Não somos perfeitos. Mas não são raras as vezes em que gostaríamos que isso fosse diferente. Que soubéssemos sempre o que fazer, o que dizer… que fosse fácil perceber o que os outros precisam em cada momento. Que todos nos amassem. Que conseguíssemos amar, também, os outros de forma plena, profunda e repleta de tudo o que é bom e bonito.
Também não seria mau se pudéssemos ser uma versão admirável de nós mesmos. Bonitos no exterior, interiormente, saudáveis, seguros e profundamente felizes.
Escrever este “sonho” desta forma quase que nos faz rir. Impossível. Arrisco-me a dizer que ainda bem que é impossível ser perfeito. Ainda bem que não temos sempre as palavras certas ou bonitas. Ainda bem que sabemos o que é ser mesquinho, impaciente, mentiroso ou coscuvilheiro. E, neste momento, já o nosso interior está aos gritos: isso não sou. Isso não. Eu não.
Tu sim. Eu sim. Nós sim.
Todos conhecemos versões menos boas de nós. Momentos menos felizes. Todos temos as nossas partes feias. Escuras. Imperfeitas e toscas. E ainda bem. São as nossas quedas que nos ensinam coisas importantes sobre o que somos e sobre o que os outros são. São as nossas faltas de comunicação e os nossos mal-entendidos que nos ensinam a comunicar melhor numa próxima vez. São as vezes em que não soubemos amar-nos ou amar os nossos que nos ensinam a apurar a nossa vocação para viver em amor e em alegria (ainda que possa haver tristeza e mágoa, tantas vezes).
Não somos perfeitos. Não conseguimos ser tudo, para todos, em todos os momentos.
Não saberemos sempre o que fazer ou como agir.
Não conseguiremos, sempre, ser calmos e devolver alegria.
Não saberemos sempre o caminho a seguir.
Vamos querer desistir. Vamos precisar que nos ajudem e que nos deem a mão.
É esta imperfeição que nos ensinará a ser melhores amigos, namorados, maridos, companheiros e companheiras, colegas, pessoas.
É esta imperfeição que nos mostrará que precisamos uns dos outros para chegar ao que somos de melhor.
Marta Arrais
In: imissio.net 07.09.22
O mundo anda difícil. Parece que a tristeza e a desesperança têm tomado muito espaço de quem era acostumado a sonhar com um mundo feito de fraternidade. A tristeza, a dificuldade e a desesperança que avançam dentro de nós geram cansaço. Para descansar, precisamos de um pouco de nada. Como estar sentado diante do horizonte aberto que só o mar nos oferece. Como fechar os olhos e ouvir uma canção em língua desconhecida. Como se deixar levar pelos pequenos afazeres que só nos exigem dedicação.
Como ler a poesia do encantado Manoel de Barros. Não é para encantar nada. É apenar para descansar no nada das coisas desúteis. O poeta preferiu inventar a palavra desútil do que usar a já existente inútil. Talvez porque inútil nos remeta imediatamente à necessidade de mudar e tornar-se útil. Ser inútil é um defeito. Ser desútil é a qualidade que pode nos ensinar o descanso do nada. No Livro sobre nada, o autor logo nos adverte de que o que deseja é só isso mesmo, falar sobre nada, fazer brinquedos com as palavras, brincar de falar.
A criança quando brinca está de algum modo – desconhecido para ela e para nós – se preparando para quando não puder mais brincar. A brincadeira momentaneamente inconsequente vai criando raízes e sentidos na interioridade em desenvolvimento. O adulto quando brinca não se prepara para nada. Só descansa. O poeta talvez me recriminasse: não, até o descanso já é uma utilidade e assim as coisas deixariam de ser desúteis. Mas eu descanso nas coisas desúteis e queria também fazer descansar quem por acaso ou ventura atravessar os olhos neste texto.
Manoel de Barros diz que brincava na infância de fazer brinquedos de palavras, como: “O olho do gafanhoto é sem princípios” ou “De noite o silêncio estica os lírios”. Seria inútil procurar interpretar e fazer brotar sentido das coisas desúteis. Brinquemos apenas. Como também fazia a Joana, personagem de Clarice Lispector em Perto do coração selvagem.
Joana um dia contou ao homem em quem se abrigava, e cujas primeiras palavras que dirigiu a ela tinham sido: “quer descansar?”, que quando criança podia brincar uma tarde inteira com uma palavra. E que inventava brinquedos de palavras em uma língua nova também inventada chamada Lalande. E brincava de Lalande: “Ouvi um dia uma flor cantando e tranquilamente me alegrei”. E também: “Amêndoas… o mistério e a doçura das palavras: amêndoa…”. O homem a ouvia e queria ouvir mais, e pedia que ela explicasse outra vez o que era Lalande.
Ela explicava que Lalande era uma coisa a se sentir e conhecer: “Toda vez que eu disser: Lalande, você deve sentir a vibração fresca e salgada do mar, deve andar ao longo da praia ainda escurecida, devagar, nu. Em breve você sentirá Lalande… Pode crer em mim, eu sou uma das pessoas que mais conhecem o mar”. Conhecendo o mar, Joana sentia Lalande e brincava, como quando era criança e recitava poesias inventadas para o pai: “As galinhas que estão no quintal já comeram duas minhocas mas eu não vi”. Inventava despropósitos, diria Manoel.
O mundo continua difícil. Mas se brincarmos de nada com as palavras diante do mar ainda escurecido podemos ter a chance de ver outros mundos. No mundo de Manoel, as coisas e os bichinhos todos que só são vistos por quem caminha devagar olhando para a terra e para as folhas das árvores preenchem o olhar e são transformados em brinquedos de palavras. Com eles vem o silêncio e no silêncio que é o sossego do barulho do mundo difícil descansamos e inventamos.
Ver e inventar mundos parece ser uma senda por onde enveredar a consciência humana e assim se fazer mais capaz de agir no mundo difícil. Não porque nos instrumente para isso, mas porque nos esvazia e assim nos torna capazes de ver invisíveis e de criar inexistentes. Se desejamos ser, precisamos antes sonhar o que ser, como Manoel de Barros: “Não serei mais um pobre diabo que sofre de nobrezas. / Só as coisas rasteiras me celestam. / Eu tenho cacoete pra vadio. / As violetas me imensam”.
Manoel quer o rasteiro e a vadiagem da desutilidade. Bem sabemos que os brinquedos de palavras não podem nada contra o mundo difícil que segue em sua lógica própria. O poder deles é de criar os vazios. O Livro sobre nada não se propõe a nada e afirma sua desutilidade. Mas quando o lemos, alguma coisa acontece e no acontecimento que é nada vemos os espaços vazios se abrirem e o sonho brotar nas minúcias que também são nada.
Não há sonho sem vazios. Brincar nos esvazia do mundo difícil para, depois do descanso em que o sonho brota e floresce, retomarmos a briga pelo mundo sonhado.
Marília Murta
In: Palavra e presença (Portal da FAJE)
imagem: pexels.com
Não és só mais um na orquestra. A tua vida é vivida em conjunto com outros. Mais do que vivermos, convivemos.
Não há duas famílias iguais, assim, a maior parte das comparações não são boas, porque não têm em conta o mais importante: a singularidade de cada pessoa que as compõe. Igual é no mundo do trabalho, onde cada equipa, por maior que seja, depende muito mais de cada um dos membros do que possa parecer.
Não há famílias felizes sem que tenham de investir muito tempo, esforço e afeto para que assim seja. Numa qualquer família, os laços naturais são os menos importantes, na medida em que a paz e a felicidade nunca são automáticas, bem pelo contrário… se nada se fizer, então é certo que haverá discórdia e infelicidade. É preciso decidir, cada dia, ser família da nossa família.
Numa orquestra todos têm uma missão específica a desempenhar, ninguém está a mais, e não há mais nem menos importantes. Formam um corpo onde a harmonia significa beleza. Se cada um cumprir o seu papel, todos ganham de forma igual. Nenhuma sinfonia pode ser interpretada por uma só pessoa, por mais hábil e talentosa que seja.
Amar é encontrar espaço para o outro poder ser quem é, mas nunca demasiado próximo. E tempo para se aperfeiçoar, sem nunca deixar de acreditar que ele é capaz, por mais que os fracassos se sucedam.
Eu preciso do outro para ser eu! A solidão que não se escolhe é uma condenação a não-ser. Somos importantes e essenciais, mas nunca apenas dentro de nós. O isolamento involuntário corta-nos os caminhos para o bem.
Só serei feliz se alguém o chegar a ser por minha causa!
Cada um de nós é convidado a colocar a sua vida ao serviço de outros, entregando-se de forma mais ou menos profunda para que se alcancem objetivos que ninguém consegue sozinho.
O melhor de mim não é para mim. O amor leva-nos ao outro e permite que nos realizemos. Somos de quem amamos, porque decidimos que assim é, fazendo o que for necessário para que assim seja.
O amor não é um gesto, é uma vida inteira.
José Luis Nunes Martins
24.08.2022
In: imissio.net
Imagem: pexels.com
Parece não haver espaço para pensar de outra forma que não seja a que rima com otimismo e positividade. Levaram-nos a crer que é errado chorar, que não devemos mostrar o que sentimos e que, se o fizermos, devemos mostrar sempre uma versão bonitinha, sublinhada daquele cor-de-rosa das nuvens que vemos nos desenhos animados.
No entanto, a vida não é nada disso. Não é uma paisagem bonitinha nem simples, na maioria das vezes. Tem escarpas capazes de rasgar joelhos ou almas, trilhos que nos fazem perder o rumo e o norte, armadilhas que nos fazem resvalar todas as certezas e ideias pré-concebidas. É nesses dias que não precisamos que nos digam coisas como:
“não fiques assim”
“olha para o lado bom de tudo isto”
“pensa positivo”
Pensar positivo quando o que se sente é, precisamente, negativo é mascarar com uma mentira aquilo que se diz e que se é.
Pensar positivo como resposta a todos os problemas é, na realidade, criar mais um.
É preciso olhar com respeito para os nossos pensamentos negativos. Para o mau. Para a raiva que pode existir. Para a tristeza. Para o desânimo. E encontrar espaços sérios e seguros dentro de nós para lidar com isto. O pensamento positivo não é, de certeza, uma solução.
A ditadura do positivismo deixa-nos uma sensação de não pertencer, de não estar certo (ou válido) sentir o que sentimos. E essa sensação deixa marcas e feridas que podem, depois, apodrecer e ganhar formas demasiado feias.
Que saibamos pensar positivo quando for tempo disso e que saibamos “pensar negativo” quando sentirmos diferente do bom, da alegria e do que for feliz.
Há espaço para tudo o que és.
Há espaço para tudo o que somos.
Ou, pelo menos, devia haver.
Penso na definição de poesia dada, um dia, por Patrizia Cavalli (uma importante criadora italiana que acaba de nos deixar): “Poesia é tomar a primeira coisa que nos vem às mãos e retirar dela o supérfluo para a fazer resplandecer.” Vale a pena deter-se nos detalhes da operação que esta frase descreve. Certamente é de utilidade para a construção de um poema, mas não só, pois se pode estender a tantas outras dimensões daquilo que vivemos. O primeiro surpreendente aspecto reside no fato de que não temos de nos preocupar demasiado com o ponto de partida: é o “que nos vem às mãos”. Com efeito, um dos motivos da confusão (e, sucessivamente, do sofrimento e da desorientação) que nos assalta é a pretensão de determinar tudo à partida, como se disso dependesse, afinal, a fecundidade do caminho que empreendemos. A maníaca obsessão de selecionar o que pode ou não vir a resplandecer redunda habitualmente num empobrecimento. No fundo, não há pontos de partida ideais. O melhor ponto de partida é o “que nos vem às mãos”, isto é, aquele latente, aquele que concretamente é o nosso, aquele que representa o acessível e ordinário mais do que a rebuscada exceção. Daí devemos partir. Na vida e na poesia o gesto necessário, capaz de desencadear um consistente movimento de futuro, é uma confiança — frágil e difícil que seja, mas uma confiança — investida no real que somos. Descobrindo desse modo que, para quem se dispõe a realizar um itinerário interior, tudo é oportunidade, tudo se pode tornar possibilidade de caminho.
A questão decisiva não está, portanto, em controlar donde se parte, porque isso em grande medida depende do jorro incontrolável da vida que sempre nos excede. A questão é como se procede depois. Isto é, o que se faz com aquilo que a vida inicialmente nos deu. E aqui o conselho da poeta Patrizia Cavalli torna-se particularmente incisivo. O seu desafio é que cheguemos a compreender em cada situação o essencial sem equívocos, que ousemos tocar em cada coisa aquilo que está para lá das maneiras, dos usos e artifícios, aquilo que da vida se mostra na sua verdade nua. É preciso dizer que o paradigma dominante nas nossas sociedades vai noutra direção, pois sem rodeios decreta que se proceda não por esvaziamento, mas por acumulação. E, de facto, para onde quer que se olhe constata-se o triunfo desse princípio. O insustentável peso do supérfluo que nos adoece provém daí, dessa espécie de debilidade interna que nos torna dependentes do consumo pelo consumo, que nos obsidia com a ordem a acumular, com uma voracidade cega e inconcludente que nos leva a encher a existência de coisas, coisas, coisas, adiando dessa forma o encontro connosco próprios. Ora, é por um exercício de subtração e desnudamento que a hospitalidade profundamente se dá. “Retirar o supérfluo” constitui, por isso, não só um dispositivo crítico face à saturação, mas é também um mediador da evidência, um acelerador possível da revelação.
Diminuir o supérfluo para permitir o esplendor — é uma proposta que serve para construir um poema e para cumprir a aventura que a vida representa. A tal não se acede sem arriscar um desconforto, sem sentir que nos expomos na nossa pobreza, sem reconciliar-se com essa pobreza, sem desarmar o território do nosso coração. É um caminho lento, não raro balançado pela trepidação do medo, mas que nos leva a contemplar com sabedoria a nossa vida maravilhosa. Um verso de Patrizia Cavalli saúda-a com estas palavras: “Vida maravilhosa/ deixas-me sempre em espanto.”
D. José Tolentino Mendonça
01.07.22 In: imissio.net 07.07.22
Também se pode dizer que não? Que não fazemos? Que não vamos, que não queremos, que não temos tempo, que não estamos preparados ou que não temos vontade? Podemos dizer que não temos interesse? Que obrigadinha, mas fica para depois? Ou nesta sociedade quase perversa em que nos vemos mergulhados só há lugar para o sim? Para o “com certeza”; para o “vou já tratar disso”. Para o “conta comigo”.
Não te sentes cansado de fazer só o que te pedem? De só guardar vida para o que os outros precisam?
Vivemos com a ilusão de uma liberdade que não temos. Uma miragem bonita de uma vida em que mandamos nós, mas que é profundamente articulada por quem julga estar “acima” de nós. Somos reféns das vontades alheias e ignoramos aquilo de que precisamos para poder ficar bem em todas as fotografias. Deixamos de dormir. De comer. De beber quando temos sede. De respeitar as necessidades mais básicas. Sejam elas de carácter mais físico ou emocional/espiritual. Vale tudo mas parece-me que vivemos como se não valêssemos nada.
Vamos varrendo os nossos intuitos, desejos e intenções para debaixo do tapete e ficamos (de forma muito doente) à espera de fazer tudo o que houver para fazer.
A vida dedicada aos outros e ao bem comum não significa viver como se não existíssemos. Como se nem honrássemos a vida que nos foi dada.
Temos o direito de cuidar daquilo que somos. De dizer que não quando for demais. Quando nos ultrapassarem os limites ou quando nos desrespeitarem naquilo que é o mais sagrado da nossa essência como pessoas.
Viver é muito mais do que estudar, pagar contas, trabalhar e morrer. Para o caso de ainda não te teres apercebido, estás aqui para descobrir o teu propósito e, seja ele qual for, nunca estarás cá para ser menos do que muito feliz.
Por isso, quando puderes diz que não fazes. Deixa para depois. Esquece as aparências. Esquece o que vão pensar.
No final do dia é sempre sobre ti. Sobre os teus e sobre como a paz se pode construir a partir de se viver alinhado com o que se é.
Marta Arraes
In: imissio.net 29.06.22
Muito já se escreveu, em todas as mídias, sobre o desaparecimento e assassinato do indigenista brasileiro Bruno Pereira e de Dominic (Dom) Philips, jornalista britânico radicado no Brasil em viagem pela Amazônia. Ambos tinham em comum a paixão pela floresta e a dedicação aos povos indígenas. A última vez em que foram vistos foi no último dia 5 de junho. A viagem que deveria durar duas horas, da comunidade de São Rafael a Atalaia do Norte, foi brutalmente interrompida e jamais aportou onde devia.
Dom e Bruno viviam impulsionados pela dedicação à causa que os apaixonava: a floresta e os indígenas. Bruno oferecia sua experiência de indigenista, de profundo conhecedor das etnias e línguas daqueles povos. Dava suporte à União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) em diversos projetos. Era experiente e profundo conhecedor da região, tendo sido Coordenador Regional da Funai de Atalaia do Norte por vários anos. Dom punha à disposição do país que amava e escolhera para viver sua experiência de jornalista colaborador do jornal “The Guardian”. Nos últimos 15 anos, trabalhou em diversos periódicos importantes, sempre com temas ligados ao Brasil. No momento, reunia material para um livro que pretendia escrever sobre meio ambiente. Para isso fazia a viagem, apoiado na experiência de Bruno.
Lamentavelmente o Brasil não devolveu a eles tudo o que deram de si, de suas vidas e energias. Quando as famílias dos dois já não conseguiam contato, a mídia e a opinião pública denunciavam o desaparecimento de ambos, as autoridades brasileiras demoravam a mobilizar-se e davam declarações infelizes ao classificar de “aventura não recomendável” o que era elemento constitutivo de uma paixão: conhecer mais a região, os problemas que sofria, os desafios que apresentava para poder denunciar, noticiar, ajudar. A floresta ameaçada mobilizava Dom e Bruno, mas as autoridades do país que amavam moviam-se lentamente e retardavam as buscas.
Dez dias após a última viagem de Dom e Bruno, confirmou-se a notícia dos bárbaros assassinatos. Dois suspeitos foram presos e um deles levou a Polícia Federal até o local onde a embarcação do indigenista e do repórter foi submersa. Restos humanos foram encontrados e encaminhados à perícia.
Os suspeitos confessaram o crime. O país baixa a cabeça, envergonhado e triste, diante da barbárie perpetrada em seu território. A floresta amazônica, grande tesouro do Brasil, converteu-se em terra de ninguém. Terra sem lei, sem proteção, onde campeia o crime, a violência, a ganância, e os povos indígenas vivem constantemente ameaçados, assim como aqueles que os defendem.
Dom e Bruno entregaram suas vidas por aquilo em que acreditavam e amavam intensamente: a floresta e os indígenas. Seus assassinos querem destruir a floresta e subjugar os indígenas a seus interesses de lucro e ambição. São predadores da natureza e da vida, responsáveis pela tragédia climática que ameaça o mundo inteiro e pela catástrofe ética e política que envolve sombriamente o Brasil, onde 33 milhões passam fome e mais de 600 mil pessoas morreram vítimas da Covid 19, muitas pelo atraso na chegada das vacinas.
Apesar da tristeza pela perda de Dom e Bruno, pode ser consolador o fato de terem representado uma réstea de luz em um país que nos últimos tempos só respira dor e morte. Como eles, existem pessoas que não se conformam com a iniquidade e lutam com todas as forças para transformar a realidade. São combatentes e lutadores impregnados da utopia que dá força a um projeto vital: salvar a vida que pulsa na floresta e também a de seus habitantes. Pertencem à linhagem dos muitos que os precederam na mesma luta sem quartel: Dorothy Stang, Chico Mendes e tantos outros que com eles compartilharam trajetória e destino. Hoje, são luminosa inspiração para os que prosseguem nessa mesma caminhada.
Assim serão recordados Dom e Bruno de agora em diante: como testemunhas. No início do Cristianismo, a palavra mártir equivalia a testemunha. O jornalista britânico e o indigenista brasileiro são testemunhas eloquentes da causa da ecologia e do meio ambiente. A trajetória radical de suas vidas os transformou em mártires da causa ecológica e deve inspirar todos que clamam por uma conversão à causa do planeta, conversão à vida e ao futuro da Terra e da humanidade.
Vítimas da barbárie, da incúria, da violência e da corrupção que imperam no Brasil, são testemunhas veneráveis da luta difícil e necessária pela Amazônia e pelos povos indígenas. Que o testemunho de ambos possa brilhar sempre mais, para que a justiça aconteça e a esperança vença a opressão que pretende esmagar a beleza e a vulnerabilidade da vida.
Maria Clara Lucchetti Bingemer
16.06.22
Muito já se escreveu, em todas as mídias, sobre o desaparecimento e assassinato do indigenista brasileiro Bruno Pereira e de Dominic (Dom) Philips, jornalista britânico radicado no Brasil em viagem pela Amazônia. Ambos tinham em comum a paixão pela floresta e a dedicação aos povos indígenas. A última vez em que foram vistos foi no último dia 5 de junho. A viagem que deveria durar duas horas, da comunidade de São Rafael a Atalaia do Norte, foi brutalmente interrompida e jamais aportou onde devia.
Dom e Bruno viviam impulsionados pela dedicação à causa que os apaixonava: a floresta e os indígenas. Bruno oferecia sua experiência de indigenista, de profundo conhecedor das etnias e línguas daqueles povos. Dava suporte à União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) em diversos projetos. Era experiente e profundo conhecedor da região, tendo sido Coordenador Regional da Funai de Atalaia do Norte por vários anos. Dom punha à disposição do país que amava e escolhera para viver sua experiência de jornalista colaborador do jornal “The Guardian”. Nos últimos 15 anos, trabalhou em diversos periódicos importantes, sempre com temas ligados ao Brasil. No momento, reunia material para um livro que pretendia escrever sobre meio ambiente. Para isso fazia a viagem, apoiado na experiência de Bruno.
Lamentavelmente o Brasil não devolveu a eles tudo o que deram de si, de suas vidas e energias. Quando as famílias dos dois já não conseguiam contato, a mídia e a opinião pública denunciavam o desaparecimento de ambos, as autoridades brasileiras demoravam a mobilizar-se e davam declarações infelizes ao classificar de “aventura não recomendável” o que era elemento constitutivo de uma paixão: conhecer mais a região, os problemas que sofria, os desafios que apresentava para poder denunciar, noticiar, ajudar. A floresta ameaçada mobilizava Dom e Bruno, mas as autoridades do país que amavam moviam-se lentamente e retardavam as buscas.
Dez dias após a última viagem de Dom e Bruno, confirmou-se a notícia dos bárbaros assassinatos. Dois suspeitos foram presos e um deles levou a Polícia Federal até o local onde a embarcação do indigenista e do repórter foi submersa. Restos humanos foram encontrados e encaminhados à perícia.
Os suspeitos confessaram o crime. O país baixa a cabeça, envergonhado e triste, diante da barbárie perpetrada em seu território. A floresta amazônica, grande tesouro do Brasil, converteu-se em terra de ninguém. Terra sem lei, sem proteção, onde campeia o crime, a violência, a ganância, e os povos indígenas vivem constantemente ameaçados, assim como aqueles que os defendem.
Dom e Bruno entregaram suas vidas por aquilo em que acreditavam e amavam intensamente: a floresta e os indígenas. Seus assassinos querem destruir a floresta e subjugar os indígenas a seus interesses de lucro e ambição. São predadores da natureza e da vida, responsáveis pela tragédia climática que ameaça o mundo inteiro e pela catástrofe ética e política que envolve sombriamente o Brasil, onde 33 milhões passam fome e mais de 600 mil pessoas morreram vítimas da Covid 19, muitas pelo atraso na chegada das vacinas.
Apesar da tristeza pela perda de Dom e Bruno, pode ser consolador o fato de terem representado uma réstea de luz em um país que nos últimos tempos só respira dor e morte. Como eles, existem pessoas que não se conformam com a iniquidade e lutam com todas as forças para transformar a realidade. São combatentes e lutadores impregnados da utopia que dá força a um projeto vital: salvar a vida que pulsa na floresta e também a de seus habitantes. Pertencem à linhagem dos muitos que os precederam na mesma luta sem quartel: Dorothy Stang, Chico Mendes e tantos outros que com eles compartilharam trajetória e destino. Hoje, são luminosa inspiração para os que prosseguem nessa mesma caminhada.
Assim serão recordados Dom e Bruno de agora em diante: como testemunhas. No início do Cristianismo, a palavra mártir equivalia a testemunha. O jornalista britânico e o indigenista brasileiro são testemunhas eloquentes da causa da ecologia e do meio ambiente. A trajetória radical de suas vidas os transformou em mártires da causa ecológica e deve inspirar todos que clamam por uma conversão à causa do planeta, conversão à vida e ao futuro da Terra e da humanidade.
Vítimas da barbárie, da incúria, da violência e da corrupção que imperam no Brasil, são testemunhas veneráveis da luta difícil e necessária pela Amazônia e pelos povos indígenas. Que o testemunho de ambos possa brilhar sempre mais, para que a justiça aconteça e a esperança vença a opressão que pretende esmagar a beleza e a vulnerabilidade da vida.
Maria Clara Lucchetti Bingemer
16.06.22
Atirar-nos e ir. Arriscar. Praticar o recomeçar. Uma e outra vez. Ousar ser inteira, cada vez mais inteira em cada recomeço. Ousar mostrar-nos. Ousar falar, ousar errar, ousar cair, ousar cometer erros. Viver é a verdadeira adrenalina.
Não me iludo. Não me pressiono. Aceito que às vezes a melhor opção é parar, mesmo quando todos nos dizem para continuar. Eles não são nós. Só eu só eu. Só eu sou capaz de ouvir o chamamento da vida, de Deus, de Jesus, do espírito santo, do amor. Só eu sei. Só nós sabemos.
Uma vez uma amiga disse-me, citando Susanna Tamaro: “E quando à tua frente se abrirem muitas estradas e não souberes a que hás-de escolher, não metas por uma ao acaso, senta-te e espera. Respira com a mesma profundidade confiante com que respiraste no dia em que vieste ao mundo, e sem deixares que te distraia, espera e volta a esperar. Fica quieta, em silêncio, e ouve o teu coração. Quando ele te falar, levanta-te, e vai para onde ele te levar.” O nosso coração sabe o caminho. Ele sabe mesmo. Ousar senti-lo e segui-lo é o desafio diário. Mas quando o fazemos, quando nos colocamos inteiras no mínimo que fazemos não há erros ou desilusões, há oportunidades de aprendizagem, há crescimento, há vida. Sim, é mais fácil ficar no sofá. É mais fácil ficar sentado no conforto. Mas ir é o que nos permite florescer, é o que nos permite criar-nos, experimentar-nos.
Confiar é o verdadeiro desafio. Confiar que sabemos o caminho. Confiar na voz que ouvimos dentro de nós. Confiar nos nossos dons. Confiar no espirito santo. Confiar. Entregar. Precisamos de nos entregar com a mesma coragem com quem um paraquedista se atira do avião. Ele testou tudo. Mas quantas coisas ainda assim podem dar errado? Muitas!. Todas! E ainda assim ele vai. Confia, entrega-se. Assim façamos nós. Ouçamo-nos, sintamos o espírito santo dentro de nós a mostrar-nos o caminho. E, ouvindo-o, vamos. Só vamos. Vamos reconhecendo que podemos não estar totalmente capacitados, mas certos que “Deus não escolhe os capacitados, capacita os escolhidos”(Albert Einstein).
“No entardecer da vida seremos julgados pelo amor” diz-nos São João da Cruz e “a salvação que brota do encontro com o Amor Incarnado leva, não a uma vivência em busca do não pecar, mas a uma vivência em procura constante do mais amar.” (Susana Vilas Boas). Então que o nosso foco seja o amor, que o nosso foco seja amar. Se nos focarmos no amor nada mais na nossa vida e no nosso caminho será se não o amor. Seremos e viveremos em vida o que santo agostinho apregoou “Ama e farás o que quiseres”.
Paula Ascenção Sousa
20.06.22
O mundo corre mais depressa do que o tempo. O tempo não pára e dizem-nos que não podemos demorar. Ensinaram-nos, e ensinam-nos todos os dias, que não há tempo para parar. Não há tempo para demorar. E vamos passando, apressados, pelos dias, quase sempre sem parar. Sem reparar. Sem sentir, nada mais do que a correria do mundo e do tempo. Quase, até, sem respirar. Sem viver para o que realmente nos faz viver. Para o que nos faz amar.
Mas, hoje, eu quero dizer-te uma coisa: demora-te.
Dentro de um abraço.
Abraça alguém de quem gostas muito. Abraça alguém que precisa de um abraço. Abraça alguém porque tu precisas de um abraço. Abraça porque um abraço é a forma mais bonita de (de)morar. E demora-te.
Demora-te dentro de um abraço que, mesmo antes de abrir os braços, já está a chamar-te. Um abraço que te chama com o olhar, um abraço que te convida a entrar. A ficar. A morar. Demora-te dentro de um abraço que te abraça por inteiro. Um abraço que segura cada pedaço do teu coração. Da tua alma. Demora-te dentro de um abraço que te cura. Um abraço que sossega os medos. Um abraço que acalma as tempestades. Um abraço que te salva. Demora-te dentro de um abraço que te aquece quando o mundo é frio (e quando não é, também). Um abraço que te mostra o mundo mais bonito de todos os mundos. Demora-te dentro de um abraço-casa. Um abraço que te guarda dentro. Um abraço que te abriga do mundo inteiro. Um abraço que é o teu lugar. Demora-te dentro de um abraço que é a forma do amor. Um abraço que enlaça dois corações. Um abraço que te abraça para sempre. Demora-te dentro de um abraço que chega quando mais nada chega.
Demora-te dentro de um abraço. Mesmo que o mundo corra mais depressa do que o tempo. Mesmo que o tempo não pare e que digam que não podemos demorar. Demora-te. Demora-te, porque é dentro de um abraço que o mundo pára. Que o tempo pára. E só quando paramos para nos demorarmos em algo, em alguém, é que vivemos. É que amamos.
E a verdade é esta: Mesmo que o mundo corra mais depressa do que o tempo e mesmo que o tempo não pare, não há correria nenhuma no mundo que compense o amor de um abraço demorado. E o milagre de um coração a sorrir.
Daniela Barreira
In: imissio.net 16.05.22
imagem: pexels.com
O tema não é novo. Arrisco-me a dizer que chega a ser um assunto já demasiado mastigado. Que me perdoem os leitores mais assíduos. No entanto, falar do mesmo não parece estar a ajudar-nos a sair dos velhos ciclos, dos círculos viciados, das rodas do hamster do costume. Conhecemos bem o tema, mas continuamos reféns. Não sabemos o dia de amanhã. E, para nos lembrar desta verdade estonteante, a vida vai-nos deixando post-its em forma de lembretes. A doença de alguém querido. Um acidente inesperado. Um imprevisto que muda a vida a alguém. O rumo das coisas que, subitamente, se torce e nos faz rebentar as cordas que nos prendem aos dias.
Seguimos pela vida como se fosse nossa para sempre. Como se não estivéssemos cá de passagem. Como se o mundo nos pertencesse para esta e para as próximas gerações.
Já vai sendo tempo de aceitar a cruel e fria verdade: estamos cá emprestados. Não somos daqui. Temos uma oportunidade incrível para nos fazer valer a pena. Para fazer que os dias dos outros valham a pena também. E, o que me parece é que estamos a desperdiçar-nos, a desperdiçar a oportunidade e a beber de um copo que já não tem água alguma.
Estamos aqui de passagem e ninguém sabe o dia de amanhã. Ninguém sabe se cá continua ou se foi hoje a última vez que se abraçou o filho. Se o aceno do costume se repetirá depois. Se o telefonema volta a trazer a nossa voz. Se o trabalho será o mesmo. Se os nossos estarão cá. Se a vida nos troca as voltas.
Enquanto a vida não nos troca as voltas e os dias, aprendamos a viver como deve ser. Como quem sabe que o tempo é curto. Que tudo passa demasiado depressa e que, quando menos esperarmos, podemos já não estar cá para ver a festa que a vida pode ser.
Marta Arrais
In: imissio.net 01.06.22
Imagem: pexels.com
Ao morrer meu amigo
algo de mim
que já era ele
se foi.
Algo de mim
ressuscitou nele.
Algo dele
que ainda sou eu
ficou.
Algo dele
espera em mim por ressurreição.
O tempo ao passar
parece devorar
todo o amor.
Mas quanto mais afasta
no passado minha recordação,
mais se aproxima
ao encontro sem distância
do futuro.
Ainda que em mim
cada dia tenha
sua poda, sua espera e sua colheita,
para ele
já toda a história se cumpriu
eu cheguei com ele,
e ali estou.
Obrigado, Senhor.
(Benjamin Gonzalez Buelta sj)
(homenagem do Centro Loyola ao querido amigo Pe. J. Konings SJ, que faleceu hoje, dia 21 de maio de 2022, aos 80 anos, vítima de um aneurisma. Pe. Konings coordenava há mais de 10 anos o Grupo Pe. Alberto Antoniazzi no Centro Loyola, que se reúne mensalmente para discutir temas atuais)
No meio dos dias difíceis e em que nos sentimos tão perdidos, o que nos salva? O que nos abrevia as fraquezas? As faltas de coragem? As tristezas e as dificuldades?
Salvam-nos os nossos. Os amigos de cada dia. As pessoas que dividem connosco as nossas angústias, mágoas, raivas de estimação.
Salvam-nos os nossos. A nossa família-raiz que nos sustenta mesmo quando não sabemos para que colo correr.
Salva-nos a oração. O colocar as mãos juntas e o rezar como quem está disponível para não compreender, não saber, não conseguir mais. O colocar no Céu as escuridões que nos diminuem a alegria.
Salva-nos o vento a bater na cara num dia quente.
Salva-nos o barulho do vinho a escorregar copo abaixo.
Salva-nos a espuma do mar a perseguir os nossos pés ainda demasiado brancos de sol e de verão.
Salva-nos o sorriso de quem nos abre a porta e nos deixa passar. De quem espera por nós. De quem prepara uma refeição a contar connosco.
Salva-nos saber que somos amados. Que somos diferentes de todos os outros e que é nessa diferença que nos encontramos a meio caminho. A meio da ponte.
Salva-nos saber que os dias maus também passam e que o sol brilhará, na mesma, indiferente às nossas amarguras.
Salva-nos a fé. O querermos ser vaso para que a paz se cultive, também, a partir de nós.
Salva-nos vivermos em comunidade. Em conjunto. Mesmo quando nos sentimos mais sozinhas.
Salvam-nos os refúgios em forma de gente. Ou os refúgios lugares. O mar. A serra. O verde. A casa dos nossos. O café do costume. O restaurante de sempre.
Salva-nos ter a certeza de que não vivemos (nem estaremos!) nunca sozinhos. Vamos acompanhados. O que vivemos é vivido (e partilhado) por mais almas. Por mais pessoas. Por mais silêncios.
Nos dias que não são bons, sê bem. Faz o bem. O bem custa menos do que qualquer outra coisa.
Marta Arrais
In: imissio.net 18.05.22
Nem sempre sabemos comunicar, com qualidade e empatia, aquilo que precisamos de dizer aos outros. Como vivemos ligados à corrente, a vaguear de um lado para outro sem parar para pensar, as respostas que damos aos outros são condizentes com esse modo de vida. Rápidas. Impensadas. Ríspidas, muitas vezes.
Saber comunicar é uma necessidade de todos e, diria mesmo, uma urgência. Aquilo que dizemos deixa marca na pele do que os outros são e pode, mesmo, marcá-los com efeitos a longo prazo.
Mas, então, devemos optar por nos calar mais vezes? Por nos remeter ao silêncio?
Julgo que não. Talvez valha a pena, em primeiro lugar, pensar antes de falar. Antes de dizer seja o que for. No entanto, e quando tal não seja possível, será importante dizer o que é preciso com a calma que o outro nos parece.
Vejamos: de que nos vale começar a disparar em todas as frentes se a outra pessoa vai ouvir, primeiro, o nosso tom de voz e deixá-lo ressoar dentro de si? Aquilo que se vai ouvir é a forma como se disse: o tom, a frieza ou a ausência desta. A calma ou o fogo. A aspereza ou a suavidade. Só depois, e já quase sem qualquer espaço para receber a mensagem, se vai ouvir o que se disse.
Sendo assim, talvez possamos educar-nos para aprender a respirar fundo antes de falar com alguém. Antes de dizer o que quer que seja.
Na verdade, o que importa não é (muitas vezes) o que se diz, mas, antes, como se diz. Como se transmite o que flutua dentro do coração. Como se diz aquilo que mora debaixo de tudo aquilo que somos e temos.
Marta Arrais
In: imissio.net 11.05.22
Imagem: pexels.com/edmond-dants
São muitas as vezes em que nos perguntamos isto: porque não pode ser como eu quero? Porque não posso ter o que quero, agora? Porque é tão difícil, para mim, ver resolvidos os obstáculos do meu caminho?
Quem nunca se questionou, em voz alta, pelo menos já terá “verbalizado” alguma destas questões a um nível mais interior ou entre pensamentos mais ou menos frustrados.
Era mais fácil se, pelo menos, algumas coisas fossem como gostaríamos. Até ousamos esquecer aquele argumento de: “mas eu posso nem sempre saber o que é melhor para mim”. Quem saberá o que é melhor para mim se não for eu mesmo/a?!
Pois é. Esta reflexão última pode encerrar algum fundo de verdade, mas, na realidade, também podemos contar como muitas as vezes em que, posteriormente, teremos compreendido os motivos para este ou aquele acontecimento não terem sido como queríamos. Ou porque a vida nos preparava para algo melhor. Ou porque aquilo que achávamos ser bom para a nossa vida se transformou numa desilusão que até agradecemos não ter incluído ou recebido dentro do coração.
Claro que é legítimo (e humano!) querer que as coisas sejam como imaginamos. Como queremos, até. Mas não quer necessariamente dizer que essa vontade seja condizente com o melhor cenário para mim. Para ti. Para nós.
Talvez o maior e mais bonito mistério da vida seja, exatamente, não saber sempre tudo. Não se ter sempre tudo o que se quer. Quando se quer.
Talvez a magia more nessa incerteza, nessa surpreendente possibilidade do que ainda está para vir e para chegar.
Enquanto não sabemos o que chegará para nós, talvez valha a pena acender dentro da alma o desejo de querer sempre o que for melhor. Mesmo que não seja já. Mesmo que não seja com a forma que imaginámos.
Marta Arrais
27.04.22
In: imissio.net
Depois do grande silêncio quaresmal, as comunidades cristãs voltam a dizer a palavra “aleluia”. Os 40 dias da quaresma serviram para criar fome dessa palavra temporariamente interdita, para sentir o desconforto que significa sermos privados dela. Serviram para reativar em nós o desejo, para nos sentirmos em tensão. Permitiram que crescesse irreprimível ao longo dos dias a vontade de a cantar. Essa palavra é mais do que uma palavra: é uma senha. Ela resume a grande viragem pascal, a novidade que até a Páscoa de Cristo o mundo desconhecia e que agora se manifesta escancarada aos olhos de todos, o acontecimento inédito que opera a reviravolta da história. Sim, aleluia: Jesus ressuscitou e abriu, aos nossos lábios mortais a possibilidade de conjugar esse verbo (o verbo ressuscitar) que nenhum de nós acreditaria possível. É isso mesmo que relatam as narrativas bíblicas que se leem nestes dias. Enganos como as de Madalena que confundiu o Mestre com o jardineiro, são iguais aos que diariamente repetimos. Marcações de incredulidade como as que faz Tomé (“Se não vir o sinal dos pregos nas suas mãos, e não tocar com o meu dedo no lugar dos pregos, e não puser a minha mão no seu lado... não acreditarei”), estamos prontos a repeti-las a todo o momento. Perplexidades como as de Pedro que entra no sepulcro vazio e vê a mortalha abandonada, sem saber o que pensar, habitam-nos ainda agora. O ceticismo pragmático dos discípulos de Emaús que deixam para trás Jerusalém, julgando ter assistido ao ponto final de tudo, cola-se assiduamente à nossa pele. Nenhum deles sabia — como nós não sabíamos — que a morte daquele Justo, a propósito do qual o soldado que o vê a expirar comenta, “verdadeiramente, este homem era o Filho de Deus!” (Mc 15:39), era afinal não o fim, mas o começo. Era, é e será “o primeiro dia”. O nosso “primeiro dia” e o do mundo. Nós não sabíamos.
Atravessámos o drama de Sexta-Feira Santa e o silêncio do sábado sem nada entender. Sophia de Mello Breyner Andresen empresta palavras para exprimir o retumbante desconcerto que nos assalta: “Ei-lo caído à beira do caminho,/ Ele — o que partira com mais força/ Ele — o que partira para mais longe.// Porque o ergueste assim como um sinal?/ Pusemos tantos sonhos em seu nome!/ Como iremos além da encruzilhada/ Onde os seus olhos de astro se quebraram?” De fato, é aí que nos situamos, perguntando-nos “como iremos além da encruzilhada”.
“Aleluia” é uma palavra-bússola: dizemo-la porque a Páscoa irrompe decisiva como um norte. “Aleluia” é a palavra-alavanca: dizemo-la porque a Páscoa irrompe como um interminável jato de vida que nos projeta. “Aleluia” é uma espécie de alvoroço, é a vocalização de um sobressalto: entoamo-lo porque a Páscoa de Jesus transporta consigo o poder de reconfigurar o mundo, de redefinir, em chave de esperança, a esquadria do nosso destino. Ousemos neste abril tão precário dizer firmemente “aleluia”.
Santo Agostinho, que assinou uma das mais belas reflexões sobre esta palavra, ensinava que a história do nosso destino tem duas fases: “Uma que decorre agora no meio das tentações e tribulações desta vida, e a outra que será na segurança e na alegria eternas. Por esse motivo foi também instituído para nós a celebração de dois tempos, aquele anterior à Páscoa e aquele que lhe sucede. O tempo que precede a Páscoa representa a tribulação na qual nos encontramos; aquele que se segue à Páscoa representa a felicidade que gozaremos. (...) O aleluia que dizemos por enquanto é como o canto do viandante; todavia, tendemos àquela pátria onde (...) tudo será aleluia.”
Dom José Tolentino Mendonça
23.04.22
In: imissio.net
Imagem: flor Aleluia - Senna bicapsularis
Não é a vida que nos desilude. Ou as pessoas. Ou os cenários. Ou mesmo as viagens de sonho que pensávamos que íamos fazer.
Não é o trabalho que nos desilude. A profissão. A vocação. A vida familiar. Ou a vida consagrada. O que nos desilude é o tamanho das nossas expectativas. O que nos desilude são as esperanças pouco condizentes com a realidade. Aquilo que idealizamos. Aquilo que esperamos de mão estendida, ainda que não haja ninguém pronto para nos dar coisa alguma.
O que nos dificulta a vida não são as pessoas, mas, antes, as expectativas que temos sobre elas. De que nos sejam fiéis. De que não falhem. De que correspondam. De que sejam o mais perfeitas possível.
O que nos trava o quotidiano não é a rotina nem o trabalho que rima com a mesmice do costume. São as expectativas. A esperança que tínhamos de que nos iam ouvir. De que nos atendessem todos os pedidos. A vontade de mudar tudo quando éramos só nós que estávamos preparados para um feito dessa natureza.
O que nos bloqueia e nos derruba são as expectativas. E a diferença abismal do que acontece para o que gostaríamos de ver acontecer.
Talvez nos ajude o exercício de esperar menos. De nos deixarmos surpreender pelo que ainda está por suceder. Enquanto não confiarmos no processo, por muito que este inclua a nossa própria dor ou mágoa, não viveremos alinhados com o que pode haver. Com o que pode ser.
Gostaríamos que tudo fosse como planeamos. Como imaginávamos quando tínhamos a força de tantos sonhos. Mas sabemos que não é possível. Que tudo nos pode varrer a tranquilidade enquanto perdemos tempo a imaginar cenários de perfeição.
É quando não se espera nada de ninguém que as pessoas são capazes de nos surpreender profundamente. E pela positiva. E pelo bem.
É preciso esperar menos. Ir andando sem ter sempre tudo definido nos quadrados castradores das expectativas. Das preocupações.
Quem nos dera sabermos viver como tem de ser. E esperar (só) o que tiver de vir.
Marta Arrais
20.04.22
In: imissio.net
Há dias em que tudo parece perder a cor. Sem porquê, uma tristeza estranha atira-nos para uma monotonia estéril. Não há nada ali. Nem dentro de nós se houve voz alguma. Como se o sentido de tudo se tivesse desfeito. O bem e o mal parecem iguais…
A solidão cai como um nevoeiro e cega-nos. Não se ouve nada e também não se consegue dizer nada…
Mas assim que o coração se liberta do medo e se começa a olhar o desalento com amor, sem lhe dar o poder que deseja, eis que nosso espírito sorri, porque compreende que todas as pessoas têm dias cinzentos e que daí só chega mal ao mundo se alguém lhe sacrificar a sua vida em troca de uma falsa promessa de conforto.
Só há sofrimento profundo num coração grande. O problema de um espírito mais elevado é que se volta e revolta contra si mesmo.
A nossa existência exige que fixemos objetivos e que tenhamos a energia necessária para chegar lá. Sonhar não é senão o primeiro e o mais fácil dos passos rumo à felicidade.
A sabedoria passa por descobrir a verdade de cada coisa, distinguindo-a de todas as demais. Para uma mente cansada, tudo é indiferente.
A grandeza do espírito não está na quantidade de ideias de que é capaz, mas da honra daquelas que assume cumprir.
Aquele que consegue dizer não aos ventos que o tentam demover das suas intenções, aquele que é capaz de assumir os dias tristes como parte do seu caminho, mas que não se detém neles mais do que é natural, vence as trevas dentro e fora de si.
Há quem passe o tempo a tentar encontrar forma de viver confortável no seu desespero. Outros sofrem ainda mais por acreditar na sua esperança, buscando, por todos os meios, uma forma de se evadirem da prisão da angústia. Só estes chegam onde querem.
Só vive os seus dias quem se revolta contra a morte de cada momento.
José Luis Nunes Martins
In: imissio.net 08.04.22
imagem: pexels.com
Se te acontecer que estejas prestes a perder tudo, conserva a dignidade, sem cometeres atos dos quais, depois, só te poderás arrepender.
Muito do que temes perder, tem pouco valor, quando comparado com o que, sendo importante, dás por adquirido.
Na verdade, podes perder tudo, tudo, até mesmo a ti mesmo… Cuidado, é mais fácil do que te parece, bastam duas ou três decisões insensatas e eis que estarás no fundo de um poço. Tudo porque não aceitaste a perda como parte da vida e tenhas decidido fazer o que não devias: perder a dignidade numa teimosia contra a lógica.
Uma adversidade pode ser um trampolim para o melhor de nós, assim saibamos encará-la com a firme certeza de que estamos a ser postos à prova. Alguns perdem-se quando têm tudo e estão bem. De tal forma que só uma desgraça acaba por lhes devolver as suas virtudes mais nobres.
O que temos é finito, o que somos é infinito. Ninguém devia deixar que o que tem ou não lhe arruíne o que é.
Uma excelente indicação sobre aquilo de que somos feitos é a forma como reagimos a algo que nos rasga os sonhos.
Não troques a tua alma por nada deste mundo.
José Luis Nunes Martins
In: imissio.net 01.04.22
“Come e bebe com os pecadores” afirmam, escandalizados, os fariseus. Nas parábolas da Misericórdia, Jesus afirma a alegria do perdão que restitui a vida plena, liberta do peso das culpas e das alienações, estabelece a harmonia e restitui a paz.
A misericórdia de Deus vence o pecado através do perdão. Ao pecador arrependido, Deus perdoa e liberta. Como o Oriente dista do Ocidente, assim Ele afasta de nós os nossos pecados. Esquece as nossas faltas apaga-as da Sua memória. O perdão liberta do sentido de culpabilidade inerente à nossa condição. O perdão gera a paz e a harmonia. O perdão de Deus é como a amnistia nos gregos, significa fazer tábua rasa dos conflitos e recomeçar de novo. O perdão permite recomeçar e reconstruir a vida, porque alguém confia em nós e nos dá a mão. Pelo perdão Deus aceita-nos como somos, com as nossas divisões interiores, fragilidades e incoerências.
O dom do perdão é oferecido como presente pascal aos apóstolos na tarde da Ressurreição. O Senhor deseja-lhes antes de mais a paz: “A paz esteja convosco” e repete para levarem a paz ao mundo. Depois sopra sobre eles e comunica-lhes o dom do Espírito Santo e a missão de perdoar os pecados. O sopro faz lembrar o início da criação quando Deus soprou sobre Adão, homem de barro, para lhe comunicar o sopro da vida e o tornar um ser vivente. O perdão comunica a vida nova da ressurreição, cria uma realidade nova, abre ao futuro. É mais do que uma amnésia do passado. É um novo impulso no caminho da santidade: “levanta-te e caminha”. Orienta para o futuro iluminado pela esperança.
O bom samaritano viu o ferido caído à beira da estrada e encheu-se de compaixão por ele: Aproximou-se então e curou-lhe as feridas. O primeiro desafio é ver, prestar atenção aos que sofrem, frequentemente esquecidos numa cultura que vive da fachada exterior. No dizer de Simone Weil, “o amor ao próximo é feito de atenção. Os infelizes não precisam de outra coisa neste mundo senão de homens que lhes prestem atenção. A capacidade de prestar atenção a um infeliz é coisa muito rara. A capacidade de amor ao próximo é simplesmente ser capaz de lhe perguntar qual é o teu tormento”.
Essa é a força curativa da fé!
Me. Pe. Alexsander Baccarini Pinto
Universidade Católica Portuguesa / FT-UCP
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