovídio escreve um verso fulgurante: “Est Deus in nobis”, há um Deus em nós. Esta é toda a riqueza do mistério: «Cristo em vós!» (Colossenses 1,27). A plenitude do mistério é de uma simplicidade deslumbrante: Cristo em vós, Cristo em mim.
Aquele Espírito que incarnou o Verbo no ventre de Santa Maria flui, inesgotável e ilimitado, continuando a mesma obra: fazer da Palavra carne e sangue, em mim e em ti, fazer-nos todos grávidos de Deus e de genialidade interior.
Para que Cristo se torne minha língua, minha paixão, minha vida, e eu, como os loucos e ébrios de Deus, me coloque a caminho atrás dele, «o único pastor que pelos céus nos faz caminhar» (D.M. Turoldo).
Começamos a entrever o fim da epidemia que transtornou profundamente os nossos estilos de vida diários. Aconteceu algo de imprevisível, de realmente impensável. Vivíamos num mundo doente, mas não nos aflorava a ideia de podermos adoecer tão rapidamente e desta maneira.
E eis a inesperada vinda de um mensageiro devastador, o coronavírus. Alguns virólogos colocavam remotas hipóteses sobre a possibilidade de uma tal irrupção. Só alguns, sentinelas capazes de discernir os passos da humanidade, denunciavam, quase profeticamente, ainda que de maneira confusa, que «corríamos em excesso, devíamos deter-nos». Sem uma mudança concreta – diziam – aceleraríamos uma crise de proporções desconhecidas e impensáveis.
É significativo que este flagelo se tenha abatido sobre uma sociedade treinada desde há décadas a pensar a “crise”, exercitada a combate-la sob diversas formas: a crise económica, a financeira, a do tecido social. Tudo isto no quadro dos nossos países ricos, que fazem parte do “primeiro mundo”, onde reinam o mercado, o desenvolvimento, o consumo, a vida opulenta, enquanto permanecem cada vez mais ocultos os débeis, os pobres, os “descartados”. E assim as porções de humanidade “alegres e vencedoras” tiveram de acertar contas com a fragilidade, o sofrimento, até a uma morte desesperante.
Neste tempo escutei muita gente, na solidão do meu eremitério pensei muito e procurei interpretar o que estava a acontecer. Na escuta percebi muito medo, até angústia, por este vírus que andava entre nós invisível e desconhecido; um vírus perante o qual não são possíveis as defesas típicas dos ricos, de quantos podem contar com o seu poder.
Em particular aqueles com mais de setenta anos, massacrados pelos boletins dos mortos e da exigência de se meterem “na cauda da fila” em relação aos mais jovens e fortes, passaram por momentos de abatimento. Quase todos pensaram na possibilidade concreta de serem contagiados e morrer. Nunca – diziam-me – tivemos a morte tão presente, nunca estivemos tão conscientes da nossa fragilidade. Desta maneira, a crise tornou-se uma pergunta sobre a fragilidade e sobre o limite da morte, a que ninguém pode fugir.
Também descobrimos os limites da ciência, da medicina, de muitas realidades que antes nos pareciam garantias tranquilizadoras, a nível pessoal e social. Muitos dizem: «Livramo-nos dela. Depressa festejaremos!». Tal reação vital é justificada, mas não deve obscurecer em nós o sentido do limite que (re)descobrimos, nem o acontecimento da morte, que aguarda cada um e pode chegar imprevistamente.
Não creio que nesta crise nos tornamos automaticamente melhores, mais solidários, mais capazes de atenção ao outro. Issto depende da nossa vontade e das nossas opções, a serem renovadas a cada dia. Mas se hoje estamos mais conscientes do limite e da morte, então – como afirma o filósofo humanista Salvatore Natoli – «tendo presente a morte, seremos menos propensos a prevaricar sobre os outros». Só isto já não seria pouco!
In Monastero di Bose (Itália)
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 21.05.2020 no SNPC
O estado de exceção que estamos a viver faz-nos ansiar pela normalidade, absolutamente necessária para o relançamento da vida. Mas de que falamos quando falamos de normalidade? De um modo apressado, seríamos tentados a identificá-la com o regresso exato à vida que tínhamos anteriormente. A mesma vida, com a sua paisagem, os seus ritmos, rotinas, enquadramentos e motivações. Essa é uma ideia que nos devolve segurança: pensar que estes tempos estranhos assim como chegaram vão partir, como se de uma anomalia de circunstância se tratassem, e que nós e o mundo nos reencontraremos na mesma posição de há uns meses. Em grande medida será assim. Mas também é verdade que não seria normal que tudo fosse exatamente como dantes. Mesmo tornando ao quadro habitual da nossa vida, é importante que nos perguntemos “o que é que no mundo e em nós se modificou” e “o que é que aprendemos com isso”. Não desperdicemos, portanto, a oportunidade que representa, pelo menos, fazer-se perguntas. Isso o escritor João Guimarães Rosa sublinhava: “Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.”
Nem tudo permanece o mesmo quanto à nossa percepção do mundo e à garantia dos nossos estilos de vida. Globalizamos a economia e a comunicação sem prestar atenção às forças e às fraquezas do globo terrestre, descurando assim equilíbrios que precisamos de salvaguardar. Acostumamo-nos a uma visão utilitarista da realidade, pensada como um mecanismo que nunca dorme, assegurado a 100% para uma produção e um consumo ilimitados. Queremos sempre mais, sempre mais depressa, sem aceitar falhas. Vivemos acima das nossas posses como se os recursos — a começar por aqueles naturais — fossem inesgotáveis. Pensamos o espaço físico como um vasto open spaceonde tudo pode acontecer de forma contígua. Ora, a pandemia devolve-nos a consciência do limite, ao mesmo tempo que nos obriga a refletir sobre as formas de habitar o mundo a que podemos voltar e aquelas modalidades que teremos de superar. A presente pandemia começou por ser enfrentada como um assunto sanitário, mas evidentemente reclama que a interpretemos de um ponto de vista mais alargado, como uma encruzilhada civilizacional.
A normalidade não é um conhecido lugar a que se volta, mas uma construção onde somos chamados a empenhar-nos. Teremos certamente para lá chegar de reaprender a conjugar transformação e preservação. Porque este momento, a par da criatividade, também nos pede uma capacidade de perseverar, lutando para que o nosso patrimônio humano mais fundamental não seja omitido, porque somos seres de relação e não podemos viver sem comunidades. Uma das mais belas imagens destes dias é a de um avô de Michigan, nos Estados Unidos, que caminhou quilômetros a pé para ver, através da janela, uma neta que acabara de nascer. Na fotografia que circulou internacionalmente, está de um lado o jovem pai com a criança ao colo, e, do outro lado da vidraça, o sorriso indestrutível de um homem avançado em anos que, naquele momento, se sentirá a criatura mais feliz sobre a terra. A nova distância interpessoal não se pode tornar simplesmente um condicionamento (psicológico e social) que nos condene à solidão. A pandemia tem forçado a muitos “lutos relacionais”: desde a suspensão das práticas comunitárias ao reforçado isolamento dos idosos; desde a abolição do simples aperto de mão à situação daqueles pais que, reentrando em casa vindos do trabalho, hesitam em abraçar os próprios filhos. Mas é verdade também que se têm encontrado formas de comunicação e de presença que, não sendo substitutivas das anteriores, têm garantido o exercício comum da nossa humanidade. Este, a pandemia não deve poder suprimir.
Dom José Tolentino Mendonça
09.05.2020
A nossa vida é um longo diálogo connosco mesmos. Refletir é ver-se e escutar-se como se fossemos um outro diante de nós. Vivemos na constante presença do que somos, mergulhando por vezes bem fundo no nosso interior, em busca da paz que resulta da compreensão.
Depois, há também em nós uma enorme força, uma espécie de pressão, que a partir do nosso interior nos quer para fora, para o mundo, e tudo faz para que partilhemos o que somos, como se o alívio das nossas inquietações só fosse possível no encontro com o outro.
Então, por um lado, sentimo-nos únicos e sós, inexplicáveis a partir de fora! Por outro, a nossa essência empurra-nos para fora, para que nos comprometamos em projetos que ninguém consegue concretizar sozinho. Mas porquê?
A verdade é que ninguém se basta a si mesmo, apesar de parecer que vivemos condenados a um isolamento em relação à compreensão e ao amor dos outros.
Somos o sopro de um vento maior que brota do mais fundo da nossa alma. Vivemos escondidos à espreita de uma oportunidade de fazer explodir o nosso ser.
Há quem tenha certeza da existência de Deus, mas julga-O longe, lá no Céu ou em qualquer outro espaço ou tempo.
Mas estar em silêncio e não se poder ver não significa que algo não esteja diante de nós, ou atrás… ao nosso lado. Talvez até os nossos ombros se estejam a tocar!
Importa que deixemos o nosso coração ver. Sentir. A solidão que ele sente é sua ou somos nós que a forçamos?
É preciso que consigamos criar sossego dentro de nós. O que pensamos, sentimos, queremos, acreditamos, o que temos vontade de fazer e o que em nós nos ultrapassa, devem estar em paz uns com os outros. Talvez não seja preciso estarem afinadíssimos, bastará que não haja guerra!
Sentir e apontar culpas é um sinal claro de uma inquietude enraizada e do nosso distanciamento face à felicidade. Impede-nos de viver, de nos redimirmos, de criarmos o bem a partir do que parece ser vazio. De sermos mais do que somos, sermos quem podemos e devemos ser.
É bom parar de vez em quando, apenas para que depois possamos sair de nós e nos ocupemos das necessidades do outro, do mundo e das nossas próprias.
Nunca estamos sós. Deus existe e não está longe. Está aqui. Ao nosso lado.
O que nos é pedido é simples: que nos deixemos um pouco para trás, que olhemos e escutemos o outro, que o aliviemos das suas feridas… conseguindo fazê-lo sentir tão único quanto próximo!
José Luiz Nunes Martins
In: imissio.net 15.05.2020
Pandemia, bolsonavírus, isolamento, confinamento, nada disso combina comigo. Aliás, com ninguém. É difícil desacostumar de abraços.
Há pouco, fui ver minha mãe, que está de quarentena na casa do meu irmão, Cláudio. Seus netos quase todos, estavam lá. Na rua, de máscara, distância regulamentar entre nós e a avó, separada de todos por uma parede de vidro. Muito difícil, mas é o que temos no momento.
Nessa travessia, para que o bichinho da depressão não se transforme num monstro, estou fazendo o exercício das pequenas felicidades, já que os grandes voos da alegria estão limitados.
No almoço, dividi uma cerveja especial com o Daniel, meu filho, companheiro de isolamento social, saboreando o marmitex da Leia, que tem mãos mágicas no fogão. Foi bom. Arrumar a cozinha é chato, a pilha de pratos, copos, panelas e talheres surge por geração espontânea, mas, depois, entregá-la limpinha à Laila e receber um elogio é muito bom.
Desde que saí do último colégio, rompendo de vez meu vínculo com o trabalho formal, aposentei o relógio que, sintomaticamente, quando recebi meu primeiro salário fui à Galeria Ouvidor, o nosso shopping da época, e comprei. Um Mirvaine 17 rubis com o qual cronometrava as minhas horas de trabalho. Fui seu escravo (e dos seus sucedâneos) a vida toda. Agora, ter liberdade em relação ao tempo, à agenda, é uma sensação boa, apesar de sentir muita falta das pessoas que faziam parte da minha rotina.
Ser capaz de recriar rotinas e se deixar surpreender é outra magia. Descobrir pessoas e coisas inspiradoras, nas Redes Sociais, por exemplo. Como tem gente boa, sensível, inteligente, nesse mundão de meu Deus!
Felicidade é, na verdade, uma coisa bem simples. Tão simples como Deus. Sim, Ele é absurdamente simples. Ele é Amor. E amar é muito simples, o que não quer dizer que seja fácil: querer bem, querer ver o outro feliz e ser feliz junto com ele, seja ele ou ela quem for.
Isso vale para mulher, marido, filho, vizinho, empregado, chefe, colega e até os desconhecidos anônimos que todos os dias cruzavam o meu caminho, o nosso caminho. Hoje, todos escondidos atrás da máscara que nos lembra que somos iguais na nossa fragilidade...
Esses rostos que hoje, não vejo, são de pessoas que querem e buscam o mesmo que eu; ser feliz. Quer coisa mais simples? Quer coisa mais extraordinária do que dar às pessoas que me rodeiam, quaisquer que sejam elas, o presente de serem felizes, hoje, pelo simples fato de que se encontraram comigo, ainda que na virtualidade dessa crônica?
Volto ao Flávio Miglaccio...
Que imensa solidão...
É o risco que, hoje, todos corremos. E nosso desafio é encontrar o equilíbrio possível em meio a esse tempo de perplexidades, quando nossas certezas e seguranças parecem se desfazer diante do cenário que se descortina nas janelas da nossa casa, da nossa alma.
Para fazer a travessia do deserto árido da solidão, prima-irmã da depressão, é importante ter paciência e lutar muito, internamente, contra as moções destrutivas que ela provoca.
Jesus, ao mergulhar na nossa História, ao fazer-se um de nós, experimentou nossas fragilidades e nos amou ainda mais por causa delas. Na solidão imensa da cruz, certamente encontrou consolo na presença de João, de Maria, dos poucos e preciosos amigos que ficaram ao seu lado, até o fim. Com os olhos neles, rompeu a solidão e entregou seu espírito nas mãos do Pai, certo de que aquela dor, e dor de morte, não era a palavra final. Sua passagem pelo túmulo não foi mais que isso; passagem.
A escuridão é passageira, Só anoitece até a meia-noite. A madrugada já é o começo do amanhecer.
Somos filhos da luz.
Fica na Luz, seja Luz, Flávio...
Eduardo Machado
09/05/2020
- o despertador a tocar de manhã, é um ‘vazio’ ou é um ‘cheio’?
- o sinal vermelho no ‘tablier’ do carro, a indicar falta de gasolina, é um ‘vazio’ ou é um ‘cheio’?
- o alarme dos bombeiros a soar, é um ‘vazio’ ou é um ‘cheio’?
- os sentimentos - mesmo que sejam de irritação, medo, ansiedade, saudade - são um ‘vazio’ ou são um ‘cheio’?
- uma doença, um acidente, uma morte, é um ‘vazio’ ou é um ‘cheio’?
- e se isto que sinto como uma perda importante for um ‘cheio’?
- e se esta adversidade for um mestre, o que me quer ensinar?
- e se acreditar que já tenho (mesmo!) tudo o que preciso para os desafios do momento presente e que o que não tenho é porque não preciso?
- e se confiasse que tudo - tudo - o que me acontece, acontece para o meu bem mais elevado?
- Pois é!
- E se isto for mesmo verdade?
A solidão faz parte de qualquer vida humana. Não importa com quantos amigos e conhecidos nos relacionamos. Seremos sempre sós, porque somos sensíveis e temos consciência.
Por mais que acreditemos que há alguém com quem podemos estar em total sintonia, isso é muito pouco provável. É certo que, no fundo de cada um de nós, somos muito mais iguais do que diferentes, mas depois, cobrindo essa migalha de luz, há um conjunto grande de camadas que nos tornam muito desafinados, resultado de diferentes caminhos, memórias, pesadelos e sonhos, crenças, dúvidas, certezas, fé e medos.
Somos todos iguais, mas só no mais fundo de cada um.
Quando partilhamos o mesmo espaço durante muito tempo com alguém acabamos por dialogar connosco mesmos, encontrando com facilidade o que nos distingue dos outros. Sem que nos julguemos melhores ou piores, apenas autênticos.
Daqui podemos lançar-nos aos outros, estabelecendo laços mais puros com os que nos rodeiam, porque não temos ilusões, nem a respeito do que somos, nem do que os outros podem ser.
A bondade ergue-se a partir de uma certa solidão. Enraíza-se a uma profundidade maior do que o normal. Mais, é necessário que consigamos encontrar o equilíbrio em nós antes de nos oferecermos para ajudar a equilibrar alguém.
Amar é dar-se. Mas só se dá quem se encontra. Quem descobre a riqueza de ser quem é, por mais humilde que possa parecer aos olhos dos outros.
Há quem, sem acreditar Nele, encontre Deus. E quem, buscando-O com fé, não sinta senão uma enorme treva, um vazio sem sentido… A existência de cada um de nós é uma longa peregrinação em busca de algo que nos ultrapassa, mas nos envolve. Algo que nos indica caminhos, mas nos deixa livres. Algo que nos cria, mas como criadores de nós mesmos.
Será melhor estarmos sós ou assumir compromissos para com falsas comunidades?
A solidão é talvez um preço prévio que se deve pagar a fim de mantermos uma perspetiva verdadeira sobre quem podemos e devemos desejar ter próximo.
Os tempos de muito tempo convidam-nos a descobrir as camadas que em nós, quais vitrais, nos tingem a migalha de luz que a todos nos dá vida. Brilhando e admirando o brilho dos outros.
MANTER O CORAÇÃO AMPLO
Ensina-nos, Senhor, nos espaços confinados do presente a manter amplo o coração.
Que a medida do nosso amor não se reduza, nem diminua o nosso compromisso, real e concretíssimo, permanente e apaixonado, para com a vida.
Que não nos deixemos infetar pelo vírus do desânimo ou do medo, que nos trancam nas voltas de um inútil redemoinho interno, sem horizonte.
Lembra-nos, Senhor, que como seres comunitários nos criaste: somos mulheres e homens que realizam a sua mais alta vocação no encontro, na partilha, no caminho feito conjuntamente e na quotidiana vivência da comunhão e do dom. Não permitas que cruzemos os braços ou coloquemos entre parêntesis os nossos deveres fundamentais para com os outros, aprisionando-nos à abstrata suspensão de uma espera sem rosto nem figura.
Dá-nos o sentido da presença, mesmo à distância, e a capacidade da ação, ainda que indireta. Na verdade, a prudência para evitar o contágio, não pode inibir, antes estimular, as mil formas que existem de manter o contato.
Por isso, Te pedimos que o Teu Espírito Santo alavanque em nós o criativo poder de esperança e ative esse desassossego de amor que é a caridade, nas suas múltiplas expressões. E que a nossa oração pessoal seja, em cada dia, uma forma de participação na grande comunidade, como a pequena gota que sabe pertencer ao vasto oceano. Pois somos chamados a aceitar as paredes, mas também a relativizá-las, como nos recorda o Teu Filho Ressuscitado.
Dom José Tolentino Mendonça
27.04.2020
Nos dias que correm. Perdão. Nos dias que andam (bem lentamente) temos sido mais sugados pelo pessimismo. Antes de toda esta suspensão obrigatória e imposta, vivíamos reféns de um ritmo alucinante. Tudo acontecia demasiado depressa, à velocidade de um cruzeiro primo do Titanic. Agíamos como autênticos donos do mundo, sem ter nada que fosse, realmente, nosso.
Não estávamos felizes. E agora também não estamos.
Não sabíamos gerir o tempo. E agora também não sabemos.
Não tínhamos tempo para o mais importante. E agora também não temos.
Não sabíamos ver o lado bom da vida. E agora também não vemos.
Não atravessávamos zonas que fossem além da zona de conforto. E agora também não atravessamos.
Estamos ao colo do pessimismo. Como estávamos antes. Tudo a correr mal. Tudo é demasiado. O ritmo continua a ser de loucos. O trabalho é em quantidades absurdas e inumanas ou calou-se simplesmente e deixou de existir. Estamos fartos uns dos outros e da nossa versão de perfil online e virtual. Queríamos mais pele. Mais beliscões de alma que nos agarrassem à vida e ao mundo com as unhas e os dentes de antes.
Já chega de nos deixarmos estar neste colo de amarguras e queixumes colecionados. O colo da esperança é mais bonito que este. Mais leve. Mais tranquilo. Mais certo. É da esperança que nascem frutos. Do pessimismo só nascem cardos e espinhos.
É da esperança que surge o essencial. O que está escrito nas entrelinhas. O que está subentendido no sorriso que alguém teima em devolver-nos.
É da esperança que nasce tudo.
Enquanto estamos ao colo do pessimismo não nos permitimos reparar que a vida continua a existir. Há bebés que nascem, saudáveis, no meio de um mundo virado de pernas para o ar. Alheios a tudo, mostram-nos a única coisa que importa:
É da esperança que nasce tudo.
Marta Arrais
In: imissio.net 15.04.2020
Tenho uma vizinha que persiste em comprar flores neste tempo. Vejo-a, quase todos os dias, através da janela fechada, a caminhar em ritmos diferentes, como se fossem duas pessoas no mesmo corpo. A mulher que sai de casa ao amanhecer, aquela que atravessa a rua deserta de passo rígido e cabeça levantada como um soldado na frente de batalha, traz consigo as ansiedades de um povo esfomeado. É uma mulher disciplinada que arrisca a vida para atravessar o território proibido.
Ao leitor deixo um conselho: que ninguém se atreva a detê-la. Pela sua saúde, que não a desafie. Se tem amor à vida e aos seus entes queridos, fique em casa e veja, apenas, através da janela fechada, aquela mulher que avança determinada à procura de flores.
Sempre que a vejo regressar da praça, com as flores ao peito, com um ar de mulher perdidamente apaixonada, interrogo-me pela razão da súbita transformação. Terá sido o efeito do roxo dos lírios ou o perfume das rosas? Terá sido o contágio do sol das gerberas ou algum feitiço das pequenas margaridas brancas? A mulher mística regressa serena. Pelo caminho distribui generosamente acenos e sorrisos aos que a espreitam sisudos à janela. No passado sábado, no regresso a casa, perguntou-me se precisava de flores. Nem lhe respondi. «Claro que não, neste tempo, flores para quê?»
Já falei do estranho caso com médicos amigos, em especial, aos entendidos em saúde mental. Dizem-me, pesarosos, depois de longas explicações, que estes “doentes” têm de ser tratados com mão firme e muita paciência.
Há dias, no entanto, em que suspeito do rigor deste diagnóstico. E se eles estiverem enganados? E se esta mulher vai à florista como quem vai à farmácia?
Esta manhã quando a vi, pela terceira vez esta semana, a caminhar de flores nas mãos, houve uma voz que me disse que esta mulher comprava flores para não ceder à tentação de se comprometer com os medicamentos. Há um desequilíbrio na procura. Há mais gente a entrar numa farmácia do que numa florista. Procuram o medicamento certo para adormecer, o que faz esquecer ou, em alternativa, aquele que reaviva a memória. Sonham com a receita certa para emagrecer e não se cansam de perguntar pela combinação adequada para fortalecer o sistema imunitário. Estudam e consomem devotamente mil suplementos alimentares. Investem parte considerável dos seus bens em camadas de cremes na expetativa de renovar a envelhecida pele. A ela, nenhuma dessas soluções lhe interessa. Bastam-lhe as flores.
Talvez ela tenha razão.
Pe. Nélio Pita
In: imissio.net 04.04.2020
Diz Etty Hillesum no seu belíssimo diário: «É preciso cada vez mais poupar as palavras inúteis para poder encontrar aquelas poucas que nos são necessárias; e esta nova forma de expressão deve amadurecer no silêncio.
Muitas vezes para as coisas melhores da vida faltam-nos as palavras, e as poucas que temos surgem-nos retóricas e gastas. As palavras são um grande engano quando nos persuadem de ter atingido a verdade, distraindo-nos da busca. Quando algum de nós pensa que tem uma qualquer experiência espiritual ou religiosa sente de imediato a necessidade de falar dela, de a cobrir de teorias, de a comunicar com muitos discursos.
«Não o digais a ninguém», recomenda Jesus aos apóstolos, as palavras devem seguir os gestos, não antecedê-los. É ilusão pensar que se atinge a essência das coisas só com as palavras, sem primeiro as ter feito viver em nós.
As palavras têm o poder de curar, mas o silêncio cumpre em nós algo mais, faz renascer aquilo que dorme e reata relações com a nossa identidade profunda e autêntica.
Procuro aceder ao silêncio sobretudo na transparência da manhã, donde do coração foi removido o tumulto dos nossos rancores, das nossas cóleras, de todos os nossos preconceitos, e se aprende a encarar e a escutar o silêncio de Deus. A minha fraqueza e pobreza precisam de silêncio e de acolhimento para se desdobrarem em mais humanidade.
Quanto mais este mundo está imerso no ruído, mais forte para mim se torna a necessidade de momentos de silêncio, para que minha presença diária com os outros manifeste a presença de Deus em mim.
Ao encontrar os outros tendemos a preencher o vazio que há entre nós e eles com demasiadas palavras, quando deveríamos deixar esse vazio aberto a fim de que a relação com o outro continue a ser viva. O silêncio é condição necessária para continuar a acolher sem subjugar e dominar.
Raramente encontro ouvintes do silêncio. Homens e mulheres que espalham o silêncio mesmo quando falam, que procuram e não se resignam, que sofrem mas não se desesperam, que sabem escutar e ver os sinais da presença de Deus.
Ouvintes do silêncio, que fazem uso do silêncio como de um canto, de uma oração do coração, a aí aprendem a interrogar-se, a ver-se na profundidade ao elevarem-se para além de si próprios.
Ouvintes do silêncio que abraçam na sua doçura e força, sobriedade e liberdade, ao ponto de se tornarem simples e sem pose, livres de toda a máscara ou narcisismo.
O silêncio ao início requer um esforço, mas depois deve tornar-se uma atmosfera de vida, um modo de estar na realidade. O encontro com o silêncio primeiro evita-se, porque tem o sabor de ausência insuportável, de tal maneira que se apresenta passivo como o aborrecimento, a espera e a dor; mas a certo ponto o silêncio torna-se plenitude do vazio, hospitalidade recíproca, sentes que és hospedado pelo silêncio e que tu o estás a hospedar em ti.
«Eis que o atrairei a mim, conduzi-lo-ei ao deserto, e falarei ao seu coração» (Oseias 2,16). O silêncio pede-te para saíres, conduz-te para. Quem procura a essência da vida passa sempre por dúvidas e incertezas, mas só quando encontrares o silêncio, ele te conduzirá para além do limite da inteligência, falará ao teu coração e far-te-á render diante do amor.
Publicado em 01.04.2020 no SNPC
Temos visto de tudo nesses tempos de peste à solta. Gente sendo solidária à força. Gente doente só de se ver tolhida em suas vontades e vantagens. Também uns santos na linha de frente socorrendo os esquecidos pelas ruas. E ainda os consortes da peste, a postos para recrudescer o surto, como aquele assassino do poema de Carol Ann Duffy, que, estando farto de ser ignorado, enfim resolve mostrar seu poder de influir no mundo.
Em sacadas e janelas, as pessoas cantam, tocam sanfona, batem panela, gritam. Paralelamente à angústia humana, a natureza agradece, reverdece, leva peixes e cisnes para os canais de Veneza, abre o céu da China para um inominável azul. Ruminamos lições de comunidade experimentando a carne e o nervo de palavras tantas vezes manipuladas mal e porcamente. O amor em mínimos cuidados táteis. O respeito pelos outros ao nos tornarmos quase invisíveis para eles. A gentileza na suspensão de muitos gestos corriqueiros, a gentileza rompendo a casca da palavra gentileza.
No Egito, o medo desce o Nilo. Na Polônia, os velhos não são esperados nas missas de domingo. Em Bangladesh, o temor é mais espesso nos campos de refugiados rohingyas, que sobrevivem de orações e da misericórdia alheia. Na Tailândia, macacos se engalfinham por comida. Fecharam o Taj Mahal, o santuário de Lourdes, a Estátua da Liberdade. O papa abençoa a Praça de São Pedro vazia. Na Espanha, os touros permanecem vivos. Estão cancelados o abraço da paz, as mãos dadas no Pai Nosso, a hóstia na boca.
As campanhas de alento público aos isolados são pela leitura de bons livros, sessões domésticas de filme e música, mas o que fazer se a mente tem o olho cravado nos fatos se sucedendo a uma velocidade indomável, e o olho tem a alma posta nas dores possíveis dentro de cada casa, nos pequenos pesadelos pessoais impublicáveis dentro do grande pesadelo comum? Há gente que está rezando pela primeira vez depois de décadas. Gente que talvez desse tudo por um sorriso de Buda, ainda que fruto de loucura. Também loucos esperando normalmente. De fato, temos visto de tudo nesses tempos.
Mariana Ianelli
Escritora, autora de vários livros de poesia e crônicas.
In: Rubem 21.03.2020
Terei desaprendido a estar em casa?
É preciso recuperar a sabedoria e o gosto de estar em casa.
Parece que entramos num mundo de desconhecidos e estrangeiros que se sentam à mesa aguardando que lhes tragam por entre guardanapos e talheres uma promessa devida. Como se a família fosse um agregado e o irmão a hipótese de um parentesco.
De irmãos passamos a hóspedes numa família pouco hospitaleira e agora de receio hospitalar.
Deixamos de ser pares. Somos vizinhos da própria família. Os quartos passaram a moradias.
Talvez esteja a faltar um tédio saudável para tornar razoável esta relação.
Como se da sala de estar vivessem os finos, tremoços e imperiais e não houvesse no brinde o que nos resta de uma festa.
Que este tempo de regresso a casa reabilite o hábito e a habitação daquilo que um nos inscreveu na biografia.
Sejamos pois gratos àqueles que viermos a encontrar e a tropeçar na própria casa. Não são nossos vizinhos. É a própria família.
Pe. Nuno Branco SJ
Temos medo dele. Fugimos dele. E, no entanto, carecemos deles como de pão para a boca.
Convidá-lo a estar connosco é, nos nossos dias, quase um ato de heroísmo. Mas é – e muito!- um ato de saúde em todas as dimensões. Mais do que isso: é um ato de quem busca a plenitude no aqui e agora! Essa mesma que não pertence a um momento eufórico, de êxtase pontual, passageiro e epidérmico, mas onde a nossa existência ganha um sentido profundo e nos vemos parte íntima e única da criação.
As decisões mais estruturantes da nossa vida reclamam a sua presença, de uma forma contínua.
É um mundo onde nenhuma palavra chega, mesmo a que ainda não se inventou. É um mundo onde até as palavras caladas sobram.
O silêncio é um amigo poderoso e teimoso. E que bom que assim é! Banhados que andamos de ruídos procurados ou que vêm ao nosso encontro, do silêncio nos lembramos já só quando a cabeça lateja, as vozes atrapalham e se atropelam, já só quando nem conseguimos discernir as fontes desses ruídos mas carregamos um vazio crescente que nenhuma voz ou palavra pode preencher.
Creio que o caminho do silêncio é aquele que nos permite saborear profundamente a vida. Nem sempre exteriorizar o que vemos e sentimos é uma atitude amorosa connosco próprios e com os que convivemos. O verdadeiro silêncio não castra as palavras nem as atitudes. Sabe encontrar o papel de cada uma. E sabe assumir o seu próprio lugar numa vida desfocada do essencial.
Não tenhamos medo de remover as entranhas, arrumar as gavetas, conviver com a nossa vulnerabilidade. Essa, que o silêncio nos revela. É aí, nesse tempo (in)finito que também percebemos a grandeza de uma vida fundada no silêncio.
Cristina Duarte
In: imissio.net 5.03.2020
Campanha da Fraternidade (CF). Uma forma que a Igreja Católica no Brasil encontrou de vivenciar a Quaresma. Há cinco décadas a Campanha (CF), coordenada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) propõe temas que apontam para a necessidade de compromisso do cristão. Também propõe discussões e enfrentamento dos problemas que afetam os pobres: precariedade da saúde, do trabalho, educação, moradia, políticas públicas, entre outros já foram foco da CF.
O tema proposto em 2020 é Fraternidade e vida: dom e compromisso! Quatro palavras de profundo significado. Fraternidade: parentesco, solidariedade entre irmãos, harmonia entre humanos. Vida: tem conceito bem amplo, mas aqui interessa vida como existência. Dom: significa dádiva, presente. Compromisso: é responsabilidade. Assim a Campanha convida os cristãos para cuidar da vida! Vida nas suas diversas dimensões: pessoal, comunitária, social, ecológica, política.
Esse olhar atento precisa antes responder a indagações angustiantes: o que aconteceu conosco? Por que vemos e deixamos crescer tantas formas de violência, agressividade e destruição? Perdemos, de fato, o valor da fraternidade? “Olhai para a terra, veja quanta maldade” (samba enredo da Mangueira).
A CF 2020 toma como referência a parábola do bom samaritano (Lucas 10, 25-37). O sacerdote e o levita, desviam-se do homem ferido, pois não tinham tempo para ele. Mas o Samaritano aproxima-se da vítima dos salteadores e, movido pela compaixão, gasta seu tempo e dinheiro, ficando com ele na hospedaria. Paga todas as despesas e promete retribuir ao dono da hospedaria tudo o que gastasse para cuidar do homem ferido.
A postura do samaritano contém o centro do ensinamento de Jesus: o próximo não é apenas alguém com quem possuímos vínculos, mas todo aquele de quem nos aproximamos. Sentir compaixão é a chave para fazer a vontade de Deus, que ama toda a criação. Tempo de abertura ao mistério da dor e morte de Jesus. Sua entrega na cruz é o culminar do estilo que marcou sua vida. Somente contemplando o mundo com os olhos de Jesus, olhar samaritano, é possível acolher o grito que emerge das várias faces da pobreza e da agonia da criação.
O olhar do sacerdote e do levita são o da indiferença. Um olhar que gera ameaças a vida. E quais são? O aborto, a migração forçada e as guerras que geram milhares de crianças órfãs. O desemprego que atinge milhões de trabalhadores. O trabalho precário que chega a 41%. A desolação! 27 milhões não conseguem trabalho algum. A miséria que castiga mais de 15 milhões excluídos. O suicídio, quarta causa de morte entre jovens. Violência no trânsito: 19.398 mortes, só no primeiro semestre de 2018. Brasil é o quarto país no mundo em mortes por violência no trânsito. Fé em Deus e pé na tábua?
Feminicídio! Entre 2016 e 2018 foram mais de 3,2 mil mortes no país. No mesmo período, mais de 3 mil casos de feminicídio não foram notificados. Também são ataque à vida ideias como a pena de morte e o armamento. A meritocracia, o individualismo, o fundamentalismo religioso, o consumismo doentio que cria a cultura do descartável. A banalização do mal, chacinas, criminalização dos pobres, racismo, homofobia, ódio. Governo comprometido com os ricos e poderosos: em 2019 o lucro do banco Itaú foi de 10,2%, Santander 17% e Bradesco 20%. O Itaú lucrou um salário mínimo por segundo em 2019! Por segundo. O reajuste do salário mínimo foi de 0,1%.
O que fazer diante de tantos males? Os discípulos e amigos de Jesus estão a serviço da vida. Rompem com a indiferença e derrotam a Justiça. É preciso sentir a dor do outro e comprometer-se com o sofredor. Quem ama não acusa. Sua atitude é misericordiosa. Motiva a igualdade e a justiça. Superar a fome, o desalento social e econômico, a degradação do ecossistema e cultura do desperdício é responsabilidade de todos! A finalidade da vida cristã é promover a solidariedade na construção do Reino de Deus.
“Não tem futuro sem partilha nem messias de arma na mão” (samba enredo da Mangueira). Que todo ser humano tenha vida, e vida em abundância (João 10,10). A campanha é um convite ao olhar solidário. A missão do discípulo missionário de Jesus é revelar ao mundo o rosto da misericórdia e da justiça de Deus. Promover a justiça é um ato de fé. A caridade é o verdadeiro sentido da vida. A caridade social nos leva a amar o bem comum. A justiça jamais estará desvinculada da caridade.
A Quaresma é tempo para descoberta da ternura que revela o rosto materno do Deus apaixonado pelo ser humano. Estimula a amar, cuidar e a aceitar os outros. A quaresma deve estimular a Igreja em saída, aquela que vai as periferias sem medo de sujar as sandálias. Servir! Ver! Sentir compaixão e cuidar da vida é o autêntico Programa Quaresmal.
Pe. Élio Gasda SJ
Uma vida vazia é muito pesada. Dar a si mesmo e ao mundo uma vida digna é muito mais do que andar sempre com pressa. O valor da existência não depende da quantidade de coisas que somos capazes de fazer ou das tarefas que executamos.
O sentido da vida depende da qualidade com que se vive. Não cometer erros evitáveis ajuda muito. Quem julga que terá sempre segundas e terceiras oportunidades engana-se a si mesmo de forma infantil. Importa aprender a caminhar de forma um pouco mais lenta.
Tens de parar. De quanto em quanto tempo interrompes as tuas rotinas, para descansar bem e para avaliar o percurso feito? Quando costumas decidir qual o caminho a seguir?
É difícil aceitar que a razão de não encontrarmos paz se deve a que a procuramos onde ela não está. O descanso que ansiamos está em nós. É inútil procurá-lo em qualquer outro lugar que não em nós mesmos.
A vida impõe-nos uma luta constante contra maldades e indiferenças, mas, ao contrário do que se julga, grande parte delas são nossas. Tendemos a projetar nos outros o que está dentro de nós, chegando ao ponto de sermos ainda mais intolerantes com quem revela os mesmos problemas que nós! Não devia ser ao contrário? Sim, mas isso supõe que os assumiríamos. E esse é um passo de uma coragem de que muitos não são capazes.
Quando te olhas ao espelho, gostas do que vês?
Viver é amar. Aprender a abraçar e aprender a perder o que se abraçou. A vida é uma perda constante do que amamos, mas é também um mistério imenso de onde brotam sempre mais e mais mãos estendidas à espera do nosso amor. Não mendigam, são talvez sinais que nos apontam o caminho.
A vida é um conjunto de aparentes acasos que se sucedem. Há quem confie que têm sentido, apesar de não o conseguir descobrir. Outros investem e perdem tempo e forças a tentar compreender o que está muito acima da sua capacidade de entender!
Se tivesses de viver para sempre como vives agora, viverias bem?
Descansa um pouco e aproxima-te da grande pergunta: o que devo fazer para ser feliz? Não procures a resposta em lado algum a não ser em ti. As respostas dos outros são deles. De cada um deles. Há muitos que são infelizes da mesma forma e juntos, porque adotaram para si soluções que não eram as suas.
A minha vida é um caminho único de mim para os outros, não o contrário.
A vida é amor, não é egoísmo.
José Luiz Nunes Martins
In: imissio.net 31.01.2020
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