A árdua travessia que estamos a viver reforça a evidência de duas premissas que interpretamos agora, porventura, melhor. A primeira prende-se com a importância da saúde pública. As dificuldades da hora presente acentuam a sua primazia como direito e valor fundamental que precisa de ser devidamente tutelado e garantido, pois é uma espécie de requisito prévio para que a vida, nas suas múltiplas expressões, se possa afirmar. A vida, que é sempre mais frágil e mais forte do que pensamos, está construída com o sistema das peças do dominó, isto é, numa dependência mútua. Por isso, uma devastadora crise sanitária como a que vivemos não é apenas uma crise sanitária, mas um abalo global. Porém, que precisamente reconhecendo o impacto poliédrico da pandemia, as nossas sociedades tenham elegido, como bem primeiro a salvaguardar, a saúde dos cidadãos é alguma coisa que as qualifica eticamente. Nesse sentido, a dramática e quotidiana luta, que há meses se vem jogando no campo da saúde pública, constitui o mais belo elogio àquilo que representa a ideia de um país. E aqui uma palavra de gratidão é devida aos atores que intervêm diretamente no campo da saúde, partindo das suas competências, mas operacionalizando-as com admirável espírito de abnegação, entrega e sacrifício.
Hoje temos assim mais clara a centralidade atribuída à saúde pública. Mas não só. Como que emerge uma visão mais integradora desse conceito, uma visão que o reconfigura, ajudando-nos a compreender a necessidade de construir um novo paradigma, sobre o que é a cura, o cuidado e a saúde. Não podemos continuar a reproduzir um esquema restritivo ou apenas técnico. A complexa experiência da pandemia impele-nos a identificar novos instrumentos de saúde pública que tenham em consideração a abrangente e intrincada fenomenologia da existência humana. Dois breves exemplos sobre os quais muito se poderia dizer: o consenso cada vez mais assente de que a solidão é uma doença mortal que tem de ser tratada com o mesmo empenho que colocamos no tratamento das outras patologias; e a consciência do papel fulcral que cabe à esperança nos processos terapêuticos e de reconstrução.
Lia, estes dias, uma interessante entrevista com o arquiteto Renzo Piano, que está neste momento a projetar três hospitais, um deles na região norte de Paris e que será o maior hospital de França. Neste último ano, vimos todos insistentemente mais imagens de hospitais do que no resto das nossas vidas. E que lição podemos retirar? O que é que nós vimos? Se pensarmos, o desenho dos hospitais espelham um entendimento social da sua função. Os hospitais no século XIX eram estruturados em diversos pavilhões, consoante as disciplinas médicas, formando um gentil arquipélago clínico, mas de ilhas separadas. No século XX triunfou a concepção do hospital monobloco, onde a técnica médica registou um efetivo domínio e obteve um funcionamento mais unitário, mas onde igualmente a dimensão humana se reduziu, a ponto de desaparecer. Por isso, mesmo se alguns o possam talvez acusar de excessivo otimismo, Renzo Piano defende que a aceleração trazida pela pandemia tornou os tempos maduros para um salto cultural: os hospitais deste surpreendente século XXI são chamados a expressar um novo humanismo. Procurando colocar em diálogo elementos que têm estado desligados: a excelência médica e a excelência de humanidade que se possa viver, o olhar integral à pessoa humana (que é corpo, mas também espírito, sentimento, emoções...), o exercício da ciência e o sentido de beleza, a funcionalidade dos espaços e a relação com a natureza.
Dom José Tolentino Mendonça
19.04.2021
In: imissio.net
Imagem: pexels.com
Entramos na semana que os cristãos chamam “santa” porque é a semana que exprime a fé dos seguidores de Jesus, este galileu que com as palavras e a vida quis narrar-nos Deus e entregou-nos uma mensagem humaníssima. De várias maneiras (ritos, orações…) os cristãos fazem memória sobretudo dos últimos dias de Jesus, da sua paixão e morte, e afirmam que o amor vivido por este homem venceu a morte. Gostaria, se disso for capaz, de procurar exprimir que significado pode ter para todos, inclusive para os não-cristãos, esta memória de acontecimentos ocorridos há cerca de dois mil anos.
De acordo com o quarto Evangelho, Pilatos, o procurador romano, durante o processo apresenta Jesus torturado à multidão que lhe quer a morte com as palavras: «Eis o homem!». Um homem fraco e atingido com violência pelos soldados, um homem ridicularizado, desprezado e desfigurado, homem que está sempre presente na História e que devemos ver no pobre, no oprimido, na vítima do poder, em quem não conta nada neste mundo.
Aquele espetáculo da vigília de Páscoa no pretório é o espetáculo de que continuamos a ser espetadores no nosso hoje. Não se trata de alimentar visões doloristas, mas simplesmente estar conscientes de que aquela paixão, aqueles acontecimentos de injustiça e de violência mortífera, continuam no presente, e que cada um de nós deve dizer: «Eis o homem!». Eis a humanidade! E pensar, naquela condição desumana que não queremos ver, ou ver com resignação: «Se este é um homem…».
Esta é também a epifania do que significa estar na desumanidade, estar no profundo da alienação, ser um refugo nesta corrida que o mundo faz sem se interrogar sobre a violência, a exploração, a guerra e a injustiça de que é capaz. Nos séculos passados, a cristandade, precisamente para não assumir a responsabilidade da violência por ela perpetrada aos seres humanos, inventou o deicídio atribuindo-o aos judeus, impedindo assim de ver na de Jesus a paixão de um inocente perseguido.
Reler, meditar a paixão de Jesus não nos conduz a concluir que estamos ao abrigo do sofrimento, mas revela-nos que pode haver uma confiança que não claudica mesmo em quem sofre, que se pode viver o amor que se dá e que se recebe mesmo quando se é atingido pelo poder do ódio, que se pode alimentar a esperança também no aparente fracasso. E devemos reconhecer que igualmente outros humanos, homens e mulheres como Jesus, souberam viver assim a sua “paixão”.
Sim, Jesus foi condenado pelo poder religioso antes de mais porque libertava o ser humano de imagens perversas de Deus, e foi morto pelo poder imperial totalitário porque era “perigoso”, como, devemos reconhecê-lo, tantos o são ainda hoje. Mas por todas estas vítimas da História é nosso dever fazer memória que nos caminhos do sofrimento pode resplandecer a capacidade da humanidade de amar, de esperar, de perdoar, para esmagar o círculo infernal do ódio e da violência.
A narrativa da paixão de Jesus conclui-se com as palavras: «Começavam a brilhar as luzes do sábado» - um novo dia na história da humanidade
A misericórdia divina é uma temática que ainda não está superada, antes é uma mensagem de grande atualidade. É justamente a atualidade desta temática que nos estimula a escavar na tradição do pensamento humano por uma resposta à nossa situação.
Nas Sagradas Escrituras, encontramos a misericórdia de Deus em diferentes formas de revelação. No Antigo Testamento, esta aparece, algumas vezes, associada ao nome de Iaweh, outras à santidade de Deus, outras ainda à fidelidade do Senhor de Israel.
São Tomás de Aquino, na célebre Suma Teológica, apresenta-nos a Misericórdia associada à Justiça de Deus.
Ao recorrermos ao pensamento do Doutor Angélico, é de esclarecer que, com esta temática tocamos no fundamento e no mistério profundo do cristianismo, no Mistério de um Deus que se faz pequeno para resgatar a indigência da condição humana. Por misericórdia e justiça, Deus se enamora da nossa pequenez, manifestando um amor visceral por cada um de nós: “Ao longo do caminho da história, a luz que rasga a escuridão revela-nos que Deus é Pai e que a sua paciente fidelidade é mais forte do que as trevas e do que a corrupção. (…) A mensagem que todos esperavam, que todos procuravam nas profundezas da própria alma, mais não era que a ternura de Deus: Deus que nos fixa com olhos cheios de afeto, que aceita a nossa miséria, Deus enamorado da nossa pequenez” (Papa Francisco, 2014).
Por isso mesmo, Tomás de Aquino nos mostrará que a misericórdia e a justiça pressupõem um fundamento geral, que remonta à criação do ser humano. O homem é querido e precioso aos olhos do Pai. Pela Encarnação de seu Filho Unigênito, Ele nos justifica e nos eleva até ao seu Coração Misericordioso: “São Tomás mostra, de modo convincente, que a misericórdia opera já na criação. Segundo ele, a misericórdia é a condição sine qua non da justiça, pois a justiça pressupõe sempre a existência de alguém a quem se deve justiça; a existência das criaturas é imerecida e deve-se unicamente à bondade de Deus” (Kasper, A Misericórdia – Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã, 2015).
Afirmar que Deus é Justo e Misericordioso é compreender que Deus tem um amor incondicional pelos miseráveis, que Ele não é um Deus alheio às mazelas humanas, distante, mas antes se compadece e se deixa tocar pela indigência do homem. Não que Deus se comova mas, por causa da sua soberania amorosa, num sentido ativo e livre, Ele se deixa comover e tocar pela miséria humana. Em Deus não há paixão, mas há compaixão.
Tudo isto refere-se à bondade suprema do Criador. O amor e a bondade em Deus nunca têm fim e estas estão intrinsecamente relacionadas com a justiça. Percebemos aqui que é possível conciliar justiça e misericórdia, como bem demonstra S. Tomás: “Deus dá a cada um o que é devido. É devido a Deus que seja realizado nas coisas aquilo que na sua sabedoria e bondade se manifesta” (S. Th., I, q. 21, a. 1). Por outras palavras, a ideia da misericórdia e da justiça em Deus não são meras ideias abstratas, mas é uma realidade experiencial, na qual Ele próprio revela o Seu amor incondicional. No dizer do Papa Francisco, na Bula Misericordiæ Vultus, nº 6, “é verdadeiramente caso para dizer que se trata de um amor «visceral». Provém do íntimo como um sentimento profundo, natural, feito de ternura e compaixão, de indulgência e perdão.”.
Um sacerdote dominicano, ao falar destes atributos divinos, descreve que “se a justiça é um galho da árvore do amor de Deus, esta árvore não é senão a sua misericórdia e a sua bondade, sempre desejosa de comunicar-se aos homens e irradiar-se” (Garrigou-Lagrange, Providence, 1998). Em suma, compreendemos que a justiça divina sempre se manifesta na vida dos homens através de um amor entranhado e da misericórdia incondicional de Deus Pai. A existência das criaturas deve-se unicamente à bondade misericordiosa de Deus e, por isso mesmo, não é a justiça que fundamenta a misericórdia de Deus, mas antes a misericórdia é que é a prima radix à qual se há-de atribuir todo o resto (cf. S. Th., I, q. 21, a. 3).
Desta forma, percebe-se em S. Tomás a precedência primordial da misericórdia, através da Graça Divina, em relação ao pensamento unilateral da justiça castigadora. O próprio apóstolo Paulo, na Carta aos Romanos, exalta a revelação da justiça misericordiosa de Deus: “Agora, porém, independentemente da Lei, se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela Lei e pelos Profetas, justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo, em favor de todos os que creem, - pois não há diferença, visto que todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus - e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus” (Rm 3, 21).
Assim sendo, não podemos compreender a justiça de Deus numa perspectiva legalista, reduzindo o seu sentido original ou obscurecendo o seu valor profundo, pois nas Sagradas Escrituras e, também no pensamento tomista, a justiça é concebida como um abandonar-se inteiramente nas mãos ternurentas de Deus, com plena confiança e perseverança no amor misericordioso.
O Beato Miguel Sopoko, confessor de Santa Faustina Kowalska, dizia que um fator decisivo para a obtenção da misericórdia Divina é a confiança. A confiança em Deus deve ser firme e perseverante, sem hesitações nem fraquezas.
S. Tomás diz que “a misericórdia deve ser ao máximo atribuída a Deus; porém, como efeito e não como emoção, fruto da paixão” (S. Th., I, q. 21, a. 1). Pode-se compreender que a misericórdia divina é a perfeição da ação de Deus, que Se debruça sobre os seres humanos com o objetivo de retirá-los da miséria e de apagar as suas falhas. O ato singular de misericórdia é a compaixão, e o estado imutável de compaixão é a misericórdia. Este é o grande mistério de um Deus que revela a Sua ternura perante a fraqueza humana. A sua justiça consiste em sarar as feridas abertas no coração de cada homem.
Afirma o Papa Francisco: “A misericórdia vai além, faz a vida de uma pessoa de tal modo que o pecado é colocado à parte. É como o céu. Nós olhamos para ele e vemos tantas estrelas, mas quando vem o sol, pela manhã, com tanta luz, não as vemos mais. Assim é a misericórdia divina: uma grande luz de amor, de ternura. Deus perdoa não com um decreto, mas com um carinho, acariciando as nossas feridas do pecado. É grande a misericórdia de Deus, é grande a misericórdia de Jesus. Ele nos perdoa e nos acaricia” (Homilia em Santa Marta, 15 de abril de 2015).
A união da miséria humana somada ao Coração de Deus, cheia de amor, resulta na misericórdia. A misericórdia divina não consiste no entristecer-se de Deus com os nossos defeitos, pois Ele é perfeito e entristecer-se é algo impossível para Deus; porém, a sua misericórdia consiste em eliminar os nossos defeitos (cf. S. Th., I, q. 21, a. 3). Conforme nos exorta Tomás de Aquino, Deus atua sempre com justiça, pois tudo o que faz nas coisas criadas, o faz com ordem e proporção. A misericórdia não suprime a justiça, antes é a plenitude da justiça. É o momento que Deus Se doa totalmente para resgatar o género humano. Por isso mesmo, o perdão só é possível à mercê da ação salvadora de Deus em Cristo Jesus: “Mas agora foi sem a Lei que se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela Lei e pelos Profetas: a justiça que vem para todos os crentes, mediante a fé em Jesus Cristo. É que não há diferença alguma: todos pecaram e estão privados da glória de Deus. Sem o merecerem, são justificados pela sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus. Deus ofereceu-o para, nele, pelo seu sangue, se realizar a expiação que atua mediante a fé; foi assim que ele mostrou a sua justiça, ao perdoar os pecados cometidos outrora, no tempo da divina paciência. Deus mostra assim a sua justiça no tempo presente, porque Ele é justo e justifica quem tem fé em Jesus” (Rm 3, 21-26).
Quando Deus concede o dom do perdão é então que somos introduzidos na alegria celeste, como reza a Oração de Coleta da XXVI Semana do Tempo Comum: “Senhor, que dais a maior prova do vosso poder quando perdoais e Vos compadeceis, infundi sobre nós a vossa graça, para que, correndo prontamente para os bens prometidos, nos tornemos um dia participantes da felicidade celeste.”
A fé é uma virtude teologal, pela qual o homem adere a Deus, movido pela vontade que recebe o influxo da graça. A fé alimenta a esperança, a caridade e a misericórdia. S. Tomás afirma que toda a vida cristã se resume na misericórdia pelos outros quanto às obras exteriores. Porém, o sentimento interno da caridade, que nos une a Deus, está por cima tanto do amor como da misericórdia pelo próximo. Essa caridade se funda na fé. De facto, a caridade nos faz semelhantes a Deus, unindo-nos a Ele, agindo também com misericórdia para com o nosso próximo.
Santa Maria Alacoque diz que do Coração do Senhor brotam três canais de graça: a misericórdia, a caridade e o amor: “O primeiro é o da misericórdia, que infunde o espírito de contrição e penitência. O segundo é o da caridade para auxílio de quantos padecem tribulações e em especial dos que aspiram à perfeição, a fim de que superem todas as dificuldades. O terceiro é de amor e luz para os seus amigos verdadeiros, que deseja unir a Si participantes da sua ciência e dos seus desígnios” (Vie et Oeuvres, 1991). Também nós, depois de experimentar a eficácia do amor divino, somos convidados a testemunhar a Verdade da misericórdia e da graça santificante de Deus.
Por isso mesmo, a prática da misericórdia consiste num verdadeiro processo de conversão, que nasce do encontro pessoal com Cristo e do seguimento da Sua Palavra. De fato, a palavra de Deus vem ao nosso encontro, ilumina o nosso agir e convida-nos a seguir o caminho da misericórdia. As obras de misericórdia são motivadas pela fé que age pela caridade. A conversão do coração consiste sempre na descoberta da Sua misericórdia, daquele amor que é paciente e benigno como o é o Criador e Pai, fiel até às últimas consequências, na história da Aliança com o homem; até à cruz, morte e ressurreição do seu Filho. A conversão a Deus é sempre fruto do retorno do filho pródigo para junto deste Pai, que é rico em misericórdia.
O Apóstolo Paulo rende graças ao Pai da Misericórdia: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e Deus de toda a consolação” (2Cor 1, 3). Segundo Walter Kasper, é por isso que “a Igreja tem de narrar a história concreta do Deus compassivo com os homens, tal como ela é testemunhada na Antiga e na Nova Aliança; e deve apresentá-la do modo como Jesus o fez nas suas parábolas, dando testemunho do Deus, que revelou definitivamente a sua misericórdia na morte e na ressurreição do Seu Filho” (A Misericórdia – Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã, 2015).
O verdadeiro significado da misericórdia não consiste apenas no olhar, ainda que este seja o mais penetrante e o mais cheio de compaixão, mas sim quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas de mal existentes no mundo e no homem.
No Mistério Pascal de Cristo está a força, a justiça e a misericórdia de Deus. É na cruz e ressurreição do Senhor que encontramos a ternura divina que nos envolve nos amorosos braços do Pai onde, pelo Seu Espírito e através da Santa Mãe Igreja, continua a dispensar as graças necessárias para que cada homem alcance a plenitude da vida eterna.
Pe. Alexsander Baccarini Pinto
Mestre em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa, UCP / Lisboa
e Investigador do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião, CITER / UCP
12.03.2021
Os cristãos começam esta semana a quaresma: um ciclo espiritualmente intenso de 40 dias que os prepara para celebrar a Páscoa. A quaresma é um segmento do chamado ano litúrgico onde, numa experiência circular da história, os crentes repetem e atualizam nas suas vidas o impacto da salvação de Cristo. De facto, não se trata apenas de fazer memória das várias etapas da existência histórica de Jesus, mas de receber e maturar, a essa luz, uma nova visão deles próprios. Nesse sentido, não admira que, por exemplo, Carl Jung tenha individuado nos diversos momentos do ano litúrgico uma espécie de sistema terapêutico, pois os ritos são também essenciais ferramentas de cura. Importa, por isso, libertar a quaresma dos reducionismos que a neutralizam. A casuística e a moleza acomodatícia depressa desfiguram o espírito e, aquilo que nos é oferecido como uma oportunidade de aprofundar com autenticidade a vida, descamba numa enésima forma de escapismo. Gosto do modo como um clássico contemporâneo, Romano Guardini, define a liturgia: é uma expansão da vida que toma posse da sua plenitude, já que os tempos e os rituais litúrgicos não são coisas que criamos, mas obras de arte que somos ou em que nos tornamos.
O passo do evangelho que se lê no primeiro domingo da quaresma — e que lhe serve de chave — é o que relata as tentações de Jesus no deserto. O desafio é que aceitemos escutar a vida que nos pertence como se estivéssemos realmente num deserto, sem armaduras nem desculpas, deixando que as perguntas fundamentais nos habitem de novo, interrogando-nos sobre o que fizemos da nossa liberdade ou do nosso amor, reconhecendo que o vazio desprotegido da paisagem é afinal simétrico ao nosso camuflado vazio, urdido por este vício nosso de viver às metades. Mesmo sabendo, como escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen, que “Meia verdade é como habitar meio quarto/ Ganhar meio salário/ Como só ter direito/ A metade da vida”. O texto evangélico das tentações é um mapa para readquirir a inteireza e coloca-nos perante três núcleos de questões: 1) se é certo que não vivemos só de pão, vivemos de quê para lá do pão? Qual é verdadeiramente a nossa fome e a nossa sede? Onde é que elas acabam? Aonde nos conduzem? 2) a fé serve-nos para quê? Para submeter Deus às condições que consideramos necessárias para acreditar nele ou, antes, para nos abrirmos, como nómadas e peregrinos, à radicalidade do mistério? 3) estamos dispostos a renunciar ao equívoco do domínio e da posse, quaisquer que eles sejam, como supostas fontes de realização e de sentido, reduzindo a isso o horizonte de significação da vida? O que fazemos com as coisas que possuímos? E também: o que é que as coisas que possuímos fizeram de nós?
A quaresma é uma proposta de discernimento e viragem. Os instrumentos práticos que apresenta para que operemos esta transformação espiritual são de ordem prática, não abstrações: o jejum, a oração e esmola. O jejum, como explica o Papa Francisco na mensagem quaresmal deste ano, é uma experiência de privação voluntária (de alimento ou de um tipo de alimentos; de dependências de todo o género, pequenas e grandes; dos consumos fáceis a que nos permitimos, etc.), adotando um estilo assumidamente frugal que ajude a devolver-nos liberdade. A oração volta o nosso olhar para Deus, para as coisas grandes e amplia a nossa respiração. A esmola retira-nos do conforto autorreferencial. Torna objetivos a compaixão, a solidariedade e o cuidado que nos permitem passar da indiferença à responsabilidade pelos outros, sobretudo os mais vulneráveis.
Dom José Tolentino Mendonça
In: imissio.net 02.03.2021
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CFE 2021 - Fraternidade e diálogo: compromisso de amor
“Cristo é a nossa paz. Do que estava dividido fez uma unidade” (Ef 2,14a)
Pe. Geraldo De Mori SJ
A Igreja Católica, junto com várias Igrejas cristãs membros do CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil), participam, na quaresma deste ano de 2021, de mais uma Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE). Paradoxalmente, o que está em jogo nesta CFE, a fraternidade e o diálogo, é posto rudemente à prova pelas polêmicas desencadeadas nas últimas semanas por diversos grupos, dentro e fora da Igreja, semeando confusão, escândalo e desorientação na cabeça dos fiéis e das pessoas que de fora seguem as discussões acaloradas contra e a favor da CFE de 2021. Este texto não tem a pretensão de “jogar mais lenha na fogueira”, mas quer ser uma contribuição no aprofundamento da intenção profunda do tema escolhido para preparar-se para celebrar o “grande mistério da fé” cristã, neste ano: a paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré.
Já há alguns anos o mundo e o Brasil experimentam um processo de polarização de origem política, social, cultural e religiosa. Sob muitos pontos de vista, discordar é constitutivo da existência humana. De fato, a dissenção é a assinatura da diferença e, neste sentido, é extremamente positiva. São muitas as diferenças a partir das quais há discordância nos grupos humanos: sociais (ricos e pobres), gênero (homem e mulher), étnicas (brancos, negros, amarelos), religiosas (cristãos, judeus, muçulmanos, hindus, budistas, tradições religiosas afro e ameríndias), familiares (pais, filhos, irmãos). Essas discordâncias fazem surgir a originalidade e a particularidade, e isso, em si, não é negativo, pois pode aportar uma nova perspectiva a determinado debate ou ponto de vista. Nem sempre, porém, a diferença, com as discordâncias que suscita, é experimentada como enriquecimento, sendo muitas vezes vivida como oposição e ameaça, tornando-se então rejeição, intolerância e violência, como o atesta a dramática história da humanidade.
Certos períodos da história humana são mais acolhedores das discordâncias introduzidas pela diferença e outros mais intolerantes. A primeira metade do século XX, por exemplo, foi marcada pelas guerras mundiais que eliminaram milhões de pessoas em nome de interesses de todo tipo (étnicos, ideológicos, econômicos etc.). Já na segunda metade desse mesmo século, parecia que a abertura a acolher a diferença havia vencido. Contudo, desde que ingressamos no século XXI, vivemos várias “guerras aos pedaços”, como tão bem se expressa o Papa Francisco. Essas guerras não se reduzem apenas aos conflitos entre nações, grupos étnicos e religiosos, mas se introduziram no coração mesmo das sociedades plurais e hipertecnológicas que compõem boa parte do mundo atual. Somos muitas vezes seus promotores ou difusores, por meio das redes sociais e das campanhas de todo tipo que buscam tornar o outro inimigo porque não pensa como nós.
Em grande parte, a última encíclica do Papa, Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social, quer ajudar os cristãos e todas as pessoas de boa vontade a mergulharem na riqueza que é a diferença, com todas as discordâncias e ameaças que pode representar, apontando o caminho que conduz à sua acolhida e ao enriquecimento mútuo que pode provocar. Digno de nota nessa encíclica, que também se encontra no tema e no lema da CFE de 2021, é o texto bíblico a partir do qual o Papa busca aprofundar o tema da fraternidade e da amizade social: a parábola do bom samaritano. O próximo do homem espoliado e jogado à beira do caminho, segundo a resposta do doutor da lei à pergunta de Jesus, foi aquele que “usou de misericórdia com ele” (Lc 10,37). Esse texto é fundamental para se pensar o incômodo das inúmeras discordâncias suscitadas pela diferença do outro.
No Texto Base da CFE de 2021, o lema remete a Ef 2,14a: “Cristo é a nossa paz. Do que estava dividido fez uma unidade”. Nessa passagem, Paulo recorda o “muro” construído no templo de Jerusalém, que separava o espaço reservado aos pagãos (gentios) do espaço reservado aos judeus. Segundo o Apóstolo, em Cristo esse muro foi derrubado, do que estava dividido ele fez uma unidade. Em Gl 3,27, “Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus”, Paulo é ainda mais radical. Ele evoca não só a diferença religiosa, como a que aparece na parábola do Bom Samaritano, que é a base bíblica da encíclica do Papa Francisco, mas também a diferença social (escravo e livre) e de gênero (homem e mulher), mostrando como o ter sido revestido de Cristo pelo batismo, provoca uma mudança radical, que elimina tudo o que na diferença é motivo de separação, ódio, violência, guerra, intolerância, inimizade.
Só nos enriquecemos com as discordâncias da diferença se nos abrirmos ao diálogo. Este é o convite da CFE de 2021. Portanto, mais que nos deixar “distrair” pelos falsos argumentos que pretendem salvar uma suposta “catolicidade” da fé, urge, nesse tempo de quaresma, acolher o convite ao diálogo. A verdadeira fraternidade só é possível se nos abrirmos à acolhida daquilo que o outro possui como próprio, único, que me é oferecido como dom, da mesma maneira que eu, ao entrar em diálogo com o outro, me torno oferenda para que ele possa acolher-me e enriquecer-se com aquilo que lhe ofereço.
O caminho do diálogo não é, porém, fácil. Todos sabemos o quanto é difícil “abrir mão” do que Santo Inácio de Loyola chama do “próprio querer e interesse”. Sob muitos pontos de vista queremos impor nossa opinião, nosso ponto de vista, nosso jeito de ser e de fazer. Nem sempre estamos dispostos a viver no cotidiano os processos implicados no verdadeiro diálogo, temos muita dificuldade de “dar o braço a torcer”. Cientes disso, as igrejas cristãs que fazem parte do CONIC, inserem a dinâmica do diálogo na conversão, para a qual esse tempo da quaresma nos convida, preparando-nos para a celebração do mistério pascal, no qual Cristo reconciliou consigo o que estava dividido.
Oxalá possamos aproveitar a oportunidade única que nos é dada com essa CFE, destruindo os muitos muros que nos separam e criam inimizades e construindo espaços de reconhecimento e enriquecimento mútuos, nos quais experimentamos o sentido da paz!
Pe. Geraldo de Mori SJ
17.02.2021
In: site da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de BH
A dúvida é um extraordinário patrimônio humano partilhado por nós todos. A etimologia latina da palavra dúbium reconduz-nos ao termo “duo”, dois. E também no sânscrito ou no grego a semântica é a mesma. Podemos dizer que existe a dúvida, porque existem duas possibilidades de interpretação, por vezes dolorosamente contrárias entre si. Existe o sim e o não, a noite e o dia, o claro e o escuro, o nítido e o fosco, o verso e o reverso. E essa dualidade costura de modo universal a humanidade de que somos feitos. Por um lado, constatamos em nós a aspiração a uma unidade, a uma empatia que nos avizinhe do que amamos de modo irrevogável, que nos permita realizar uma experiência de inteireza e comunhão. Por outro, percebemos que a nossa existência se debate continuamente com dualidades, dentro e fora de si. Pode ser que a sentença do Livro do Eclesiastes esteja certa: “Deus criou-nos simples e diretos, mas nós complicamos tudo” (Ecl 7:29). O que constatamos, porém, é que nos descobrimos e maturamos numa viagem que compreende incertezas, ambivalências, ambiguidades, hiatos, distâncias e interrogações. E que nos obriga a todos a aprofundar o que seja a dúvida.
A filosofia, a ciência e o pensamento em geral devem uma parte significativa do seu desenvolvimento à dúvida, pois ela é um dos motores de busca internos mais ancestrais que o ser humano conhece. O teólogo e filósofo medieval Pedro Abelardo (séc. XII) dizia: “Duvidando chegamos à necessidade da procura, e procurando percebemos a verdade.” Quer dizer, a dúvida não é um ponto de chegada no qual fixamos convicção e morada, mas é sim um instrumental desafio ao nomadismo do espírito, à realização de um percurso indagativo, uma tentativa de aproximação à verdade que, da nossa parte, está sempre em curso e nunca está completa.
Na sua lição inaugural como professor no Collège de France, Roland Barthes recordou que “há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: a isso se chama pesquisar”. “O que não se sabe” é o território para onde a dúvida — mas, do mesmo modo, também a fé, também a sabedoria ou o amor — nos reenviam, por uma operação de descolagem que não está longe, por exemplo, daquilo que no léxico do cristianismo se chama quenosis, essa espécie de subversão que acontece pela experiência voluntária do esvaziamento. Como está escrito na Carta de São Paulo aos Filipenses, Cristo sendo de condição divina esvaziou-se da forma de Deus para se tornar semelhante aos homens, e não só dos homens de bem, mas para assumir na carne a humanidade desprezada dos últimos (Fil 2: 1-11). A dúvida, à sua maneira, é também um precioso “operador quenótico” com o qual nos precisamos reconciliar, lendo-a não apenas como demolição, mas como relançamento do caminho.
É importante sublinhar que o património da dúvida tem sido enriquecido tanto pelos não-crentes como pelos crentes. Não me esqueço da maneira franca e iluminante como o poeta italiano Tonino Guerra, de quem tive a felicidade de ser amigo, se definia “um não-crente com dúvidas”. Nem daquilo que escreveu o monge trapista Thomas Merton: “O crente que não experimentou jamais a dúvida não se pode dizer um crente. Porque a fé não é propriamente a remoção da dúvida... A dúvida só se vence atravessando-a.” Na verdade, a dúvida não é a linha divisória ou a fronteira que separa a descrença da crença. Muitas vezes é um hífen, o traço de união, a zona enigmática de contato que nos revela a todos de mãos vazias diante da vastidão do mistério. Embora, é claro, a interpretação desse vazio possa ser muito diferente.
José Tolentino Mendonça
In: imissio.net 30.01.2021
Imagem: pexels.com/Foto de Aleks Magnusson
- A vida humana é o valor supremo e nada é mais importante do que ela.
- A saúde é a realidade mais valiosa para o nosso bem-estar e qualidade de vida.
- Somos todos feitos da mesma matéria e todos estamos sujeitos à doença e à morte.
- Parar é importante para refletirmos nas coisas verdadeiramente importantes.
- É essencial termos consciência da vulnerabilidade das pessoas mais idosas.
- É importante viajar rumo ao nosso interior, na descoberta do nosso ser mais profundo.
- O tempo é um bem precioso que pode e deve ser sempre bem aproveitado.
- O otimismo e o sentido de humor são armas para vencer as adversidades.
- Os médicos, enfermeiros e instituições de saúde são imprescindíveis para a sociedade.
- Os verdadeiros heróis são aqueles que tudo fazem para dar vida aos demais.
- Abraçar as pessoas é muito importante, faz-nos bem e humaniza-nos.
- Sorrir é essencial para aproximar as pessoas e tornar a vida mais bonita e colorida.
- Muitas vezes, a melhor maneira de amar e ajudar uma pessoa é não estar perto dela.
- Não conseguimos viver sem amigos e fazemos tudo para nos relacionarmos com eles.
- São fundamentais as iniciativas de solidariedade a favor das pessoas mais vulneráveis.
- A humanidade vive num ritmo elevadíssimo e é urgente desacelerar.
- Podemos viver bem com menos bens materiais e com mais afetos.
- Toda a humanidade está no mesmo barco e somos responsáveis uns pelos outros.
- A globalização e a interdependência dos povos são uma realidade incontestável.
- Temos uma enorme capacidade de adaptação, empreendedorismo e criatividade.
- A nossa casa será sempre o nosso refúgio e o melhor lugar do mundo.
- A nossa família, com as suas virtudes e defeitos, é muito importante para nós.
- A oração une as famílias de todo o mundo na fé, na esperança e no amor.
- O trabalho doméstico e a participação de todos nas tarefas do lar são fundamentais.
- É bom e necessário ter mais tempo para as brincadeiras entre pais, filhos e irmãos.
- Só Aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida nos pode verdadeiramente salvar.
- É ótimo fazer coisas em família: conversar, ver séries, cozinhar, cuidar da casa, etc.
- É bom poder ter mais tempo para ler, escrever, pesquisar, aprender, jogar, etc.
- É estimulante a oportunidade de passear e conhecer melhor a nossa terra.
- Deus é o princípio e o fim de todas as coisas e só Ele confere sentido à existência.
- Informaticamente, as empresas adaptaram-se, reinventaram-se e modernizaram-se.
- As escolas, empresas e instituições adotaram formas de trabalho e conexões virtuais.
- O teletrabalho, os eventos online e a gestão à distância têm aspetos muito positivos.
- A Ciência é fundamental para a vida das pessoas e para o progresso da humanidade.
- Os serviços de compras e pagamentos online e de entrega ao domicílio são ótimos.
- Há coisas que se podem muito bem fazer sem tanta burocracia e deslocações.
- Faz bem à nossa economia comprar e consumir preferencialmente coisas nacionais.
- Os Meios de Comunicação Social são fundamentais para a vida em sociedade.
- A diminuição da emissão de gases poluentes é muito importante para o meio ambiente.
- A natureza recupera o seu esplendor sem a intervenção e presença do ser humano.
- A máscara desafia a olharmo-nos nos olhos e a falarmos e sorrirmos com eles.
- A máscara convida-nos a calar a boca e a pensar mais antes de falarmos.
- A máscara ensina-nos a amar com o coração e não com os lábios.
- A colocação da máscara nas orelhas lembra-nos que devemos escutar mais os outros.
- A desinfeção das mãos é decisiva, mas há que eliminar o vírus do egoísmo do coração.
- É importante lavar as mãos, mas é ainda mais importante limpar a consciência.
- Também é importante manter uma distância de segurança das pessoas maldosas.
- O recolhimento domiciliário também nos ajuda a pensar nas epidemias interiores.
- A etiqueta respiratória é também não infetarmos os outros com mentiras e ofensas.
- O vírus do Amor é muito mais poderoso e contagiante do que qualquer pandemia.
Paulo Costa
In: imissio.net
27.01.2021
Diante das preocupações do tempo presente, o que fazer?
Antes de mais, urge que façamos uma distinção clara entre o que está dentro da nossa responsabilidade e o que está fora.
O que está dentro da nossa responsabilidade é para assumir.
O que está fora da nossa responsabilidade é para largar.
É uma questão de higiene e disciplina - mental e espiritual.
Essencial para manter a sanidade em tempos 'insanos'.
Na prática, precisamos de abrir mão de ideias fixas, apegos e expetativas; precisamos de admitir que a vida é muito (muito, muito, muito) maior do que nós; finalmente, precisamos de tomar a responsabilidade por aquilo que realmente depende de nós, aquilo a que somos realmente chamados a dar resposta.
Imersos nesse processo, podemos então relaxar.
Porque é isso importante? Porque quando relaxamos é quando estamos mais disponíveis para nos darmos por inteiro - a nós próprios, aos outros, à nossa missão neste mundo.
Há lá responsabilidade maior do que essa?
João Delicado
In: verparalemdolhar
imagem: pexels.com/pexels-jaymantri-2909
As personagens da narrativa (João 1,35-42): um João de olhos penetrantes; dois discípulos maravilhosos, que não estão nem confortáveis nem satisfeitos, à sombra do maior profeta do tempo, mas que se aventuram por caminhos desconhecidos, atrás de um jovem rabi de quem ignoram tudo, exceto uma imagem fulgurante: eis o Cordeiro de Deus!
Uma narrativa que perfuma de liberdade e de coragem, na qual estão encastoadas as primeiras palavras de Jesus: que procurais? Assim ao longo do rio; assim, três anos depois, no jardim: mulher, quem procuras?» Sempre o mesmo verbo, aquele que nos define: somos buscadores do ouro nascidos do sopro do Espírito.
Que procurais? O Mestre começa pondo-se à escuta, não quer nem impor nem doutrinar, serão os dois jovens a ditar a agenda. A pergunta é como um anzol lançado para dentro deles (a forma do ponto de interrogação evoca um anzol revirado), que desce ao íntimo a prender, a mostrar à luz coisas ocultas.
Jesus, com esta pergunta, põe as suas mãos santas no tecido profundo e vivo da pessoa, que é o desejo: o que desejais verdadeiramente?; qual é o vosso desejo mais forte? Palavras que são «como uma mão que toma as entranhas e te faz dar à luz».
Jesus, mestre do desejo, exegeta e intérprete do coração, pergunta a cada um: que fome torna viva a tua vida? De que sonhos caminhas atrás? E não pede renúncias ou sacrifícios, nem imolações sobre o altar do dever, mas reentrar em si, regressar ao coração, olhar para o que acontece no espaço vital, guardar aquilo que se move e germina no íntimo. Pede a cada um, são palavras de S. Bernardo, encosta os lábios à fonte do coração e bebe.
Rabi, onde moras? Vinde e vede. O Mestre mostra-nos que o anúncio cristão, antes de se palavras, é feito de olhares, testemunhos, experiências, encontros, proximidade. Numa palavra, vida. E é isso que Jesus veio trazer, não teorias, mas vida em plenitude (cf. João 10,10).
E vão com Ele: a conversão é deixar a segurança de hoje para o futuro aberto de Jesus; passar de Deus como dever a Deus como desejo e espanto. Milhões de pessoas desejam, sonham poder passar o resto de vida de pijama, no sofá de casa. Talvez isto seja o pior que nos possa acontecer: sentirmo-nos chegados, permanecer imóveis.
Ao contrário, os dois discípulos, aqueles dos primeiros passos cristãos, foram formados, treinados, ensinados por João Batista, o profeta rochoso e selvático, a não parar, a andar e a andar, em busca do êxodo de Deus. Como eles, feliz o homem, feliz a mulher que tem caminhos no coração (cf. Salmo 83,6).
Enzo Bianchi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 14.01.2021 no SNPC
Um modo para descrever a estranheza e a dor, mas também a oportunidade deste ano das nossas vidas é, por exemplo, este: constatar a importância que, de repente, passaram a ter os números. Os meses deste ano interminável trouxeram essa novidade. Os acontecimentos grandes ou pequenos do mundo, os fatos da nossa vida pessoal, quaisquer que eles fossem, vimo-los perfurados pelo zumbido dos números. Dentro de nós, a impressão que tantas vezes tivemos é a de que os dias não se contaram por palavras ou por imagens, como estávamos habituados, mas sobretudo por números. Números desconhecidos, aguçados, trémulos, foscos, distópicos. Números que nos engoliam no seu ventre confuso, no seu universo sempre mais dilatado à medida que os tentávamos explicar, à medida que se multiplicavam os gráficos comparativos ou a infinidade de variantes e opiniões. Mas, ao mesmo tempo, números que enigmaticamente nos chamavam — e nos chamam — à atenção para que vejamos como a vida se declina também em medidas exatas, em concretos números. E números que não narram apenas o ziguezague de testes efetuados, de contagiados, de curados, de doentes em terapia intensiva ou de vítimas. Que não relatam apenas vulnerabilidade e restrições, dias de emergência e confinamento, empobrecimento e vida adiada. Mas falam também do primado reconhecido à vida, da resiliência que descobrimos possuir, do empenho, da dádiva de tantos, do reencontro conosco próprios, da reconstrução e do cuidado. O que quer que venha a seguir não pode ser um mero virar de página. De um modo que não pensávamos, o futuro entrou-nos pela porta.
Esperançosa frase essa que escreveu Albert Camus em tempos também nada fáceis: “No meio dos flagelos aprendemos que existe nos seres humanos mais coisas para admirar do que para desprezar.” É verdade: talvez não voltemos simplesmente ao mundo de antes. Que é, como quem diz: talvez não nos tenhamos tornado piores. Talvez a máscara não se nos cole definitivamente ao rosto. Talvez o distanciamento seja apenas uma forçada esquadria externa que o nosso interior não confirma, bem pelo contrário. Talvez ativemos a nossa responsabilidade por uma ecologia integral, celebrando um novo contrato social com a Criação. Talvez investamos em encontrar equilíbrios mais satisfatórios: entre o lucro e o dom, entre o crescimento e a sustentabilidade, entre o individual e o comunitário, entre o direito a usar e o dever de reutilizar, entre o furor da tecnologia digital e a natureza artesanal da nossa humanidade e do que a ela mais profundamente diz respeito. Talvez aprendamos a interagir de modo mais inteligente com a complexidade do mundo, mas prossigamos também mais disponíveis a nos maravilharmos com a sua desarmante simplicidade. Talvez que entre as competências que mais passemos a treinar estejam a gentileza e a fraternidade. Talvez não deixemos as escolas como realidades isoladas, mas as encaremos como centros de uma ampla rede implicada num pacto educativo de futuro. Talvez, tão claramente como percebemos o lugar da educação física ou da científica, percebamos o lugar da educação emocional e espiritual. Talvez, por fim, troquemos o conflito pela empatia. Talvez, quando pronunciemos o verbo conectar, este já tenha ganho o sentido de uma interação presente e criativa, a 360 graus com a realidade, e não apenas o de estar imobilizado diante de um ecrã. Talvez, finalmente, nos preocupemos mais com o que iremos transmitir do que com aquilo que vamos herdar.
Penso naquela passagem do salmo bíblico, que propõe: “Ensina-nos a contar os nossos dias para que guiemos o nosso coração na sabedoria.” Termos contado tão dramaticamente os dias deste ano que termina, a que sabedoria nos conduzirá?
Dom José Tolentino Mendonça
31.12.2020 in: imissio.net
ESCOLHE, POIS, A VIDA!
Nestes dias, vários grupos católicos têm tido a oportunidade de meditar sobre a dignidade radical da vida, sempre compartilhada com os outros e, para a fé, dom de Deus:
- A vida ainda invisível de pessoas nascituras;
- A vida ameaçada de pessoas migrantes e refugiadas;
- A vida fragilizada de pessoas enfermas ou idosas;
- A vida ferida de pessoas indígenas e quilombolas;
- A vida desviada de pessoas que cometeram crimes graves.
Alguns de nós somos mais sensíveis a algumas dessas dimensões; outros, mais sensíveis a outras. Mas em todos esses casos, nosso senso de humanidade cresce quando não fazemos recair sobre os mais fracos e pobres o pesado fardo da violência de nossas sociedades e, também, quando renunciamos a entrar numa lógica de vingança e de autodefesa.
Deixo aqui um trecho da Exortação Apostólica Gaudete et exsultate, que pode nos ajudar a expandir este desejo de cuidar melhor da vida de cada pessoa humana:
“A defesa do inocente nascituro deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento”.
“Igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte”. (Francisco, Gaudete et exsultate, 101)
Pe. Francys Silvestrini Adão SJ
30.12.2020
SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR
HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
Nesta noite, cumpre-se a grande profecia de Isaías: «Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado» (Is 9, 5).
Um filho nos foi dado. Com frequência se ouve dizer que a maior alegria da vida é o nascimento duma criança. É algo de extraordinário, que muda tudo, desencadeia energias inesperadas e faz ultrapassar fadigas, incómodos e noites sem dormir, porque traz uma grande felicidade na posse da qual nada parece pesar. Assim é o Natal: o nascimento de Jesus é a novidade que nos permite renascer dentro, cada ano, encontrando n’Ele força para enfrentar todas as provações. Sim, porque Jesus nasce para nós: para mim, para ti, para todos e cada um de nós. A preposição «para» reaparece várias vezes nesta noite santa: «um menino nasceu para nós», profetizou Isaías; «hoje nasceu para nós o Salvador», repetimos no Salmo Responsorial; Jesus «entregou-Se por nós» (Tit 2, 14), proclamou São Paulo; e, no Evangelho, o anjo anunciou «hoje nasceu para vós um Salvador» (Lc 2, 11). Para mim, para vós…
Mas, esta locução «para nós» que nos quer dizer? Que o Filho de Deus, o Bendito por natureza, vem fazer-nos filhos benditos por graça. Sim, Deus vem ao mundo como filho para nos tornar filhos de Deus. Que dom maravilhoso! Hoje Deus deixa-nos maravilhados, ao dizer a cada um de nós: «Tu és uma maravilha». Irmã, irmão, não desanimes! Estás tentado a sentir-te como um erro? Deus diz-te: «Não é verdade! És meu filho». Tens a sensação de não estar à altura, temor de ser inapto, medo de não sair do túnel da provação? Deus diz-te: «Coragem! Estou contigo». Não to diz com palavras, mas fazendo-Se filho como tu e por ti, para te lembrar o ponto de partida de cada renascimento teu: reconhecer-te filho de Deus, filha de Deus. Este é o ponto de partida de qualquer renascimento. Este é o coração indestrutível da nossa esperança, o núcleo incandescente que sustenta a existência: por baixo das nossas qualidades e defeitos, mais forte do que as feridas e fracassos do passado, os temores e ansiedades face ao futuro, está esta verdade: somos filhos amados. E o amor de Deus por nós não depende nem dependerá jamais de nós: é amor gratuito. Esta noite não encontra outra explicação, senão na graça. Tudo é graça. O dom é gratuito, sem mérito algum da nossa parte, pura graça. Esta noite «manifestou-se – disse-nos São Paulo – a graça de Deus» (Tit 2, 11). Nada é mais precioso!
Um filho nos foi dado. O Pai não nos deu uma coisa qualquer, mas o próprio Filho unigénito, que é toda a sua alegria. Todavia, ao considerarmos a ingratidão do homem para com Deus e a injustiça feita a tantos dos nossos irmãos, surge uma dúvida: o Senhor terá feito bem em dar-nos tanto? E fará bem em confiar ainda em nós? Não estará Ele a sobrestimar-nos? Sim, sobrestima-nos; e fá-lo porque nos ama a preço da sua vida. Não consegue deixar de nos amar. É feito assim, tão diferente de nós. Sempre nos ama, e com uma amizade maior de quanta possamos ter a nós mesmos. É o seu segredo para entrar no nosso coração. Deus sabe que a única maneira de nos salvar, de nos curar por dentro, é amar-nos. Não há outra maneira! Sabe que só melhoramos acolhendo o seu amor incansável, que não muda, mas muda-nos a nós. Só o amor de Jesus transforma a vida, cura as feridas mais profundas, livra do círculo vicioso insatisfação, irritação e lamento.
Um filho nos foi dado. Na pobre manjedoura dum lúgubre estábulo, está precisamente o Filho de Deus. E aqui levanta-se outra questão: porque veio Ele à luz durante a noite, sem um alojamento digno, na pobreza e enjeitado, quando merecia nascer como o maior rei no mais lindo dos palácios? Porquê? Para nos fazer compreender até onde chega o seu amor pela nossa condição humana: até tocar com o seu amor concreto a nossa pior miséria. O Filho de Deus nasceu descartado para nos dizer que todo o descartado é filho de Deus. Veio ao mundo como vem ao mundo uma criança débil e frágil, para podermos acolher com ternura as nossas fraquezas. E para nos fazer descobrir uma coisa importante: como em Belém, também conosco Deus gosta de fazer grandes coisas através das nossas pobrezas. Colocou toda a nossa salvação na manjedoura dum estábulo, sem temer as nossas pobrezas. Deixemos que a sua misericórdia transforme as nossas misérias!
Eis o que quer dizer um filho nasceu para nós. Mas há ainda um «para» que o anjo disse aos pastores: «Isto servirá de sinal para vós: encontrareis um menino (…) deitado numa manjedoura» (Lc 2, 12). Este sinal – o Menino na manjedoura – é também para nós, para nos orientar na vida. Em Belém, que significa «casa do pão», Deus está numa manjedoura, como se nos quisesse lembrar que, para viver, precisamos d’Ele como de pão para a boca. Precisamos de nos deixar permear pelo seu amor gratuito, incansável, concreto. Mas quantas vezes, famintos de divertimento, sucesso e mundanidade, nutrimos a vida com alimentos que não saciam e deixam o vazio dentro! Disto mesmo Se lamentava o Senhor, pela boca do profeta Isaías: enquanto o boi e o jumento conhecem a sua manjedoura, nós, seu povo, não O conhecemos a Ele, fonte da nossa vida (cf. Is 1, 2-3). É verdade: insaciáveis de ter, atiramo-nos para muitas manjedouras vãs, esquecendo-nos da manjedoura de Belém. Esta manjedoura, pobre de tudo mas rica de amor, ensina que o alimento da vida é deixar-se amar por Deus e amar os outros. Dá-nos o exemplo Jesus: Ele, o Verbo de Deus, é infante; não fala, mas oferece a vida. Nós, ao contrário, falamos muito, mas frequentemente somos analfabetos em bondade.
Um filho nos foi dado. Quem tem uma criança pequena, sabe quanto amor e paciência são necessários. É preciso alimentá-la, cuidar dela, limpá-la, ocupar-se da sua fragilidade e das suas necessidades, muitas vezes difíceis de compreender. Um filho faz-nos sentir amados, mas ensina também a amar. Deus nasceu menino para nos impelir a cuidar dos outros. Os seus ternos gemidos fazem-nos compreender como tantos dos nossos caprichos são inúteis. E temos tantos! O seu amor desarmado e desarmante lembra-nos que o tempo de que dispomos não serve para nos lamentarmos, mas para consolar as lágrimas de quem sofre. Deus vem habitar perto de nós, pobre e necessitado, para nos dizer que, servindo aos pobres, amá-Lo-emos a Ele. Desde aquela noite, como escreveu uma poetisa, «a residência de Deus é próxima da minha. O mobiliário é o amor» (E. Dickinson, Poems, XVII).
Um filho nos foi dado. Sois Vós, Jesus, o Filho que me torna filho. Amais-me como sou, não como eu me sonho ser. Bem o sei! Abraçando-Vos, Menino da manjedoura, reabraço a minha vida. Acolhendo-Vos, Pão de vida, também eu quero dar a minha vida. Vós que me salvais, ensinai-me a servir. Vós que não me deixais sozinho, ajudai-me a consolar os vossos irmãos, porque, a partir desta noite – como Vós sabeis – são todos meus irmãos.
Papa Francisco 24.12.2020
Imagem: site do Vaticano
Rezo, meu Deus, esta vida, que tantas vezes experimentamos como um caos para o qual não existem nomes possíveis.
Sinto-me como uma criança quando, na escuridão da noite, só o grito lhe permanece. Mas o grito é a forma frágil e intensa com que a nossa vida sai em busca de socorro.
Como uma criança, Senhor, sinto-me exposto a coisas maiores que eu, à mercê de surpresas que não controlo. Então, grito-te,
Ensina-me, Senhor, que nascemos também neste grito, que o teu amor sabe recolher transformando-o em chamamento, em desejo de presença, em ocasião para o abandono confiante à tua vontade.
Ajuda-me a descobrir aquilo que ainda não vejo.
Aproxima, em mim, a lama à estrela, o coração sem norte à sua órbita viva, a alegria introvertida à alegria dirigida para o exterior, o meu pão ao pão de todos.
Explica-me que uma existência respira porque é iluminada por aquilo que não espera.
Na verdade, abrimos os olhos todos os dias, mas não quanto seria suficiente. Vemos, descontentes, a imperfeição e a pedra. Olhamos com desgosto – em nós e nos outros – o avesso e a costura. E não nos damos conta de que poder observar o avesso com amor torna-se uma preciosa aprendizagem do caminho (e de um caminho que conduz ao presépio).
Porque aquilo, exatamente aquilo que hoje nós percebemos como pedra, Deus vem ensinar-nos a transformá-lo em estrela.
Card. José Tolentino Mendonça
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem:
Publicado em 24.12.2020 no SNPC
Erra quem pensa que nascemos uma só vez. Para quem quer viver, a vida está repleta de nascimentos.
Nascemos muitas vezes durante a infância, quando os olhos se abrem em alegria e maravilha.
Nascemos nas viagens sem mapa nos quais a juventude se arrisca.
Nascemos na sementeira da vida adulta, amadurecendo, entre invernos e primaveras, a misteriosa transformação que coloca no caule a flor, e dentro da flor o perfume do fruto.
Nascemos muitas vezes naquela idade avançada em que as atividades não cessam, mas reconciliam-se com os vínculos interiores e os caminhos que tinham sido adiados.
Nascemos quando nos descobrimos amados e capazes de amar.
Nascemos no entusiasmo do riso e na noite de certas lágrimas.
Nascemos na oração e no dom.
Nascemos no perdão e no conflito.
Nascemos no silêncio ou iluminados por uma palavra.
Nascemos no levar ao termo um compromisso, e na partilha.
Nascemos nos gestos ou para além dos gestos.
Nascemos dentro de nós e no coração de Deus.
Por isso, peço-te, Jesus, que me ensines a nascer:
quando as esperanças se rompem como coisas gastas;
quando me faltam as forças para o degrau seguinte, e hesito;
quando da semente parece que só recolho o vazio;
quando a insatisfação corrói também o espaço da alegria;
quando as mãos desaprenderam a transparente dança do dom.
Quando não sei abandonar-me em ti.
Não somos nós a preparar o presépio para Deus nascer, é Ele que nos prepara para nascermos
Ganharíamos muito em compreender porque é que as leituras bíblicas do tempo do Advento e do Natal insistem na dimensão visiva. Nós vemos o próprio Deus, o Deus transcendente, fazer-se próximo, e este é o motivo da alegria. Como dirá o prólogo do Evangelho de João: «Contemplámos a sua glória».
Com efeito, o Natal é a antiabstração, é o oposto das generalizações vagas. Cada um de nós, com as interrogações que são as suas, com a serenidade ou o tumulto que traz dentro de si, com a situação concreta de vida que experimenta, é chamado a ver Deus. É chamado a contemplá-lo naquele Deus conosco, naquele nascituro em carne e osso, naquele Filho que nos é dado.
Em Jesus de Nazaré, Deus não vem de maneira indefinida: Ele vem ao encontro de mim, de ti, de cada ser humano, dando-nos, na fé, a possibilidade de nos tornarmos filhos de Deus.
A mulheres e homens frágeis, imperfeitos e atormentados como nós, Deus oferece a possibilidade de ser filhos seus. Ou seja, de viver uma vida que não seja unicamente a expressão da nossa carne e do nosso sangue, mas que se revele como consequência do impacto da vida divina.
Neste sentido, não somos nós a fazer o presépio, para que Deus nele nasça: é Deus que prepara as condições de um nascimento para cada um de nós.
Somos feitos de infinito.
Então, que seja infinito o amor que nos une.
Seria ainda demasiado pouco amarmos segundo os critérios humanos: gostar de quem gosta de nós; gostar daqueles que nos tratam bem - esse é um amor bom, quentinho, agradável, mas ficar por aí seria viver um amor ainda imaturo, apequenado, incompleto.
Um amor dependente dos caprichos dos apetites, dos desejos, dos estados de humor, um amor dependente da familiaridade, ainda não está à altura de quem somos.
Claro que precisamos das nossas raízes e referências.
Afinal, estamos aqui enquanto humanos - e isso não é um acaso ou um acidente de percurso.
Ao mesmo tempo, relembremos que não somos daqui. Nunca fomos. Nunca seremos. Estamos de passagem. Logo, não estamos confinados a este corpo-mente nem a este mundo.
Então, ponhamos o amor à altura da nossa natureza primordial.
Que o nosso amor esteja à altura, à largura, à profundidade do infinito que somos.
Que seja, portanto, um amor desmedido!
É esse o tamanho do nosso amor.
João Delicado
In: Ver para além do olhar
Conselhos de José
Volta a olhar o tempo com inocência, como uma tarefa que as crianças conhecem melhor que tu.
Aprende a procurar a sabedoria como quem constrói uma ponte quando seria mais fácil a distância.
Aprende a elogiar a vida, que é sempre a oportunidade mais bela, em vez de a desvalorizar com desencorajamentos e lamúrias.
Aprende a transformar, no teu quotidiano, a hostilidade em hospitalidade fraterna.
Não de detenhas a condenar a obscuridade: acende no centro da vida uma estrela que dança.
Compreende que a tua é condição de guardião e não de dono, e que isto te requer, a cada instante, a disponibilidade a um amor sem cálculos nem desgastes.
Exercita a arte de permanecer com humildade ao lado dos teus semelhantes, cuidando deles com dedicação, mas sem protagonismos, sem forçar os outros a nada, mas esperando por eles com delicadeza, servindo-lhes de corrimão.
Confia na verdade dos gestos essenciais, na força destas coisas de nada que depois são quase tudo.
Que o mundo nunca te apareça como um lugar indiferente.
Que a concreta presença do amor de Deus te ilumine e faça de ti a maravilhosa transparência em que este amor se contempla.
Que a tua oração de Advento seja o irresistível desejo que faz gritar à alma: «Vem!».
Card. José Tolentino Mendonça
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: "S. José e o Menino Jesus" (det.) | Guido Reni | 1640
Publicado em 14.12.2020 no SNPC
Quando hoje se google a palavra “máscara” aparece uma infinidade de variantes de pesquisa: máscaras descartáveis, cirúrgicas, certificadas, personalizadas, reutilizáveis, transparentes e por aí fora. Esta repentina multiplicação de acepções quer dizer uma coisa: que entrou a fazer parte das práticas do quotidiano. De fato, após uma indecisão inicial, a máscara tornou-se um elemento base de proteção contra a pandemia. E assim, de uma hora para outra, a estranheza do artefato se desfez pelo uso corrente, expectável e universal. Mas este acessório que adicionamos ao rosto — uma ajunta provisória e associada a esta conjuntura sanitária, espera-se — tem sido motivo para alguma reflexão de natureza antropológica. Há os que a defendem como um compromisso ético que realizamos, sinalizando que como indivíduos estamos empenhados em colaborar positivamente na construção do bem comum, numa hora de tamanha vulnerabilidade como a presente. E há os que a temem como um distúrbio que trará consequências. Neste caso, o medo em relação à máscara é o de que ela venha a alterar a percepção que fazemos dos outros e de nós próprios; que modifique os tradicionais mecanismos de proximidade; que contribua para ampliar a indiferença e a invisibilidade social. Medo, no fundo, de que a máscara possa cancelar o rosto ou substituir-se a ele. Um pouco na linha daquilo que Álvaro de Campos prevê no poema ‘Tabacaria’: “Quando quis tirar a máscara,/ Estava pegada à cara./ Quando a tirei e me vi ao espelho,/ Já tinha envelhecido”. Ora, mesmo tomando esta posição como um clamoroso exagero ela tem, pelo menos, a vantagem de nos sensibilizar para a problemática da comunicação interpessoal, interrogando-nos sobre a forma como nos encontramos e desencontramos em tempo de pandemia.
Um acirrado denunciador da máscara tem sido, por exemplo, o filósofo Giorgio Agamben. Ele recorda que se todos os seres viventes existem no aberto, se mostram e comunicam, só o ser humano tem, porém, um rosto. Isto é, só o ser humano “faz do seu aparecer e comunicar-se aos outros humanos a própria experiência fundamental,(...) o lugar da própria verdade”. Tudo o que dizemos e trocamos se funda no rosto. Neste sentido, é inimaginável que se possa pensar sem ele a política, pois esta ficaria perigosamente reduzida a uma mera troca de informações e mensagens. Para Agamben, o rosto é “o elemento político por excelência”, pois é “olhando-se no rosto que os humanos se reconhecem e apaixonam, percebem a semelhança e a diversidade, a distância e a proximidade”. A conclusão com que remata o seu discurso é certamente dissidente e radical, mas recorda-nos a salvaguarda necessária da essência do humano e do valor da comunidade nestes meses de emergência declarada: “Um país que decida renunciar ao próprio rosto... cancela de si toda a dimensão política” e arrisca tornar-nos ainda mais isolados uns dos outros, tendo como que perdido “o fundamento imediato e sensível da sua comunidade”.
O ponto parece-me ser este: se não podemos não usar máscara, não nos esqueçamos, no entanto, do que significa um rosto. E tantos não esquecem, é verdade. Numa obra recente do teólogo Pier Angelo Sequeri conta-se uma história que narra precisamente a persistência do rosto por outros meios. Uma paciente que passou por um longo e sofrido internamento devido à covid-19, ao despedir-se dos médicos e enfermeiros disse: “Quando vos encontrar de novo não serei capaz de recordar distintamente os vossos rostos, mas reconhecerei infalivelmente os vossos olhos.”
Dom José Tolentino Mendonça
Imagem: pexels.com
In: imissio.net 2.12.2020
É preciso muita humildade para reconhecer que não somos tão fortes nem tão independentes quanto talvez gostássemos.
É preciso ter bastante confiança para deixarmos as nossas feridas interiores ao alcance do toque de alguém que em vez de ajudar a sará-las, pode aproveitar para nos magoar ainda mais.
Mas ninguém é feliz sem amar, nem sem se sentir amado. É, pois, essencial que nos deixemos amar, oferecendo a minha vida como caminho para que o outro possa cumprir a sua vontade e necessidade de amar.
Se eu não permitir que me amem, estarei a proibir-me da minha felicidade e a impossibilitar quem o tenta de ser feliz também.
Julgas que te bastas a ti mesmo? Não bastas.
Ninguém se basta, menos ainda aqueles que o anunciam, pois que, com isso, apenas buscam o aplauso dos outros – sem o qual se sentem sós e abandonados.
A vida é feita muitas estações. Primaveras suaves e invernos agrestes. – e isso é bom. A qualquer verão se sucede um outono. Mas, por mais tempo que tenha de passar, chega sempre o tempo de ser um bom dia – e isso é maravilhoso.
Quando dentro do meu coração chove, troveja e faz frio, é tempo de eu abrir os braços, mais para ser abraçado do que para abraçar… e porque nenhuma tempestade é mais forte do que o amor, com um abraço, e de forma silenciosa, ela passa e volto a ter paz.
Sem amor, as tempestades semeiam medo em cada canto do meu íntimo. Fazendo de mim alguém mais distante, cruel e infeliz.
Julgas que não tens quem te ame?
O amor parece gostar das profundezas da dúvida. Exige fé, quebrando as nossas certezas, como quem prepara a massa para fazer pão, batendo-a tantas vezes até que fique mole e dócil… antes de a lançar ao fogo!
Sê humilde e confia. O amor vai aparecer-te. Abre os olhos… e os braços!
In: imissio.net 27.11.2020
Minha filha reluta em dormir, acha sempre o que fazer para ir invadindo cada vez mais a madrugada. Sua vontade é ver o sol nascer, a biblioteca da sala toda avermelhada. Foi assim que fizemos um trato: mamãe se incumbe de atravessar a madrugada e colher notícias de tudo o que acontece enquanto ela sonha um sonho que depois vai me contar.
Colho o planeta Marte, as três Marias, os berros do louco na avenida, a sirene de polícia, o choro da gata no cio, a janela do prédio em frente que nunca se apaga, a cantoria dos sabiás. Deixo sobre o sofá minhas notícias para quando ela acordar. É nosso milagre particular de multiplicação do tempo, sobrepor ao sono um continuum de eventos reais ou inventados, visões de estrelas cadentes, trovões e o sininho frenético na varanda, triângulo da orquestra na chuvarada. Minha filha começa o dia atando-o à pregressa madrugada, como se afinal não tivesse perdido nada, como se soubesse sem saber que, por mais aventureira e venturosa que seja, essa vida continuará a ser sempre um sopro.
A morte não lhe é completamente estranha, já viu uma lagartixa graúda, que morava no banheiro da casa da avó, um dia reaparecer miúda, inerte e ressequida no parapeito da janela. De propósito, mas como quem não quer nada, lembrei minha menina da finada lagartixa, para emendar que assim é vida, meu amor, acontece com todos que nascem, isso de crescer, espichar a cauda, sair por aí, sumir e voltar, depois morrer. Acontece com todo mundo. Minha filha então me olha nos olhos e faz a pergunta esperada e fatal: “Com a gente também?”. “Comigo também?”. “Com você?”. “Com o papai?”. “A vovó?”. “O vovô?”.
Vou caindo da delicadeza para o mau sabor de arrolar com essas perguntas toda a nossa pequena família numa carreira de futuras lagartixas secas, quando é ela, minha menina, que desdramatiza a morte, dá por encerrada a conversa e vai brincar lá fora. Um instante só, pungente e rápido como um raio, que vi em seus olhos um lago escuro e nele como que todas as despedidas concentradas. Uma tristeza rápida como um susto, um sofrer bem, sem desperdícios, que o dia hoje está bonito, a vida é o que é, e nós temos o nosso trato.
Mariana Ianelli
14.11.2020
imagem: pexels.com
Uma narrativa bíblica crucial para a construção de uma teologia da fraternidade é a que nos é narrada no capítulo 37 do livro do Génesis. Jacob envia o seu filho José para os campos, para saber como estão os irmãos, ocupados a pastorear o rebanho. E um elemento interessante, entre tantos outros deste famoso passo, é que José não encontra de imediato os irmãos. Com efeito, a fraternidade não é um mero automatismo do sangue ou da geografia da família em que se nasce. Da história de Caim e Abel (Génesis 4,1-16), a Bíblia faz-nos saber que a fraternidade é, antes de tudo, uma opção ética na qual nos devemos comprometer, uma decisão existencial e espiritual que, de maneira muito concreta, ou aceitamos ou recusamos. Enquanto José erra pelos campos, um homem vê-o e pergunta-lhe: «Que procuras?». Ele dá uma resposta que, no fundo, serve também para explicar as nossas buscas e as do mundo atual. José responde: «Procuro os meus irmãos». É precisamente desta busca que fala a encíclica “Fratelli tutti”.
Em primeiro lugar, “Todos irmãos” é um texto marcado pela urgência. A urgência pode ser colhida, por exemplo, logo no primeiro capítulo, intitulado “As sombras dum mundo fechado”. O papa Francisco ajuda-nos a olhar o mundo à nossa volta, propondo um diagnóstico essencial do momento histórico que estamos a viver. E não é um momento fácil. Vem-me à ideia o título de uma obra teatral do escritor Peter Handke, prémio Nobel da Literatura 2019: “A hora em que não sabíamos nada um do outro”.
Contra este estado das coisas, o papa eleva a sua voz de maneira profética: «A história dá sinais de regressão» (n. 11). De facto, não só assistimos ao reacender-se de uma conflitualidade que pensávamos superada, quer no plano internacional quer no interior das comunidades nacionais, como vemos também espalhar-se «uma perda do sentido da história» (n. 13) que abre novamente o caminho a lógicas de desagregação, descarte e domínio.
O primeiro a ser ignorado é o bem comum, visto que na experiência da globalização atual aquilo que se constata é o triunfo das ambições dos mais fortes e a crescente precariedade das regiões e dos grupos humanos vulneráveis. Como nos é recordado, «a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos» (n. 12). Ao contrário, «encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência» (idem).
Basta ver como os direitos humanos ainda não são suficientemente universais; como continuamos a habitar a casa comum como consumistas desenfreados, em vez de nos empenharmos a gerir equilíbrios no ecossistema; como não nos preocupamos suficientemente a definir eticamente o progresso tecnológico, fazendo dele um instrumento ao serviço da pessoa humana, em vez de uma forma de manipulação e de assimetria social; ou como, perante o flagelo da pandemia que está a atingir o mundo, recusamo-nos a reconhecer que estamos todos na mesma barca e que ninguém se salva sozinho.
Qual é o resultado desta cegueira? O papa Francisco di-lo claramente: «No mundo atual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia doutros tempos» (n. 30). Em síntese: falta um projeto comunitário capaz de nos unir a todos.
O que o papa Francisco propõe é que este projeto possa ser a fraternidade e a amizade social. É fá-lo de modo muito explícito: «Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras» (n. 6).
De fato, da tríade liberdade, igualdade e fraternidade, que representa o ideal da modernidade, as nossas sociedades incluíram as primeiras duas, mas deixaram de fora a fraternidade, como se fosse uma questão estritamente privada, sobre a qual não é possível construir um consenso social.
No entanto, como afirma o papa Francisco, sem a fraternidade, a liberdade e a igualdade correm o risco de se tornarem tragicamente inconclusivas e abstratas, fato que podemos facilmente apurar. O reconhecimento da fraternidade é, portanto, uma das tarefas atuais mais prementes, que deve envolver todos os atores, da política à economia, da cultura às religiões.
Ao comentar a parábola evangélica do bom samaritano, o papa diz: «Cada dia é-nos oferecida uma nova oportunidade, uma etapa nova. Não devemos esperar tudo daqueles que nos governam; seria infantil. Gozamos dum espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações. Sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas» (n. 77). As palavras-chave são começar e recomeçar. A fraternidade é colocada nas nossas mãos como um desafio inderrogável.
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