Um jovem não sabe o que ele está a fim de fazer da vida, e os pais pedem que eu descubra qual é o desejo do filho, de modo que ele possa escolher o vestibular e a profissão que ele "realmente" gostaria.
Na mesma semana, encontro um adulto que acha que, de fato, nunca fez nada por desejo. Embora bem-sucedido, queixa-se de que suas escolhas (profissionais e amorosas) sempre teriam sido circunstanciais, efeitos de oportunidades encontradas ao longo do caminho. Ele pede, antes que seja tarde, que eu o ajude a descobrir qual é "realmente" o seu desejo.
Nos dois casos, o pressuposto é o mesmo: quem viver segundo seu desejo será, no mínimo, mais alegre. Esta é mesmo uma boa definição da alegria: a sensação de que nosso desejo está engajado no que estamos fazendo, ou seja, de que nossa vida não acontece por inércia e obrigação. Inversa e logicamente, muitos estimam dever sua (grande ou pequena) infelicidade ao fato de terem dirigido a vida por caminhos que - eles declaram - não eram exatamente os que eles queriam.
Pois bem, esse pressuposto e os pedidos que recebi se chocam com esta constatação: o "nosso desejo" nunca é UM desejo definido por UM objeto ou por UM projeto. Não existe, nem escrito lá no fundo escondido de nossa mente, UM querer definido, que poderíamos descobrir e, logo, praticar com afinco e satisfação porque estaríamos fazendo aquela coisa ou caçando aquele objeto aos quais éramos, por assim dizer, destinados. Nada disso: de uma certa forma, todos os objetos e os projetos se valem, e nenhum é "nosso" objeto ou projeto específico. Ou seja, nós desejamos sempre segundo as circunstâncias, os encontros, as oportunidades - segundo as tentações, se você preferir.
Somos volúveis? Nem tanto, pois cada objeto e projeto não substitui necessariamente o anterior. O que acontece é que desejar é uma atividade inventiva a jato contínuo. Por consequência, mesmo quando estamos alegremente convencidos de estar fazendo o que queremos com nossa vida, nunca estamos ao abrigo do surgimento de desejos novos.
Claro, podemos aceitar esses desejos novos. Por exemplo, em "As Confissões de Schmidt" (que não é um grande filme), de A. Payne, com Jack Nicholson, o protagonista acorda de noite, olha para sua mulher de sei lá quantos anos e se pergunta estupefato: "Quem é esta mulher que dorme na minha cama?". Logo, ele dá um rumo novo à sua vida, colocando o pé na estrada. Mas a expressão de seus novos desejos é fortemente facilitada por duas circunstâncias: providencialmente, o protagonista se aposenta e fica viúvo. Nessas condições, escutar novos desejos fica fácil, não é?
Agora, imaginemos alguém que esteja no meio de sua vida profissional e num bom momento de sua vida amorosa. Nesse caso, provavelmente, o novo desejo será silenciado, reprimido, menosprezado ("deixe para lá, é besteira"). Resultado: o indivíduo continuará declarando que está vivendo a vida que ele queria (e, em parte, será verdade); só que, de repente, sem entender por quê, ele perderá sua alegria.
Por que razão nosso indivíduo negligenciaria seus novos desejos? Simples: por serem novos, eles acarretam a ameaça de uma ruptura no presente: afetos e laços que poderiam ser perdidos, medo da solidão e preguiça dos esforços necessários para reinventar a vida.
Infelizmente, essa negligência tem um custo alto. Sempre entendi assim a "Metamorfose", de Kafka: alguém acorda, e o que até então era uma vida normal e legal, de repente, aos seus olhos, é uma vida de barata.
Nota útil para a clínica da depressão. Às vezes, procuramos em vão as causas de uma depressão; será que houve lutos ou perdas? Nada disso; está tudo bem, trabalho, família, filhos e tal, mas o indivíduo entristece, volta a fumar e a beber como se quisesse encurtar a vida, engorda como se estivesse num mar de frustração e precisasse de gratificações alternativas.
Em muitas dessas vezes, a origem da depressão não é uma perda, nem propriamente uma frustração, mas a aparição de um desejo novo que não foi reconhecido. E os novos desejos, sobretudo quando são silenciados, desvalorizam a vida que estamos vivendo.
Moral da fábula:
1) Não existem vidas definitivamente resolvidas, pois novos desejos surgem sempre;
2) É bom reconhecer os novos desejos, mesmo que deixemos de realizá-los.
Contardo Calligaris
(Texto publicado no Jornal Folha de São Paulo em 19/05/2011)
“O corpo tem alguém como recheio” Arnaldo Antunes, tema para o grupo “Corpo”, em 2000. Que corpo você está usando atualmente? Que corpo está representando você no mercado das trocas imaginárias, que imagem você tem oferecido ao olhar alheio para garantir seu lugar no palco das visibilidades em que se transformou o espaço público no Brasil? Fique atento, pois o corpo que você usa e ostenta, vai dizer quem você é. Pode determinar oportunidades de trabalho. Pode significar a chance de uma rápida ascensão social. Acima de tudo, o corpo que você veste, preparado cuidadosamente à custa de muita ginástica e dieta, aperfeiçoado por meio de modernas intervenções cirúrgicas e bioquímicas, o corpo que resume praticamente tudo o que restou do seu ser é a primeira condição para que você seja feliz. Não porque ele seja, o corpo, a sede pulsante da vida biológica. Não porque possua uma vasta superfície sensível ao prazer do toque – a pele, esse invólucro tenso que protege o trabalho silencioso dos órgãos. Não pela alegria que experimentamos os apetites, os impulsos, as excitações, a intensa e contínua troca que o corpo efetua com o mundo. O corpo-imagem que você apresenta ao espelho da sociedade vai determinar sua felicidade, não por despertar o desejo ou o amor de alguém, mas por constituir o objeto privilegiado do seu amor próprio: a tão propalada auto-estima, a que se reduziram todas as questões subjetivas na cultura do narcisismo. Nesses termos, o corpo é ao mesmo tempo o principal objeto de investimento do amor narcísico e a imagem oferecida aos outros - promovida, nas últimas décadas, ao mais fiel indicador da verdade do sujeito, da qual depende a aceitação e a inclusão social. O corpo é um escravo que devemos submeter à rigorosa disciplina da indústria da forma (enganosamente chamada de indústria da saúde) e um senhor ao qual sacrificamos nosso tempo, nossos prazeres, nossos investimentos e o que resta das nossas suadas economias...
Para milhares de brasileiros, incentivados pela publicidade e pela indústria cultural, o sentido da vida reduziu-se à produção de um corpo. A possibilidade de ”inventar” um corpo ideal, com a ajuda de técnicos e químicos do ramo, confunde-se com a construção de um destino, de um nome, de uma obra. “Hoje eu sei que posso traçar meu próprio destino”, declara um jovem freqüentador de academias de musculação, associando o aumento de seu volume muscular à conquista de respeito por si mesmo. As ciências biomédicas, em defesa de uma “pretensa” saúde, ocuparam o lugar deixado vazio pelos discursos religiosos, filosóficos e, morais no mundo contemporâneo. Seu saber orienta uma variadíssima indústria do corpo, ainda em expansão no Brasil, cujos imperativos em nome da vida, da felicidade e da saúde conquistam mercados e mentes. O cuidado de si volta-se para a produção da aparência, segundo uma crença já muito difundida de que a qualidade do invólucro muscular, a textura da pele e a cor dos cabelos revelam o grau de sucesso de seus proprietários...
É fato que as sociedades burguesas, desde o século XIX, consideraram o corpo como propriedade privada e responsabilidade de cada um. O corpo - mas o corpo vestido, domado pela compostura burguesa e embalado pelo código das roupas era o primeiro signo que o “self-made man” em ascensão, sem antecedentes nobres, emitia diante do outro a respeito de quem ele “é”. A aparência substituiu, com vantagens democráticas “o sangue”. O corpo bem comportado de até poucas décadas atrás dizia: sou uma pessoa decente, confiável, honrada – e meus negócios vão bem. O corpo malhado, sarado e siliconado do novo milênio diz: sou um corpo malhado, sarado, siliconado. O circuito se fecha sobre si mesmo...
No Brasil de hoje, em que o espaço público foi a um só tempo, desmantelado e ocupado pela televisão, a produção dos corpos é a produção da visibilidade vazia, da imagem que tenta apagar a um só tempo o sujeito do desejo e o sujeito da ação política. A cultura do corpo não é a cultura da saúde, como quer parecer. É a produção de um sistema fechado, tóxico, claustrofóbico. Nesse caldo de cultura insalubre, desenvolvem-se os sintomas sociais da drogadição (incluindo o abuso de hormônios e anabolizantes), da violência e da depressão. Sinais claros de que a vida, fechada diante do espelho, fica perigosamente vazia de sentido.
Maria Rita Kehl
Num livro magnífico, Maria Clara Bingemer conta a história de uma das figuras mais fascinantes do século XX — Simone Weil, filósofa, mística, ativista política. Nascida em Paris em 1909, de abastada família judia, Simone teve a melhor educação possível. Sua inteligência brilhou desde o início; mas ao lado disso estava um senso incrivelmente precoce de solidariedade com os que sofrem.
Aos cinco anos ela se fez madrinha de um soldado que combatia na Primeira Guerra Mundial e, por causa dele, privava-se de doces e tentava juntar dinheiro para remeter ao “afilhado”.
Era toda uma vocação que já se definia. Terminando seu curso secundário, tornou-se aluna do legendário Alain, filósofo e grande professor. Dali extraiu a sua base de estudos humanísticos, sua ligação com a Grécia antiga. Um de seus textos capitais trata da “Ilíada: o poema da força”. Outra característica de Simone: a ausência total de vaidade. Simone de Beauvoir encontrou-a na Sorbonne, achou graça na maneira de ela se vestir; mas assustou-se ainda mais com as suas idéias. Uma grande fome devastara a China e Simone chorava por causa disso. Ela já estava polarizada no sofrimento humano.
Convertida ao cristianismo sem rejeitar o judaísmo.
Mas não era polarização apenas intelectual, ou afetiva: ela queria viver a vida do povo, sentir as suas dificuldades. Começou uma série de experiências de trabalho em fábricas, onde disfarçava a sua condição de intelectual. Sem ter força física para aquilo, tinha dores de cabeça monumentais, mas recusava tratamento diferenciado.
Daí surgiu, depois de anos e de várias experiências, uma reflexão sobre a condição operária sem paralelo nas letras modernas. E também ali ela discernia o problema da força, da violência que dobra o ser humano, que o transforma numa coisa. Reflexão de absoluta atualidade. Do mesmo período vem toda uma meditação sobre a existência de Deus, que a levará na direção do misticismo. Ela acabou por converter-se ao cristianismo, sem com isso rejeitar a religião de seus pais.
Mas tinha dificuldades com o judaísmo ortodoxo, porque não conseguia digerir a violência que transborda de certos textos do Antigo Testamento. Neste sentido, sem chegar a uma adesão formal, é que ela experimentou a atração do cristianismo: na cruz de Cristo, ela via a figura divina finalmente irmanada às nossas dores, sofrendo o que nós mesmos sofremos.
Simone passou pelos grandes conflitos do século XX. Do ponto de vista teórico, desenvolveu uma crítica penetrante do marxismo, mostrando por que a obsessão pela economia não representava um caminho aceitável. Foi para a Espanha ajudar na luta contra o franquismo, mas também por esse lado colheu decepções. E, finalmente, fez tudo o que pôde para participar da luta contra o nazismo. Em todas essas peripécias, fazia questão de partilhar a sorte dos que tinham a vida mais dura: recusava-se a comer mais do que a ração entregue aos soldados no front, ou às populações depauperadas — com o que a saúde, já frágil, acabou cedendo, resultando na sua morte prematura. Ela é o exemplo do intelectual que desenvolve o seu pensamento em contato direto com a mais crua realidade. Quando ela escreve sobre o impacto da força nos seres humanos, é porque sentiu diretamente esse efeito, nas fábricas onde trabalhou, nos combates da Guerra Civil espanhola.
Pensamento racional acossado pela violência.
Escreve Maria Clara Bingemer: “Simone acusa a nossa época de ser o palco de uma decadência intelectual terrível. A ciência contém mecanismos intelectuais refinados para resolver os problemas mais complexos, mas é incapaz de ajudar a aplicar os métodos elementares do pensamento racional”. Diz a própria Simone: “Em todos os campos, parecemos ter perdido as noções essenciais de inteligência, limite, medida, grau, proporção, relação, ligação, conexão entre meios e resultados”. Sente-se nessa frase a antiga aluna de Alain — como o seu mestre, apaixonada pelo senso de medida dos gregos, pelas possibilidades do pensamento racional.
Mas, em todas as épocas, esse pensamento racional é acossado pela violência pura, pelo jogo das paixões — e é isso o que Simone identifica no descontrolado cenário moderno. Com o seu cérebro privilegiado, ela vai tentar destrinchar essas relações entre o ser humano e a força que o destrói, ou o oprime. Mas o problema é de tal natureza que não admite solução puramente racional. E é então que Simone — como a sua contemporânea e irmã espiritual, Edith Stein — vai procurar luz e consolo no mistério do Cristo. Maria Clara quase que resume o caminho espiritual de Simone Weil na idéia da compaixão — “sentir com”, “sofrer com”. É o que a menina Simone já sentia, e o que, na mulher adulta, se transforma em opção consciente. A autora cita Simone: “É extremamente difícil a capacidade de prestar atenção a um infeliz — é quase um milagre; ou é mesmo um milagre”.
Luiz Paulo Horta
Há uma dignidade no silêncio. Ele está acabando. Cercado de barulho por todos os lados, as pessoas perdem a cada dia a capacidade de ouvir determinadas verdades que brotam do interior. A poluição sonora (em forma de ruído e de arte musical padronizada de baixa qualidade) é talvez mais perniciosa que a visual. O olhar, com toda sua importância na economia psíquica, leva o homem até o mundo. A audição, com sua significação ainda não valorizada, traz o mundo até o homem. A poluição sonora macula a alma.
A extrema valorização do visual na contemporaneidade fez o homem esquecer a origem quase sagrada da audição e, conseqüentemente, do silêncio. No mundo ocidental, a filosofia tem como uma de suas marcas de origem a importância da palavra falada e mesmo uma desconfiança da palavra escrita. Os maiores mestres da humanidade não escreveram nada, mas falaram, buscaram comunicação, procuraram o diálogo vivo.
No Oriente, essa dimensão sagrada do som vai muito além das mensagens racionais ou poéticas. Há mesmo uma crença de que o mundo fala, em todas as suas emanações.. O cosmo é som. Algumas experiências científicas atuais parecem confirmar a intuição metafísica dos hindus, com captação de sons que vão da natureza aos céus. Perguntar se as rosas falam pode ser algo mais que poético, assim como a sinfonia dos planetas e a harmonia das esferas são mais que imagens e refletem algo verdadeiro.
Por excesso de ruído, desaprendemos a ouvir. O maior prejuízo nesse triste processo pode ter sido nossa surdez para o silêncio. A busca cada vez maior por meditação pode ser uma resposta à inflação do olhar. Quem medita se propõe a ouvir a si mesmo. No entanto, o maior problema talvez esteja na incapacidade de ouvir o outro. As duas pontas parecem se unir: a solidão e o silêncio são estágios necessários à verdadeira comunicação. O homem moderno tem vocação para ficar sozinho e tem medo de ouvir o outro. O caminho que se divisa é de um grande monólogo coletivo.
Uma das formas de manifestação dessa patologia social está no empobrecimento da linguagem e na ubiqüidade dos códigos automáticos de comunicação. As conversas parecem se dar antes do encontro. As pessoas apenas cumprem um roteiro dado de frases prontas e julgamentos pré-fabricados. As conversas entre alguns grupos se reduzem a tão poucas palavras que parecem apenas um exercício neutro de repetição de fórmulas. Não há verdadeira troca, apenas reconhecimento de grupo pelo domínio de um código comum..
A situação se torna ainda mais complexa quando se chega ao terreno da música, a mais nobre das artes, na expressão do filósofo romeno Cioran. Ainda mais para uma civilização musical como a brasileira, cercada de boa música por todos os lados. E é porque nossa música é tão boa que o problema é ainda mais grave. Estamos trocando uma história de riquezas pelo chorilho mercadológico da facilidade.
O sentido político (ou social) da música talvez seja uma das maiores perdas da incapacidade de conviver com o silêncio. Toda música carrega em si certa metáfora da democracia: é arte feita pelo povo, para o povo. Romper com o ciclo de produção e reconhecimento é uma das conseqüências mais explícitas do cenário pós – moderno. A música real foi trocada pela moda da música. O mercado é hoje o maior “criador” de obras.
Tudo se passa como se a história resolvesse dar um tempo (como defendem teóricos do fim da história) e afirmasse um presente absoluto. Num mundo sem perspectiva de superação, resta ao mercado oferecer as cotas de mudanças aceitáveis. Assim, o que é bom hoje se torna descartável amanhã. A moda é uma espécie de permanência sem verdade.
O músico teórico José Miguel Wisnik explicou esse processo em seu livro O som e o sentido: “O consumidor atribui uma cotação fetichista à última realidade. Para esse, a única verdade é que o futuro já chegou, como graça, para os que podem comprá-lo. Ao mesmo tempo o futuro não pára de chegar, é preciso se auto valorizar a partir de um consumismo ativo, supostamente seletivo e acelerado”. Para Wisnik, essa operação acaba por solapar o necessário intervalo do silêncio, que é valorativo no sentido mais nobre da palavra, permitindo a audição em profundidade. Sem esse momento reflexivo, “o banho lustral no zero do código”, todo o som corre o risco de tornar ruído. O silêncio é condição de possibilidade da música.
O historiador Eric Hobsbawn, escrevendo sobre jazz com o pseudônimo de Francis Newton, se pergunta sobre a capacidade de restauração da arte em nossas vidas. Para ele, parecia que uma manifestação como o jazz, que carrega em sim o sentido de uma arte popular, genuína, podia ser uma resposta, mas não era garantia. Ele alertava entre outros riscos, para os extremos do pop, como dissolvência, e das manifestações esotéricas, como prepotência. “Podemos ver que a arte popular genuína, excepcionalmente vigorosa e resistente, realmente funciona e modifica o mundo moderno.”, avalia em História Social do jazz. A padronização, infelizmente, parece estar vencendo a batalha. O jazz (como no samba) resiste, mas o mercado, que não tolera o silêncio e a qualidade que permanece, tem a capacidade de preencher seus espaços com barulhos. Jazz vira muzak, samba vira pagode.
Uma das técnicas de tortura mais eficaz inventadas pela besta humana consiste em invadir a interioridade do espaço íntimo com um som constante, que não dá tréguas. Esse método é mostrado no filme O ovo da serpente, de Bergman, em que um som contínuo, ainda que baixo, leva o indivíduo à loucura. O filme é de 1977. Desde lá, a tortura do ruído intermitente parece ter deixado a situação psicológica para ganhar dimensão social. Estamos enlouquecidos pelo barulho, viciado em ruídos, amortecidos pelo tumulto, felizes no isolamento ambientado com música eletrônica e outras simplificações.
O cenário de pessoas correndo em busca da saúde, com aparelhos de som nos ouvidos, é uma metáfora viva do nosso tempo. Todos querem viver mais e se cuidam praticando esportes, mas não suportam o silêncio, ou os sons verdadeiros do mundo, isolando-se com as capas das músicas que sopram dos i-pods como oráculos. Viver só tem sentido se aponta para a convivência. Ao esticar a vida e encurtar o contato, o mundo parece se tornar um lugar diferente, composto de individualidades que não se conectam.
O silêncio é o marco zero da conversa. Sem ele, cercado de ruídos por todos os lados, o outro é apenas um som a mais, com condão de turvar o ambiente em balbúrdia. O concerto do mundo é feito de vozes humanas que aguardam sua vez de falar. A boa música precisa do mesmo empenho para se construir como arte sedimentada no tempo, herdeira da tradição e capaz de inventar novas formas. Ouvir o som do silêncio é exercitar, como no Koan zen-budista, a habilidade de ouvir o som de uma única mão que aplaude.
João Paulo Cunha é diretor do Caderno Pensar e Cultura do Jornal Estado de Minas.
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