Este seria um titulo improvável há uns anos atrás, diria mesmo impossível. Pois bem, desenganem-se aqueles que pensam que nos falta um acento numa das vogais ou estamos a falar de uma espécie de sheik das arábias porque estamos precisamente a falar da visita do Sumo Pontífice, chefe da igreja católica apostólica romana, magna organização dos cristãos com mais de 2000 anos, a um país árabe do golfo pérsico.
Quais são afinal, os impactos desta visita, já histórica, aos Emirados Árabes Unidos?
Comecemos pelo espírito de abertura que preside ao presente diálogo inter-religioso, num sinal claro de mudança e que promete e impõe uma aliança entre muçulmanos e católicos, tão necessária num mundo profundamente marcado pela influência dos religiosos, sobretudo pela negativa e fruto, diga-se em grande parte da atuação deficitária dos seus líderes.
Por outro lado, é razoável admitir-se um reconhecimento e cada vez maior afirmação de Al-Azhar, como a referência no mundo islâmico, estando para este último como o Vaticano está para o catolicismo. Al-Azhar é considerada a elite do mundo islâmico acadêmico sunita e é dotada de um discurso pacífico, com uma raiz e visão já per se ecumenista (não nos esqueçamos que começou por ser xiita) e moderada, orientada pelo seu grande Imã, Sheik Ahmed Al Tayeb, que esteve com o Papa Francisco seis vezes, nos últimos tempos.
A história recente do mundo globalizado em que vivemos trouxe consigo um rol de novos desafios, designadamente a mudança no paradigma da integração que, se por um lado deveria ser desnecessária tendo presente a ampliação das fronteiras anteriormente impostas, é cada vez mais necessária, sôfrega muito por culpa dos movimentos migratórios que se fazem sentir, sejam estes voluntários ou não (refugiados).
É preciso pois, refletir sobre se a religião pode e deve ter um espaço e/ou locais próprios ou se extravasa essa circunscrição, tendo por isso uma feição universalista. Achei especialmente curioso a forma como os cristãos do médio oriente fazem as suas preces, levantando as mãos para o céu (como fazem os muçulmanos de todo o mundo no Duá) ao invés de orarem como um típico católico de Lisboa faria, o que me faz crer que na subtileza dos pormenores assentam as vicissitudes de carácter cultural que impregnam a realidade religiosa, umas vezes bem, colorindo-a, outras nem tanto, conspurcando-a.
A ameaça global do terrorismo transporta-nos para a necessidade de perceber o papel das religiões e de se saber se estas estão demode, tantas vezes que são instrumentalizadas para cumprir com agendas de outra índole.
A somar a isto, os habituais avanços e recuos de natureza geopolítica e estratégica, que nos convocam a uma estabilidade periclitante e mais grave do que isso: são geradores de incertezas e impõem escolhas que nem sempre temos como certas.
É neste contexto que se insere a visita de Sua Santidade aos Emirados Árabe Unidos, afirmando que neste local no qual “areia e arranha-céus se encontram, continua a ser uma importante encruzilhada entre o Ocidente e o Oriente, entre o Norte e o Sul do planeta, um lugar de desenvolvimento, onde espaços outrora inóspitos reservam empregos para pessoas de várias nações.” (Papa Francisco durante a visita aos EAU, discurso por ocasião do encontro com o Concelho Islâmico de Anciãos)
Visto como um melting pot das mais variadas religiões e culturas, os EAU são assim e do nosso ponto de vista inegavelmente uma terra de tolerância, conforme demonstra a iniciativa de realizar diversas actividades ao longo do ano nesse âmbito, promovidas pelo ministério com o mesmo nome.
A visita papal teve vários momentos relevantes, dos quais destacaremos apenas um — a missa — para a esmagadora maioria dos católicos, foi a primeira manifestação publica de fé, o que denota um facto histórico. A cruz é ainda proibida publicamente e as manifestações de cristianismo são permitidas, embora devam ser discretas. Espera-se que após esta visita tal venha a mudar, e que a liberdade religiosa no oriente seja uma plena realidade.
À boa maneira portuguesa eu e o meu companheiro de viagem, Pedro Gil, católico e que faz um programa de rádio comigo há mais de dois anos, fomos dar um passeio no jardim da tolerância, que assinala a visita conjunta do Papa Francisco e do grande Imam e onde coabitam ainda a catedral de Abu Dhabi, uma igreja copta ortodoxa e a mesquita que agora recebeu o nome de Maria mãe de Jesus.
Vizinhança essa aliás, muito útil, dado que o passeio foi precedido de uma missa e oração, respectivamente — cada um para seu lado — e separados por uma fé que se une por uma amizade, admiração e respeito inabaláveis.
Pois a verdadeira solidariedade entre os povos é demonstrada pelo abraço caloroso e cúmplice que o Papa e o Imam deram, num gesto de absoluta humanidade, que é também a nossa, sem máscaras nem artifícios, num verdadeiro amor incondicional.
[@Observador | Khalid Sacoor D. Jamal | Vogal da Direção da Comunidade Islâmica de Lisboa,
In: imissio.net 11.02.2019
Os gregos descreviam a experiência humana partindo de três dimensões. Trata-se de uma visão ancestral, mas que podemos acompanhar ainda. A primeira dimensão seria a da memória (mnemis), que fornece a base primária daquele conhecimento que torna viável a vida. Sem a memória teríamos de reaprender tudo, a cada instante. É por ela, por exemplo, que dormimos e, no dia seguinte, somos capazes de andar, capazes de comer, de reconhecer o mundo a nosso lado, de saber quem somos. Se a todo o momento tivéssemos de perguntar, “como se caminha?”, “como se fala?”, “como se ama?”, a vida emergiria lentíssima e, certamente, muito diversa. Outra dimensão fundamental para os gregos seria a aesthesis, isto é, a percepção sensível do presente. A nossa experiência concretiza-se numa prática sensorial: podemos ver, ouvir, cheirar, tocar, sentir. A vida é tátil, é isto de que nos podemos aproximar, é o que trazemos entre mãos. Mas atenção: a vida não se resume apenas à memória e ao presente que apreendemos com os sentidos. Os antigos nomeavam uma ulterior e necessária dimensão, que chamavam esperança (elpis), explicada como a consciência de que havia um além, um amanhã. A ideia de um futuro foi sempre tida também como determinante, mesmo se para os gregos a esperança era uma coisa na qual não se podia propriamente confiar. Píndaro explicita-o bem quando relata que, no princípio, os deuses colocaram todas as coisas boas para o homem dentro de um vaso e lhe puseram uma tampa, com a proibição de removê-la. Mas o homem avizinhou-se do vaso e destapou-o. Quando fez isso, todas as coisas saíram de repente e o único bem que ficou dentro foi a esperança, a esperança daquelas coisas perdidas.
Creio que daqui se extrai uma dupla conclusão: não podemos viver sem esperança, mas esta não é uma tarefa estável e fácil. Muito pelo contrário. No extraordinário poema que lhe dedicou Charles Péguy (e que Armando Silva Carvalho traduziu magnificamente para a nossa língua) garante-se que a única realidade que deixa o próprio Deus espantado, em relação ao homem, é a esperança: “Não é a fé que me espanta.../ A caridade, diz também Deus, essa não me espanta.../ Mas a esperança, diz Deus, essa sim causa-me espanto./ Essa sim, é digna de espanto./ Que essas pobres crianças vejam como tudo acontece/ E acreditem que amanhã será melhor./ Que elas vejam o que se passa hoje e acreditem/ que amanhã de manhã será melhor./ Isso é espantoso e essa é a maior maravilha da nossa graça./ E isso a mim mesmo me espanta.”
A esperança não é um lenitivo que adormece a dor até que ganhemos coragem para tratar a sério da vida, mas uma força que já hoje nos motiva para a transformação da história. A esperança não é um adiamento, mas um compromisso. Não é uma abstração idealizada, mas um dinamismo concreto, uma laboriosidade, um fazer. Precisamos de uma educação para a esperança.
Sobre o seu significado profundo, e de como se pratica, há aquela história do velho monge que se propunha alcançar o cimo de uma montanha e que, numa das etapas iniciais do caminho, pernoita numa estalagem. O estalajadeiro repara na sua fragilidade e tenta dissuadi-lo, enumerando os perigos que o espreitam, e que certamente acabarão por vencê-lo. O monge, porém, respondeu: “Tenho a certeza de que chegarei lá.” “E como é que um homem fraco como tu pode ter semelhante certeza? Para mais, vem aí um inverno duro.” O ancião retorquiu: “Coloquei lá em cima o meu coração e por isso sei que, mesmo assim inseguros, os meus passos hão de chegar lá.”
Pe. José Tolentino Mendonça
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Riquezas das Minas Gerais, seus minérios e tantas outras maravilhas, que tão generosamente nos foram dadas pelo Criador, transformaram-se em sua perdição. Minas vê, gravíssima e rapidamente, seus rios, lagos, afluentes, terras agricultáveis, comunidades e suas culturas sendo dizimadas. São cometidos crimes contra a vida humana, contra o meio ambiente e contra o direito de viver em comunidade e em família.
Na Encíclica Laudato si, o Papa Francisco nos alerta para a necessidade da urgente compreensão de que o Planeta agoniza e clama contra o mal que provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nele colocou.
O que foi legado ao homem para que prospere e tenha uma vida plena e a transmita às futuras gerações, a ação irrefreavelmente gananciosa e criminosa das mineradoras destrói em tão pouco tempo. Vemo-nos diante da débil regulação deste setor pelo Legislativo, eivado de pessoas financiadas por essas empresas e que são autorizadas pelo Executivo, imiscuído em múltiplos interesses nem sempre republicanos e precariamente fiscalizadas pelos órgãos que existem para isso. Soma-se a isso um Judiciário leniente, ensimesmado, caríssimo, insensível, pretensioso e divorciado do povo brasileiro. Foi assim em Mariana, pela Vale/Samarco, até hoje “na justiça”; é assim em Brumadinho, pela Vale. Não podemos deixar que assim continue.
Não houve um acidente nessas Minas Gerais. Houve um crime ambiental e um homicídio coletivo. Uma matança de pessoas, animais e do meio ambiente. Quase mataram também a esperança, a fé, a dignidade e o amor das pessoas que sobraram, agora terrível e indescritivelmente sofridas, mas em processo curativo, em reconstrução, soerguimento, revitalização e retomada de posse de sua brava dignidade. Como não há uma empresa mineradora em abstrato, as pessoas que nela atuam e têm responsabilidade sobre esta tragédia devem ser rigorosamente punidas, para que, juntamente com a mineradora, não caiam em desgraça também os que exercem os poderes acima citados e já tão pouco acreditados. Conscientemente, as mineradoras optam, por serem mais baratos, por modelos de exploração de minério de ferro e de outros metais mais danosos ao meio ambiente e à vida humana. O lucro exorbitante, quase ilimitado, com pouco retorno à sociedade por meio do poder público, é o único critério e preside, inconsequentemente, as decisões em relação aos modelos de exploração dos recursos naturais.
Por causa dessa sede insaciável e enlouquecida por riquezas cada vez maiores, “que a traça e a ferrugem destroem e os ladrões roubam” (Mt 6,19), concentradas sempre mais nas mãos de pouquíssimas pessoas, empresas mantêm trabalhadores na pobreza a vida inteira e expostos à morte. A mineração em nosso País se tornou eticamente insustentável, calamitosa e de altíssimo risco para a vida humana e toda a vida existente em suas áreas de atuação.
A dimensão cruel e potência danosa da reincidência desses crimes nos apontam que apenas o fato de não se tratarem de um contexto de conflito armado é que os distingue de que sejam entendidos como crimes de lesa-humanidade. As práticas de seus infratores, afinal, se mostram sistemáticas, resultam da clareza dos riscos e danos de suas ações em covardes atos desumanos e contra a população civil.
Por isso mesmo, urge que as pessoas, organizações e instituições que valorizam a vida humana, que querem defender a natureza dessa progressiva e suicida destruição, se insurjam contra esse modelo de negócio que enriquece tão poucos, destruindo a vida de tantos. Do modo que se realiza, esta economia mata, repito o Papa Francisco, o maior líder humanitário do mundo atual.
É inadmissível a persistência desse modelo econômico de enriquecimento pela destruição. É impossível continuarmos aceitando que a natureza, obra-prima de Deus, seja sistematicamente destruída. E que milhares de trabalhadores, idosos e crianças, mulheres e jovens, prevalentemente os mais pobres e humildes, sejam diariamente expostos ao risco de morrer em função de uma ganância deplorável.
Precisamos, talvez como nunca antes, como nos convoca o Papa Francisco, cujo nome tem inspiração em São Francisco de Assis, “exemplo por excelência pelo cuidado com o que é frágil e a ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade” (Laudato si), de um debate que una a todos, porque o desafio ambiental diz respeito e tem impacto sobre todos nós.
Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães
Reitor da PUC Minas
Bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte
Não é só o ano que começa. Qualquer que seja a nossa idade ou a estação em que nos encontremos a viver, a verdade é que somos, até ao fim, uma coisa no seu começo, a verdade é que habitamos unicamente começos. Nada mais. Não vimos outra coisa enquanto estivemos aqui. A nossa estirpe é a dos recém-nascidos, portanto. Uma das mais belas frases que conheço pertence a uma página bíblica, a Primeira Carta de Pedro. E a frase diz (ou ordena) o seguinte: “Como crianças recém-nascidas, desejai” (1Pd 2,2). Somos, mesmo com dezenas, com centenas de anos e séculos em cima, “crianças recém-nascidas”. E devemos muito à misteriosa fragilidade dos recém-nascidos que, no fundo, ainda é a nossa, que, sabemos, será sempre a nossa. O nascimento deve ser reconhecido como estrutura fundante da vida, a sua irremovível arquitetura primária, e não apenas como uma das suas formas ocasionais, furtivas e possíveis. Quanta sabedoria existe naquele poema de Lao Tsé: “Quando os homens ingressam na vida são tenros e frágeis; quando morrem são hirtos e duros. Por isso os hirtos e duros se tornam mensageiros da morte e os tenros e frágeis são os mais credíveis mensageiros da vida.” Gosto de pensar que o verbo nascer é um verbo incessante, que faz de nós “credíveis mensageiros da vida”. Se pensarmos bem, conjugamos o verbo nascer milhares de vezes ao longo do nosso percurso. E mesmo aquelas experiências que, pela sua exigência, esforço ou sofrimento, não percebemos logo como itinerários de nascimento, se revelam depois uma etapa desse parto perene que é a nossa condição. A vida é fluxo, circulação espantosa, sucessão no aberto. A vida é interminável ação de nascer. Há um paciente e necessário trabalho a realizar para passar da tentação de fixar a vida em momentos determinados, cristalizando-a em imagens tanto euforicamente utópicas como desalentadamente distópicas, à capacidade de hospedar a correnteza da vida como ela nos assoma, o que requer de nós um amor muito mais rico e difícil. Um amor sem expectativas, nem julgamentos. No fundo, aquele amor que não nos coloca a amar a vida hipoteticamente pelo que dela se espera, mas a amá-la incondicionalmente pelo que ela é, muitas vezes na completa impotência ou na extrema vulnerabilidade de vida recém-nascida. Por isso, felizes aqueles que cultivam mais o espanto do que a decepção ou os que exercitam mais a aceitação generosa do que o ressentimento. Felizes os que no incompleto e no inacabado são capazes de ver a insinuação de uma promessa, mais do que uma lacuna. O importante é assim saber, com uma força que jorre do fundo da própria alma, se estamos dispostos a amar a vida como esta se apresenta e não como a fantasiamos. Como recordava Françoise Dolto, a nossa hora de maturidade só chega “quando, como qualquer outro ser humano, sentimos um desejo suficientemente forte para assumir todos os riscos do nosso próprio ser. Aí estaremos prontos a honrar o nascimento de que somos portadores”.
Por vezes, cansados e confundidos, não conseguimos compreender que certas etapas cambaleantes nos servem para um reencontro benéfico com o nosso próprio passo. E podemos dizer que a alegria que provávamos no caminho não passou de um relâmpago breve, que nos precipitou em seguida no escuro. Ou da esperança podemos pensar que só nos iluminou porque ignorávamos que também ela era transitória. E da leveza, da gentileza ou da amizade podemos temer: chegará o outono e também elas voarão. Que injustiça, porém. O que vimos todo o tempo foi a vida a nascer.
José Tolentino Mendonça
In: Missio
«O futuro é como o paraíso: todos os exaltam, mas ninguém quer ir agora para lá.»
Encontro esta curiosa consideração – difícil, em todo o caso, de desmentir – num afro-americano hóspede de uma família de amigos e que a cita da obra intitulada “Ninguém sabe o meu nome”, de um escritor como ele negro e norte-americano, James Baldwin (1924-1987), cantor dos direitos civis, das minorias, da espiritualidade bíblica do bairro de Harlem em Nova Iorque e dos ritmos dos “blues”.
Há uma verdade indiscutível nestas palavras. Fala-se muito bem do paraíso, exalta-se outro mundo mais justo, espera-se um ano melhor que o anterior, mas na verdade fica-se plantado no hoje, nos interesses codificados, no pequeno horizonte habitual, nos hábitos inamovíveis.
Entendamo-nos bem: é perigoso viver de ilusões, tendo a mente e o coração inclinados apenas para um futuro evanescente. Pode, com efeito, nascer uma espécie de alienação que causa a renúncia em relação ao presente (e por vezes uma religiosidade mal compreendida produziu efeitos deste gênero).
Mas é de igual modo arriscado extinguir todo o desejo, eliminar todo o projeto, demolir toda a utopia, castigar a espera, tombando num cruel realismo, feito apenas de cálculos e vantagens imediatas.
É esta a escolha da pessoa tacanha e egoísta, da sociedade sem grandes ideias, da política que se contenta com a gestão do imediato, da pastoral que ignora os valores últimos e, portanto, também o além e o paraíso.
Dito com as palavras de outro escritor americano, Oliver Wendell Holmes, que viveu no século XIX, «a coisa mais importante na vida não é tanto onde estamos, mas em que direção estamos indo».
P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 14.01.2019 no SNPC de Portugal
Sabemos o tempo que já vivemos, mas ignoramos por completo quantos anos temos ainda para viver!
A vida vai-nos empurrando sempre para diante, fossilizando o que foi vivido e impedindo-nos de lá voltar, nem que seja por um segundo. O passado é imutável, embora seja sempre uma riqueza pessoal, qualquer que seja a proporção de sucessos e fracassos, de erros e decisões acertadas.
Podemos arrepender-nos, entregando o nosso futuro como penhor da culpa passada, alterando as nossas escolhas a fim de ultrapassarmos a falha. Mas também podemos fugir para o amanhã, como se o que fomos não fosse parte do que somos.
A vida é um dia, um instante passageiro, uma hora que sempre nos escapa. É certo que a vida se vive para diante… Mas para a compreender é essencial aceitar, assumir e analisar com o máximo cuidado todo o trajeto e cada um dos passos que foram dados.
Se o amanhã não é certo, devemos pensar bem sobre o que queremos e o que não queremos hoje, evitando deixar que o acaso guie a parte que nos cabe decidir.
Importa abrir o coração ao que nos ultrapassa, porque a vida é um mistério profundo e um milagre bondoso.
A nossa existência é essencial à vida, mas o mar é grande e o nosso barco é pequeno.
Que eu seja capaz de deixar as minhas misérias para trás e aventurar-me pelos oceanos desconhecidos da liberdade.
Que eu saiba escutar o Amor e aprenda, no silêncio da sua presença, a compreender o mistério da minha existência.
Artigos de opinião publicados no site da Agência Ecclesia
Uma das mais belas correspondências de Natal que conheço é a que o poeta Rainer Maria Rilke manteve com a mãe, ao longo de 25 anos. Claramente as cartas de ambos deveriam ser escritas e recebidas antes da festa. A mãe, Sophia Rilke, residia estavelmente em Praga, mas Rainer Maria era uma espécie de apátrida espiritual, girovagando por refúgios de empréstimo, em França, Itália, Alemanha, Espanha, Rússia, Suíça. A distância geográfica ou as dificuldades de comunicação não os impediram, porém, de manter, por longo tempo, um ritual preciso, cheio de ressonâncias: às dezoito horas em ponto de cada dia 24 de dezembro, quando as mil luzes natalícias brilham mais ainda como que intensificadas pela chegada do último crepúsculo antes da grande festividade, eles finalmente abriam, com viva e lentíssima emoção, a respetiva carta natalícia. Numa dessas missivas, o poeta explica em detalhe o cúmplice processo de escrita, definindo-o como uma comum experiência de gestação da alegria. Escrever a carta, antecipando o efeito que ela causaria no correspondente; selecionar as palavras, o papel, as imagens, os sons e as cores; calcular exatamente os tempos que garantiam a chegada ao destinatário — tudo era uma excitante pré-alegria que deixava o espírito em alvoroço até à vigília, quando o relógio batia as dezoito horas.
Contudo, o traço porventura mais surpreendente desta correspondência é que ela constitui um ensaio sobre aquela solidão que experimentamos no Natal, e que exploramos tão pouco. Há uma desaceleração interior que, por desconfortável que possa ser, constitui uma oportunidade para entrar dentro do próprio coração. E o coração, mesmo no seu quebrantado pulsar, mesmo no seu doloroso esvaziamento, é, como escreve Rainer Maria Rilke, “uma ilha de Deus, uma filial do céu”. A solidão própria do Natal vem descrita como uma irrevogável chamada ao recolhimento. É bom sentir que tudo em nosso redor, e que nós próprios, de repente, nos aquietamos. E que as horas se tornam pacatas, entreabertas e misteriosas num modo que nos é inabitual, para não dizer desconhecido, porque “o infinito nos quer assim surpreender”. É bom sentir que o vazio que se sobrepõe a todos os embrulhos que trocamos e que o silêncio interno que fala mais alto que o vozear querido que nos circunda têm, sem compreendermos como, a forma de um dom.
Esse vazio, que resiste à avalanche de consolações que recebemos, é, de fato, o verdadeiro dom: a possibilidade não de desejar isto ou aquilo, mas de provar a explosão de um desejo em estado puro, em grau tal que só o podemos abandonar nas mãos de (um) Deus. O resto, sim, são as circunstâncias externas, provisórias e passageiras. O poeta insiste em falar à mãe das vantagens desse máximo recolhimento perante “o antigo, o santo esplendor da soleníssima vigília”. E escreve: “Devemos permanecer silenciosos e solitários e pacientes para acolher em nós a graça de uma hora que a muitos não cega a revelar-se, porque neles há demasiado rumor e uma escassa ordem. Tudo depende, afinal, de aprender a ligar-se àquilo que é grande, àquilo que vivemos apenas no coração e que nada pode turbar. Se nestes momentos de grande recolhimento e elevação compreendemos que a vida está naquilo que, palpitante e solene, se move em nós e nos deslumbra com lágrimas que brotam do profundo mais luminoso, então a modesta confusão que nos circunda ainda, o ordinário e o turbulento que corre não poderão já fazer-nos desanimar.” Talvez precisemos de abraçar a solidão de que facilmente fugimos, pois nela, e de uma maneira carregada de prodígio, acontece o Natal.
José Tolentino Mendonça
In: ww.imissio.net
«O Natal é o nascimento absoluto que reflete e assume, ilumina e redime, abençoa e consagra todos os nascimentos anteriores e todos os nascimentos depois. Cada homem que vem à luz repete o milagre do Natal de Cristo;
porque é Deus que decide aquele nascimento; é Ele que quer aquela vida. É precisamente em cada um desses nascimentos, em cada uma dessas vidas, sem exclusão, que o impeliu desde sempre a fazer-se carne.»
Para os nossos votos natalícios quisemos deixar para trás a coreografia tradicional: não faltam textos literários e espirituais que se confiam a estrelas, neves, pastorinhos e música para dar vida ao presépio, um símbolo aliás querido a todos.
Desta vez damos espaço a uma citação “pesada”, um parágrafo “teológico” extraído do livro “A majestade da vida”, de Giovanni Testori, escritor italiano que morreu em 1993. É muito sugestiva a fusão que ele opera entre o «nascimento absoluto» e emblemático de Cristo e todos os outros nascimentos.
Jesus nasceu, isto é, quis ter um início como todas as suas criaturas, Ele que era eterno, precisamente para partilhar connosco o tempo, a história, a carne. E como todos nós quis ter um fim, uma morte Realizou isto para depor em todos os nascimentos e em todas as mortes, com a sua presença, uma semente divina.
Como escreve Testori, o Natal do Filho de Deus «reflete e assume, ilumina e redime, abençoa e consagra todos os nascimentos», todas as vidas.
Devemos por isso amar a vida dos viventes, de quem agora nasce até a quem morre, porque nela se celebra uma manifestação de Deus, um desvelamento da sua partilha com a nossa realidade, uma revelação do seu amor.
P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins:
Publicado em 21.12.2018 no SNPC (Portugal)
Quando penso neste tempo litúrgico do Advento que antecede o Natal, e que em grande medida aprofunda e desvela o seu significado, vem-me muitas vezes à cabeça um livro do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, “Morte e Vida Severina”. É um livro de poesia, como o são afinal tantos livros bíblicos. Mas este livro contemporâneo o que é que conta? Narra a história de Severino. Severino é o homem, o ser humano apenas, mais um de nós, um qualquer Adão. Severino é uma criatura provada, porque a vida é dura, implacável; a vida não retribui diretamente o sonho, o esforço, o investimento afetivo que nós nela colocamos. Aquele Severino — como muitas vezes nós — sente-se só, traído e espoliado sobre a terra. E vai numa espécie de demanda à procura de uma solução que não encontra. Percepciona, dramaticamente, a existência como inútil empresa. Repete a si mesmo que, se não encontra respostas para as áridas interrogações que traz, talvez o melhor seja pôr fim a tudo. Com estes pensamentos põe-se a caminhar perto de um rio e encontra, a dada altura, um carpinteiro chamado José, a quem pergunta se o braço de rio é suficientemente fundo e com lodo bastante para que uma vida nele se perca.
O carpinteiro percebe o seu tormento e tenta dissuadi-lo. Severino volta-se para José e suplica: “Então dá-me uma razão. Dá-me uma razão que seja, que diga que a vida vale a pena.” Quando estavam os dois nesta discussão, a conversa é interrompida por um coro de vizinhos, parentes e conhecidos do carpinteiro, que lhe vêm anunciar, cantando, que a sua mulher acaba de dar à luz. Somos, então, conduzidos ao lugar onde está o menino e José saúda com entusiasmo o seu nascituro. E dirigindo-se ao desesperado Severino diz que é verdade, que também ele não tem uma resposta para lhe dar, mas adianta: “Não há melhor resposta que o espetáculo da vida:/ vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida,/ ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica”. Na realidade, a vida responde manifestando-se, dando-se a si mesma, abrindo-nos ao desabalado espetáculo que é a própria existência, a esse inacreditável e despojado milagre que a vida é em si mesma. É olhando, acolhendo e abraçando a vida que podemos ser curados das nossas dúvidas, daquilo que em nós parece apenas rasgão, desolada ferida para tratar, vazio e subtração. É quando confiamos no milagre da vida que podemos olhar de outro modo para esta sensação que nos há de acompanhar até ao fim: a sensação de sermos algo de inacabado, inconclusivo, até irreparável. Penso que o Advento constitua um anual interromper a conversa.
Todos andamos ocupados com uma interlocução qualquer. Uma confabulação mais ou menos feliz, mais narcísica ou mais altruísta, mais isto ou mais aquilo. Esbracejamos por uma solução, pela âncora de um sentido que nem sempre é óbvio, que quase nunca é evidente ou fácil. O Advento traz uma interrupção. A conversa interrompe-se com um cortejo que vem anunciar um nascimento, que insiste em abrir-nos os olhos para repararmos antes de tudo na vida, na vida estreme, no valor da vida sem mais, nesse tesouro essencial. Na representação do Jesus que nasce não há ornamentos. Ele nasce desprovido como um Severino, sem nada, naquele curral de animais onde é só a vida que conta. O Advento é, assim, um tempo para suspender as nossas soturnas trocas de razões, os nossos longos percursos fechados, a nossa interminável inquirição. E para deixarmo-nos antes ficar diante do espetáculo da vida, da vida que incessantemente se faz nova, mesmo quando não nos apercebemos, mesmo quando julgamos qualquer saída impossível. A vida encarrega-se de fazer-nos sentir desarmados, repentinos e inocentes diante do parto de Deus.
José Tolentino Mendonça
17.12.2018
In: iMissio.net
Nós que muitas vezes, demasiadas vezes, colocamos tudo no mesmo saco, passamos a olhar com desconfiança para algumas palavras. Uma dessas, colocadas sob suspeita, é a palavra leveza. As razões para um crescente mal-entendido em relação a ela são múltiplas, e — temos de reconhecer — obrigam-nos a viagens não necessariamente fáceis ao interior de nós mesmos. Eu identificaria três dessas razões que nos fazem viver em conflito. A primeira de todas é que nós humanos, com todo o nosso peso, nunca deixamos de aspirar à leveza. Podemos não ter consciência disso, podemos sentir que os nossos dias são de chumbo, e que, no emaranhado de tudo o que nos cabe viver, experimentamos unicamente o contrário da leveza. Contudo, habita-nos um persistente e interminável desejo disso que a leveza significa, mesmo quando esse desejo se exprime apenas como um desencontro, um tormento ou uma sede. Vem-me à memória a passagem de um poema de Antonia Pozzi: “Trago o desejo daquilo que é leve/ no coração que pesa.” Nós somos esse “desejo daquilo que é leve”. Não é por acaso que, por exemplo, no seu extraordinário estudo sobre a morfologia dos contos populares, o russo Vladimir Propp insiste tanto na figura do “herói que voa pelos ares”. No dorso de um cavalo ou nas asas de um pássaro, num carro de fogo ou sobre um tapete voador, arrebatados por um espírito ou pela força do vento: todos nós conhecemos histórias em que os heróis rematam assim o seu percurso. Ora, há que dizer que não se trata apenas de um imaginário literário, mas que estamos sim perante uma simbólica capaz de descrever a nossa universal condição antropológica. Mesmo quando desistimos da leveza, a leveza torna, não desiste de nós.
A segunda razão que nos faz estar em luta com a leveza como que contraria esta primeira. E prende-se com a síndrome da “insustentável leveza do ser”. O escritor Milan Kundera, no célebre romance que adota esse título, faz a anatomia desse desacerto. Por que razão acontece — pergunta-se ele — que na vida de cada ser humano tudo aquilo que escolhemos e colocamos do lado da leveza acaba por revelar, cedo ou tarde, um peso insustentável que desconhecíamos? Isso é assim com tantas das nossas melhores ideias, com formas de organização cultural e política que julgamos primeiro fulgurantes, mas também com incontáveis pormenores da nossa humanidade. Um certo cinismo que caracteriza a vida adulta e que a barrica num niilismo encapotado tem a ver com a ativação do instinto de defesa face às reviravoltas inevitáveis no interior do binômio peso-leveza.
O terceiro motivo tem a ver com a necessidade de libertar o conceito de “leveza” dos seus equívocos e perceber que o caminho de aproximação a ela exige uma espécie de conversão do nosso modo de olhar a vida. Ítalo Calvino, que considerou a “leveza” uma das poucas palavras fundamentais para este novo milênio, escreveu que há uma leveza da frivolidade, mas há também uma leveza do pensamento e que esta “pode fazer a frivolidade parecer pesada e opaca”. Vale, por isso, a pena perguntar de que falamos quando falamos de leveza? Não é fácil explicar o que é a leveza. Calvino, mais do que um conceito, descreve-nos um processo pessoal de descoberta: “Cada vez que o reino humano me parece condenado ao peso, digo a mim mesmo que, como Perseu, eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Preciso mudar de ponto de observação, preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controlo.” A leveza ensina-nos alguma coisa importante sobre a arte de renascer.
Por irônico que possa parecer, a ideologia da felicidade — que hoje contamina todos os planos da vida e da sua representação — tem disseminado de modo maciço a frustração, a tristeza e a infelicidade. Tornamo-nos mais infelizes a partir do momento em que erguemos a felicidade como idealização que absorve o nosso imaginário e ainda não percebemos até que ponto esse conceito abstrato se tornou uma armadilha que nos aprisiona no seu inverso. Numa sociedade que faz da apologia da felicidade a todo o custo o seu credo, todos nos sentimos culpados ou defraudados, incapazes de perceber que estado seja esse e como realmente se obtém. Basta olhar para as definições de felicidade: as únicas com sentido são as que escapam sabiamente a todo o esquematismo. Como aquela onde se pergunta: “Como explicarias a felicidade a uma criança?” E se ouve como resposta: “Eu jamais explicaria. Passava-lhe, antes, uma bola para os pés.” Em vez de felicidade deveríamos falar mais de alegria. A alegria tem raízes no quotidiano; mesmo quando nos surpreende, emerge de um itinerário existencial que podemos reconstruir; sabemos o que seja e como se alcança. Deveríamos falar mais de leveza, essa qualidade dos que permitem à vida manter um elan, uma espécie de transparência e gratidão, ligados não ao que a vida foi ou ao que poderia ter sido, mas ao indizível milagre que ela, a cada instante, é. Deveríamos falar de simplicidade, essa capacidade de partir continuamente do essencial, fazendo disso uma escolha, uma prática e um estilo. E falar daquelas pequenas esperanças, disso que recebemos e damos estabelecendo desse modo o movimento circular da vida, e que depois se torna o guia e o espelho das nossas aspirações maiores. Falar de coisas finalmente concretas, ao alcance da mão, coisas talvez triviais, mas que vêm sem mais brincar aos nossos pés. O que nos faz felizes tem de ser uma experiência infinitamente mais humilde do que o standard fantasioso requerido pela ideologia da felicidade.
Hoje ouve-se muitos pais dizerem acerca dos filhos e do seu futuro: “Não quero influenciar o rumo que o meu filho vai seguir; a escolha está completamente nas suas mãos; desejo apenas que ele seja feliz.” E ao dizer isto, os pais não se dão conta do problema que estão a criar para os filhos. O amor, na verdade, não é desejar que alguém seja feliz, e ainda menos que seja apenas feliz. Como ensina Santo Agostinho, o amor é antes um volo ut sis, “quero que tu sejas”. Mais do que os estados que se atravessa e do que as estações que experimentamos está o que somos. A arte de ser deve prevalecer para lá das horas solares ou noturnas, dos processos de florescimento ou de impasse, da dança descendente da penumbra ou do desenho aéreo do júbilo. Não podemos desejar que alguém seja apenas feliz. Isso equivale a coartar a vida e a fantasiá-la perigosamente. Cabe-nos estimular os que amamos à corajosa aceitação da vida, no que ela tem de plenitude, mas também de vazio e até de decepção. Pois a quanta sabedoria só acedemos por essa ponte de corda que nos aparece suspensa sobre o abismo e pela qual caminhamos de olhos vendados e trémulos. Lembro-me muitas vezes de uma passagem de um poema de Giuseppe Ungaretti que diz: “Jamais, jamais sabereis quanto me ilumina/ a sombra que vem, tímida, colocar-se a meu lado/ quando desisto de esperar.” Nem sempre a sombra é o contrário da luz, como a árdua fadiga de viver não é o contrário da felicidade. São etapas do mesmo rio que corre. Há lágrimas que nos consolam tanto ou mais do que muitos sorrisos. E há dores que nos introduzem numa experiência de gestação e de comunhão, que não julgaríamos possível.
José Tolentino Mendonça
In: www.imissio.net 28.09.208
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Um ramo sairá do tronco... brotará das raízes. Assim profetiza Isaías (11, 1).
Talvez o profeta fizesse alusão à videira. De folhagens e frutos frágeis, possui raízes e troncos fortes, de tal modo que, mesmo depois de uma queimada ou de uma devastação, é possível recuperar sua matriz vital. Após a catástrofe do povo, Deus ainda suscitará o Messias de suas raízes. Jesus é o fruto bendito do Espírito de Deus que germina e dá vida nova às raízes feridas da humanidade. Do germe da fé, virá o Salvador. Daquele silêncio divino e da indiferença humana, o Verbo... Para o profeta, o Messias não será um novo Davi, mas anterior a ele mesmo, do pai de todos os reis, de Jessé brotará a mais íntima e virginal esperança do Povo de Deus... Maria será a fé mais virginal encontrada por Deus para brotar o seu e o nosso Messias. O ramo da vida é brotado do ventre de Maria. Da súplica do ventre de Maria, da profundidade do crer humano, a Palavra encarnada.
Tempo de iluminar o céu...
Na fragilidade do ramo, a grandeza do tronco e a força das raízes, de Deus. Do alto da cruz, como no madeiro da manjedoura, o mesmo corpo nu, frágil e despojado de tudo. O corpo delicado, como novo ramo do tronco ferido e maltratado pela violência humana, torna-se o próprio corpo Dele, a Igreja. O corpo que se tornou o madeiro... do tronco fincado no calvário, sem sopro, sem luz, dilacerado para não mais viver... nasce a vitalidade do novo Povo de Deus. A menor dentre todas as hortaliças, que faz abrigo para os pássaros... para os passantes do caminho rumo ao céu. Que lança seus ramos pela extensão do mundo. Celebrar o Advento é sempre retornar às raízes mais íntimas da fé e do amor, às raízes de Deus em nós, entrelaçadas em nossa história humana...
Do pavio que se apagou, da impossibilidade do crer humano, ressurge a fé de Deus que ilumina a humanidade com a sua Luz... O jeito de Deus é eternamente o mesmo: ressurgir do caos, a vida; do crucificado, o Ressuscitado; do fracasso, a misericórdia salvadora; da vela que se gastou, o vigor da chama... Para tanto, é possível e urgente também hoje crer!
Advento é o tempo da espera de Maria, a mais prudente dentre todas as virgens. É o tempo de nossa espera. Também é o tempo da perturbação: como será isso se não conheço homem algum? Não conhecer homem algum é também a nossa inquietude: como se concretizará hoje o projeto salvífico de Deus, se ainda nos falta humanidade? No entanto, Advento é a meditação silenciosa da vontade de Deus. E do fruto da resposta: Emanuel. Advento é quando o céu sente a temporalidade da terra, à espera da resposta de Maria, após o anúncio do anjo. E é a resposta de Maria, o seu amém, matéria de sua vontade e de sua adesão que permitem a encarnação, a matéria da Revelação plena de Deus: o Verbo se fez carne.
É o tempo do silêncio
O frágil barro é revigorado no sopro de seu oleiro. No sopro de seu criador. Daquele não entender humano, a perfeita sabedoria de Deus que nos surpreende quando a vida parece carecer de luz e transparência. Ele vem clemente para congregar os que se encontram na ofensiva... reunirá o que está disperso. O vaso é Maria. E, dentro dele, a graça de Deus. O vaso é a humanidade. Barro e sopro se reúnem. A história do homem terá sempre o ato de Deus.
É tempo de gerar o Natal, que só o é se brota como clamor das vísceras da pessoa humana. Só há natal verdadeiro se advir aquele grito das raízes do coração: Vem, Senhor Jesus. Há natal quando o ramo renasce do tronco machucado das profundas e extensas raízes de Deus, que abraça a terra humana. É o tempo do silêncio da carne, do silêncio da terra que escuta... tudo é silêncio até ecoar numa noite iluminada um choro de criança. Assim Deus fala ao mundo!
Advento é tempo de, aproveitando as chuvas veraneias da graça de Deus, enxertar de novo a fé em nossa carne. É o tempo do enxerto, tempo de ferir nossa temporalidade. O advento tem de ferir-nos... Uma ferida que chegue a nos incomodar, que nos interrogue, que procure em nós uma resposta: como será isso? Como brotará a flor desta carne ferida?
É tempo do Advento do silêncio de Zacarias. Da profecia que silencia, que aguarda a promessa. E do Advento de José. Do sonho de Deus gerado no coração do homem, da cultura, da história... É tempo do Advento dos magos do oriente: a procura da luz... Da busca de uma inteligibilidade para a fé. Jesus é a fé inteligível. Não seja este o advento de Herodes, que disse também querer adorá-lo. Para este tipo, o Natal jamais chega, nunca atinge a profundidade existencial, não germina.
É o nosso tempo no tempo de Deus
O advento é caminho para o Messias encarnado, morto e ressuscitado. É caminho para o Messias esperado... E este Messias vem ferir nossa humanidade, romper nossas raízes, afim de que, com o cheiro de pasto dos pastores e a melodia dos anjos, também proclamemos: Glória a Deus nas alturas...
Enquanto a esperança for queimada até no seu tronco e cortada até em suas raízes e crucificada sob o solo santo, como crer na nova humanidade? Por isso, clamamos aos céus que façam chover a justiça e brotar do madeiro ferido do Povo de Deus um tempo de paz... Que a humanidade, banhada pelas novas águas da misericórdia, neste tempo favorável, se renove na ternura do Menino Deus, na eterna novidade do broto das raízes de Jessé.
Pe. Gilvair Messias
Padre da Diocese de Guaxupé-MG e mestre em teologia.
«Deve ser-se capaz de viver sem livros e sem nada. Existirá no entanto sempre um pedaço de céu para poder olhar, e espaço suficiente dentro de mim para juntar as mãos numa oração.»
Assim escrevia a 14 de Julho de 1942 Etty Hillesum, jovem judaica holandesa, um ano antes da sua eliminação ocorrida no campo de concentração nazi de Auschwitz, a 30 de setembro de 1943.
Já por várias vezes citamos o seu “Diário 1941-43”, rico de páginas de luta e de amor, de mística e de silêncio. Talvez seja precisamente porque temos à nossa volta tantas coisas e tantas presenças, que perdemos aquele «pedaço de céu» necessário para «juntar as mãos numa oração».
Já não somos capazes de criar um espaço mínimo de quietude e de paz, semelhante a um oásis, para onde nos retirarmos a fim de encontrar a nossa alma e o nosso Deus.
A verdadeira experiência de fé não é, todavia, isolamento e reclusão do mundo. Encerro-me em mim mesmo e no meu quarto para depois sair dele e ser sinal para os outros no quotidiano das opções.
É ainda Etty (ou seja, Ester) a guiar-nos e a sugerir-nos uma oração que nos ajuda a viver a fragmentariedade e a exterioridade do dia, iluminando-a e valorizando-a. Escrevia ela naquele “Diário”:
«Ajoelho-me no áspero tapete de coco, com as mãos que cobrem o rosto, e rezo: Senhor, faz-me viver de um único grande sentimento. Faz que eu cumpra amorosamente as mil pequenas ações de cada dia, e em conjunto reconduza todas estas pequenas ações a um único centro, a um profundo sentimento de disponibilidade e de amor».
Esta é, precisamente, a «única coisa de que há necessidade», como dizia Jesus a Marta: encontrar, através da oração, o nó de amor que reúna todas as «pequenas ações».
"Lamentar é algo que nos empobrece e nos faz lembrar vivamente de nossa pequenez. Mas é precisamente aqui, no meio da dor, da pobreza ou da fraqueza que o Dançarino nos convida a levantar e a dar os primeiros passos.
É dentro do nosso sofrimento, e nunca fora dele, que Jesus entra em nossa tristeza, toma-nos pela mão, puxa-nos gentilmente, fazendo-nos ficar de pé e nos convida a dançar.
E descobrimos o caminho da oração, como o salmista: "Converteste o meu pranto em dança" (Sl 30,11) porque, no âmago da nossa tristeza, encontramos a graça de Deus.
E, enquanto dançamos, percebemos que não precisamos ficar confinados ao diminuto espaço da nossa tristeza, mas podemos sair dali. Paramos de centralizar nossa vida em nós mesmos. Chamamos os outros para dançarem conosco a dança maior. Aprendemos a dar espaço a outros, e principalmente ao "Outro Gracioso' que está no nosso meio. E quando nos fazemos presentes para Deus e seu povo, nossa vida é ainda mais enriquecida.
Constatamos que o mundo é nossa pista de dança: nosso passo torna-se mais leve e ligeiro, porque Deus está chamando outros a dançarem também."
Henri Nouwen,
In: 'Transforma meu pranto em dança'.
Passou o primeiro turno das eleições, mas não a perplexidade. Esta, ao contrário, aumentou. Por quê? Primeiro, por causa da onda avassaladora que emergiu das urnas, transformando radicalmente a configuração política do Brasil em sua quase totalidade. Em seguida, pela percepção de um novo elemento que despontou como protagonista nos resultados dessas eleições: a religião.
Os resultados desse primeiro turno trouxeram surpresa após surpresa. Vários candidatos que as pesquisas davam como favoritos em diferentes estados não apenas não ganharam sequer direito a um segundo turno, como ficaram em último lugar na votação.
Partidos até então líderes no cenário político brasileiro encolheram sua presença nos governos estaduais, na Câmara dos Deputados e no Senado.
Outros até então pequenos e com parca representação cresceram exponencialmente. E a corrida presidencial, embora confirmando as previsões das pesquisas, superou-as consideravelmente.
Enquanto tentamos nos recuperar das surpresas, outro dado novo nos atropela: o protagonismo que a religião passou a ter nas campanhas de tantos candidatos, especialmente em boa parte dos vitoriosos.
O discurso sobre Deus, a compreensão da própria candidatura como vocação dada por Deus, a Bíblia utilizada como epígrafe de entrevistas transmitidas pela mídia se fazem sempre mais presentes na propaganda eleitoral e nos debates entre os candidatos.
Não se trata, porém, do discurso cristão que nos acostumamos a ouvir, característico das Igrejas históricas, católica ou protestante.
A ênfase é na afirmação da supremacia gloriosa de Deus sobre tudo e todos e a conexão disto com o patriotismo exacerbado: a pátria acima de tudo. Os versículos bíblicos – às vezes não citados corretamente – são isolados de seu contexto. E apoiam as afirmações do candidato e não o contrário.
Se Deus está acima de todos, não parece estar acima daqueles que o citam a torto e a direito, em perigosa proximidade com o segundo mandamento que manda “não tomar seu Santo nome em vão”.
Servem tais citações como respaldo e legitimação ao que os candidatos em questão querem propor ao público como ideias a assimilar e projetos aos quais aderir.
É a Bíblia a serviço do discurso eleitoral e não o contrário. É a Palavra de Deus utilizada como apoio para afirmações e declarações que andam distantes daquilo que as Escrituras apresentam como sendo o permanente diálogo de amor e vida em plenitude do Deus da Aliança e da Promessa com seu povo.
Nessas declarações encontram-se incitações à violência e promessas de armar a população e militarizar as escolas. Ouvem-se afirmações discriminatórias em relação a vários segmentos da população: merecem destaque os negros, as mulheres e os LGBT.
Fala-se com desprezo dos direitos humanos e das conquistas duramente conseguidas pela humanidade e concretamente pelos brasileiros ao longo de décadas. Direitos laborais, políticos e sociais são definidos como males a extirpar.
Percebe-se, portanto, uma explicitação da fé cristã descolada dos valores que os candidatos em questão pretendem defender: a família, a moral, a segurança.
Enquanto no Evangelho de Jesus Cristo o que se lê é a apologia do acolhimento ao outro, do perdão, da não violência, da inclusão de todos, os discursos políticos dessas eleições em nosso país vêm carregados de agressividade, eu diria até mesmo de morbosidade.
A ligação constitutiva do cristianismo entre a fé e o compromisso transformador com a justiça passa longe das eleições brasileiras. O que se vê é o louvor como fim em si mesmo, a afirmação da fé em Deus apoiando e legitimando propostas excludentes, agressivas e discriminatórias.
E, pior que tudo, a banalização da violência e da morte como preço necessário a pagar para trazer segurança a um povo cansado de ver a própria vida e de sua família permanentemente em risco.
Essa combinação explosiva de patriotismo ultramontano e religiosidade fundamentalista infelizmente não é nova. Já foi vista em outras situações e mais ou menos recentemente na Europa do final dos anos 30, inicio dos 40. O espaço onde aconteceu foram os países cristãos.
Ali também Deus foi convocado para justificar um novo regime que parecia empoderar países em crise. Os resultados são bem conhecidos. A humanidade amargou o maior genocídio de todos os tempos, pelo qual até hoje paga as consequências.
Ninguém acreditava que líderes que se diziam tementes a Deus pudessem realizar suas enlouquecidas propostas. Tiveram que pagar para ver.
E viram quando já era tarde. Às vésperas do segundo turno, acompanhamos com angústia o rumo que toma nosso país. Que nos ajude a esperança, virtude indispensável que a fé no verdadeiro Deus nos ajuda a não perder.
Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de de “Mística e Testemunho em Koinonia”(Editora Paulus), sua mais recente obra, entre outros livros.
A santidade pode ser tão chocante quanto um insulto. Pense-se em Simone Weil. Se tivesse vivido num mosteiro, se tivesse decidido fixar a sua existência no circunscrito silêncio de um claustro, qualquer que fosse, provavelmente o seu testemunho não pareceria tão incatalogável e escandaloso como se está a revelar cada vez mais.
Olhamos para esta jovem de origem burguesa vestida de operária ou de brigadista da guerra espanhola, para esta originalíssima intelectual pronta a trocar a academia por uma experiência na fábrica, para esta mística que militava no sindicalismo ou para esta sindicalista que militava na mística (ela torna, com efeito, totalmente irrelevante a ordem dos factores) e não sabemos bem o que pensar. É mais fácil etiquetar pertenças a uma ou a outra parte da barricada.
Todavia, Simone viveu como uma pessoa sem morada fixa do pensamento, aproximando-se e tomando as distâncias, irredutível na procura da verdade que, segundo ela, é a grande razão para permanecer vivo. Não se assemelha a ninguém não se deixa aprisionar em nenhuma corrente ou corporação. Semelhante e radical individualidade tanto nos perturba quanto nos ilumina.
Simone Weil irrompe numa das décadas mais devastadoras do século passado, munida unicamente da sua inteligência e de uma terrível autenticidade. Tinha escolhido para si duas disposições de espírito às quais procurou ser fiel com uma ardente, criativa e uma inusual intransigência: primeiro, sentia que devia adequar cada detalhe da vida à sua maneira de pensar, mostrando-se indisponível a concessões ao pragmatismo ou ao cinismo encarados como inevitáveis; segundo, sabia que o exercício do seu pensamento (leia-se: o exercício de si mesma) a colocava diante de uma representação da realidade da qual queria incondicionalmente abraçar as consequências, hipotecando tudo.
Viveu literalmente assim e foi isto que fez dela uma anomalia, uma espécie de blasfêmia, um escândalo que a contemporaneidade não consegue atenuar. Albert Camus, que promoveu a edição dos seus escritos na Gallimard, e que publicamente se lamentava de não a ter conhecido, dizia que Simone era «o único grande espírito do nosso tempo». Mas dizia-o não como se ergue uma estátua, mas como quem coloca uma pergunta.
Na autobiografia espiritual que Simone Weil construiu página após página, mesmo quando parecia ocupar-se unicamente de um problema impenetrável de álgebra ou de filologia, emerge um conceito central: o de desventura. É este, segundo ela, o mais humano e o mais divino dos enigmas que podemos viver. Como escreveu, a desventura é algo completamente diferente do sofrimento. Ela tome posse da alma e marca-a a fogo com um ferro incandescente que detém em exclusivo. A desventura torna Deus momentaneamente ausente, mas «mais ausente do que um morto, mais ausente do que a luz num subterrâneo completamente escuro».
Nessas horas a alma é sacudida pelo horror: o medo que a ausência de Deus se torne definitiva. É como se qualquer realidade digna de ser amada deixasse de existir. É a hora da grande prova. Mas é preciso que a alma continue a amar ou, pelo menos, que continue a querer amar na solidão, na incerteza e no vazio, bem sabendo que tal movimento implica a sua própria destruição. Só assim, porém, haverá um dia em que inexplicavelmente Deus vem.
Simone chamava a experiência da desventura «uma maravilha da técnica divina». Para ela trata-se do único modo de aceder não só à fé, mas também ao amor e à beleza. O conhecimento que então se produz em nós é um milagre bem maior do que não caminhar sobre as águas.
José Tolentino MendonçaDesde o primeiro momento em que vi o seu rosto, há mais de 30 anos, percebi que Charles de Foucauld haveria de ter, de uma maneira ou de outra, grande importância para mim. Todos desejamos deixar, com o nosso pensamento e a nossa ação, uma marca neste mundo: criamos famílias, escrevemos livros, fundamos instituições... Poucos, os imprescindíveis, deixam a marca da sua passagem sobre a Terra graças à sua contemplação e à sua paixão. Charles de Foucauld foi sem dúvida um deles. Mais do que fazer, e no entanto fez muito, deixou-se fazer; mais que pensar, e pensou muitíssimo, esvaziou-se a si próprio ao ponto de não ser senão pura recetividade.
O seu rosto, terno e vigoroso ao memo tempo, vincado pelo rigor e da indulgência, é seguramente um espelho fiel da sua alma. Foucauld fez da sua vida uma obra de arte, ou seja, um testemunho eloquente da gratuidade. Por isso eu, ao tempo com 20 anos, não soube ficar indiferente a um olhar como o seu, revelador de tanta plenitude. Não que hoje eu tenha penetrado o segredo da graça que modelava os seus traços, mas posso falar e descrevê-los com maior conhecimento de causa. O rosto deste eremita e missionário reflete a alegria e a gratidão que são os sinais inconfundíveis do verdadeiro amor.
Para mim Foucauld é um padre do deserto contemporâneo; quero dizer que a sua vida e a sua obra, que certamente atingem a espiritualidade de figuras da estatura de Agostinho, Bento, Francisco e Inácio, remetem para as dos célebres padres que povoaram copiosamente os desertos da Síria e do Egito nos primeiros séculos do cristianismo.
Para compreender Foucauld na sua dimensão autêntica é preciso juntá-lo a Dionísio o Areopagita e a Efrém o Sírio, a Isaías Anacoreta ou a Gregório de Nazianzo, para referir alguns nomes. A fonte de onde beberam aqueles padres do deserto e que depois deu vida ao movimento hesicasta é a mesma da qual bebe o irmão Carlos, cuja missão - esta é a minha tese - não foi a de fundar algo de radicalmente novo, mas de reinaugurar para o Ocidente uma via contemplativa que no Oriente cristão não tinha conhecido solução de continuidade, em particular na república monástica do Monte Athos. Na minha visão, Foucauld recebe o colossal encargo de recuperar aquela milenária tradição de sabedoria e de a atualizar. É por isso que a sua obra, sempre do meu ponto de vista, está ainda no estádio inicial. No atual século e nos vindouros dar-nos-emos conta muito melhor da relevância da sua figura e do alcance da sua missão.
Para ilustrar a minha tese tomo sete palavras que, a meu ver, refletem mais integralmente o contributo daquele que chamamos "irmão universal": procura, consciência, deserto, adoração, nome, coração e fracasso. Com elas pretendo não só dar conta das categorias fundamentais que orientaram o nosso personagem, mas também indicar as razões da sua atualidade.
Procura
Um olhar superficial pela biografia de Foucauld (a meta das suas viagens, os hábitos e os uniformes que vestiu, as pessoas de quem se rodeava, as casas que habitou...) é suficiente para constatar que a vida deste homem foi realmente insólita. Foucauld não se assemelha a ninguém. A sua vida foi um contínuo peregrinar. Dizia de si, na segunda das diversas épocas, que queria ser monge ou eremita; o que é certo é que viajou muitíssimo, que se estabeleceu em lugares diferentes, que foi um peregrino estrutural. Tais mudanças de horizontes, geográficos mas sobretudo existenciais, as metamorfoses constantes que o levaram a ser hoje explorador travestido de judeu e amanhã autor de um dicionário tuaregue, hoje soldado do exército francês e amanhã jardineiro de alguns monges em Nazaré, realçam o seu constante estar à procura. Foucauld não cessou de responder ao chamamento do seu eu profundo, onde fosse que Deus o chamasse.
Foucauld, como Gandhi ou Simone Weil a outros níveis, fez da própria vida uma autêntica e contínua experimentação. Encontramos a razão nas palavras seguintes.
Consciência
Um olhar mesmo superficial aos escritos de Charles de Foucauld, sobretudo diários espirituais e cartas, faz-nos compreender como ele atravessou a vida escrutinando a própria consciência, entrando nas motivações dos próprios atos, revendo as intenções, examinando minuciosamente o mínimo detalhe, como tinha aprendido de Santo Inácio, projetando sonhos com os quais dar corpo a uma intuição, observando-se no espelho de Jesus Cristo, o seu Bem-amado, estudando o que seria mais aconselhável e oportuno, censurando-se as falhas, agradecendo os dons recebidos, louvando por tanto bem e bondade, programando o impossível... Foucauld, que na juventude foi soldado, não cessou de o ser plenamente na maturidade. Não era apenas um enamorado, é inútil dizê-lo, mas também um estratega, alguém que projeta o próprio dar-se: que reforça os lados mais fracos, que traça planos para dar fecundidade ao seu ingovernável amor. Foucauld percorre um grande número de dias e de horas na mais rigorosa solidão e no mais estrito silêncio. É neste terreno de cultura que aprendeu a escutar. O aspeto mais surpreendente da sua personalidade é que não escutou simplesmente a si próprio e, por esta via, Deus e os outros, mas que obedecia às vozes que escutava e, ainda mais, que fez de tal escuta e obediência um estilo de vida: sempre a escutar e a obedecer, sempre dentro da aventura de ser si mesmo. Reconhecendo sempre que era ele a melhor palavra, melhor, a única, que Deus lhe tinha concedido.
Deserto
Foi este o cenário privilegiado da escuta permanente, uma escuta quase assustadora, de Charles de Foucauld. E não por acaso. Foucauld converte-se na África do Norte, surpreendido pela extraordinária religiosidade dos muçulmanos. Entende o deserto em primeiro lugar em chave metafórica, por isso experimentou ser monge inicialmente na região de Ardèche, em França, depois em Akbés, na Síria, portanto na Terra Santa; mas não tardou a regressar ao deserto do Sara, o da sua juventude, o seu amado Marrocos e a sua desejada Argélia. O destino e a Providência marcaram-lhe lá encontro. Os fenomenólogos e os historiadores das religiões realçaram como o Médio Oriente foi o principal berço das religiões. Não penso apenas nas tradições monoteístas - judaísmo, cristianismo e islão - que claramente lá têm o seu tronco, mas também nos fenícios, babilónicos, egípcios... Para aquelas terras também se dirigiu o nosso Foucauld, talvez porque poucas regiões da Terra como essa, na sua desolação, sabem evocar o mundo interior e a ele o remeter com tanta força. O vazio externo, portanto, como incitamento àquela obra de esvaziamento que no cristianismo chamamos esquecimento de si ou pobreza espiritual. O deserto como lugar da vitória sobre a provação ou, que é o mesmo, como descoberta da sarça ardente ou chama de amor viva a que se acede para além da noite escura do abandono e da solidão.
Foucauld voltou ao deserto como fez Israel ao sair do Egito ou como fez o próprio Jesus Cristo pouco antes de dar início ao seu ministério público. Por isso Foucauld é, para mim, um novo Moisés, mas sem povo, ou com um povo invisível. Ou um novo e amoroso Jonas que prega na sua Nínive. Foucauld é um pró-memória permanente de como não há caminho espiritual sem deserto e purificação.
Adoração
No meio do deserto, espelho da sua consciência e território das suas procuras, Foucauld adorava. É uma palavra que hoje nos soa estranha, mas adoração significa, simplesmente e linearmente, que o homem não se realiza sobre a via do ego, mas quando sai do próprio micromundo e vence essa tendência tão nefasta e generalizada que é a posse e a autoafirmação. Adorar quer dizer apenas parar de viver a partir do pequeno eu para ceder o passo ao eu profundo, onde habita o hóspede divino. A adoração, ou oração contemplativa, é a única medicina para a idolatria do eu. «Ao Senhor, teu Deus, adorarás: só a Ele prestarás culto» é a resposta de Jesus à última tentação com que o diabo o prova. Hoje poderemos traduzir: tu não és o centro do mundo, sai de ti mesmo. E é quanto Foucauld fazia dia e noite, durante horas e horas sem interrupção, de joelhos diante do seu pequeno tabernáculo, cheio ou vazio. Foucauld corre o risco da solidão e da diversidade como poucos outros homens e mulheres do nosso tempo. O risco de se perder definitivamente.
Como poucos atravessou o muro de silêncio que lhe pôs diante de si a sua miséria e que, depois de anos de luta, o conduz a uma doce, íntima certeza. Quer o saibamos ou não, todos aqueles que estão á procura têm - temos - em Charles de Foucauld um mestre insigne. Amou muito porque calou muito. Hoje nós falamos dele porque se esvaziou de si.
Nome
Esta adoração, esta nudez absoluta cada vez mais radical, esta peregrinação ao próprio centro em que se encontra o templo da verdade, Foucauld levou-a ao termo, à maneira dos padres do deserto um milénio e meio antes, como uma arma tão simples quanto eficaz: o doce nome de Jesus. Poucos homens na história como Foucauld deixaram um testemunho escrito tão eloquente do seu apaixonado amor por Jesus de Nazaré. Ao abrir qualquer um dos seus diários e qualquer uma das suas páginas encontrar-se-á sempre, sempre, expressões incendiadas por um ardor quase insuportável: «Amo-te, adoro-te, quero dar-te tudo, quanto me amas, quanto te amo, dou-te graças, entrego-me nas tuas mãos, faz de mim o que quiseres, louvo-te, meu Bem-amado...». O nome de Jesus acompanhou-o, como um incessante mantra, durante quase todos os minutos da sua vida. Foucauld era um louco de amor, um apaixonado deste nome. Alguém que deixou que o nome, e a pessoa que ele evoca, o possuíssem.
Isto significa que a solidão na qual Foucauld viveu, por quão dura pudesse às vezes ser, era uma solidão acompanhada. E que o seu silêncio era sonora, por quão doloroso pudesse, muitas vezes, ser para ele. Uma só palavra explica a incrível vida de Charles de Foucauld: Jesus.
Coração
O nome de Jesus, incessantemente repetido, invocado, sonhado, escrito em centenas de milhares de páginas, radicou-se progressivamente na sua consciência e no seu coração, finalmente unidos naquilo que poderemos chamar o coração consciente, e que eram o lugar no qual tal Presença residia. A certo ponto da sua vida, esmagado por tanto amor, Foucauld cozeu um coração vermelho no seu hábito branco, dando uma clara prova de como aquele coração o tinha atado. Foucauld foi certamente um sentimental, mas no interior de uma personalidade poliédrica de incomparável riqueza. Ainda que a sua fosse uma vocação à oração contemplativa e silenciosa, nunca abandonou a oração afetiva, alimentada por palavras e imagens que a mantiam acesa.
Praticou aquela que os hesicastas chamam a custódia do coração: sentir a vida, oculta e frágil, em cada palpitação; sentir a Vida com maiúscula nesta nossa vida, tão limitada e intensa, tão humana e tão divina.
Fracasso
No termo da vida, pouco antes de ser assassinado, Foucauld encontrou-se - serviram-lhe décadas inteiras para chegar a isto - com as mãos felizmente vazias. Poder-se-ia dizer que ao longo da sua existência recolheu um fracasso após o outro: último da sua classe no exército, no qual esteve várias vezes para ser expulso por causa dos seus escândalos e indisciplina. Fracasso também como patriota e fez abortar a sua vocação de explorador, atirando às urtigas uma brilhante carreira profissional. Monge fracassado na trapa de Cheikhlé. Resultou também em nada o seu quimérico de adquirir o Monte das Bem-aventuranças para aí se estabelecer como eremita. Inútil também como simples ajudante ou doméstico. Nem uma só conversão em tantos anos de apostolado.
Nem sequer um seguidor depois de ter redigido tantos esboços de Regra para os eremitas que projetava. Ignorado pela administração civil como pela eclesiástica, não teve junto a si nem um escravo libertado nem um companheiro para a sua missão... Foucauld é um dos mais conseguidos ícones do fracasso. Porque preferiu os últimos lugares aos primeiros, a vida oculta à pública, a humilhação à elevação.
Por tudo isto, Foucauld é a imagem em que podem reconhecer-se todos os fracassados da história. E por tudo isto vejo as pessoas do mundo caminharem muitas vezes para uma direção e Foucauld na oposta. Não é, todavia, o único; há outros com ele, todos solitários, todos loucos. E o primeiro desta fila é o próprio Jesus Cristo, o mais louco de todos.
Termino este léxico de Foucauld com uma nota pessoal. Em maio de 2014 fundei na minha cidade a associação "Amigos do Deserto", uma rede de meditação, com crentes e não crentes, interessados no aprofundamento e na difusão da experiência do silêncio a partir da tradição espiritual do hesicasmo. Desde então quase um milhar de pessoas foram iniciadas, em diversos pontos da geografia espanhola e europeia, à oração do coração. E todos, numa ocasião ou noutra, muitos diariamente, recitamos as palavras que Foucauld, verdadeiro fundador destes Amigos do Deserto, deixou escritas como testamento: «Pai meu, eu me abandono a ti. Faz de mim aquilo que quiseres. O que quer que faças de mim, eu te agradeço. Estou pronto para tudo, aceito tudo, desde que a tua vontade se cumpra em mim e em todas as tuas criaturas. Não desejo nada mais, meu Deus. Entrego a minha alma nas tuas mãos, dou-ta, meu Deus, como todo o amor do meu coração, porque te amo. E é para mim uma exigência de amor o dar-me, o entregar-me nas tuas mãos sem medida, com uma confiança infinita, porque tu és o Pai meu». Quanto escuto esta oração, às vezes proclamada em uníssono por centenas de Amigos do Deserto, sinto subir em mim uma profunda ação de graças e compreendo, como nunca, que não basta uma vida para ver os frutos de uma sementeira.
Pablo d'Ors
In "L'Osservatore Romano", 19.9.2016
Marie-André, no esboço biográfico de Charles de Foucauld, escreveu: «Entre as grandes figuras atuais, poucas são tão brilhantes quanto o Padre de Foucauld. Nada mais admirável, com efeito, do que ver um mundano, desocupado, libertino, transformar-se quase subitamente em asceta, em penitente, em contemplativo, em apóstolo. A mudança desse homem provaria, se necessário, o poder da graça divina, quando unida à vontade humana».
O visconde Charles de Foucauld nasceu em Estrasburgo no dia 15 de setembro de 1858. Ficou órfão desde os seis anos, passando a viver com o avô, o coronel Morlet, que se encarregou da educação do menino. No ano de 1870, o militar mudou-se para Nancy, onde matriculou o neto no liceu. Recebeu a primeira comunhão aos 14 anos.
O avô deixava o jovem Charles fazer vingar os seus muitos caprichos, e este, na companhia de outros amigos rebeldes, depressa abandonou a fé e a prática religiosa. Após terminar o liceu, manifestou o desejo de se tornar oficial. Assim, frequentou a Escola Sainte-Geneviève, onde foi tudo menos bom estudante. Passou a maior parte do tempo em festas e a gastar a fortuna que possuía. Frequentou ainda a Escola Militar de Saint-Cyr. O seu avô, por prudência, colocou Charles sob a tutela judiciária, de forma a conter os seus excessos.
Na Escola de Cavalaria de Saumur foi detido, mas fugiu, tendo sido encontrado pela polícia dois dias depois. Já alferes em Pont-à-Mousson, no 4.º Regimento de Hussardos, transferiu-se com o restante regimento para África, mas devido aos seus desregramentos, os chefes pediram-lhe que requeresse baixa. Assim, deixou África e voltou a França, onde a sua vida libertina continuou.
No ano de 1881 estalou uma revolta no sul de Orã, e o Regimento de Hussardos segue para lá. Embora tivesse abandonado a companhia militar anos antes, Charles escreveu para o Ministro da Guerra, pedindo para ser reintegrado, mesmo que perdesse o posto de oficial e fosse enviado para o continente africano. O desejo concretizou-se. Partiu para África, onde a sua vida começou a mudar. Teve o seu primeiro contacto com indígenas muçulmanos, o que suscitou o desejo de conhecer melhor o Islão. Terminada a revolta no sul de Orã, resolveu explorar Marrocos.
Charles preparou bem a expedição, que durou um ano, muito tendo visto e aprendido. Um dia foi assaltado, ficando sem nada. Aqueles que o atacaram e prenderam discutiram entre si se o deixariam viver. A Providência quis que vivesse. Retornou a França, onde redigiu as notas da viagem, que resultaram no livro «Reconhecimento de Marrocos», obra premiada pela Academia Francesa.
Não ficou muito tempo em França, antes partiu novamente em direção a África, para nova campanha, agora para a Argélia, regressando novamente a Paris.
Já na primeira expedição ficara fascinado com as manifestações religiosas de judeus e muçulmanos, tendo daí nascido o desejo de aprofundar a sua própria religião. Lê, investiga e observa o cristianismo. Um encontro com o padre Huvelin, vigário de Paris, será decisivo, pois vê no sacerdote um cristão santo e um amigo com quem abrirá o seu coração. Num dia de outubro de 1886, Foucauld entrou na igreja de Santo Agostinho e abeirou-se do confessionário do padre Huvelin. Pediu que lhe desse a conhecer a fé católica, pois, como afirmara, procurava a verdade e não a encontrava.
Confessou-se e recebeu a Eucaristia. Tinha 28 anos. Tudo começou a mudar na sua vida. Sentia-se chamado a um ideal. Participava na missa todas as manhãs, lia o Evangelho e recebia catequese do padre Huvelin. Em 1888 viajou para a Terra Santa, seguindo os passos de Cristo. Finda a peregrinação, regressou a França com o desejo de se consagrar a Deus. Apresentou-se aos Trapistas de Nossa Senhora das Neves, no Ardèche, como postulante. Todavia, Charles deseja mais, e com autorização dos superiores deixa a comunidade e parte para o Mosteiro de Akbès, na Síria.
Ainda assim, continua a pensar que é pouco. Deseja voltar à Palestina e ser eremita. Foi convocado pelo Superior Geral a Staueli e depois enviado para Roma, onde estudou Teologia. Depois de libertado dos seus votos, foi autorizado a viver na Palestina, partindo para Nazaré, onde trabalhou na casa das Clarissas. Vivia numa pequena cabana, onde havia uma esteira, um banco e uma mesa.
Decide ir a Jerusalém, percorrendo 150 km a pé. A superiora do convento das Clarissas, que o acolhe, convence o eremita de que deveria ser sacerdote, algo que Charles considerava não ser de todo digno. Influenciado pelos argumentos da religiosa, consultou o padre Huvelin, que se mostrou de acordo. Deixou então a Palestina e voltou ao Mosteiro de Nossa Senhora das Neves com vista à preparação para receber o sacramento da Ordem. Foi ordenado sacerdote a 9 de junho de 1901.
Após a ordenação partiu para África, pois desejava viver no centro de Marrocos. Dado que a penetração no território era difícil, instalou-se no Saara, junto à fronteira com aquele país, e não muito longe do oásis de Béni-Abbès, na Argélia. Pediu autorização ao prefeito apostólico do Saara para se instalar na região onde se encontravam os Padres Brancos. O responsável, também chefe da missão, concordou, bem como o Governador-Geral da Argélia, e Charles partiu para Béni-Abbès, também chamada Pérola do Saara ou Oásis Branco, onde anos antes havia estado.
Depressa teve contacto com a população local, pois a notícia da sua chegada passou de casa em casa, e não tardou que fosse visitado pelos habitantes. A sua reputação de homem de Deus e de caridoso depressa se espalhou, pois assistia as crianças e os idosos, com quem ninguém se preocupava. A todos acolhia. Construiu um asilo para os mais necessitados, conservando-os perto de si. Comprava escravos, crianças e adolescentes, e libertava-os. Desses novos libertos, Foucauld pediu a um, ao qual deu o nome de Paulo, para que ficasse junto dele e o ajudasse nas necessidades materiais.
Apesar das muitas tarefas, Charles de Foucauld reservava sempre tempo para a oração e intimidade com Deus. No ano de 1904 foi convidado por Laperrine, supremo comandante dos oásis saarianos, para as suas chamadas “viagens de catequese” por Ahnet, Adrar e Hoggar. Feliz com a oportunidade que se lhe abria de estar com os tuaregues, não hesitou e partiu por cinco meses. O líder tuaregue, Mussa ag Amastane, pediu ao padre Foucauld que ficasse com eles, mas Laperrine achava a ideia prematura. Charles não ficou, e regressou para Béni-Abbès, após um período de descanso em Gardaia, junto dos Padres Brancos.
Este fora o primeiro contacto com Hoggar, mas não seria o último. No ano de 1906, Laperrine convidou Foucauld para nova expedição, que duraria um pouco mais do que a anterior. Charles hesitou, mas por conselho do seu superior aceitou e partiu para Tamanrasset, Hoggar, onde celebrou a primeira missa. Aí, com a irmã de Mussa, aprendeu a língua tamacheque e com ela 1200 canções do deserto. Em agosto de 1914 começou a I Grande Guerra, da qual o padre Foucauld apenas tomou conhecimento em setembro.
O conflito também chegou a Tamanrasset, perto da casa de Foucauld. A autoridade militar mandou construir, por conselho de Charles, uma espécie de forte para a defesa dos habitantes. Os soldados instalaram-se e o padre Foucauld foi viver com eles. A cada ameaça, os tuaregues fugiam para a fortificação, regressando depois às suas tendas.
No dia 1 de dezembro de 1916, primeira sexta-feira do mês, à tarde, o forte encontrava-se momentaneamente sem soldados. El Madani, senussita, seita tuaregue, aproximou-se da fortificação e pediu para entrar, sob o falso pretexto de trazer cartas de França para o padre Foucauld; quando este entreabriu a porta foi apanhado e levado para fora.
Ataram-lhe os pés e as mãos e colocaram uma sentinela junto dele. Outro rebelde senussita foi buscar Paulo e colocou-o junto do padre Foucauld. Era quase noite quando chegaram dois homens em camelos, vindos do forte Motylinski. Soam tiros. A sentinela, pensando que vêem libertar o padre Foucauld, de imediato pega na arma e com um disparo feriu de morte o “Irmão Universal”, como era conhecido.
Charles de Foucauld foi beatificado a 13 de novembro de 2005 pelo papa Bento XVI, precisamente dez anos antes dos atentados que causaram dezenas de mortos em Paris. O seu túmulo encontra-se El Menia, Argélia.
Pelo menos duas dezenas de institutos e fraternidades de religiosos, padres e leigos, criados, na maior parte dos casos, após a sua morte e interpretando, cada qual segundo a sua sensibilidade, a herança de Charles de Foucauld, continuam a manter viva a espiritualidade daquele que o teólogo Yves Congar um dia chamou de "farol místico" para o séc. XX, a par de Teresa de Lisieux.
Os apelos constantes do papa Francisco para uma Igreja que saia da sua zona de conforto e se dirija às periferias foram vividos antecipadamente por Charles de Foucauld e, no seu seguimento, pelas instituições que inspirou.
Oliveira Marques
Publicado em 20.09.2016 no SNPC
Em meio ao conjunto de contrassensos em que se transformou o cenário brasileiro às vésperas das eleições, o universo das mulheres atrai a atenção. São potencial eleitoral respeitável e inimigas a temer.
É fato que em muitos países a participação política feminina tem sido decisiva para mudar contextos, transformar mentalidades e, inclusive, obter vitórias importantes. Não seria demais lembrar o grande movimento das mães da Praça de Maio que, caminhando em círculos silenciosamente, todos os dias, com um pano branco sobre a cabeça, ajudaram a desestabilizar a cruel ditadura argentina.
Entre nós, neste momento, a atitude de alguns candidatos com mulheres tem sido particularmente eivada de machismo e preconceito. Algumas vezes têm chegado às raias do insulto. Como o candidato que disse a uma colega do Congresso que não a estupraria porque ela não o merecia. O (mesmo) candidato atalhou com particular impaciência e grosseria outras mulheres que o entrevistaram ou apartearam, ou dele discordaram. Igualmente foram feitos comentários em discursos ou entrevistas de que era muito normal e até mesmo desejável que a mulher ganhasse um salário menor do que o do homem.
Tudo isso provocou a indignação das mulheres que, em tempos de feminismo já para além da terceira onda e numa sociedade onde a questão do gênero é central, não admitem mais ouvir semelhantes barbaridades. Porém, o que mais tem provocado estupefação e indignação são as recentes declarações de um candidato a vice-presidente.
Declarou o candidato que famílias onde falta a presença masculina e paterna, e onde as crianças são criadas pelas mães e avós, produzem-se filhos e netos desajustados, que se tornam presa fácil para o tráfico e a criminalidade. Questionado posteriormente o candidato reafirmou suas declarações, desta vez acrescentando que sua intenção não era depreciar as mulheres, mas defendê-las, devido às duras condições em que são obrigadas a viver.
Parece-me muito positivo que o candidato se preocupe com a situação das mulheres que não recebem do Estado creches e condições adequadas para deixar seus filhos a fim de poderem trabalhar. Em sua análise, porém, falta um detalhe: a solidariedade dessas mulheres entre si. Ao partir para o trabalho, são ajudadas pelas vizinhas, amigas e conhecidas, que tomam conta de seus filhos pequenos.
Ao chegar em casa, as mulheres que trabalharam o dia inteiro resgatam seus filhos da casa onde se encontram, lhes dão de comer e à noite ainda participam de reuniões de comunidade, de igreja ou clubes de mães. Por sua vez, aquelas que se responsabilizaram pelas crianças durante a jornada de trabalho das mães continuarão prontas a ajudar sempre que necessário. E assim se forma a rede de solidariedade feminina, condição fundamental para que a sociedade – e em termos maiores, a humanidade – possa crescer e desenvolver-se sem estar condenada a uma extinção prematura.
Até o presente momento, caro candidato, os homens têm, sim, sido ativos na reprodução da espécie, mas não em sua conservação. Muitas vezes engravidam as mulheres e se vão, em busca de outras experiências, sobretudo mais novas. As mães permanecem. E criam os filhos, enfrentando todas as dificuldades, dispostas a defender as crias e tirar o pão da boca para alimentá-las.
Nessa tarefa têm sido muito ajudadas. Por quem? Pelos homens? Não exatamente. Por outras mulheres, mais velhas, que foram as que as criaram e jamais delas desistiram. É a cadeia imortal e milenar da maternidade, que se mantém ativa e dinâmica, gerando, nutrindo e protegendo a vida.
Perdi meu pai com nove anos de idade, fui criada por minha mãe e minha avó. Juntas formaram o marco de ternura e vigor que me constituiu como pessoa. Ambas foram meus exemplos e guias na vida. Embora sentindo, sim, muita falta de meu pai, não resultei desajustada e disfuncional.
A razão pela qual as famílias mais pobres hoje em dia perdem tantas vezes seus filhos para o tráfico não é o fato de terem mulheres como chefes e cabeças. E sim a pobreza e a injustiça em si mesmas. É um contexto opressor que não deixa saídas aos jovens, que não lhes apresenta oportunidades, que lhes rouba a esperança. Dentro desse quadro sombrio, muitas vezes o tráfico e a criminalidade conseguem lançar sua mão mortal sobre eles. Mas outras vezes não. E quando não conseguem, é quase sempre porque houve em suas origens uma mãe e uma avó para dar carinho, para estar presente, para dar vida ao preço da própria vida.
Não culpe, por favor, as mulheres pela violência que vitima cruel e maciçamente nossa juventude. Culpe as estruturas injustas que geram miséria e violência, e que a política teria a obrigação de ajudar a transformar. Nessa missão, sempre poderá contar com o concurso das mulheres. São elas as primeiras interessadas em construir um mundo mais humano para as novas gerações que gestaram em seus ventres.
Maria Clara Bingemer
Todos nós podemos reconhecer os perigos que o papa vê na cultura de hoje. No quarto capítulo da sua exortação apostólica "Gaudete et exsultate" (Alegrai-vos e exultai), sobre o chamamento à santidade, Francisco elenca «a ansiedade nervosa e violenta que nos dispersa e enfraquece; o negativismo e a tristeza; a acédia cômoda, consumista e egoísta; o individualismo e tantas formas de falsa espiritualidade sem encontro com Deus que reinam no mercado religioso atual».
Em resposta, o papa dá-nos as cinco grandes expressões de amor a Deus e ao próximo que considera de particular importância à luz dos perigos presentes na cultura de hoje.
Perseverança, paciência e mansidão
Em resposta a esses perigos, o papa diz que é preciso «permanecer centrado, firme em Deus que ama e sustenta». É isso que nos dá a força interior para perseverar, não apenas nos altos e baixos da vida, mas também em face das «agressões dos outros, as suas infidelidades e defeitos».
A força interior que vem de saber que Deus nos ama, «o testemunho de santidade, no nosso mundo acelerado, volúvel e agressivo, é feito de paciência e constância no bem».
Citando a carta de Paulo aos Romanos, ele exorta a não retribuir o mal pelo mal, a não buscar vingança e a não ser vencido pelo mal, mas sim a «vencer o mal com o bem».
Ele chega a repreender os meios de comunicação católicos ao sublinhar que mesmo dentro deles «é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia». E prossegue: «É impressionante como, às vezes, pretendendo defender outros mandamentos, se ignora completamente o oitavo, "não levantar falsos testemunhos", e destrói-se sem piedade a imagem alheia».
Por outro lado, «o santo não gasta as suas energias a lamentar-se dos erros alheios, é capaz de guardar silêncio sobre os defeitos dos seus irmãos e evita a violência verbal que destrói e maltrata, porque não se julga digno de ser duro com os outros, mas considera-os superiores a si próprio».
Só através da humildade se alcança a santidade: «Se não fores capaz de suportar e oferecer a Deus algumas humilhações, não és humilde nem estás no caminho da santidade». Neste sentido, «a humilhação faz-te semelhante a Jesus, é parte ineludível da imitação de Jesus».
Francisco elogia aqueles que, diante das «humilhações diárias», se «calam para salvar a sua família, ou evitam falar bem de si mesmos e preferem louvar os outros em vez de se gloriar, escolhem as tarefas menos vistosas e às vezes até preferem suportar algo de injusto para o oferecer ao Senhor».
Ao mesmo tempo, «uma pessoa, precisamente porque está liberta do egocentrismo, pode ter a coragem de discutir amavelmente, reclamar justiça ou defender os fracos diante dos poderosos, mesmo que isso traga consequências negativas para a sua imagem».
Alegria e sentido de humor
Os santos são alegres e cheios de bom humor, segundo Francisco, não são tímidos, rabugentos, amargos ou melancólicos. Citando S. Tomás de Aquino, escreve ele, «do amor de caridade, segue-se necessariamente a alegria. Pois quem ama sempre se alegra na união com o amado. (...) Daí que a consequência da caridade seja a alegria». A alegria sobrenatural vem de saber que somos infinitamente amados.
Ele contrasta essa alegria espiritual com a falsa alegria oferecida pela cultura consumista de hoje. «O consumismo só atravanca o coração; pode proporcionar prazeres ocasionais e passageiros, mas não alegria.» A alegria vem de dar e amar. «Concentrando-nos sobretudo nas nossas próprias necessidades, condenamo-nos a viver com pouca alegria.»
A alegria cristã, argumenta Francisco, é normalmente «acompanhada pelo sentido do humor». De facto, «o mau humor não é um sinal de santidade».
Ousadia e ardor
A santidade requer ousadia e ardor, «impulso evangelizador que deixa uma marca neste mundo». Francisco observa que a compaixão de Jesus fez com saísse fortemente de si mesmo «a fim de anunciar, mandar em missão, enviar a curar e libertar». Francisco adverte contra estar paralisado «pelo medo e o calculismo».
Esse medo pode manifestar-se de várias maneiras: «Individualismo, espiritualismo, confinamento em mundos pequenos, dependência, instalação, repetição de esquemas preestabelecidos, dogmatismo, nostalgia, pessimismo, refúgio nas normas».
Francisco diz que há um caminho para sair desse medo: «Deus é sempre novidade, que nos impele a partir sem cessar e a mover-nos para ir mais além do conhecido, rumo às periferias e aos confins. Leva-nos aonde se encontra a humanidade mais ferida e aonde os seres humanos, sob a aparência da superficialidade e do conformismo, continuam à procura de resposta para a questão do sentido da vida».
«Deus não tem medo! Não tem medo! Ultrapassa sempre os nossos esquemas e não lhe metem medo as periferias. Ele próprio fez-se periferia.»
Na comunidade
Francisco não acredita em santos solitários. Em vez disso, «a santificação é um caminho comunitário, que se deve fazer dois a dois». Cada comunidade é chamada a criar um «espaço iluminado por Deus para experimentar a presença oculta do Senhor ressuscitado».
«Partilhar a Palavra e celebrar juntos a Eucaristia torna-nos mais irmãos e vai-nos transformando pouco a pouco em comunidade santa e missionária.»
A comunidade, diz ele, também é composta de pequenas coisas quotidianas. «A comunidade, que guarda os pequenos detalhes do amor e na qual os membros cuidam uns dos outros e formam um espaço aberto e evangelizador, é lugar da presença do Ressuscitado que a vai santificando segundo o projeto do Pai.»
Em oração constante
Finalmente, Francisco diz que «a santidade é feita de abertura habitual à transcendência, que se expressa na oração e na adoração», mas essa oração não se trata «necessariamente de longos períodos ou de sentimentos intensos». Ele cita Santa Teresa de Ávila, que disse que a oração é «uma relação íntima de amizade, permanecendo muitas vezes a sós com quem sabemos que nos ama». Esta oração «não é apenas para poucos privilegiados, mas para todos».
Pergunta-nos o papa: «Tens momentos em que te colocas na sua presença em silêncio, permaneces com Ele sem pressa, e te deixas olhar por Ele? Deixas que o seu fogo inflame o teu coração? Se não permites que Jesus alimente nele o calor do amor e da ternura, não terás fogo».
Francisco encoraja a leitura orante das Escrituras. Citando os bispos da Índia, assinala que «a devoção à Palavra de Deus não é apenas uma dentre muitas devoções, uma coisa bela mas facultativa. Pertence ao coração e à própria identidade da vida cristã».
«O encontro com Jesus nas Escrituras conduz-nos à Eucaristia», escreve ele. Na Eucaristia, «o único Absoluto recebe a maior adoração que se Lhe possa tributar neste mundo, porque é o próprio Cristo que se oferece. E, quando o recebemos na Comunhão, renovamos a nossa aliança com Ele e consentimos-lhe que realize cada vez mais a sua obra transformadora».
Paciência, alegria, ousadia, comunidade e oração: cinco expressões de amor que levam à verdadeira santidade.
Quando se trata de pensar aquilo que nutre a vida é tão importante fazermos o elogio da pequena história, não apenas da grande. Gosto muito da proposta que, um dia, encontrei num livro de história: "Não dar mais valor à queda de um império do que ao nascimento de uma criança, nem mais peso às ações de um rei do que a um suspiro de amor." Talvez um dia mereçamos uma história ensinada assim. Talvez um dia nos preocupemos definitivamente mais com a pessoa do que com a estrutura, com a singularidade mais do que com a afiliação. Talvez um dia uma palavra, um rosto ou um destino quaisquer, eleitos assim ao acaso, sirvam para revelar tudo: para nomear o entusiasmo e a dor, o vislumbre e o combate, a razão e o enigma que existir significou e significa. Porque a verdade é que passam os anos e o que resta deles? Vivências. Sim. Restam as marcas de que estivemos aqui, de que habitamos estações diferentes com a mesma mansidão ou o mesmo furor, de que tentamos sobreviver ao amor, ao desamparo e à morte com tudo o que tínhamos à mão, de que partilhamos, de que cremos e negamos coisas diferentes e até a mesma coisa, de que coexistimos nos nossos encontros e na nossa irredutível solidão. Restam de nós vestígios, monumentos de vário tipo, pegadas. Resta o pó e o silêncio dos ossos. Mas não só: de uma forma que não sabemos, o escasso lume que fomos perdura e serve a outros para continuar. Façamos o elogio da pequena história!
Nutrir-se de espanto
E façamo-lo, em contracorrente, nesta sociedade dominada pelo mito do controlo, onde uma ideia de vida substituiu-se à própria vida. A nossa viagem passou na nossa cultura para as mãos de um piloto, que só tem de aplicar, do modo mais maquinal que for capaz, as regras previamente estabelecidas. Os nossos sentidos adormeceram. Deixou de haver lugar para a surpresa. Vivemos condicionados por uma espécie de guião. Uma coisa, porém, tenho aprendido: é importante não condicionar o fluxo espantoso da vida e a capacidade que ela tem de nos surpreender. A nossa pequena vida é um instante em aberto. Somos chamados a cultivá-la com a paciente humildade que um jardineiro reserva ao seu jardim. O jardineiro trabalha de sol a sol, com todo o afinco, mas sabe que a rosa floresce sem ele saber como. Felizes aqueles que, em relação à vida, à pequena história se nutrem do espanto: esses, e só esses, sentirão o inacabado do tempo como uma promessa.
Como ensina Jung, “o importante não é ser perfeito, o importante é ser inteiro”. Os pequenos triunfos dão-nos fortaleza para olhar as grandes humilhações, e as dificuldades vividas dão-nos humildade para viver os triunfos. As experiências de liberdade dão-nos a capacidade e a esperança para suportar os momentos de penumbra; e os momentos em que nos sentimos aprisionados dão-nos a resistência, a força e até o sentido de humor para vivermos os tempos de liberdade. Há que afastar de nós a tentação do cinismo e aceitar, finalmente, que somos feitos destes materiais tão diversos e que tudo isso é dom, que tudo isso é o nosso nutrimento.
Estamos prontos a honrar a vida?
Olhemos para dentro de nós. Se nos escutarmos em profundidade sabemos que existem perguntas que estão desde sempre à nossa espera. Subtraí-las é subtrairmo-nos e faltarmos à chamada que a vida nos faz. Uma dessas perguntas prende-se com o desejo, e na forma mais incisiva e pessoal formula-se assim: "Qual é o meu desejo?" O meu desejo profundo, aquele que não depende de nenhuma posse ou necessidade, que não se refere a um objeto, mas ao próprio sentido. "Qual é o meu desejo?" O desejo que não coincide com as quotidianas estratégias do consumir, mas sim com o horizonte amplo do consumar, da realização de mim como pessoa única e irrepetível, da assunção do meu rosto, do meu corpo feito de exterioridade e interioridade (e ambas tão vitais), do meu silêncio, da minha linguagem. Como dizia Françoise Dolto, a nossa hora só chega "quando, como qualquer outro ser humano sentimos um desejo suficientemente forte para assumir todos os riscos do nosso próprio ser. Aí estaremos prontos a honrar a vida de que somos portadores".
O momento da aceitação de si
Olhemos para dentro de nós. A não sei quantas braças de profundidade situa-se uma dor nunca reparada, mas que condiciona toda a superfície. Identificar e cuidar dessa dor é a condição para sermos nós próprios e podermos entender também a dor que os outros transportam, tocando a nossa e a sua verdade. O momento da aceitação de si, com lacunas e vulnerabilidades, é uma etapa crítica, dilacerante até, mas abre-nos à transformação e fecundidade possíveis, abre-nos à enunciação do desejo. E, não o esqueçamos, quantas vezes a vulnerabilidade acolhida se torna a janela por onde entra a inesperada transparência da graça.
Somos crianças recém-nascidas
Uma das mais belas frases que conheço encontrei-a na Primeira Carta de Pedro. E é esta: “como crianças recém-nascidas, desejai” (1Pe 2,2). Somos, mesmo com dezenas, com centenas de anos em cima, mesmo quando passamos o meio da vida e todas as outras fronteiras, “crianças recém-nascidas”. E temos muito a aprender com a fragilidade dos recém-nascidos que, no fundo, ainda é a nossa. A fragilidade é parte integrante da vida, e não apenas como uma das suas formas ocasionais e possíveis. Ela deve ser reconhecida como sua estrutura fundante. A fragilidade é uma condição de partida, uma espécie de pacto de origem, se pensarmos no modo como fomos gerados e introduzidos na existência. Mas ela persiste, metamorfoseando-se ao mesmo tempo do que nós, acompanhando-nos. Há que compreendê-la não simplesmente como uma carência, uma incompletude que não nos larga até ao fim, uma dependência das múltiplas relações que nos tecem. A fragilidade permite-nos acolher a secreta e transparente melodia sem a qual não entenderíamos a vida na sua inteireza, permite-nos explorar o desenho delicadíssimo da sua paisagem interior, acariciar os seus fios ténues que, descobrimos depois, são longos e indivisíveis como fios de chuva. Quanta ciência existe naquele poema de Lao Tsé que diz: “quando os homens ingressam na vida são tenros e frágeis; quando morrem são hirtos e duros. Por isso os hirtos e duros são, desde o princípio, mensageiros da morte e os tenros e frágeis são os mais credíveis mensageiros da vida.”
A fragilidade como parábola
A maturidade ajuda-nos a reconhecer a fragilidade como parábola. Há palavras fortes e palavras frágeis. As fortes servem-nos de leme, atiram-nos para diante, esclarecem, ordenam, organizam, confirmam. Precisamos delas, claro. As palavras frágeis, porém, não são o contrário das fortes. São palavras de outra natureza, representam signos de outra gramática. E percebemos que elas são frágeis porque são frágeis certos cursos de água que atravessam os bosques; certas sequências de uma canção que se recitam quase em murmúrio não para apagar mas para intensificar o canto; certas etapas cambaleantes que servem ao bailarino ou ao viajante para um reencontro necessário com o próprio passo; certas hesitações sem as quais não faríamos a experiência da surpresa, do amor ou do espanto. Há emoções fortes e emoções frágeis. As emoções fortes tornam-se marcos da estrada que percorremos. Mas as emoções frágeis não são o seu inverso indiferente, mas o seu complemento. Da alegria que provamos podemos dizer: é uma estação breve. Da esperança podemos pensar: é uma sombra acesa que passa. Da mansidão, da ternura, da inocência, da gentileza, da amizade podemos temer: chegará o outono e também elas se desfarão. Que insensatez, porém. O que vemos todo o tempo é o sol fazer estremecer as folhas que nutre.
Se estamos dispostos a amar a vida
O mais importante não é, por isso, descobrir afinal se a vida é bela ou trágica, se, feitas as contas, ela não passa de uma paixão irrisória ou se a cada momento se revela uma empresa sublime. Certamente está-nos reservada a possibilidade de a tomar em cada um desses modos, só distantes e contraditórios na aparência. A mistura de verdade e sofrimento, de pura alegria e cansaço, de amor e solidão que no seu fundo misterioso a vida é, há de aparecer-nos nas suas diversas faces. Se as soubermos acolher, com a força interior que pudermos, essas representarão para nós o privilégio de outros tantos caminhos. Mas o mais importante nem é isso, aprendemos depois. Importante mesmo é saber, com uma daquelas certezas que brotam inegociáveis do fundo da própria alma, se estamos dispostos a amar a vida como esta se apresenta.
Há um trabalho a fazer
É necessário decidir, portanto, entre o amor ilusório à vida, que nos faz continuamente adiá-la, e o amor real, mesmo que ferido, com que a assumimos. Entre amar a vida hipoteticamente pelo que dela se espera ou amá-la incondicionalmente pelo que ela é, muitas vezes em completa impotência, em pura perda, em irresolúvel carência. Condicionar o júbilo pela vida a uma felicidade sonhada é já renunciar a ela, porque a vida é decepcionante (não temamos a palavra). Com aquela profunda lucidez espiritual que por vezes só os homens frívolos atingem, Bernard Shaw dizia que na existência há duas catástrofes: a primeira, quando não vemos os nossos desejos realizarem-se de forma alguma; a segunda, quando se realizam completamente. E com aquela ligeireza que só a grande profundidade permite, Santa Teresa de Ávila garantia que “mais lágrimas são derramadas pelas súplicas atendidas do que pelas não atendidas”. Há um trabalho a fazer para passar do apego narcisista a uma idealização da vida, à hospitalidade da vida como ela nos assoma, sem mentira e sem ilusão, o que requer de nós um amor muito mais rico e difícil. Esse que é, em grande medida, um trabalho de luto, um caminho de depuração, sem renunciar à complexidade da própria existência, mas aceitando que não se pode demonstrá-la inteiramente. A vida é o que permanece, apesar de tudo: a vida embaciada, minúscula, imprecisa e preciosa como nenhuma outra coisa.
A rosa é sem porquê
A sabedoria espiritual de que precisamos é a que nos faz viver a vida mesma, a existência não como trégua, mas como pacto, conhecido e aceito na sua fascinante e dolorosa totalidade. E quando é que chega a hora da felicidade? - perguntamo-nos. Chega nesses momentos de graça em que não esperamos nada. Como ensina o magnífico dito de Angelus Silesius, o místico alemão do século XVII: "A rosa é sem porquê, floresce por florescer/ Não se preocupa consigo, não pretende nada ser vista".
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