A beleza, a verdadeira beleza, tem maneiras imprevisíveis de chegar até nós. Recordo a peça de teatro de Romeo Castellucci, intitulada “Sobre o conceito de rosto no Filho de Deus”, que vi há anos.
Era uma reflexão em torno a duas imagens, e a primeira era esta: um filho adulto que cuidava do pai, um pai idoso, com muitos problemas de saúde.
Para os espetadores, era também duro de ver, porque um dos problemas daquele velho era a incontinência fecal. Por isso, o filho tinha de estar sempre a limpá-lo. E muitas vezes parece que ele está prestes a ceder, que já não será capaz de o fazer, porque volta a acontecer sempre e sempre a mesma coisa.
Também nós nos damos conta do seu esforço extremo: como é extenuante apoiar as necessidades de um outro ser humano! Ao mesmo tempo, porém, com que delicadeza, com que transparente amor aquele filho se dobra sobre o pai e o sustém.
E há um momento belíssimo, no meio daquela luta interminável, em que os dois são aliados: agarram-se um ao outro, e, abraçados, choram. Pai e filho choram diante do irremediável da própria vida, sentindo que não conseguem resolver nada, a não ser amarem-se, a não ser perdoarem-se e acompanharem-se até ao fim.
Por muito que possa parecer paradoxal, um dia damo-nos conta que poucas coisas no mundo são tão importantes.
A arte de deter-se é uma aprendizagem indispensável, ainda que seja muitas vezes esquecida. Quem não sabe deter-se, não sabe viver. Como há uma qualificação da existência que provém da ação, assim há outra que provém do repouso.
A vida não pode ser apenas um lugar para consumir e devorar. O marinheiro, quando parte para a grande aventura oceânica, deve certamente poder contar com o motor da sua embarcação, deve confiar-se ao bom estado do casco, da vela, dos remos; mas deve obrigatoriamente levar uma âncora, porque uma barca não pode navegar continuamente.
Do mesmo modo, um excursionista, quando prepara o seu percurso, deve prever não só a atividade, mas também os tempos e os lugares de pausa que lhe permitirão restaurar-se para poder retomar o caminho.
É verdade que, tendencialmente, nas nossas sociedades modernas, os estilos de vida se assemelham à cidade que nunca dorme. O tempo parece sempre escasso, em relação ao programa que nos impomos.
Gostaríamos que o tempo se dilatasse, e fosse aquilo que não é. Como o coelho de “Alice no país das maravilhas”, estamos sempre atrasados. Mas atrasados em relação a quê, nem sequer nós verdadeiramente o sabemos.
Se hoje vivemos num mundo de evasão, é porque somos mulheres e homens que não sabem ancorar a vida. E a vida acaba por se um vazio a que nada responde.
Hoje ouvem-se muitos pais a dizer: «Não quero influenciar a orientação do meu filho; a escolha deverá estar toda nas suas mãos; só desejo que seja feliz». Falando assim, estes pais não se dão conta do problema que estão a criar.
O amor, na verdade, não é desejar que o outro seja apenas feliz. Como Santo Agostinho ensina, o amor é, antes, um “volo et uis”: «Quero que tu sejas».
Mais do que os estados que atravessamos e do que as estações que experimentamos, há aquilo que nós somos. A arte de ser deve prevalecer: para além das horas solares ou noturnas, dos processos de florescimento ou dos impasses, da dança descendente da penumbra ou do aéreo desenho do júbilo.
Não podemos desejar que alguém seja só feliz. Isso equivale a coartar a vida e a fantasiar perigosamente sobre ela. A nós incumbe estimular aqueles que amamos à corajosa aceitação da vida, naquilo que ela tem de plenitude, mas também de vazio e até de desilusão.
A quanta sabedoria, com efeito, nós acedemos unicamente através desta ponte de corda que nos aparece suspensa no abismo.
Nem sempre a sombra é o contrário da luz, assim como o árduo esforço de viver não é o contrário da felicidade. São etapas do mesmo rio que corre.
Há lágrimas que nos consolam bem mais do que muitos sorrisos. E há dores que nos introduzem numa experiência de gestação que não acreditávamos possível.
Em 1917, o poeta Giuseppe Ungaretti escreve uma das mais célebres poesias do século XX. Trata-se de uma composição brevíssima, que consiste nisto: «Ilumino-me de imenso».
Qualquer que seja a interpretação que dela façamos, é importante interrogar-se sobre o seu significado existencial. O que pode representar para a vida de cada um de nós iluminar-se daquilo que é imenso?
É verdade que o desenho destes dois versos se assemelha a um flor que flutua na leveza do tempo. É uma espécie de cintilação, de leveza, de encantamento e de leveza perante o ser. Quanto o precisamos!
Precisamos de descobrir esta arte de existir na confiança e no espanto das pequenas coisas, através das quais a imensidão nos visita.
Ao contrário, não raramente a nossa experiência quotidiana está em total dissonância com esta leveza. Sentimo-nos sem força e sem graça, com os passos cada vez mais pesados, e como se o nosso coração nada mais do que uma casa às escuras.
Talvez nos ajude saber que esta poesia – que contém um extraordinário programa de vida – foi escrita quando Ungaretti se encontrava, como soldado, na frente de batalha na primeira guerra mundial, na trincheira, num mundo em escombros.
E talvez compreendamos, desta maneira, que nem sequer as dificuldades nos subtraem ao dever da grande celebração daquele dom que é estarmos vivos.
«Cuida do tesouro que Deus te enviou. Lentamente ele escorrega entre os dedos, e já não o voltas a ver, até que tenhas de responder como o preservaste.»
Foi definido como «a consciência crítica» da sociedade escandinava: Per Olov Enquist, 84 anos, é o maior escritor sueco vivo. Ao ler o seu romance documental “A viagem de Lewi”, história do fundador do movimento pentecostal sueco, Lewi Pethrus, do seu triunfo e do seu declínio, deparei-me com esta poesia espiritual. Ela, apesar da sua simplicidade, merece atenção.
Todos nós – mesmo quem se sente falhado, incapaz, desafortunado na vida – recebemos um pequeno tesouro. E aqui vem à mente a parábola dos talentos, que é quase a fonte temática deste canto.
Não importa se o tesouro vale muito ou pouco; o importante é não o deixar fugir pelos dedos, dissipando-o, ou escondê-lo debaixo da terra, na ilusão de que é suficiente deixá-lo intacto.
Sim, porque o tesouro que Deus nos confia, na realidade não é uma gélida pedra preciosa, mas uma semente viva destinada a frutificar, é uma energia vital que deve operar, é uma luz pronta a irradiar-se.
A frase final é sombria, como o é a parábola de Jesus: no termo da vida, terás de responder pela tua inércia ou pela tua mesquinhez temerosa.
A humanidade é, assim, como um mosaico: cada tessela – ainda que seja só um pequeno quadrado colorido – é necessária para que a obra não fique esburacada e lacerada, mas um desenho completo e harmonioso.
“Day after day, they take some brain away” David Bowie [1]
Ilan Grabe
O alarme e seu vício
“As sinaleiras não evitam acidentes, só servem para incomodar a população e prejudicar a saúde auditiva de todos nós”, afirma com precisão Carlos Minc, ex-ministro e incansável secretário do Meio Ambiente[2]. Ele deu então um bom exemplo ao criar a lei nr. 4324/04 do Estado do Rio de Janeiro, Lei de Saúde Auditiva, lei que estabelece o desligamento do dispositivo sonoro dos alarmes de garagem.
Tematizemos, portanto, a chamada sinaleira como primeiro objeto de reflexão, partindo das mais comuns justificativas para seu uso. Que espécie de mundo nos propõe o artefato, o que diz, ou melhor, o que não nos diz seu sinal acústico? A quem poderia possivelmente servir?
1 – serve aos pedestres? Não. A preferência é sempre do pedestre nas calçadas, com ou sem alarme. Estaria o sinal sonoro querendo dar a entender ao pedestre que este deveria imediatamente parar para dar passagem ao veículo que entra e sai? Tal presunção representa puro absurdo. Além disso, nenhuma lei protege o motorista em caso de acidente, atropelamento, descuido, abuso. Em portões e calçadas, em vias e rodovias, todo cuidado é pouco, e o cuidado advém do respeito à lei e ao próximo. Convém lembrar que todos nós somos pedestres em algum momento, assim também nossos filhos, nossos pais, os estudantes, os bichinhos de estimação, os idosos, os adoentados, os deficientes, os distraídos, os alienados, os entretidos, todos merecem usufruir o direito de andar a pé, de transitar com segurança por um espaço urbano cada vez mais dominado por carros e mais carros. Ou só deveremos estar “seguros” dentro de veículos? Não tem jeito de alguém ser só motorista e pedestre nunca mais. O alarme de garagem que apita de jeito tão insolente e irritante, não pretende ele alegar a primazia da máquina sobre a criatura?
2 – serve aos motoristas? Não. Ao erroneamente se julgar apoiado pelo alerta mecânico, ao se arrogar uma preferência que não possui, ao confiar que o transeunte deverá parar primeiro, o motorista provoca situações das mais arriscadas e perigosas possíveis, mais perigosas, é claro, para o corpo humano vulnerável, para a criatura em cruel desvantagem frente à máquina que, às vezes, como bem sabemos, vira arma. Lembre-se de suas crianças se apressando rumo à escola, pense agora no motorista que sai da garagem deste jeito: em quem confiar? Teremos que fazer os menores entenderem que a calçada não é mais do pedestre? Também os veículos que já transitam na via de acesso têm preferência. Um motorista tem que ter plena consciência da responsabilidade de seus atos, não pode agir de maneira egoísta e arrogante, senão o espaço público vira zona de conflito calamitosa. O motorista que não sabe sair de sua garagem com habilidade e devida atenção também não deverá merecer a habilitação para dirigir seu veículo pelas ruas da cidade. A sinaleira jamais poderá servir de álibi ao motorista imprudente.
3 – serve ao ouvido e aos demais sentidos de orientação espacial? Não. Devido às características eletroacústicas do “som” do alarme, não é possível identificar com precisão sua fonte de emissão, seu sinal sonoro é transmitido em granulados de repetição perversa, sua frequência invade e se esparrama pelo ambiente de maneira uniforme e indiscriminada. O cidadão que transita pelas ruas da cidade já terá sido atingido por inúmeros alarmes antes de chegar ao seu portão de garagem, já terá cruzado inumeráveis espécimes de um arsenal de alarmes que retumbam e apitam ao mesmo tempo. Este sujeito não concederá atenção preferencial, de repente, ao dispositivo que dispara agora em determinada garagem. Raramente um alarme dispara isolado em uma rua qualquer, alarmes, sensores, alertas, apitos, bips, sirenes e sinaleiras alastram-se à maneira de uma praga, de um surto composto de terríveis insetos acústicos, bugs espectrais. O habitante da cidade encontra-se hoje em dia sensorialmente sobrecarregado, estressado, exaurido, embrutecido, dessensibilizado. Porém, antes da degradação de seus sentidos, ensurdece primeiro, e nem chega a se dar conta do fato. Todos estes dados e sinais são absorvidos pelo cérebro, porém, a partir de certo momento, não são mais ouvidos, digeridos e percebidos pela consciência, isto porque não fazem sentido algum. O que não se ouve e percebe se sedimenta então no organismo à maneira de lixo não reciclável. O ouvido vira olvido. Mas um ouvido que se tornou ele mesmo inútil faz adoecer secretamente.
4 – serve ao cego? Não. Quem é cego de verdade, se orienta pela excelência da audição e do tato, não pode fazer uso do pisca-pisca luminoso, é óbvio, no entanto, ouve bem demais, não precisa de alerta acústico porque identifica de maneira invejável fontes sonoras e suas respectivas distâncias, localiza-as com exatidão no espaço acústico, avalia aproximações e afastamentos dos objetos sonoros, ouve e sente o barulho do carro, do portão, etc. O cego “vê” melhor com os ouvidos e o tato do que muitos de nós com a visão em ótimo estado. Pessoas portadoras de alguma ordem de chamada “deficiência” (visual, auditiva, física, mental) só dependem da consideração e da boa conduta dos motoristas, do cuidado civilizado de seus concidadãos. Alarmes e similares só confundem e desorientam.
As situações de risco pelas quais todos nós diariamente passamos, mesmo em plena posse de todos nossos sentidos sensoriais, se devem normalmente à arrogância, ao desrespeito e à imaturidade do motorista que se considera “dono do pedaço”, que “se acha”, dono não só de seu veículo, mas também de ruas e calçadas. Tal cidadão quer simplesmente impor a passagem prioritária de sua viatura, quer se fazer esperar, coagindo à parada compulsória qualquer um que lhe passe pelo caminho. Para isso se serve de máquinas e dispositivos que “mandam ver”. O “pior cego” é aquele que tem olhos e não vê. Pior ainda quando é surdo também.
5 – serve à segurança? Não. É evidente que devemos sempre procurar minimizar quaisquer riscos e eventualidades, mas, pelos motivos que aqui expomos, o dispositivo simula uma segurança que não existe, só serve para alimentar a ilusão de segurança, e é aí que reside o perigo maior. Engenheiros e arquitetos deveriam planejar melhor o acesso das garagens de futuras construções, para que haja visibilidade apropriada às manobras de entrada e saída de veículos, o que proporcionaria melhoria na segurança de trânsito para todos.
A comunicação entre homem e homem é dificultada quando a máquina é o meio que se insere entre eles, e piora ainda mais se houver algum outro artefato usado por adição (celular, tevê, fone de ouvido), à maneira de vício, por um deles ou pelos dois ao mesmo tempo. A “dobradinha” motorista + celular implica em condução distraída e perigosa, surgindo daí a lei que procura contornar esta ameaça, proibindo o uso do celular ao volante. E se adicionarmos à receita outros vícios, químicos (álcool, fumo, drogas) e comportamentais (ansiedade, estresse, distração), bem temperados com viciantes radiações e irradiações que proliferam ao redor e dentro do veículo, como é que ficamos? É certo que com o vício e a zoeira toda esperança por comunicação morre definitivamente pela raiz, assegurando o perigo. Nenhum seguro de vida ajuda aí.
Em ambiente citadino civilizado, saudável e despoluído, livre de agressão acústica e visual, o entendimento entre pedestre (o homem que usa seus pés) e motorista (o homem que usa sua máquina) ocorre de maneira espontânea e cordial. Pois não dá para confiar em dispositivos que legalizam a desatenção a partir do conceito de uma segurança movida a ruído e repetição. Obedecendo às boas regras de trânsito, olhando e ouvindo, prestando bem atenção, um motorista sabe se colocar na posição do concidadão pedestre, e vice-versa também. Em respeito mútuo, cada um apreende as necessidades do outro e decide agir de acordo, em gratificante exercício de paciência e cidadania. E com isso adquire imunidade à ostentação arrogante, ao desafio imbecil. Este padrão de trânsito seguro não precisa ser imaginado para um futuro distante. Há lugares no mundo em que este é o comportamento usual. Entre nós, já pode acontecer agora também.
6 – serve ao cidadão mal intencionado? Sim. A sinaleira, o alarme de segurança é chamariz para o ladrão e/ou assaltante, como informação útil desperta-lhe o interesse e o apetite pelo movimento diário de suas eventuais vítimas, dá-lhe o aviso prévio para seu ato criminoso. O dispositivo sonoro não só é inútil e inócuo, além disso, dispara sem precisar de qualquer motivo aparente, até que nos condicionemos a não lhe dar mais crédito: surge daí o conceito de alarme falso. Ele torna-se assim um simulador de segurança. Aliás, quem simula a todo momento cria caso por ter que provar ter o que não tem (e poder ser aprovado). O alarme é a sentinela do nada, falsa sentinela, sentinela fingida que não conhece a “posição de sentido”. Sob a cobertura do barulho alto (às vezes por horas e dias), da desatenção generalizada, o ladrão pode agir à vontade, arrombar portas, estilhaçar vidros, poucos ouvirão os ruídos e terão coragem de interferir a tempo. O alarme sonoro serve à proteção provisória do criminoso. Alardeia ausências, ao “zoar” informa que os donos não estão presentes, avisa que as portas estão abertas. Ultra-paranoico e altamente excitável, seu circuito nervoso parece ganhar vida ao disparar (seu mal parado) por conta própria. Os dispositivos estão ficando cada vez mais parecidos conosco. Ou será o inverso?
Roubos e assaltos multiplicam-se com o número de alarmes que disparam e persistem disparados à toa. Atingido, o cidadão apavorado adquire “pacotes” de segurança e barulho mais exagerados. O que retroalimenta o círculo vicioso. Sua mente se estreita a cada mísera repetição, a cada estridor de alarme seu organismo é pressionado a se manter em estado de vício e choque pelo derramamento de hormônios do estresse, pelo aumento do nível de cortisona, pela liberação de endorfinas, em outras palavras, a cada disparo falso, seu medo é estimulado e cultivado, seu cérebro aguilhoado e aproveitado, avisado e chantageado, seduzindo-o ao consumo de artigos e produtos que consomem saúde enquanto anestesiam o medo. O medo vira negócio. Aos poucos, o medo com seguro espanta a capacidade natural de sentir medo genuíno, isto é, o medo salutar que protege ao despertar a atenção para perigos reais e iminentes. No escuso negócio da (in) segurança, o confuso medo da gente confunde-se com o difuso medo de gente. Tratado como fonte de energia inesgotável, como capital seguro, o medo dos outros vira lucro em negócio securitário, terceirizado. Leia-se também: neg-ócio é a negação do direito ao ócio, ao silêncio, ao devaneio, ao repouso que regenera e fecunda.
7 – a sinaleira serve ao anúncio da chegada e saída do veículo? Sim. Mas, por que cargas d’água precisamos ser alarmados sobre o movimento de cada vizinho, de cada carro desta cidade? Por que devemos ser aleatoriamente perturbados por estas sentinelas performáticas, roubados de nossos sonhos à noite, distraídos de nossos afazeres de dia? Comparemos por um instante o alarme de garagem com a buzina do carro. Sabemos que só devemos buzinar em caso estritamente necessário. Imaginem se a cada esquina, a cada carro que aparecesse, tivéssemos que ‘obrigatoriamente’ buzinar? Mas é exatamente isto que ocorre com sinaleiras que são programadas a apitar automaticamente para nós, a disparar para qualquer coisa que passe pelas imediações de seus chamados “sensores de presença” (ou de ausência?). Sem contar com aquelas que simplesmente já ficam “ligadas” para apitar o dia inteiro, fato comum em estacionamentos pagos (para atrair freguês e habituar o funcionário). Seu sinal não é “informação” acústica porque não informa nem sinaliza, é interferência somente, ruído indesejável, só fornece pista e prova de uma espécie de crime que ninguém vê. E qual é este crime mais que perfeito? A sinaleira armada dis-pensa o gesto de sinalizar, acenar, indicar, alertar, de voltar-se para o outro, de ceder lugar para o próximo, de responsabilizar-se, o que estimula a preguiça social, a letargia cognitiva, a impunidade comportamental. Com a vida abreviada, perdemos a linguagem, com a dissociação entre ouvido, boca e gesto, a afasia torna-se “regra número um” da pseudo-comunicação. Afasia, que em sua etimologia significa não-falar (a = não, fasia = falar), é o distúrbio neuropsicológico daquele que não consegue se comunicar e dizer, isto é, em acepção mais ampla, é a síndrome de todo aquele que não sabe ainda ouvir e falar de Vida, dizer de maneira devida.
Disto tudo resulta uma esquizofonia[3] que é tortura infernal para quem ainda ouve. Não queremos ouvir o anúncio de cada carro que se locomove, não queremos que violentem nossos ouvidos com anúncios arbitrários. O direito ao descanso, ao silêncio, é sagrado, por isso tem que ser respeitado.
8 - serve a uma nova música do futuro? Não. O ruído futurista de máquinas e artefatos em sobreposição não é “música”, não é “paisagem sonora”, é resultado impune de um delírio coletivo que imbeciliza, ensurdece, amedronta. Atropelado por alarmes, o ouvido é governado por desconexos sinais que de carros, garagens e residências se sobrepõem sem trégua. Onde há ruído, não há outro, há maldição. Maldição é má audição, violência do mau dito, do mau olvido. “Escutar um ruído, isto é um pouco como ser ameaçado de morte”, diz Jacques Attali[4]. Enquanto a música em segredo as-socia e inaugura reais e sonoras relações, o ruído louco as viola e dis-socia.
9 – serve ao conceito de “obrigatoriedade” legal do artefato? “O sinal sonoro é obrigatório”, assim se diz, mas isto não é bem verdade. A constitucionalidade da lei é questionada pela maioria dos cidadãos e das atuais prefeituras. Embora o Conselho Nacional de Trânsito ordene a instalação de sinaleiras sonoras, a obrigatoriedade do sinal sonoro não pode valer enquanto a questão não é devidamente julgada. Ademais, o conceito de “obrigatório” é conveniência lucrativa para as empresas de segurança que comercializam o produto. Repare-se que o som do alarme faz o papel de “jingle” do próprio produto, faz seu marketing a cada vez que dispara. Contudo, sabemos muito bem que a massa maior de reclamações (60% no mínimo) junto às secretarias de Meio Ambiente, junto à Polícia Civil, é relacionada à perturbação do sossego. É contrassenso imaginar uma Lei do Silêncio e uma Lei do Alarme coexistindo. Notemos que leis são modificadas, criadas e renovadas a partir do que aprendemos, a partir do discernimento sobre o que é certo ou errado para a sociedade como um todo.
Para ilustrar com outro exemplo de poluição aérea intrusiva, desrespeitosa, lembremo-nos de que até bem pouco tempo atrás era possível fumar à vontade, em qualquer lugar, a qualquer momento, diante de qualquer um, e que hoje em dia há regras e leis que procuram inibir e regular o vício do fumante. Se o cigarro era até então considerado sinal de status, de charme social, de prazer inquestionável, hoje a lei obriga o fumante a no mínimo respeitar a saúde de seu próximo, de seu vizinho, de seu parceiro, de seus filhos. A poluição acústica dos falsos alarmes e a poluição da fumaça dos cigarros têm muito mais em comum do que pode parecer a princípio. Ambas as poluições são aéreas, ou seja, propagam sua toxicidade pelo ar, pela atmosfera compartilhada através da qual respiramos e ouvimos. Homens invadem e se apropriam do espaço dos outros com alardes de supostos poderes, com fumaças de ambivalentes prazeres. Com estes mesmos recursos escondem seus medos inconfessos. Com a poluição sonora ouvimos sons tóxicos, com a fumaça respiramos ar envenenado.
Por um Projeto de Lei Federal
“Um dia a humanidade terá que lutar contra a poluição sonora da mesma maneira que luta contra a cólera e a peste”[5], prenuncia já em 1910 o médico Robert Koch, um dos fundadores da Microbiologia, prêmio Nobel da Medicina. Este dia certamente já chegou, comecemos por tomar pequenas doses de consciência para libertar o ambiente destes sons parasitas e patogênicos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) conhecidamente declara a poluição sonora como a “terceira” pior no ranking das diversas poluições, avaliação que, entretanto, consideramos inapropriada. Pois ela não é “terceira” em importância, ela é simultânea às demais poluições que talvez sem ela permanecessem invisíveis, impalpáveis e inodoras às criaturas terrestres. A poluição sonora é o aspecto acústico (por ar, terra e água) de malignidade tornada audível ao sentido do ouvido (que procura dar sentido ao que ouve). Assim as “nuvens cinzentas” de doenças, radiações, toxicidades, vícios, cânceres, destrutividades, medos, loucuras, de esforços predatórios, de violências e funestos poderes que pairam sobre a Terra ganham expressão sonora aparecendo ao espectro auditivo de cada espécie deste planeta (ainda azul). Ouvido não mente. Graças ao som, o invisível pode se tornar audível. Assim os elementos moleculares e larvares da poluição resultam em um irrespirável smog acústico composto de gritos surdos e insalubres ruídos, contemporâneos do invisível. Por isso, não basta mapear a “paisagem sonora” de determinado ambiente (e depois não achar solução), o que é preciso é investigar causas e motivos primários do comportamento eco-acústico da espécie humana.
No caso do artefato-alarme em particular, este evidencia com seu ruído-alarde o rastro acústico de um comportamento maquínico que toma conta do mundo em comum. O alarme de-monstra (acusticamente) as ameaças que decorrem das mimeses e interrelações (inconscientes) entre os homens e suas máquinas (cibernéticas ou não). Cabe-nos, pois, auscultar o audível para apreender as evidências do invisível.
Por que dispara sem parar? Qual é seu vício? O certo seria parar de vez este tipo de “som” que na verdade nem mesmo som é. Qual é o estado mental do indivíduo que implanta em seu habitat um dispositivo como esse? O som do alarme é aberração acústica especialmente pelas características de suas repetições artificiais, de seus pulsos viciantes, hipnóticos, de seus ruídos programados que ferem corpos e ouvidos, que ofendem e magoam os sentidos dos seres vivos de todas as espécies. Ele apresenta malignidade sobretudo pela conduta de sua repetição. Um alarme é sempre um alarme, um outdoor é sempre um outdoor, um cigarro é sempre um cigarro, um vício é sempre um vício, não há atenuação e abrandamento para o que é mal. Não se trata de tentar abaixar o volume de seus decibéis ou regulamentar a duração de seu disparo, suas repetições eletro–granuladas são perturbadoras mesmo em doses relativamente baixas de tempo e decibelagem. Como todo vício, precisa ser interrompido, necessariamente, pois seus rastros e efeitos não são sinais (comunicantes e significativos), e sim sintomas (surdos e opacos); para colocar a questão em termos linguísticos, podemos dizer que a imagem sonora (significante) se dissocia do seu sentido (significado), não constituindo signo legítimo. Suas repetições são sintomas esquizoides da agenda de um mal que se esconde, arbitrário, esquizofônico. É desta maneira que repetições viciadas parecem operar à maneira de agentes virais encarregados de executar uma lavagem cerebral a frio. Ter menos decibéis não diminui o nível de toxicidade de um sinal viciado, de um vírus serializado via bug instalado. Sua influência continua nefasta.
O alarme não é só patente de uma estupidez acústica propagada, ele no mesmo pacote fornece hipnose, coação e tortura. Para quem ainda ouve, representa tortura inescapável, para quem não mais ouve, atua como hipnose subliminar. Graças ao dispositivo, a “tortura chinesa” ficou bem popular e barata. Para quem não sabe, esta antiga técnica de tortura consistia em lentamente pingar uma gota de água no alto do crânio de um prisioneiro amarrado: depois de um tempo, este confessava o que (não) fez, fazia o que lhe mandavam fazer. Hipnotizado pela branda e terrível repetição, virava dócil servo-zumbi.
A instalação de um único artefato em uma rua ou em um veículo locomotor já gera um precedente que ameaça o sossego e a saúde mental e física da vizinhança inteira. Uma vez instalado, nem há mais botão de liga-desliga. Logo aparecem seguidores e novos clientes do disparate, estes são levados a crer que não dá para não ter. O surto parece empolgar e contaminar os demais prédios e veículos rapidamente. O ambiente passa a ser compulsoriamente povoado por um enxame de penetrantes batimentos eletrônicos que concorrem entre si. Estes soam como pulsos de corrente de um contador Geiger que inadvertidamente captura, conta e ecoa partículas “radioativas” do coletivo quando este se abisma no olvido. A presença da (des) ordem a intervalos fixos vira (des) propósito comum. Enquanto muitos enlouquecem, outros se habituam, passam a habitar o barulho, isto é, adoecem e ensurdecem sem perceber. Com esta fama, o som espectral do alarme se encrava no meio como mais um vício a devastar mentes e ambientes.
Alarmes eletrônicos representam os radicais livres da infâmia acústica, da anarquia promovida por (des) controle. Os viciados pulsos de seus comandos, de suas (des) ordens, são agentes provocadores de insegurança. Corrompem nossos ouvidos ao ditarem as leis do atropelo, da pressa que mata. Nas políticas do medo, não é a gente que importa, só parece importar o infame agente viral que provoca os espectros do difuso medo de gente. Diz então o motorista, o síndico, o morador, quando interpelado e indagado sobre o sinal sonoro e sua utilidade: “ora, ninguém se incomoda”, “já me acostumei”, “já nem ouço mais”. Mas se não os ouvem, para quem os instalam?
Você da cidade, escute ao redor: conseguiu detectar momento sem algum alarme disparado no ambiente? O número de alarmes e sinaleiras aumenta na medida em que às cegas progredimos em direção a uma sociedade de surdos. Com toda segurança. Mas a solidária associação dos sentidos é que nos torna realmente humanos. Em um mundo em que proliferam partículas de surdez, células de sinais afásicos desprovidos de sentido, emitidos por um arsenal de sinaleiras, alertas, sensores, apitos, sirenes, alarmes, ninguém mais pensa em sinalizar, ouvir, perceber, sentir, alertar, atentar, nem mesmo se alarma com o fato. O fator vital, significativo, crucial, é dis-pensado do mundo. Pois tente nos apontar algum passante que pareça atento e preocupado com os “sinais” dos alarmes. Achou? Isto é bem pouco provável. Enquanto isso os verdadeiros sons e ruídos da vida genuína, das vozes na biofonia do mundo natural[6], das águas, das crianças, dos pássaros, do vento, da noite e suas estrelas, das boas conversas, de sons que normalmente não incomodam, que, muito pelo contrário, nos descansam e fazem bem, estes bons sons já entraram em extinção. Com a extinção do ouvido incorporamos os monstros do olvido.
Chegamos a um estado em que o mundo real não é mais ouvido e enxergado, com as cabeças mergulhadas nas mídias do momento, não mais ouvimos e enxergamos de verdade, desta forma tornamo-nos surdos e invisíveis também. A diversidade inspirada de infinitos ouvidos veste assim o uniforme do mudo olvido. Já ouvimos e dizemos quase nada por nos encontrarmos acoplados a aparelhos de surdez que edificam paredes de proteção contra o mundo externo. O que se transmite via telinhas, alto-falantes e fones de ouvido (de olvido) não se internaliza para fazer parte de um mundo “interno”, mas continua ali mundo “externo” também, mundo pré-ensurdecido que implantamos em nós mesmos. Bem conectados e “ligados”, contudo sentimo-nos anônimos e anômalos; surge daí a ansiedade fóbica em querer aparecer e fazer-se ouvir a qualquer custo, a urgência em adquirir capital social nos meios eletrônicos. Aliás, com a cabeça já tomada pelo consumo de tantos rituais virtuais, entretida e drogada pela algazarra de seus excessos, já em demasia poluída e ocupada por dentro, quem é que ainda se importa com os demais ruídos da poluição do lado de fora? A “cabeça” se encaixa e vira mídia ela mesma.
Afinal de contas, que mundo-olvido é esse? Para se ter um palpite, basta ouvir. Estes não são simples ruídos, o sensível ouvido ouve neles o flagelo que se anuncia, prevê a calamidade em um mundo que artificialmente ruidifica controles e ausências. A destrutividade humana é (a) fã do emudecedor olvido. O bi-bi-bi-bi infindável dos onipresentes sinais eletrônicos recita a ladainha da loucura que se fabrica, do horror que vira tédio e mortal indiferença. E a música, o que será da boa e verdadeira música?
Só há paz entre homens que aprendem a se ouvirem uns aos outros. Portanto a segurança legítima deriva da paz dos que sabem ouvir. Os sons e ruídos de um ambiente pacífico são amigáveis. Mas é preciso de silêncio para reaprender a ouvir, a prestar atenção nas coisas, a escutar com coração e alma, é assim que se desperta o espírito. Sem escuta, sem silêncio, não há abertura aos horizontes da vida, não há música verdadeira, não há interioridade nem exterioridade possível, não existe vida própria nem vida social autêntica, só subsiste a pobre vida tomada e substituída por outra coisa. É neste sentido que Silêncio é Lei (e não o inverso). Sem audição e silêncio não há como amadurecer o ainda precário conceito de diversidade, princípio norteador da cidadania e do direito à diferença. O ouvido é o órgão básico da diversidade essencial. Entre nós a questão crucial não é o barulho em si e sim a surdez em vigor, em especial a surdez de quem quer ter o poder de controlar e vigiar a todo custo, a surdez daqueles que gostam de barulhar para evitar o silêncio, para impedir a liberdade dos outros, daqueles que adoram turbinar para o coletivo as irrupções de seu inconsciente. Só estes mereceriam serem chamados de “surdos”. Pois esta não é a surdez do surdo-mudo inato, que, como sabemos, muito bem ouve com olhos e mãos, com todo seu corpo. Ouvindo é que aprendemos a responsabilidade, a capacidade de responder ao Outro, ouvindo é que aprendemos o respeito ao direito e à necessidade do próximo, seja ele humano, animal, árvore, água, atmosfera, mineral. Para sermos humanos responsáveis precisamos ser todo-ouvidos.
Mas para o homem que ainda não consegue despertar de seu sono, de seu egoísmo, de sua surdez, para ele necessitamos de uma Lei Federal de Saúde e Educação Auditiva, ampliada e reformulada, decretada e bem aplicada, que também coíba de maneira inequívoca a receita de falsos “despertadores” plantados em máquinas e artefatos eletrônicos. Sirenes beligerantes lançam lixo sônico no meio-ambiente com impunidade, suas partículas solapam as comunicações, minam os ouvidos, atrapalham o sono, impossibilitam o repouso profundo, bloqueiam as funções cognitivas, traumatizam e adoecem a população, impõem a feiura acústica ao mundo. Sem piedade. O ambiente urbano vira pesadelo completo. Em vez de espaço vivo, temos hoje um espaço viciado. Ambiente doente. O mundo maltratado vira depositário acústico de estímulos odiosos, subsidiários dos piores impulsos do animal humano, cloaca de más energias abusivas, destrutivas, autodestrutivas, muitas delas disfarçadas, sonorizadas, legalizadas, serializadas e propagadas com a desculpa de servirem à segurança e ao bem comum.
Senhores Legisladores: ajudem o homem a retornar ao mundo dos verdadeiros sons e suas naturais ressonâncias, ajudem-no a ouvi-los e a percebê-los, ajudem-no a desligar os enganosos ruídos que seviciam, a interromper os ciclos de loucas e monotônicas repetições. Estas apregoam a morte cíclica da memória, do tempo, da música, decretam o fim da vida social. “Mundo” não pode virar a experiência traumática permanente do vivente. Em vez de acolher um espaço bioacústico equilibrado pelo manancial de vozes da natureza original (que inclui nossas próprias), a espécie humana vem produzindo uma atmosfera artificial, substituta, insalubre, irrespirável, espectral. Este não é um problema de Saúde Pública somente, tal ordem de surdez ameaça a própria humanidade do Homem. É preciso salvar o ouvido para não cair no olvido.
Voltando às sinaleiras, propomos aos Srs. Síndicos e moradores que desliguem seu sinal sonoro, que conservem delas somente o sinal luminoso. Aliás, este sinal intermitente imita antigos faróis que, enxergados bem de longe, à noite, orientam os navegadores em suas embarcações. Ademais, como alternativos ao uso do sinal sonoro, sugerimos a instalação imediata de bloqueadores e redutores de velocidade, de avisos educativos, de espelhos convexos próximos às saídas, isto para que o direito do pedestre possa ser exercido, como sói acontecer em lugares civilizados em que o bom senso prevalece. Podemos assim nos desobrigar da fachada acústica imbecil. Em especial propomos o uso da melhor tecnologia do mundo, para todos disponível: o uso de nossos sentidos, o uso da atenção e da consciência. Esta é tecnologia da mais alta precisão que herdamos e que faz bem à saúde física e mental de todos, que aquiesce o espírito e a alma de cada um, de uma tecnologia que, porém, só funciona através do respeito incondicional e do verdadeiro amor ao próximo. Precisamos de um saudável espaço de convívio e não de um ambiente de estresse e moléstia. Em vez de alarme, dê atenção.
Com a esperança de comunidade amadurece a segurança verdadeira. Não há alternativa para nossa espécie, a não ser lutar pelo que a princípio parece utopia. A utopia é a coragem de uma esperança que se pronuncia, aliás, como dizem, ela deve ser a última a morrer (a não ser que morramos antes). Mas é preciso de muita calma e paciência para deixar bem alimentada esta esperança. Aqueles que se dispõem a se ouvirem e falarem diretamente uns com os outros proveem proteção natural de maneira mútua e espontânea. A vida legítima se dá através de sociedade com o que está perto (do coração). Ao invés de cultivarmos a paranoia genérica, devemos cuidar melhor dos próximos. Utopia dá garantia de trabalho para todos. Uma comunidade, mais que de proteção, precisa da integração de todos seus indivíduos para ser segura e viver em paz. A convivência real desarma malefícios, apazigua medos e paranoias, proscreve preconceitos, invalida falsas soluções, desmascara as farsas do pseudo-social. No entanto, tornamo-nos inabordáveis, arrogantes e distantes em nossas pretensões e proteções. Dentro de casa e dentro do carro, privados de passagem e vida interior, por dentro de tudo e por fora do real, escondidos diante das telas (on-line), camuflados por vidros escurecidos (off-line), abrigados em redutos cercados e cerceados por surdos (in) seguros, muros e cercas elétricas, portas e janelas blindadas, câmeras de vigilância, arames farpados e homeshocks, criamos bravatas eletrônicas e fazemos muito barulho com o intuito de prevenir a invasão, de repelir a violência que vem de fora ao mesmo tempo em que ignoramos a violência que vem de dentro. Quem é que nos protege da violência que mora dentro das casas e bem dentro de nós mesmos? O que é que nos apavora de verdade? Alardeamos e fanfarronamos especialmente quando temos medo de monstros que não conseguimos localizar e identificar, criamos pandemônios histéricos ao tentar exorcizar o que não queremos ou podemos compreender. Fazemos barulho para provar que somos donos do medo. É quando há exatamente nada a dizer e muito a esconder e temer. Só que agora colocamos a nosso serviço dispositivos mecânicos que executam para nós o trabalho (entediante) de vigiar, punir, controlar, que nos poupam da faina (extenuante) de gritar, berrar, fazer calar. Com o exagero de barreiras (mecânicas) e limitações (automáticas) que a segurança tecnológica levanta para nós, perde-se a noção de verdadeiro limite, de fronteira apropriada, de distinção entre o real e o irreal, entre o semelhante e o diferente, entre o público e o privado, entre o medo do real e o medo do medo.
Ostentando atitude arrogante para manter o mais longe possível os indesejados, os desautorizados, os marginalizados, os excluídos, os banidos de nossa sociedade, ajudamos, assim, a perpetuar o círculo vicioso da própria violência. Tal ordem de segurança prende por dentro quem se protege da ameaça de fora. Quem quer controle demais gera mais descontrole. Sistemas de segurança blindam (blindar em sua acepção original significa cegar) o sujeito encapsulado em seu veículo, em sua residência, em seu regime de apartheid. O ouvido embotado do controle acomoda o ocluso olvido da surdez blindada[7] que leva à amnésia, ao esquecimento e à negação do próximo, do semelhante, prima-causa da inseguridade maior.
É só da abertura responsável (principalmente com os menos afortunados) que gradualmente se desenvolve a única segurança possível. Da segurança para todos. Não só para si, não só para os elementos da própria tribo. Com o sistema imunológico fortalecido pelos laços fortes do real, a comunidade torna obsoletos os abomináveis e escandalosos ruídos de (in) segurança.
Um Alerta Verdadeiro
No Brasil, a vontade de progresso econômico é secundada pelo barulho em progresso. Nosso país parece torcer para tornar-se campeão mundial em poluição sonora, ou melhor, em brutalização acústica. O cidadão não precisa de estatísticas e projeções para notar, em seu próprio cotidiano, que a banalização da violência e a surdez sócio-afetiva caminham lado a lado. De forma aterradora. Será acaso? Do surdo ao surto a diferença é de uma letra só.
Em demasia sofremos com os efeitos acústicos do “boom” imobiliário, do trânsito, dos maus comportamentos, vivemos flagelados e ilhados dentro de nossas residências, rodeados pelas máquinas e britadeiras de sempre, submetidos a toda esta violência com seu menosprezo e descaso costumeiros. A brutalidade sonora assedia a todos indiscriminadamente, no entanto, isto não acontece por razões demográficas e/ou “democráticas” e sim por (des) razões autoritárias, totalitárias. Pesquisas recentes revelam que pelo menos dois terços dos brasileiros dormem mal e padecem de graves distúrbios do sono[8]. “Cidade” tornou-se sinônimo de barulho e violência gratuita. Observe-se, porém, que o barulho faz a sonoplastia da violência, que o ruído programado turbina violências corriqueiras. Ruído e violência parecem ser indissociáveis.
Então em qual aspecto a poluição sonora do alarme demonstra algo bem pior do que a poluição usual? Continuemos a tentar responder: o grosso da rotina da poluição serve a motivos inconscientes, inconfessáveis. Junto aos pretextos “oficiais”, junto à curtição por artefatos e sistemas barulhentos, infiltram-se razões nada “politicamente corretas”, ali moram motivos obscuros e dificilmente declaráveis. Entre outros motivos, o barulho serve à demarcação de território, à declaração de posse, à afirmação de status, à simulação de poder, ao gozo em imprimir a própria marca no ambiente. É por isso que um poluidor contumaz, refratário à educação cidadã, gosta de sujar, pichar, urinar em praça pública, de atrair para afastar, de urrar palavrões e gesticular obscenidades, de buzinar no meio da noite, de circular seus alto-falantes para disseminar as potências de seu “techno”, de seu obtuso “bate-estaca”, de sua “musiquinha”, que, reparem, mal se distingue do “som” espectral do alarme. Distribui gratuitamente suas dejeções, tratando o espaço público como “privada”. Esta é a lógica que se esconde por detrás da poluição infame: se um lugar ‘fede’, ninguém ousa se aproximar, além do sujeito poluidor e sua casual tribo[9]. “Aqui quem manda sou eu”. Para este “eu”, ruído é armação e poder. O “funk” do tráfico arma paredões de caixas de som no meio da rua para dominar/detonar o ouvido de todos. Sua festa faz o ensurdecedor pregão da violência e da calamidade. Nas selvas da poluição sonora prevalece a lei do mais forte. Do “mais forte” que compete e luta pela atenção de outros surdos.
Tudo isto é inadmissível, intolerável. Pudera: somos invadidos e invalidados, possuídos pelos vícios do outro cidadão, do (des) poder que não nos respeita. A invasão auditiva alia-se à invasão visual, olfativa, gestual, ela assedia e violenta na penetração de poros, aberturas e janelas. Ao se deparar com a obtusidade do comportamento, a sensibilidade vai-se embora. Pelo tirano que oprime somos forçados à sensação de impotência (não só sexual). A impotência dissimulada do poder (simulado) arquiteta e gerencia a impotência dos outros. E a questão específica da segurança eletrônica? Lembremo-nos por um momento de antigo “alarme” de segurança: o tradicional cão de guarda. Advertem certas placas em entradas de residências, não sem certa dose de humor: “Cuidado! Cão antissocial”, ou também, “Cuidado! Dono perigoso”. E o alarme eletrônico? Este dispositivo é antissocial de maneira mestra. Faz o “som” da sociopatia. Ele mente. A segurança é seu álibi. Sinaliza sonoramente, sem parar: “tem dono”, “pare”, “não se aproxime”. Chama atenção para distrair e morder, para anestesiar e roubar. Manda “parar” e ele mesmo não sabe parar. Instalado nas fronteiras de modernos feudos, abrigado em veículos locomotores, o artefato-cão não só representa a ameaça acústica aos indesejáveis, aos destituídos, aos outros, mas ao ‘ladrar’ e ‘morder’ em moto perpétuo, morde a todos indistintamente, é perigoso inclusive à saúde mental e física do dono. Rouba voz e ouvido, tempo e memória. O artefato-cão não “cheira” nem reconhece seu pretenso amo, este carece de senha digital, de código de segurança ou de identificação biométrica para entrar, sair, passar, cruzar, transitar, para ser admitido em sua própria casa, em seu veículo, em seu trabalho. O “cão de guarda” eletrônico é robô-ladrão.
Sabemos que os ruídos da construção ao lado cessarão um dia, que a megafesta do vizinho barulhento passará, o que de alguma maneira atenua nosso sofrimento, mas o alarme é colocado ali para ficar para sempre, armado de forma a perpetuar seu vício. Com impunidade assegurada. “A melhor arma”, anuncia a empresa de segurança. A agressão virulenta é delegada à máquina que a executa, os disparos automáticos parecem querer liberar seu proprietário de qualquer esforço pessoal. Desloca-se a responsabilidade para o “sistema” que nunca devemos questionar, para a máquina que aparentemente isenta de culpa seu usuário, que blinda e legaliza a má consciência enquanto desvia a voz da verdadeira consciência. O dispositivo mecânico, suposto subalterno perfeito, não falha em obediência cega, nunca falta ao serviço 24h, além disso, providencia o álibi ideal em tempos de crime sem castigo. Ao assumir o comando, a máquina não falha, ela só “dá defeito”, só faz falta se “o sistema cai” ou quando o fornecimento de energia elétrica é cortado pela raiz. Até que um dia, talvez, as máquinas se revoltem contra o homem que as criou (se já não o fazem). Por enquanto, é certo que tomam conta, por fora e por dentro também. Pois quem crê em robô-seguro já prepara em si o futuro eu-robô[10].
“Garantimos os 120 decibéis do produto”, orgulha-se o gerente de vendas. E para que servem os ensurdecedores 120 dB? “Para desorientar e espantar o bandido”, replica. E então, Sr. Perito: não será por isso que andamos por aí tão desnorteados, desorientados, recebendo de graça tratamento de bandido? O ataque a 120 dB espanta-tubarão, mas seguramente não espanta-bandido. Isto porque o volume máximo e mentiroso já é a norma auditiva, o ruído é o “barato” do bandido, a fachada do lobo (mau), o entretenimento do predador (humano). Quem tem medo do lobo mau? Quem enfrentará o mau humano? O efeito acústico da segurança (cega) não “segura” bandido, o “barulhinho bacana”, este “ruído benéfico” (notável designação do mesmo perito) não nos torna mais confiantes, tímpanos estourados e células ciliadas caladas (no ouvido interno) não deixaram ninguém mais seguro. Este ruído-violência não é do bem, é do mal mesmo. Como se devesse servir como placebo contra medo e crime, falsa pílula administrada em altíssimas doses, a crença em seus efeitos supostamente apaziguadores é especialmente nociva quando se aceita trocar a consciência por ruído, quando se tenta cegar a percepção de si (e dos outros). A infernal “canção de ninar” da vigilância 24h nos embala na ilusão de segurança aumentada, na sensação de medo diminuído, através da fanfarronada de uma cobertura que maquia vergonha e insegurança. Enquanto ensurdece. Sem intervalo.
Corpos são basicamente ressonadores, estruturas vibratórias fundamentais, imagine-se, pois, o rombo provocado pela cronicidade da repetição cruel, dos martelatos da persistente “tortura chinesa”, destes estímulos (des) medidos que martelam no mesmo lugar, no mesmo lugar, que batem - batem sempre, sempre, sem dó e sem ré, sem dó e sem ré. Até alarmes de ré não tem dó. Graças ao robô-cão, ao rabecão tecnológico, o batente tem patente (de segurança).
Que não se pense que os disparos destas metralhadoras sônicas afetem os ouvidos somente, suas irradiações em granulados ‘bits’ eletrônicos prejudicam o organismo como um todo, infestam os sentidos, infectam nossos órgãos, “disparam” radicais livres, confundem neurotransmissores, perturbam fluxos da corrente sanguínea, potencializam processos doentios já em andamento. Pretendendo prevenir ataques atacam a saúde de todos. Põem à prova nossa biologia cerebral. Alarmes naturais das células orgânicas, cerebrais, biológicas, passam a se “desalarmar” com a inundação de falsos sinais. O sistema de vigilância do cérebro (sim, ele existe) passa a se confundir, o circuito cerebral do tálamo, da amígdala e do córtex é desregulado, o sistema nervoso sob ataque constante nos dá um choque de cortisol (hormônio do estresse) a cada poucos minutos, o que inibe a utilização da glicose pelo hipocampo, causando déficit de memória, degeneração cognitiva, envelhecimento precoce das células. Também a produção de dopamina, hormônio que nos faz sentir satisfeitos e contentes, é perturbada. No sistema nervoso ficam registrados os rastros de tantas caóticas e deprimentes repetições, a criatura é levada a um estado de estresse e exaustão crônica. O organismo parece não permitir que simplesmente se filtre e esqueça, que se apague o que se impõe e repete sem fazer sentido. Por mais que nossas mentes conscientes se digam ‘acostumadas’, nossos corpos desmentem.
Hoje em dia não há mais tempo livre, livre de barulho, invasão e balbúrdia. A maldição programada, a abominação acústica parece ser arbitrariamente projetada de modo a fazer parte indissociável de nosso espaço psicossocial. Tente entabular conversa importante com o amigo em frente à sua residência, ou simplesmente confraternizar, sentar, cantar, tocar, ouvir, namorar, naufragado em espaço colonizado pela repetição digital-serial dos alarmes. Quem ainda não percebeu que, enquanto “redes sociais” e “mensagens” fazem sucesso, já não se conversa mais ao vivo? E que, se ocorre conversa, fala-se alto demais? Nosso espaço mental e físico é alterado e adulterado pela invasão ilegal do som sem língua e coração, do som do robô, do autômato. Sem parar ele dispara, obriga a calar enquanto intercala o surdo refrão da calamidade. Como todo mal (banal, normal), é unidirecional, só tem boca, não tem ouvido, só emite, não dialoga. O espaço público vira espaço de persuasão trapaceira, utilitário, inabitável, não espaço para o tempo de liberdade compartilhada, mas espaço invadido e tornado rentável em qualquer canto. Pelo fato de ser explicado como item de “segurança”, o dispositivo sonoro adquire supostos ares de legalidade. Ordenado a disparar, repete de maneira imprevisível seu previsível, influenciando e fragmentando a rotina dos homens. Ele quer dominar e marcar o território definitivamente. Sua ordem (obsessiva) invoca desordem (compulsiva). Como robô e ladrão do tempo dos homens, é autoritário e perverso, por isso não parará. A não ser que se interrompa o circuito de seu vício obrigatório.
Ao lado da indústria do entretenimento, a segurança já promove a mais próspera indústria do século XXI[11]. A coletividade é mesmerizada pela seguinte fórmula mágica: “por questões de segurança”[12]. O conceito de segurança perpassa não só governos e poderes públicos, mas já domina a vida cotidiana de cada cidadão. “Segurança” é considerado serviço básico inquestionado e acima de qualquer suspeita. No entanto, é preciso refletir a fundo sobre o conceito e suas possíveis e inevitáveis ciladas. Com urgência. No mundo todo “segurança” (online e off-line) assume feições de sistema totalitário. O “sistema” (maquínico) apresenta-se como onipotente substituto (paterno) das relações confiáveis que proporcionam verdadeira proteção e segurança. Sentindo-se perseguido e cercado de ameaças por todos os lados, ao cidadão é concedida pequena parcela na sensação de poder quando “compra” a ideia de segurança e controle através de barulho embutido. Mas precisa ouvir os alertas e estímulos de suas engenhocas dis-parando para acreditar no disparate.
O que disparar como gesto indica? De que é índice um gesto que se torna maquinal? Com bips e alarmes ouvimos os rastros do gesto de disparar. Graças aos modernos dispositivos tecnológicos, estes rastros são hoje impositivos do mundo digital, inescapáveis em suas repetições. Como toda arma, alarme não dispara só porque é hora certa, dis-para de qualquer jeito, esta é sua função, sua reativa razão de (não) ser. Sempre à espreita, dispara no real o mal armazenado. É modelo maquínico de negação da vida. Só diz maldição. Um dispositivo que dispara (ostensiva- e ofensivamente) é demonstrativo (acústico) de como hoje meios santificam os fins, e não somente o inverso[13]. A arma ama poder disparar sem pagar. Lembremo-nos do exemplo da bomba atômica, do artefato nuclear: na mira de motivo para disparo, de pretexto que justifique seu funesto poder de dissuasão, nele qualquer pretexto se dissocia de contexto, o que o torna meio em si mesmo (=fim). Perante tal fim, quedamo-nos surdos, cegos e mudos. A violência nos quer calados e esquecidos, partícipes da absurdez. Bombar (corpo, mente e ambiente) e disparar (armas, pulsos e impulsos), são gestos de um surto que segue modelo maquínico, esquizoide, esquizofrênico, comportamento que normatiza a violência da qual não se deve poder escapar, tornando-a banal, recreativa, cega, surda, blindada, idolatrada, apavorante, apavorante por ser corriqueira, cotidiana, epidêmica. Preferimos nem pensar nela enquanto olvidamos e abolimos a vida.
O alarme, subproduto da tecnologia securitária, nativo (provável) da indústria de armamento, seu inativo “desceu” até nós para virar fiel fetiche acústico, sua (in) utilidade inventou necessidade e freguesia, como estímulo eletroacústico entranhou-se em todos objetos e aparelhagens, há imbecis e repetitivos sinais monotônicos para as mínimas ações, ocupou casas, lojas, ruas e garagens, postos e ascensores, metrôs e aeroportos, obras e construções, implantou-se como sirene (turbinada a decibéis proibitivos) em ambulâncias, viaturas de polícias e bombeiros, empregado em novas armas acústicas (definidas como não-letais) que, por exemplo, tomam a forma de eloquentes “canhões sonoros”[14] (que fornecem ataque de alarme até 150 dB) projetados para dispersar manifestantes e rebeldes que se aglomeram em locais públicos. “Inferno” é o codinome destes agentes de segurança. Graças ao alarme digital, todo artefato hoje em dia ecoa a “bomba” e seu pesadelo através das réplicas acústicas de pulsos radioativos. O ouvido é constrangido a ouvir a contagem regressiva de uma calamidade em andamento, a todo momento. Cada recorte do espaço assim apropriado vira pequeno e mesquinho cenário com gostinho de apocalipse. Quando adaptado a faixas de frequência infra- e ultrassônicas, como estímulo behaviorista influencia a tomada de decisões, assim o dispositivo anti-jovens “Mosquito”[15] é destinado a irritar e repelir jovens fregueses indesejáveis (que ainda percebam sua frequência agudíssima) de bares e estabelecimentos comerciais europeus. Esta espécie de “mosquito” não suga sangue e sim o cérebro de quem ouve. E, notem e pasmem, a frequência eletrônica característica encontra-se acoplada também (em decibelagem mais branda) a equipamentos médicos e hospitalares, onipresente em ambientes em que placas com o pedido de “SILÊNCIO” são colocadas bem à vista de todos. Hospitais brasileiros são reconhecidamente dos ambientes mais poluídos sonoramente. No entanto, existem diversos estudos pediátricos que comprovam a influência danosa de ruídos em ambiente hospitalar, que demonstram como atrapalham a vida intrauterina e a devida maturação de bebês prematuros, aumentando a probabilidade de graves problemas no futuro destas crianças[16]. E os demais pacientes, doentes, reconvalescentes, fragilizados, não merecerão também respeito em seus necessários cuidados? Como reagirão mentes e organismos aos batentes das repetições seriais dos estímulos eletrônicos? E se somos todos seres vibratórios, mesmo quando maduros e saudáveis, não adoeceremos enfim?
É óbvio que o “lobo” existe. Mas qual é sua exata natureza, como ganha realidade, o que fazer? Onde se esconde, onde dá as caras? O predador humano, o lobo (frontal ou não), o monstro inclassificável, a loucura, a doença, o fanático, o terrorista, o psicopata, o mal sim existe, entretanto, será ele “radical” ou banal, superficial? São perguntas que só o bem lembra-se de fazer. O mal prova e assegura-se de que o mal são os outros. Pessoas de bem reconhecem que o mal também nos habita assim como o habitamos, reconhecem que representa assunto de nossa alçada e responsabilidade pessoal e imediata, portanto a segurança médica, psiquiátrica, mental, policial, militar, social, ambiental, ecológica, planetária, estabelece uma agenda que não podemos questionar. Porém, a segurança deve se humanizar e não mecanizar suas defesas. Devemos cuidar da doença e não acomodar seus sintomas. Temos que proteger a natureza dos desvarios do bicho-homem, defendê-la dos senhores da destruição, inclusive proteger o homem de si mesmo, de seus atos autodestrutivos, procurar pelas causas profundas de suas doenças autoimunes.
A verdadeira segurança é sinônima de saúde, educação e comunidade. Ela deveria ser para todos, assim como o ar é para todos, assim como a vida é para todos. Devemos enfrentar os males pelas vias indiretas de valores restabelecidos. “Vigiar” significa cuidar e respeitar, amar e amparar, não invadir e menosprezar, controlar e apropriar. Nada nos impede de inventar formas benignas de segurança, reforçar as verdadeiras relações parentais e introduzir novas formas democráticas (não totalitárias) de proteção comunitária sem ter que apelar para os batentes do poder tecnocrata e desumanizador que a todos maltrata. Sem comunidade real geramos calamidade abissal.
Não atire em mim... Para o robô-cão que dispara seguro, para o aparato que obriga a parar, somos sempre culpados, nem dá tempo de provar inocência. Inútil pedir, ele não ouve. Quando por ele passamos (objeto estacionário), ou quando passa por nós (objeto nômade), somos tratados à maneira de condenados, de pré-julgados sem direito de defesa, o ouvido é punido, atropelado e baleado por estímulos bélicos, a boca é obrigada a se calar. Pense também no exemplo do “alarme de porta aberta”, do “anunciador de presença”, no artefato-cão que controla a abertura de portas, portões, janelas, que dispara sons de ódio para qualquer passante (adulto, criança, idoso) que não se conforme ao cronograma da (in) segurança, ao tempo programado, muitas vezes programado a disparar a qualquer sinal de presença, programado a “anunciar” toda entrada/saída. Somos obrigados a passar correndo (com risco de queda e fratura) para não ter que ouvir a sirene e as rajadas de seu regime de terror. Vemos assim que quem nos condena a parar também nos põe para correr. Sinaliza que não podemos estar presentes, nos encontrar e socializar a portas abertas sem sofrer a intimidação do disparo serial de batentes (sem combatentes presentes) que nos ridicularizam e ofendem. Teremos que nos tornar invisíveis para ser gente e não indigentes? Robô-ladrão rouba abertura e presença real, converte o espaço de convivência em espaço de perjúrio. Poucos ousam reclamar, intimidados pelo voraz e inquestionável apetite de um “monstro sagrado” que parece justificar todo sofrimento. Pagamos a ele tributo compulsório através do ruído-imposto, imposto de segurança. E se esquecemos ou nos confundimos nas senhas que exige para transitarmos? Onde apita, o rabecão do falso deus da vigilância arma o front espectral, ergue paredões acústicos, nos coage à passagem perigosa por estreito abissal. Apita e denuncia: levanta falso testemunho com o escarcéu, apropria-se dos portes e direitos de ir e vir; destituídos de tempos e silêncios, encontros e diálogos, somos colocados à mercê de ininterruptos controles, com isso, a cada dia que passa, protegidos e bem distraídos, diagnosticados com déficits de atenção, perdemos mais um tanto de voz própria enquanto somos aliviados “de bons bocados de cérebro”.
Retiramos de nossas vidas o silêncio, o ócio criativo, a música, o encontro, colocamos em seu lugar os afãs dos negócios da segurança, do entretenimento, da distração, do consumo. Não se pode mais ficar à toa, fazer nada, desocupar-se, meditar, rezar, amar, cuidar, dialogar, só parece existir a devoção ao alarmante nada (de sentido). O silêncio é hoje tratado como “a soma de todos os medos”, qualquer pausa é considerada ansiogênica, inibidora, antipopular, perigosa. Embora no fundo ansiemos por diálogo, escuta e silêncio, por comunicação real, recuamos frente à eventualidade de que co-incidam desejo e realização. Daí talvez a resignação, a cumplicidade e a conivência com a publicidade invasiva, com a “música-ambiente” compulsória, em qualquer local, a qualquer momento, sempre pontuada por repentes e repetentes de batentes em dis-paradas galopantes.
As máquinas de repetição parecem forjar o homem serial. Cada partícula, cada “bit” que se ouve (ou não), cada “bi” é igual “bala” que tira e atira, grão digital e bipolar, ti-ti-ti, cri-cri-cri ou bi-bi-bi, não importa, o instante que se serializa se infringe como sequência tirana, como circuito de irradiações que abisma o cérebro enquanto bane presença e memória. O mórbido circuito coage o ouvido ao nada alarmático. Artefatos são hoje eficientes produtores de rastros viciantes, de “pegadinhas” acústicas lançadas de um passado indeterminado para um futuro exterminado. Para gerir a enganosa impressão de solidez e conforto, controle e segurança, de distração e diversão garantida, sons e ruídos seriais são artificialmente plantados em praticamente todos aparelhos, veículos, botões de apertar, teclados, jogos, brinquedos, programas, aplicativos, em objetos e recursos que por si só, com os meios atuais, não produziriam ruído algum[17]. Mais que nunca, máquinas interconectadas ditam os ritmos de nossas vidas, de nossos cansaços, só que agora decretam séries de “nadas” que digitalizam o comportamento do homem. Imprimem em células e celulares a doutrina do momento, que é a do falso “agora”, doutrina do efêmero perpetuado. O mau inconsciente prega o Alzheimer coletivo. Quando devoto da própria servidão, o humano perde seu ritmo, olvida seu tempo, olvida a vida. A mente estreitada é abismada entre as falésias da liberdade desenganada.
A serviço dos diversos interesses comerciais, o marketing sonoro invade a cidade[18] para fazer com que seus produtos ganhem “visibilidade” através do ouvido. Cobiçar visibilidade para olhos alheios não basta, faz-se barulho para atrair o ouvido e assegurar a fatura futura do freguês. Para (des) aparecer faz-se barulho. Então, para o marqueteiro, ruído não é problema, problema não é ruído, aliás, toda técnica de condicionamento depende da repetição de ruído-imposto, do ruído que se perpetua; o silêncio é que seria o azar maior, o fracasso de qualquer negócio falacioso. Quem só se preocupa com as cifras do lucro quer marcar mente e ambiente com sua assinatura sonora, jogar no mercado só com cartas marcadas, imprimir logo seu logo. Para o bem ou para o mal, fechamos os olhos através das pálpebras, olhos sabem blefar (pálpebra em grego é bléfaron), mas orelhas não se fecham da mesma maneira, não sabem blefar, portanto, encurralado, o sentido sensorial se desgasta, o dom de ouvir desaparece. O barulho quer vencer a qualquer custo, não dá para competir com barulho sem fazer mais barulho ainda. O dilema leva à sensação de impotência frente ao surdo absurdo. Pois quanto mais barulho se faz, mais surdos ficamos, quanto mais surdos ficamos, mais barulho se faz. Eis o circuito (des) integrador do mal (não só acústico).
Como quebrar o círculo vicioso da muda violência com a surdez progressiva? Estão gritando porque não escuto mais ou não escuto porque estão gritando demais? Os ainda-sensíveis vivem na “terceira” margem do rio[19], no entre-rio da ensurdecedora mudez[20] com a emudecedora surdez. A distância sensorial e psicológica entre as pessoas aumenta a cada dia, vive-se na cidade em alta densidade demográfica, porém sem encontros. Em vez de encontros temos ruidosos desencontros. O ruído toma o lugar do encontro, um desencontro é movido a solidão, multidão e barulho. A noção de espaço real, de proximidade, de tempo vivido, de aqui e acolá, vem sendo substituída pela virtualização, pela simulação de vida. O ser moderno implanta em si e no ambiente artifícios que perturbam as relações dos seres entre si, que interrompem encadeamentos e ligações vitais, que se intrometem nos meios de vida de viventes (e sobreviventes). Seus maus modos, seus ainda primitivos e antropocêntricos modos de apropriação do espaço desgraçam suas relações com a natureza, com os outros, consigo mesmo. Aturdido e atordoado, o homem contemporâneo perde suas raízes.
Haverá trégua algum dia, e se houver, o que perceberá então o indivíduo que ensurdeceu/emudeceu em vias de fato? Não gozará de silêncio, será permanentemente afrontado e assombrado pelo efeito-fantasma de sinais sem sentido ecoando em sua caixa craniana. O cérebro maltratado, malpassado, incapaz de lidar com as marcas deixadas por repetições viciadas, entupido com lixo cibernético, pode em dado momento fazer retornar rastros, vestígios, “pegadas” acústicas daquilo que ao longo da vida se ignorou, do que não se suportou, do que não se ouviu ouvindo mesmo assim. Ruídos involuntários, tinidos, zumbidos (não só depois do show a 120 dB), fragmentos de música e alucinações sonoras passam a reverberar interminavelmente na cabeça. Portanto não jogue a cabeça no abismo, não jogue com a cabeça dos outros nem com a própria.
Pare você mesmo. Ouça. Parar e não disparar, prestar atenção, aquietar-se, acolher o silêncio, escutar, isto revela a verdadeira música que há dentro da gente. Estes são simples e primeiros passos da consciência. Quando veiculada pela música, ela é a única capaz de nos salvar de ruídos, chiados e vertigens do “nada”. Entendamos que não temos que salvar a música, é ela que nos salva quando a escutamos[21]. Com ela há uma chance de nos libertarmos de vícios e mimetismos gerados pelo falso umbigo da superficialidade, do anacrônico egocentrismo. Torne-se moderno de verdade. Pois com as repetições robóticas, maquinais, os piores monstros do inconsciente são paridos (às escondidas) e colocados no mundo à vista (primeiro ao ouvido) de todos. Sem alarmar ninguém.
Ouse e escute. Dê um “stop” às precipitações que dão em nada. Quando ensurdecemos para o sentido das coisas, sons e sinais seriais nada dizem. Dizem nada. Quando o nada é a palavra de ordem, nada mais faz sentido. Emudecemos. Sem voz própria, sem memória, em um mundo superdotado com falsos sons, talvez não mais saibamos ouvir os sons das verdadeiras vozes e seus chamados. O que pode levar à calamidade sem retorno: mudo e sem propriedade, o homem vira artefato de seus artefatos.
O alarme eletrônico é falso gesto que encobre com barulho viciado a surdez que vira costume e norma. O ruído-gesto é chiado do indigesto. Portanto, é preciso saber parar a tempo o que promete não querer parar nunca. O que não quer parar de jeito nenhum é sinal de desvio, de violência.
ILAN GRABE
Educador, pianista, regente, compositor, graduado na Hochschule für Musik Freiburg (Alemanha), na Europa foi também discípulo do maestro Sergiu Celibidache, formado na Técnica de F.M. Alexander (Israel, Suíça e Inglaterra), diplomado pela Basler Schule für Alexander Technik (Suíça) e certificado pela Society of Teachers of the Alexander Technik (Londres), professor colaborador da Fundação de Educação Artística em Belo Horizonte (regência, fenomenologia da música, música de câmara, educação musical). E-mail:
Referências
ANDERS, Günter. Die Antiquiertheit des Menschen. München: Verlag C.H. Beck, Band 1 und 2, 2010.
ASIMOV, Isaac. Eu, robô. Rio de Janeiro: Ediouro-Sinergia, 2004.
ATTALI, Jacques. Uma breve história do futuro. São Paulo: Ed. Novo Século, 2008.
ATTALI, Jacques. Bruits, essai sur l’économie politique de la musique. Paris: Presses Universitaires de France et Librarie Arthème Fayard, 2001.
BROCH, Herrmann. A Morte de Virgílio. São Paulo: Ed. Benvirá, 2013.
GRABE, Ilan. Surdez blindada. in JORNAL O TEMPO. - ano17 – Número 5.949. Belo Horizonte: 2013.
HOMERO. Odisseia. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
KRAUSE, Bernie. A grande orquestra da natureza: descobrindo as origens da música no mundo selvagem. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
MOLES, Abraham. Psychosociologie de l’espace. Paris: Éditions L’Harmattan, 1998.
PIMENTEL-SOUZA, Fernando. Efeitos da Poluição Sonora no Sono e na Saúde em Geral – ênfase Urbana. In Revista Brasileira de Acústica e Vibrações. Sociedade Brasileira de Acústica. Edição 10ª, 1992. p.12-22. Disponível em http://www.icb.ufmg.br/labs/lpf/2-1.html (último acesso em 11/07/15).
ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1968.
SACKS, Oliver. Alucinações musicais: relatos sobre a música e o cérebro. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SCHAFER, Murray. O Ouvido Pensante. São Paulo: Ed. UNESP, 1991.
SERRES, Michel. O mal limpo: poluir para se apropriar?. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2011.
SERRES, Michel. Os cinco sentidos, filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 20
[1] Eis nossa tradução deste verso da canção de David Bowie, “All the madmen”:“Dia após dia, eles nos tiram algum bocado de cérebro”; BOWIE, David. The Man Who Sold the World. London: Mercury, 1971.
[2] Ao conceder entrevista na “Lowndes &Son”: http://www.lowndes.com.br/report/61/mater4.htm Último acesso em 02/08/15. Também há discussões sobre o assunto no blog “Abaixo as Sinaleiras”: http://sinaleiras.blogspot.com.br/search/label/artigos. Último acesso em 02/08/15.
[3] O neologismo foi cunhado pelo compositor canadense Murray Schafer (1991, p. 171).
[4] ATTALI, 2001, p. 52.
[5] Robert Koch, apud WILDEN, Lutz. Na Analysis of the Current ENT-Therapeutic Strattegies Regarding Hearing Impairment, p. 20. Disponivel em http://www.dasgesundeohr.de/pdf/Neuer_Text_Dr_Wilden_en.pdf . Último acesso em 02/08/15.
[6] Para melhor apreciar o conceito de “biofonia” introduzido pelo músico e doutor em Bioacústica, Bernie Krause (2013), recomendamos a leitura de seu livro A grande orquestra da natureza.
[7] Sobre nosso conceito de “surdez blindada”, leia GRABE, 2013, p.20.
[8] Para ampliar a discussão, leia PIMENTEL-SOUZA (1992).
[9] SERRES, 2011, p. 11.
[10] Alusão à obra de Isaac Asimov (2004).
[11]“Todas as empresas, todas as nações se organizarão em torno destas duas exigências: proteger e entreter. Proteger e distrair-se dos medos do mundo” (ATTALI, 2008, p. 111).
[12] Para uma reflexão sobre segurança e o destino da democracia, veja transcrição de palestra de Giorgio Agamben, proferida em Atenas: “Por uma teoria do poder destituinte”.
http://5dias.wordpress.com/2014/02/11/por-uma-teoria-do-poder-destituinte-de-giorgio-agamben/ Último acesso em 02/08/15.
[13] Aguda e sensível análise desta questão pode ser encontrada no profético “Die Antiquiertheit des Menschen” (A obsolescência do homem) de 1956, de Günther Anders (2010, p. 252).
[14] São chamados de LRAD, sigla de “long range acoustic devices”. Mais informações sobre o canhão sonoro: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI339623-17770,00-ENTENDA+COMO+FUNCIONA+O+CANHAO+SONORO.html. Último acesso em 02/08/15.
[15] Comercializado pela empresa britânica “Compound Security Systems” no mercado interno europeu. Confira: http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+WQ+E-2008-1217+0+DOC+XML+V0//PT Último acesso em 02/08/15.
[16] Consulte diversos artigos publicados em “Annals of the New York Academy of Sciences”, por ex. https://mail.google.com/mail/u/0/#search/lenima%40terra.com.br/144a85a5fef04e7a?projector=1, e de “Pediatrics, Official Journal of the American Academy of Pediatrics”; http://pediatrics.aapublications.org/content/108/6/1339.full.html, por ex. https://mail.google.com/mail/u/0/#search/lenima%40terra.com.br/144a85a5fef04e7a?projector=1 Último acesso em 02/08/15.
[17] Veja outras informações em http://www.humansinvent.com/#!/889/5-fake-sounds-designed-to-help-humans/, http://www.humansinvent.com/#!/936/5-more-fake-sounds-to-fool-you-today/, Último acesso em 02/08/15. http://www.bbc.com/future/story/20150415-the-buttons-that-do-nothing Último acesso em 02/08/15.
[18]Ver “Le marketing sonore envahit les villes”: artigo de Juliette Volcher no jornal “Le Monde”, em agosto de 2013. Disponível em http://www.monde-diplomatique.fr/2013/08/VOLCLER/49545. Último acesso em 02/08/15.
[19] Referência ao conto “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa (1968, p.31).
[20] “Ensurdecedora mudez”: expressão usada por Herrmann Broch (2013, p. 168).
[21]Comprove algumas evidências de nossa afirmação neste belo e comovente documentário :
https://www.youtube.com/watch?v=k9cfEyBhzBU&list=LLGIpbJVHpo1cieLzaItsU8g&index=8. Último acesso em 02/08/15.
Quando penso nas maravilhosas telas monocromáticas de Lucio Fontana, com aqueles cortes precisos praticados com o cutelo, não consigo deixar de recordar que o pintor começou a trabalhar daquele modo quando tinha quase 60 anos.
A escuta da nossa alma é, frequentemente, mais longa e lenta do que supomos, e não é de maneira imediata que conseguimos exprimi-lo. É também verdade, porém, que nunca é tarde demais para encontrar a sua linguagem pessoal e profunda.
Gosto muito do subtítulo que Fontana dá a estas obras com os cortes: chamou-lhes Espera. É uma palavra justa para explicar aquelas cesuras que ocorrem fora e dentro de nós.
E certamente esse nome constitui um modo sábio de compreender que também as feridas, as lacerações e os golpes são, no fim de contas, linhas em movimento que nos conectam com a expetativa pulsante da própria vida.
A espera não é representada, na arte de Fontana, como um acrescento, nem através de uma qualquer tipologia ornamental. Ao contrário: é na superfície nua, neste esforço de redução ao núcleo essencial de uma só cor que a espera se desenha, então, como uma fissura, uma hipótese de passagem.
E, para concluir, um último elemento curioso: por trás das telas, o artista escreve frases que fazem parte da obra, mas que nós não vemos. Numa delas anotou: «É um belíssimo dia de maio».
Hoje não são unicamente os mercados financeiros ou a política com os seus ciclos trepidantes a recorrer à terminologia da crise. Na nossa própria vida (pela meia-idade, ou para além desta etapa), damo-nos conta de que avançamos de crise em crise.
São as grandes crises – quando a percepção de uma devastadora insegurança vital nos induz a colocar tudo em questão – ou as pequenas, das quais temos de nos ocupar no dia a dia.
Por muito que nos custe admiti-lo, as crises podem ensinar-nos alguma coisa, podem ajudar-nos a entrar numa dimensão mais autêntica da existência, ainda que saibamos que comportam o risco de nos lançar para turbulências para as quais não estávamos preparados.
Precisamente por este motivo, a crise é, por definição, um momento de sofrimento. Todavia, à maneira de um parto, ela pode representar a ocasião para compreender que o tempo não é um dispositivo trágico sem redenção, mas que, atravessado pela graça de Deus, o tempo é aberto e reversível.
A vida não é sem remédio: a vida está dentro de um processo contínuo, em gestação, num constante reinício. Existe sempre uma oportunidade de salvação, qualquer que seja a etapa do caminho.
Num mundo sem rituais, e que nos aprofunda numa inválida pobreza simbólica, são as crises, muitas vezes, que marcam a possibilidade de um reencontro com as interrogações mais sérias da vida.
Não sei o que nos aconteceu como civilização, mas a verdade é que as boas notícias nos embaraçam e entediam, ao ponto de quase evitarmos falar delas, enquanto que as más provocam uma curiosidade viral, uma excitação, um interesse redobrado.
Não há patologia pior do que este emurchecer da alma, deste olhar repleto de preconceitos que depois se faz amargo, deste juízo que se deixa capturar pelo defeito e pelo peso da imperfeição, e depois não voa, ignorando o que é a ligeireza.
Não há exercício mais esterilizador do que esta espécie de ressentimento expresso como anátema em relação à vida, do que este totalitarismo da lamúria que, sem nos apercebermos, nos asfixia, do que esta incapacidade de romper com a engrenagem do maldizer tudo e todos, ao qual nem nós escapamos.
E todavia, reconhecer o bem, procurá-lo obstinadamente e construí-lo a cada dia é a nossa vocação primordial. Dar notícia do bem e divulgá-lo realiza a nossa missão de fidelidade à vida.
Só assim se desperta a consciência de que cada ser humano é portador autorizado da imagem e semelhança de Deus. E só este é o modo de fazer justiça a esse extraordinário milagre que é estar vivo.
Colocamos demasiadamente o acento na compreensão racional, mas a razão só por si é clamorosamente insuficiente para interpretar a existência. A razão precisa, muitas vezes, de ser completada pela ordem do coração.
O místico medieval Ricardo de São Vítor escreveu: «Onde está o amor, aí há um olhar». Não raro, este olhar que o amor nos requer dá-se no contexto de um sofrimento que teríamos absolutamente preferido não viver, mas da qual aprendemos alguma coisa – e alguma coisa de belíssimo – a que, sem ela, não teríamos chegado.
O mundo da dor é vasto e, quando menos o esperamos, encontramo-nos a habitá-lo. Os sentimentos que então irrompem são muitos: recusamo-nos a aceitar, entramos em revolta, em depressão; gostaríamos de fugir para longe; perguntamo-nos “porquê?”, “porquê precisamente a mim?”, “porquê precisamente agora?”; sentimo-nos impreparados para uma travessia muito árdua.
E, pelo menos neste último ponto, temos razão. O nosso tempo fez da doença, da velhice da deficiência um verdadeiro tabu. Vigora uma espécie de interdito em relação à vida vulnerável: cada um tem de viver estas situações em estreita solidão, sem grandes ajudas para aprofundar a sua experiência como um recurso, e não como uma fatalidade. No entanto, a verdade é bem diferente deste desígnio traçado pelo egoísmo ou pelo medo.
Escutava há alguns dias um pai falar do seu filho com síndrome de Down, Dizia, sem esconder a sua comoção: «Este meu filho é um membro importante da nossa família. É o nosso ponto de união. Fez de nós pessoas diferentes, mais humanas e atentas aos outros. Alargou a nossa capacidade de amar».
Sobre esta hora, Rilke foi mais longe que todos os evangelhos canônicos e disse que a mãe ao pé do sepulcro ficou “imóvel como o interior da pedra ficou imóvel”. Em qualquer outra hora, essa mãe poderia ser da glória, da esperança, dos remédios, dos milagres, do bom conselho, da boa morte. Nesta hora, não. Nesta hora, ela é da solidão, mãe das mães silenciosas que alguma vez em suas vidas também ficaram imóveis, cada uma com o nome do seu filho suspenso nos lábios, suportando duramente tudo o que jaz dentro da pedra junto com um filho, mundos possíveis, amigos, safras de milhares de momentos, elos ardentes no tempo, amores de Madalenas que nem saberão dessa perda, só talvez, de vez em quando, sintam um estranho aperto no peito, felicidades grandes e pequenas, o inimaginável, o imprevisível, poemas. Nesta hora, a mãe está desamparada. Ela, de quem se espera auxílio, compreensão, paz, misericórdia. Desamparada, ausente da música das coisas e das águas, sem pés e sem mãos, na desolação de todos os possíveis, ela, de quem se espera que console, que proteja, que socorra, que conceda graças. Que esperem. Que vigiem. Cuidem dessa mãe, agora desprotegida, desarvorada de cuidados. Cantem para ela, neste dia de pedra, como um carinho de filho, um caminho de flauta, o roçar de uma folha. Pensem nessa mãe imóvel.
Mariana Ianelli
É paradoxal e sugestivo, e como poderia não o ser?, o modo como os Evangelhos narram a ressurreição. Desconcerta que nos discípulos não haja o crer imediato, que não tomem em consideração as provas irrefutáveis apresentadas, ou não considerem como inabaláveis as primeiras testemunhas.
A notícia da ressurreição é vivida antes de tudo com suspeita, desconfiança, temor, distância. A frase de Tomé, «se não vir, não acredito», é, no fundo, a posição de todos.
A notícia circulava em surdina, como uma hipótese inquietante que ainda precisava de ser verificada. Já tinha certamente chegado aos ouvidos dos dois discípulos de Emaús, que ainda assim estavam prontos a deitar tudo para trás das costas e a esquecer apressadamente aquela história.
O anúncio da ressurreição, todavia, cresce. Mesmo sem acreditar nas mulheres, Pedro e João correm ao sepulcro. E João vê o silêncio dos sinais e retira-se. Os dois discípulos em fuga reconhecem Jesus numa estalagem à beira da estrada e regressam a Jerusalém. O Ressuscitado em pessoa vai ao encontro de Pedro e dos discípulos, atravessando as portas que eles tinham fechado. E Jesus estende a mão às dúvidas de Tomé: «Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos».
A pouco e pouco, é em torno àquilo que primeiro tinham declarado impossível, que os discípulos de Jesus se recolhem e vivem.
A maior verdade que és chamado a acreditar é esta: a ressurreição de Jesus. É a maior, a mais delirante, a mais incrível das pretensões cristãs.
Há um Homem, na história, que ressuscita, e que Deus constitui como princípio de um novo destino para a nossa humanidade.
Verdadeiramente Aquele que contemplaste na cruz está vivo e caminha à frente dos seus, Aquele que viste esmagado pelo sofrimento testemunha um amor capaz de vencer a morte Aquele que viste ser deposto no sepulcro deixou vazio o seu sepulcro.
Esta é a notícia que o teu coração esperava como nenhuma outra, mas na qual nem sequer ousavas pensar. Este é o dia, o primeiro dia da tua re-criação em Cristo.
Alegra-te, por isso. Que tu possas rejubilar imensamente. Reveste o teu coração de festa. Compreende que na ressurreição de Cristo está toda a vida que se amplifica, se ilumina.
Compreende que é a tua própria vida que adquire uma outra forma. Sente-te atraído, lançado, projetado para dentro do Mistério Pascal.
Jesus ressuscitou, e agora vive à direita do Pai, como Senhor da História. E Ele, o Vivente, envia o seu Espírito para que tu te tornes o seu Corpo Místico, presença do Ressuscitado no mundo.
Pede-lhe a força de acreditar naquilo que melhor exprime a sua presença: a comunhão, o perdão, a fraternidade, a compaixão, a misericórdia, a bondade, a mansidão, o serviço.
Com a sua vida e a sua morte, Jesus desce para abraçar todos os silêncios, mesmo aqueles abissais, mesmo aqueles mais distantes, e dessa forma redisse a vida como possibilidade de salvação.
Ele abraçou o silêncio dos nossos becos sem saída, daquilo que em nós, ou de nós, é omitido; o silêncio em que as nossas forças desmoronam e nos deixam à mercê do medo e da sombra que nos assediam; esse impreciso e íntimo silêncio que a nós parece, tantas vezes: o silêncio desta inquieta indefinição que somos nós, entre o já e o ainda não.
Ele abraçou este tempo amassado com derrotas e esperanças, este tempo que faz mal como o espinho que permanece depois que a rosa foi cortada, este nosso tempo caracterizado por tempestades que nos rugem furibundas e por naufrágios que nos acometem, prontos a fazerem-nos em pedaços.
Abraçou o silêncio da vida nua, vulnerável, indefesa ou ferida, a vida que nenhuma cidade acolhe, a vida bloqueada pelo arame farpado das fronteiras, impiedosamente votada ao descarte.
Ele abraçou o silêncio de todas as vítimas da história, o silêncio terrificante da injustiça, a lâmina cega da violência, o grito sem voz dos excluídos, o emudecimento dos pobres, o último olhar, imenso e silencioso, que os justos lançam sobre a Terra.
Na verdade, não há ninguém que Jesus não tenha abraçado. É esta a beleza deste silêncio tão grande.
«Depois disto, Jesus, sabendo que tudo estava agora cumprindo, a fim de que se cumprisse a Escritura, disse: “Tenho sede”» (João 19,28).
Quantos acontecimentos dramáticos são sintetizados no rápido advérbio «depois» na abertura do versículo: a angústia que antecede a captura de Jesus, o estranho juízo no qual a sua inocência não foi tida em consideração, a humilhação infligida pelos soldados, a dolorosíssima via da cruz e, para acabar, a própria cruz sobre a qual foi pregado. E «depois» de tudo isto, aquele grito - «tenho sede» - que continua a ecoar.
Noutras vezes, no mesmo Evangelho de João, Jesus foi ao encontro de quantos tinham sede, dizendo: «Quem beber da água que Eu lhe der, não terá mais sede pela eternidade» (4,13); ou: «Se alguém tenha sede, venha a mim!» (7,37).
Mas neste momento, do texto da Paixão é o próprio Jesus que afirma «tenho sede», e a sua declaração nós lemos no tempo presente, como que a explicar-nos que a sede de Jesus é atual e infinita. Aquele que tinha dirigido o seu convite àqueles que têm sede, é agora, Ele próprio, devorado pela sede.
De que tem sede, Jesus? Tem sede de ti, tem sede da tua fé, sede da tua presença, sede do teu sim. Tem sede da sede que tu podes ter de Deus, da falta de verdade que te habita, de um desejo de salvação que subsista em ti – ainda que seja um desejo oculto ou sepultado por feridas e escombros.
Jesus tem sede de dar-te a beber o seu amor.
Hoje há consenso sobre o fato de que os Evangelhos começaram a ser redigidos a partir do relato da Paixão; e que antes de serem constituídos na forma a que chegaram, já existia, como seu embrião, a narrativa da Paixão.
Por isso, quando os primeiros cristãos se reuniam, era para recordar a Paixão do Senhor. Ela é, efetivamente, o núcleo vital de tudo o que diz respeito a Jesus. E é a história que nos funda como cristãos, que nos confere a identidade, que nos faz ser.
Quer estejamos ou não conscientes, nós, cristãos, somos uma consequência da Paixão de Cristo. Disponhamos por isso o nosso coração a acolhê-la uma vez mais.
Pode dar-se o caso de nunca estarmos verdadeiramente confrontados com ela. Talvez nunca a tenhamos ainda considerado uma história especialmente dirigida a cada um de nós.
A Paixão de Jesus atesta a verdade fundamental do seu amor, que não é abstrato ou sem destinatário. É um amor real, que podemos experimentar sempre.
Jesus vive a sua Paixão como um ato de compaixão sem medida a nosso favor. Jesus abraça a nossa condição, a nossa inconsistência, abraça aquilo que em nós nos agrada e que não nos agrada, abraça aquilo que nos entristece ter acontecido ou simplesmente não ter acontecido.
Jesus aceita ser provado em tudo para abraçar tudo em nós: «Eu estive sempre ao vosso lado, nunca estive longe de vós, nunca alguma coisa vos separou do meu amor»
Normalmente, quando nos deslocamos de um ponto para outro conhecemos o motivo. Mas – temos de o reconhecer – uma viagem assim é demasiado curta. Uma viagem que se faz conhecendo os seus motivos não é a viagem.
A verdadeira viagem é aquela que interiormente dura tanto, que já não sabemos porque é que viemos ou porque é que estamos ali. As perguntas sobre aquilo que fazemos deixam de interessar.
Estamos ali, ponto final, e chega. Viemos. Demo-nos. Não são o saber ou a função que definem a vida, mas o próprio ser, a expressão profunda de si, o puro dom, e nada mais.
Escreve Rainer Maria Rilke naquele mapa indispensável que são as “Cartas a um jovem poeta”: «O tempo não é uma medida. Um ano não conta. Dez anos não são nada. Ser pessoa não quer dizer contar, quer dizer crescer, como a árvore que não instiga a sua seiva, que resiste confiante».
A beleza mais fecunda é aquela que não se deixa determinar pelas finalidades provisórias ou pelos utilitarismos de cada ocasião.
Antes, é aquela que, sem instigar a sua seiva, a degusta lentamente, deixando-se impregnar completamente por ela: até àquele horizonte em que já não se distingue o meu do teu, nem se separe o amor do objeto amado, nem o tempo seja dividido em passado, presente ou futuro.
Esta fecunda beleza, experimentá-la-emos unicamente no darmo-nos.
D. José Tolentino Mendonça
In: In Avvenire 9.04.2019
O místico medieval Ricardo de São Vítor escreveu: “Onde há amor há um olhar.” Não raro, esse olhar que o amor nos pede acontece no contexto de um sofrimento que preferíamos absolutamente não viver, mas do qual aprendemos alguma coisa — e alguma coisa preciosa — a que sem ele não chegaríamos. O mundo da dor é vasto e bem mais próximo do que supomos. Quando menos pensamos, damos por nós a habitar o seu território. E os sentimentos que, então, nos sobrevêm são tantos: entramos em negação, em revolta, em depressão, em ressentimento; apetece-nos fugir para longe; perguntamo-nos: “porquê?”, “porquê a mim?”, “porquê agora?”; a impressão que temos é que tudo em nosso redor naufraga e nós também; sentimo-nos impreparados para essa empresa exigente. E, relativamente a este último ponto, temos razão. A cultura dominante faz da doença, da velhice, da deficiência e do limite um completo tabu. Persiste uma espécie de interdito a respeito da vida vulnerável: não se fala dela socialmente, cada um deve viver essas situações em estrita solidão, não nos ajudamos a aprofundar essa experiência como um recurso e não como uma fatalidade. Contudo, a verdadeira realidade é tão diferente do desenho traçado pelo egoísmo ou pelo medo. Escutava há dias um pai, falando do seu filho afetado pelo Síndrome de Down, e ele dizia, sem esconder a comoção: “Este meu filho é o membro mais importante da nossa família. É o nosso elo de união. Fez de nós pessoas diferentes, mais humanas e atentas aos outros. Ampliou a nossa capacidade de amar. O que recebemos dele não tem preço.” E, na mesma linha, ouvia de uma amiga que, tendo começado a viver independente dos pais muito cedo, lhe coube depois acompanhar a mãe numa velhice muito sofrida. A vida desta amiga mudou da noite para um dia. De repente, dava por si em trabalhos e preocupações completamente diferentes, em que a mãe era o centro. A princípio, ainda pensava naquilo que estava a perder com esta mudança, mas assumiu-a depois como uma oportunidade de se reencontrar com a vida. Não é que tivesse grandes conversas com a mãe. Passavam, sim, tempo juntas. Caminhavam devagar, de braço dado, nos longos corredores do hospital ou quando desciam ao parque, vizinho da sua casa, para olhar as flores. Massajava com creme a cara, as mãos, os pés da mãe todas as noites. Tinham mil ocasiões para dizer “amo-te” ou “obrigado pelo teu amor”.
Recordo a peça de teatro de Romeo Castellucci, intitulada “Sobre a Definição do Rosto do Filho de Deus”, que esteve em cena em Lisboa, há uns anos atrás. A peça propõe uma reflexão em torno de duas imagens, e a primeira é esta: um filho que trata do pai, de um pai idoso, com muitas limitações de saúde. É até, para os espectadores, uma coisa dura de ver, porque um dos problemas daquele pai é uma incontinência fecal. De maneira que o filho tem de estar sempre a limpá-lo. E muitas vezes nos parece que vai soçobrar, que já não será capaz, porque está sempre a acontecer a mesma coisa. Apercebemo-nos do seu esforço extremo: é extenuante amparar as necessidades de outro ser humano. Mas ao mesmo tempo, com que delicadeza, com que transparente amor aquele filho se debruça para o pai e o sustenta. E há um momento belíssimo no meio daquele combate interminável em que ambos são aliados: agarram-se um ao outro e, abraçados, choram. Pai e filho choram perante o irremediável da própria vida, sentindo que já não vão conseguir resolver nada senão amar-se, senão perdoar-se, senão acompanhar-se até ao fim. Por paradoxal que possa ser, um dia apercebemo-nos que poucas coisas no mundo são tão importantes como essa.
D. José Tolentino Mendonça
In: imissio.net
«A piedade é a única maneira para escapar à aridez que a prática da reflexão cria inevitavelmente nas raízes da nossa sensibilidade. Saber não prepara para amar.»
Extraída de um escrito do conhecido pensador francês Jean Guitton (1901-1999), esta frase apoia-se na consideração de outro escritor, Joseph Joubert (1754-1824), que se referia à aridez a que pode conduzir a pura razão, exercitada de modo exclusivo, exorcizando e excluindo todo o sentimento ou piedade.
Todos na vida já encontrámos pessoas dotadas de grande inteligência mas privadas de humanidade. Houve nazistas intelectualmente muito apurados, mas de igual modo cruéis e implacáveis. Sim, porque como conclui Guitton, o «saber não prepara para amar».
Entendamo-nos bem: também para a amar é necessária pelo menos uma gota de inteligência, para não nos precipitarmos na cegueira ou no sentimentalismo. Mas um conhecimento racional gélido e exclusivo pode gerar monstros e monstruosidades.
«O “führer” tem sempre razão», dizia-se, e esta estúpida afirmação incarnava a degeneração de um pensamento totalitário que não sabe confrontar-se, que se torna ridículo na sua autolatria, isto é, na adoração de si, perdendo assim a luz da verdadeira razão.
«O último passo da razão – dizia outro grande filósofo francês, Pascal – é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam». Então, seguindo ainda as lições de Pascal, aprendamos a seguir «as razões do coração» e a evitar «dois excessos: excluir a razão, só admitir a razão».
Conheci-a numa tarde de verão, quando os ramos arqueados pelo peso da folhagem desenhavam uma longa sombra sobre a rua estreita. Serena e majestosa, abrigava naquele tempo uma pequena orquestra de pássaros selvagens e era ponto de encontro de amigos.
Os anos passaram. Tenho-a acompanhado nas adaptações às diversas estações do ano. Esta semana, por exemplo, a chuva caiu generosa e gratuitamente. O ritmo constante da água e a força do vento agitaram repetidamente os ramos secos e, mesmo assim, ela permaneceu silenciosa e serena, como se escondesse o segredo da juventude, a força que em breve a fará renascer. Amanhã será diferente. Amanhã, o vento voltará a agitar a folhagem, como se uma mão divina passasse os dedos pelas cordas de um instrumento.
Por agora, porém, a intempérie oferece ciclos de sucessivas provações. Despem-na do seu esplendor. Despojam-na da alegre companhia dos homens. Quase esquecida, ela está ali, à espera de um sinal da natureza para que volte a ser uma bênção. Ela persiste austera e silenciosa como um monge, de ramos erguidos para o céu, quais braços abertos à procura da eternidade. Serena e majestosa.
A Quaresma bate à tua porta como uma intempérie de sinais e palavras: cinzas, roxo, despojamento, jejum, abstinência, esmola, silêncio, oração e oração. A Quaresma é como um parto. A Quaresma é como se estendesses a mão e ouvisses pela primeira vez «não basta este pão». E a fome põe-te a caminho.
Como a copa da árvore num início de outono, descobres, nestes dias, que os quartos da tua casa estão arqueados de objetos imprescindíveis e imagens endeusadas sob as quais se escreve, num jogo de luz e sombras, «não me adores mais». Ali está também o velho relógio a medir o tempo com um ponteiro que não se cansa de repetir as mesmas voltas. Quantas voltas já deste aos mesmos temas? Quantas vezes já repetiste os esquemas obsoletos na esperança vã de vencer e dominar? Vais aprender, nesta Quaresma, que perder é ganhar?
Compreendes que é tempo de sair sem os artifícios do verão. Viajas em sentido contrário? Percorres ruas esquecidas? Lês mapas antigos? Reencontras aqueles que tens evitado? Não te arrependas nem tentes o Criador com os teus lamentos. A intempérie que te faz sofrer é também aquela que te fortalece. A provação que te despoja é aquela que te enriquece. E se a vocação daquela árvore, serena e majestosa, é confundir-se com o céu, tu também estás chamado a crescer, cada vez mais livre, em direção à eternidade.
É uma arte difícil, a alegria. Por um lado, sabemo-la próxima e acessível, como se os nossos dedos pudessem, a cada momento, e sem esforço, alcançá-la. Mas sabemos também como nos escapa, como é precária, dolorosa e inexplicável a alegria. Como nos obriga a procuras extenuantes e a desertos cujo fim não se divisa. Não admira, por isso, que muitos desistam da alegria e se metam a caminhar, vida fora, excluindo-a do seu alforge. A alegria, porém, é uma condição necessária da existência. Sempre que ela nos falta temos de interpretar isso como um iniludível sintoma, a que é preciso atender. Temos de nos interrogar sobre o porquê do nosso viver burocrático e tristonho, o porquê do nosso passo precocemente anoitecido, do nosso errar entre o peso e a cinza de onde a alegria se ausenta.
Não raro o problema é fazer depender a alegria de motivações acidentais, que nada têm que ver com a sua essência. Julgamos extrair a alegria do sucesso, da abundância, da força, da afirmação, da eficácia, do poder, mas o tempo encarrega-se de demonstrar o nosso equívoco. Os mestres espirituais ensinam, por exemplo, que a alegria não depende do imediato ou conjuntural: a alegria liga-se às razões profundas do viver. De fato, ela não deve ser reduzida a uma espécie de estado de graça que nos toca em certas estações ou a uma maravilhosa isenção face à turbulência e aos contrastes do mundo. Pelo contrário. Se pensarmos bem, a maior parte do tempo, a nossa vida é experiência de inacabamento e incompletude, é esboço e projeto, é movimento transformante. Como escrevia Montale: “Não existe um tempo inteiro:/ temos sempre tantos fios/ a correr em paralelo/ fios em sentido contrário/ que raramente coincidem.”
Conta-se nos ‘Fioretti’ (a célebre recolha hagiográfica que se tornou uma das fontes para conhecer o franciscanismo das origens) que regressando São Francisco de uma viagem para o seu convento de Santa Maria dos Anjos, fustigado por um inverno particularmente hostil, o seu companheiro Frei Leão lhe perguntou: “Pai, peço-te, da parte de Deus, que me digas onde está a perfeita alegria.” E que São Francisco lhe respondeu desta maneira: “Imagina que ao chegarmos a Santa Maria dos Anjos, completamente encharcados, desfigurados pela lama da estrada, pela fome e pelo frio, batemos à porta do convento; o porteiro aproxima-se irritado e diz: ‘quem são vocês?’; e nós explicamos: ‘somos dois dos vossos irmãos’; mas ele responde, ‘vê-se claramente que estão a mentir, são, sim, vagabundos que roubam as esmolas destinadas aos pobres. Fora daqui!’. Quando o irmão porteiro nos fechar a porta, e nos abandonar sem apelo à neve e à fome, se soubermos suportar tal injúria de bom modo, sem nos perturbarmos e sem murmurarmos contra ele, possuiremos então a perfeita alegria.”
É uma arte de paciência, a alegria. Ela pede de nós a capacidade de desconstruir as nossas expectativas, necessidades, idealizações — coisas a que estamos mais apegados do que supomos — e a provar aquela liberdade que vem de abraçar a vida nas suas não-coincidências (como sugeria o verso de Montale), com os seus sofrimentos, os seus revezes, as suas interrogações e pausas, as suas misteriosas travessias. E a fazê-lo sem ressentimento, mas aceitando que a esperança se expressa de um modo alternativo, prossegue por um caminho outro, capaz de nos surpreender. Na verdade, é um artesanato a alegria, não um produto prefabricado. É uma coreografia que avança por tentativas e não um enredo prévio, que já dominamos. Somos felizes quando, reconhecendo a nossa própria fragilidade, nos reconhecemos também prometidos não só à alegria, mas à perfeita alegria.
D. José Tolentino Mendonça
In: Missio.net 02.03.2019
Página 11 de 21