O tema não é novo. Arrisco-me a dizer que chega a ser um assunto já demasiado mastigado. Que me perdoem os leitores mais assíduos. No entanto, falar do mesmo não parece estar a ajudar-nos a sair dos velhos ciclos, dos círculos viciados, das rodas do hamster do costume. Conhecemos bem o tema, mas continuamos reféns. Não sabemos o dia de amanhã. E, para nos lembrar desta verdade estonteante, a vida vai-nos deixando post-its em forma de lembretes. A doença de alguém querido. Um acidente inesperado. Um imprevisto que muda a vida a alguém. O rumo das coisas que, subitamente, se torce e nos faz rebentar as cordas que nos prendem aos dias.
Seguimos pela vida como se fosse nossa para sempre. Como se não estivéssemos cá de passagem. Como se o mundo nos pertencesse para esta e para as próximas gerações.
Já vai sendo tempo de aceitar a cruel e fria verdade: estamos cá emprestados. Não somos daqui. Temos uma oportunidade incrível para nos fazer valer a pena. Para fazer que os dias dos outros valham a pena também. E, o que me parece é que estamos a desperdiçar-nos, a desperdiçar a oportunidade e a beber de um copo que já não tem água alguma.
Estamos aqui de passagem e ninguém sabe o dia de amanhã. Ninguém sabe se cá continua ou se foi hoje a última vez que se abraçou o filho. Se o aceno do costume se repetirá depois. Se o telefonema volta a trazer a nossa voz. Se o trabalho será o mesmo. Se os nossos estarão cá. Se a vida nos troca as voltas.
Enquanto a vida não nos troca as voltas e os dias, aprendamos a viver como deve ser. Como quem sabe que o tempo é curto. Que tudo passa demasiado depressa e que, quando menos esperarmos, podemos já não estar cá para ver a festa que a vida pode ser.
Marta Arrais
In: imissio.net 01.06.22
Imagem: pexels.com
Ao morrer meu amigo
algo de mim
que já era ele
se foi.
Algo de mim
ressuscitou nele.
Algo dele
que ainda sou eu
ficou.
Algo dele
espera em mim por ressurreição.
O tempo ao passar
parece devorar
todo o amor.
Mas quanto mais afasta
no passado minha recordação,
mais se aproxima
ao encontro sem distância
do futuro.
Ainda que em mim
cada dia tenha
sua poda, sua espera e sua colheita,
para ele
já toda a história se cumpriu
eu cheguei com ele,
e ali estou.
Obrigado, Senhor.
(Benjamin Gonzalez Buelta sj)
(homenagem do Centro Loyola ao querido amigo Pe. J. Konings SJ, que faleceu hoje, dia 21 de maio de 2022, aos 80 anos, vítima de um aneurisma. Pe. Konings coordenava há mais de 10 anos o Grupo Pe. Alberto Antoniazzi no Centro Loyola, que se reúne mensalmente para discutir temas atuais)
No meio dos dias difíceis e em que nos sentimos tão perdidos, o que nos salva? O que nos abrevia as fraquezas? As faltas de coragem? As tristezas e as dificuldades?
Salvam-nos os nossos. Os amigos de cada dia. As pessoas que dividem connosco as nossas angústias, mágoas, raivas de estimação.
Salvam-nos os nossos. A nossa família-raiz que nos sustenta mesmo quando não sabemos para que colo correr.
Salva-nos a oração. O colocar as mãos juntas e o rezar como quem está disponível para não compreender, não saber, não conseguir mais. O colocar no Céu as escuridões que nos diminuem a alegria.
Salva-nos o vento a bater na cara num dia quente.
Salva-nos o barulho do vinho a escorregar copo abaixo.
Salva-nos a espuma do mar a perseguir os nossos pés ainda demasiado brancos de sol e de verão.
Salva-nos o sorriso de quem nos abre a porta e nos deixa passar. De quem espera por nós. De quem prepara uma refeição a contar connosco.
Salva-nos saber que somos amados. Que somos diferentes de todos os outros e que é nessa diferença que nos encontramos a meio caminho. A meio da ponte.
Salva-nos saber que os dias maus também passam e que o sol brilhará, na mesma, indiferente às nossas amarguras.
Salva-nos a fé. O querermos ser vaso para que a paz se cultive, também, a partir de nós.
Salva-nos vivermos em comunidade. Em conjunto. Mesmo quando nos sentimos mais sozinhas.
Salvam-nos os refúgios em forma de gente. Ou os refúgios lugares. O mar. A serra. O verde. A casa dos nossos. O café do costume. O restaurante de sempre.
Salva-nos ter a certeza de que não vivemos (nem estaremos!) nunca sozinhos. Vamos acompanhados. O que vivemos é vivido (e partilhado) por mais almas. Por mais pessoas. Por mais silêncios.
Nos dias que não são bons, sê bem. Faz o bem. O bem custa menos do que qualquer outra coisa.
Marta Arrais
In: imissio.net 18.05.22
Nem sempre sabemos comunicar, com qualidade e empatia, aquilo que precisamos de dizer aos outros. Como vivemos ligados à corrente, a vaguear de um lado para outro sem parar para pensar, as respostas que damos aos outros são condizentes com esse modo de vida. Rápidas. Impensadas. Ríspidas, muitas vezes.
Saber comunicar é uma necessidade de todos e, diria mesmo, uma urgência. Aquilo que dizemos deixa marca na pele do que os outros são e pode, mesmo, marcá-los com efeitos a longo prazo.
Mas, então, devemos optar por nos calar mais vezes? Por nos remeter ao silêncio?
Julgo que não. Talvez valha a pena, em primeiro lugar, pensar antes de falar. Antes de dizer seja o que for. No entanto, e quando tal não seja possível, será importante dizer o que é preciso com a calma que o outro nos parece.
Vejamos: de que nos vale começar a disparar em todas as frentes se a outra pessoa vai ouvir, primeiro, o nosso tom de voz e deixá-lo ressoar dentro de si? Aquilo que se vai ouvir é a forma como se disse: o tom, a frieza ou a ausência desta. A calma ou o fogo. A aspereza ou a suavidade. Só depois, e já quase sem qualquer espaço para receber a mensagem, se vai ouvir o que se disse.
Sendo assim, talvez possamos educar-nos para aprender a respirar fundo antes de falar com alguém. Antes de dizer o que quer que seja.
Na verdade, o que importa não é (muitas vezes) o que se diz, mas, antes, como se diz. Como se transmite o que flutua dentro do coração. Como se diz aquilo que mora debaixo de tudo aquilo que somos e temos.
Marta Arrais
In: imissio.net 11.05.22
Imagem: pexels.com/edmond-dants
São muitas as vezes em que nos perguntamos isto: porque não pode ser como eu quero? Porque não posso ter o que quero, agora? Porque é tão difícil, para mim, ver resolvidos os obstáculos do meu caminho?
Quem nunca se questionou, em voz alta, pelo menos já terá “verbalizado” alguma destas questões a um nível mais interior ou entre pensamentos mais ou menos frustrados.
Era mais fácil se, pelo menos, algumas coisas fossem como gostaríamos. Até ousamos esquecer aquele argumento de: “mas eu posso nem sempre saber o que é melhor para mim”. Quem saberá o que é melhor para mim se não for eu mesmo/a?!
Pois é. Esta reflexão última pode encerrar algum fundo de verdade, mas, na realidade, também podemos contar como muitas as vezes em que, posteriormente, teremos compreendido os motivos para este ou aquele acontecimento não terem sido como queríamos. Ou porque a vida nos preparava para algo melhor. Ou porque aquilo que achávamos ser bom para a nossa vida se transformou numa desilusão que até agradecemos não ter incluído ou recebido dentro do coração.
Claro que é legítimo (e humano!) querer que as coisas sejam como imaginamos. Como queremos, até. Mas não quer necessariamente dizer que essa vontade seja condizente com o melhor cenário para mim. Para ti. Para nós.
Talvez o maior e mais bonito mistério da vida seja, exatamente, não saber sempre tudo. Não se ter sempre tudo o que se quer. Quando se quer.
Talvez a magia more nessa incerteza, nessa surpreendente possibilidade do que ainda está para vir e para chegar.
Enquanto não sabemos o que chegará para nós, talvez valha a pena acender dentro da alma o desejo de querer sempre o que for melhor. Mesmo que não seja já. Mesmo que não seja com a forma que imaginámos.
Marta Arrais
27.04.22
In: imissio.net
Depois do grande silêncio quaresmal, as comunidades cristãs voltam a dizer a palavra “aleluia”. Os 40 dias da quaresma serviram para criar fome dessa palavra temporariamente interdita, para sentir o desconforto que significa sermos privados dela. Serviram para reativar em nós o desejo, para nos sentirmos em tensão. Permitiram que crescesse irreprimível ao longo dos dias a vontade de a cantar. Essa palavra é mais do que uma palavra: é uma senha. Ela resume a grande viragem pascal, a novidade que até a Páscoa de Cristo o mundo desconhecia e que agora se manifesta escancarada aos olhos de todos, o acontecimento inédito que opera a reviravolta da história. Sim, aleluia: Jesus ressuscitou e abriu, aos nossos lábios mortais a possibilidade de conjugar esse verbo (o verbo ressuscitar) que nenhum de nós acreditaria possível. É isso mesmo que relatam as narrativas bíblicas que se leem nestes dias. Enganos como as de Madalena que confundiu o Mestre com o jardineiro, são iguais aos que diariamente repetimos. Marcações de incredulidade como as que faz Tomé (“Se não vir o sinal dos pregos nas suas mãos, e não tocar com o meu dedo no lugar dos pregos, e não puser a minha mão no seu lado... não acreditarei”), estamos prontos a repeti-las a todo o momento. Perplexidades como as de Pedro que entra no sepulcro vazio e vê a mortalha abandonada, sem saber o que pensar, habitam-nos ainda agora. O ceticismo pragmático dos discípulos de Emaús que deixam para trás Jerusalém, julgando ter assistido ao ponto final de tudo, cola-se assiduamente à nossa pele. Nenhum deles sabia — como nós não sabíamos — que a morte daquele Justo, a propósito do qual o soldado que o vê a expirar comenta, “verdadeiramente, este homem era o Filho de Deus!” (Mc 15:39), era afinal não o fim, mas o começo. Era, é e será “o primeiro dia”. O nosso “primeiro dia” e o do mundo. Nós não sabíamos.
Atravessámos o drama de Sexta-Feira Santa e o silêncio do sábado sem nada entender. Sophia de Mello Breyner Andresen empresta palavras para exprimir o retumbante desconcerto que nos assalta: “Ei-lo caído à beira do caminho,/ Ele — o que partira com mais força/ Ele — o que partira para mais longe.// Porque o ergueste assim como um sinal?/ Pusemos tantos sonhos em seu nome!/ Como iremos além da encruzilhada/ Onde os seus olhos de astro se quebraram?” De fato, é aí que nos situamos, perguntando-nos “como iremos além da encruzilhada”.
“Aleluia” é uma palavra-bússola: dizemo-la porque a Páscoa irrompe decisiva como um norte. “Aleluia” é a palavra-alavanca: dizemo-la porque a Páscoa irrompe como um interminável jato de vida que nos projeta. “Aleluia” é uma espécie de alvoroço, é a vocalização de um sobressalto: entoamo-lo porque a Páscoa de Jesus transporta consigo o poder de reconfigurar o mundo, de redefinir, em chave de esperança, a esquadria do nosso destino. Ousemos neste abril tão precário dizer firmemente “aleluia”.
Santo Agostinho, que assinou uma das mais belas reflexões sobre esta palavra, ensinava que a história do nosso destino tem duas fases: “Uma que decorre agora no meio das tentações e tribulações desta vida, e a outra que será na segurança e na alegria eternas. Por esse motivo foi também instituído para nós a celebração de dois tempos, aquele anterior à Páscoa e aquele que lhe sucede. O tempo que precede a Páscoa representa a tribulação na qual nos encontramos; aquele que se segue à Páscoa representa a felicidade que gozaremos. (...) O aleluia que dizemos por enquanto é como o canto do viandante; todavia, tendemos àquela pátria onde (...) tudo será aleluia.”
Dom José Tolentino Mendonça
23.04.22
In: imissio.net
Imagem: flor Aleluia - Senna bicapsularis
Não é a vida que nos desilude. Ou as pessoas. Ou os cenários. Ou mesmo as viagens de sonho que pensávamos que íamos fazer.
Não é o trabalho que nos desilude. A profissão. A vocação. A vida familiar. Ou a vida consagrada. O que nos desilude é o tamanho das nossas expectativas. O que nos desilude são as esperanças pouco condizentes com a realidade. Aquilo que idealizamos. Aquilo que esperamos de mão estendida, ainda que não haja ninguém pronto para nos dar coisa alguma.
O que nos dificulta a vida não são as pessoas, mas, antes, as expectativas que temos sobre elas. De que nos sejam fiéis. De que não falhem. De que correspondam. De que sejam o mais perfeitas possível.
O que nos trava o quotidiano não é a rotina nem o trabalho que rima com a mesmice do costume. São as expectativas. A esperança que tínhamos de que nos iam ouvir. De que nos atendessem todos os pedidos. A vontade de mudar tudo quando éramos só nós que estávamos preparados para um feito dessa natureza.
O que nos bloqueia e nos derruba são as expectativas. E a diferença abismal do que acontece para o que gostaríamos de ver acontecer.
Talvez nos ajude o exercício de esperar menos. De nos deixarmos surpreender pelo que ainda está por suceder. Enquanto não confiarmos no processo, por muito que este inclua a nossa própria dor ou mágoa, não viveremos alinhados com o que pode haver. Com o que pode ser.
Gostaríamos que tudo fosse como planeamos. Como imaginávamos quando tínhamos a força de tantos sonhos. Mas sabemos que não é possível. Que tudo nos pode varrer a tranquilidade enquanto perdemos tempo a imaginar cenários de perfeição.
É quando não se espera nada de ninguém que as pessoas são capazes de nos surpreender profundamente. E pela positiva. E pelo bem.
É preciso esperar menos. Ir andando sem ter sempre tudo definido nos quadrados castradores das expectativas. Das preocupações.
Quem nos dera sabermos viver como tem de ser. E esperar (só) o que tiver de vir.
Marta Arrais
20.04.22
In: imissio.net
Há dias em que tudo parece perder a cor. Sem porquê, uma tristeza estranha atira-nos para uma monotonia estéril. Não há nada ali. Nem dentro de nós se houve voz alguma. Como se o sentido de tudo se tivesse desfeito. O bem e o mal parecem iguais…
A solidão cai como um nevoeiro e cega-nos. Não se ouve nada e também não se consegue dizer nada…
Mas assim que o coração se liberta do medo e se começa a olhar o desalento com amor, sem lhe dar o poder que deseja, eis que nosso espírito sorri, porque compreende que todas as pessoas têm dias cinzentos e que daí só chega mal ao mundo se alguém lhe sacrificar a sua vida em troca de uma falsa promessa de conforto.
Só há sofrimento profundo num coração grande. O problema de um espírito mais elevado é que se volta e revolta contra si mesmo.
A nossa existência exige que fixemos objetivos e que tenhamos a energia necessária para chegar lá. Sonhar não é senão o primeiro e o mais fácil dos passos rumo à felicidade.
A sabedoria passa por descobrir a verdade de cada coisa, distinguindo-a de todas as demais. Para uma mente cansada, tudo é indiferente.
A grandeza do espírito não está na quantidade de ideias de que é capaz, mas da honra daquelas que assume cumprir.
Aquele que consegue dizer não aos ventos que o tentam demover das suas intenções, aquele que é capaz de assumir os dias tristes como parte do seu caminho, mas que não se detém neles mais do que é natural, vence as trevas dentro e fora de si.
Há quem passe o tempo a tentar encontrar forma de viver confortável no seu desespero. Outros sofrem ainda mais por acreditar na sua esperança, buscando, por todos os meios, uma forma de se evadirem da prisão da angústia. Só estes chegam onde querem.
Só vive os seus dias quem se revolta contra a morte de cada momento.
José Luis Nunes Martins
In: imissio.net 08.04.22
imagem: pexels.com
Se te acontecer que estejas prestes a perder tudo, conserva a dignidade, sem cometeres atos dos quais, depois, só te poderás arrepender.
Muito do que temes perder, tem pouco valor, quando comparado com o que, sendo importante, dás por adquirido.
Na verdade, podes perder tudo, tudo, até mesmo a ti mesmo… Cuidado, é mais fácil do que te parece, bastam duas ou três decisões insensatas e eis que estarás no fundo de um poço. Tudo porque não aceitaste a perda como parte da vida e tenhas decidido fazer o que não devias: perder a dignidade numa teimosia contra a lógica.
Uma adversidade pode ser um trampolim para o melhor de nós, assim saibamos encará-la com a firme certeza de que estamos a ser postos à prova. Alguns perdem-se quando têm tudo e estão bem. De tal forma que só uma desgraça acaba por lhes devolver as suas virtudes mais nobres.
O que temos é finito, o que somos é infinito. Ninguém devia deixar que o que tem ou não lhe arruíne o que é.
Uma excelente indicação sobre aquilo de que somos feitos é a forma como reagimos a algo que nos rasga os sonhos.
Não troques a tua alma por nada deste mundo.
José Luis Nunes Martins
In: imissio.net 01.04.22
“Come e bebe com os pecadores” afirmam, escandalizados, os fariseus. Nas parábolas da Misericórdia, Jesus afirma a alegria do perdão que restitui a vida plena, liberta do peso das culpas e das alienações, estabelece a harmonia e restitui a paz.
A misericórdia de Deus vence o pecado através do perdão. Ao pecador arrependido, Deus perdoa e liberta. Como o Oriente dista do Ocidente, assim Ele afasta de nós os nossos pecados. Esquece as nossas faltas apaga-as da Sua memória. O perdão liberta do sentido de culpabilidade inerente à nossa condição. O perdão gera a paz e a harmonia. O perdão de Deus é como a amnistia nos gregos, significa fazer tábua rasa dos conflitos e recomeçar de novo. O perdão permite recomeçar e reconstruir a vida, porque alguém confia em nós e nos dá a mão. Pelo perdão Deus aceita-nos como somos, com as nossas divisões interiores, fragilidades e incoerências.
O dom do perdão é oferecido como presente pascal aos apóstolos na tarde da Ressurreição. O Senhor deseja-lhes antes de mais a paz: “A paz esteja convosco” e repete para levarem a paz ao mundo. Depois sopra sobre eles e comunica-lhes o dom do Espírito Santo e a missão de perdoar os pecados. O sopro faz lembrar o início da criação quando Deus soprou sobre Adão, homem de barro, para lhe comunicar o sopro da vida e o tornar um ser vivente. O perdão comunica a vida nova da ressurreição, cria uma realidade nova, abre ao futuro. É mais do que uma amnésia do passado. É um novo impulso no caminho da santidade: “levanta-te e caminha”. Orienta para o futuro iluminado pela esperança.
O bom samaritano viu o ferido caído à beira da estrada e encheu-se de compaixão por ele: Aproximou-se então e curou-lhe as feridas. O primeiro desafio é ver, prestar atenção aos que sofrem, frequentemente esquecidos numa cultura que vive da fachada exterior. No dizer de Simone Weil, “o amor ao próximo é feito de atenção. Os infelizes não precisam de outra coisa neste mundo senão de homens que lhes prestem atenção. A capacidade de prestar atenção a um infeliz é coisa muito rara. A capacidade de amor ao próximo é simplesmente ser capaz de lhe perguntar qual é o teu tormento”.
Essa é a força curativa da fé!
Me. Pe. Alexsander Baccarini Pinto
Universidade Católica Portuguesa / FT-UCP
Jesus, no ápice das suas orientações aos seus discípulos e às multidões, faz uma evocação que indica a importância da poesia do viver. Ensinamentos densos, reunidos no Sermão da Montanha, Evangelho de Mateus, uma Carta Magna. Os ensinamentos contêm metas existenciais audaciosas e exigentes, como amar os inimigos e perseguidores. Vivências que requerem uma resiliência humana e espiritual a ser alcançada por meio de investimentos: exercícios cujo ponto de partida muito ultrapassa a lógica da simples, e indispensável, racionalidade. O Mestre delineia um percurso discipular que inclui a ternura advinda da poesia do viver. Eis o enorme desafio: não pensar que a valorização da vida significa a defesa cega de certas situações, a partir de medos que levem a atitudes mesquinhas. O egoísmo enjaula corações na disputa fratricida e na insana busca pelo acúmulo, no anseio de ajuntar tudo para si, perpetuando cenários de desigualdades, de manipulações, para se obter fácil enriquecimento. Com essas dinâmicas, agigantam-se as indiferenças, mesmo diante das multidões passando fome no mundo todo.
Jesus conhece o tamanho do desafio existencial de seus discípulos na obediência das suas lições. Não basta a importante disciplina na obediência às leis ou normas, ancoradas na fidelidade moral, para que seja reconhecida a dignidade maior do ser humano. Jesus convida, então, aqueles que lhe seguem a buscar a poesia do viver. Assim, podem se capacitar, no dia a dia, para se tornarem instrumento a serviço da construção e promoção da vida plena, em todas as suas etapas. Veja o simbolismo poético da contemplação proposta, quando o Mestre convida: “Olhai os pássaros do céu, não semeiam, não colhem, nem guardam em celeiros…olhai como crescem os lírios do campo. Não trabalham, nem fiam. No entanto, nem Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um só dentre eles”.
O conhecedor mais credenciado do coração humano, Jesus Mestre, ensina: a sabedoria própria da poesia do viver nasce de uma contemplação que antecede números, manuseio de instrumentos ou dados. Essa contemplação unge mentes e corações com lições e sensibilidades essenciais a cada pessoa. A poesia do viver não é uma simples brisa para amenizar a dureza destes tempos. É uma fonte de sabedoria que pode alavancar percepções qualificadas, corrigir lógicas distorcidas, apontar o rumo para que sejam encontradas soluções urgentes, respeitando a vida humana na sua dignidade. Eis, assim, o desafio: recuperar a poesia do viver, para se dar conta de caminhar sem perder a direção, neste tempo em que a humanidade vive o processo de grandes transformações culturais, com incidências sociopolíticas, econômicas, educacionais e religiosas.
Uma grande movimentação antropológica-cultural está em curso, como placas tectônicas que se deslocam provocando instabilidades, reconfigurando territórios. Diante dos processos de transformação que incidem na civilização contemporânea, não podem ser perdidos valores e princípios essenciais. Vive-se a dinâmica de êxodo, mas a migração da humanidade não pode representar o abandono de certos tesouros, sob pena de o ser humano chegar mais empobrecido no tempo novo em construção. E não basta salvar a própria “bagagem” durante a travessia. A prioridade é o bem comum e todos estão convocados a contribuir com a sua edificação. Nessa perspectiva, a poesia do viver pode garantir percepções que curam destemperos e desequilíbrios – ameaças que levam a fracassos humanitários e ecológicos, mas que, cada vez mais, lamentavelmente, contaminam muitos processos da vida em sociedade. A viragem em curso, para fazer jus às conquistas científicas e tecnológicas, patrimônios da inteligência humana, não pode balizar a sociedade contemporânea em estreitamentos que comprometam o dom da vida e a beleza do viver.
A urgência de se enfrentar lógicas perversas, na política e na economia, na cultura e até mesmo na religião, pede o indispensável resgate da poesia do viver. Sem a poesia do viver crescerá, cada vez mais assustadoramente, o número daqueles que desistem da própria vida, de segmentos que buscam apenas a própria proteção sem se dedicar ao bem comum, de atitudes frias que segregam os pobres. Crescerá a tendência de se perseguir vitórias a qualquer preço, inclusive com artimanhas e operações perversas, de se buscar o próprio bem pela via da manipulação, sem sensibilidade humanística. Nesse cenário obscuro, o coração humano, mesmo diante de eventuais bens acumulados, lugares conquistados, títulos obtidos, será incapaz de exercer adequadamente a regência da própria vida.
É hora de investir e exercitar-se na poesia do viver para fazer brotar uma sabedoria espiritual que permita reconhecer o sentido da vida, conduzindo o ser humano ao cultivo da fraternidade. Assim, pode-se recuperar o genuíno sentido de pátria – lugar de todos os irmãos e irmãs, iguais nas diferenças. Com a poesia do viver, consegue-se reconhecer que a vida é vivida melhor quando há simplicidade, e que se ganha muito com a generosidade solidária. Ajuda a cultivar a poesia do viver a indicação da escritora Cora Coralina: “Não te deixes destruir… ajuntando novas pedras e construindo novos poemas. Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. Faz de tua vida mesquinha um poema. E viverás no coração dos jovens e na memória de gerações que hão de vir. Esta fonte é para uso de todos os sedentos. Toma a tua parte. Vem a estas páginas e não entraves seu uso aos que têm sede.” Que a vida se ancore na poesia do viver.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
In: site da Arquidiocese de BH
11.02.22
Os anos passam.
Que saibas olhar bem para ti. Para dentro de ti. Que saibas percorrer cada pedaço do teu coração, onde guardas (só) o que importa. O que importa de verdade.
Que saibas morar em cada abraço.
Que saibas abraçar cada mão dada.
Que saibas entregar-te em cada olhar.
Que saibas sentir cada sorriso.
Que saibas curar em cada beijo.
Que saibas amar as pessoas. As tuas pessoas. As que ficam. Sempre. Para sempre.
Que saibas tatuar corações com a tua vida.
Que saibas deixar que outras vidas te tatuem o coração.
Que saibas agradecer cada milagre.
Que saibas encontrar força para cada tempestade.
Que saibas viver e ser, sempre, com o coração.
Que saibas viver e ser, sempre, com amor.
Todos os dias.
Porque, enquanto os anos passam, é só isto que fica. E que te salva.
Sempre. Para sempre.
Que o saibas, também.
Daniela Barrera
In: imissio.net 17.01.22
Ter uma atitude de gratidão perante aquilo que nos vai acontecendo é um desafio tremendo. É profundamente mais fácil agradecer as coisas boas que temos, os momentos de grande alegria, as conquistas, o concretizar de um sonho, o erguer de um projeto que se revela bem-sucedido e profícuo. Mesmo assim, temos tendência para não agradecer quando vivemos o bom. Quase como se não tivéssemos tempo para isso. Como se fosse obrigação da vida dar-nos tudo o que há de melhor. E logo a nós que somos tão bons e que fazemos tudo tão bem feito.
Mas adiante. Difícil mesmo é agradecer ou ter uma atitude de maior respeito por aquilo que nos acontece de mau. Pela doença. Pela perda. Pelo sonho que ficou só no pensamento porque ninguém acreditou nele. Pelo trabalho que deixou de ser o que imaginávamos. Pelos inúmeros desafios a que somos chamados, diária e repetidamente.
Como é que podemos agradecer o que é mau? Que sentido é que isso tem?
Pode ter algum. Se quisermos olhar para os desafios como etapas, como degraus, como um momento que terá algo para nos ensinar, estamos a receber a oportunidade de viver um momento difícil. Estamos a agradecer, de antemão, o que não sabemos ainda que nos trará mais sabedoria, mais experiência, mais vida.
Se, depois do choque inicial, olharmos para o que nos acontece com a coragem de quem diz: o que é que eu tenho para aprender com isto? Como é que eu posso ser melhor depois disto? Como é que eu posso fazer melhor quando isto passar? … Talvez nos seja possível suportar melhor a dor do que nos acontece, as pedras que nos ferem os pés quando caminhamos.
Agradecer nem sempre é simples. Nem sempre é óbvio. Nem sempre é possível. Enquanto mergulhamos na espiral da alegria, parece desnecessário dar graças. E enquanto somos arrastados no ciclone da nossa mágoa, parece impossível ver um dia sem tempestade.
No entanto, e sempre que nos for possível, vale a pena colar este post-it pequenino no coração, do lado de dentro do peito:
Sempre que puderes, agradece.
Quando não puderes, fecha os olhos e tenta outra vez amanhã.
Marta Arrais
In: imissio.net 05.01.22
Arrisco a dizer que estamos, todos, com muita sede de virar a página. Queríamos que estes tempos difíceis desaparecessem dos nossos dias; que as notícias que nunca são boas dessem lugar a pontinhos de luz e de esperança em forma de informação e de conteúdo. No entanto, parece que ainda não estamos autorizados a virar a página porque esta “página” não nos pertence, apenas, a nós. A página da pandemia é de todos. Diz respeito a todos. O respeito por estes tempos e os cuidados a ter são, e devem ser-nos, cobrados. A solução para o fim destes tempos cabe-nos a todos.
Claro que é mais fácil assobiar para o lado. Ignorar e seguir em frente como se nada fosse. Não é assim que se chega longe. Não é assim que cruzaremos esta meta que teima em fugir-nos cada vez mais para a frente, como se de uma provocação altiva se tratasse.
Que havemos de fazer, então, se nada parece estar ao alcance das nossas mãos? Do nosso controlo? Dos nossos gestos individuais?
Resta-nos (e já é muito!) fazer o que nos compete como pessoas, como responsáveis pela saúde pública (que é de todos), como cidadãos, como irmãos, irmãs, mães, pais, avós, tios, primos, amigos, conhecidos e desconhecidos.
Resta-nos cuidar, com carinho e cuidado, da página que ainda não virámos, ainda que já consigamos avistar o novo ano.
Não será estranho que suspiremos. Que desanimemos. Que pensamos que “isto nunca mais acaba”. Que nos sintamos castigados, massacrados, mastigados por um tempo tão complicado e turbulento. Que não fiquemos por aí. Que consigamos encontrar a coragem para encher o copo para brindar à esperança do que há de estar por vir. Para vir.
Dizem que atraímos tudo aquilo que desejarmos, que visualizarmos, que sonharmos como possível… por isso, fecha os olhos e imagina aquilo que será comum e feliz para todos:
O virar desta página. E que, a seguir, a página que se escreva seja profundamente melhor e mais feliz.
Marta Arrais
In: imissio.net 29.12.21
Imagem: pexels.com
Para crentes e não-crentes, o Natal é uma estação de confronto consigo mesmos. Por aquilo que os símbolos desta quadra dizem ou não a cada um, por aquilo que as palavras acordam, pela presença ou pela ausência de uma transcendência nos dias que se avizinham. Cada um vive à sua maneira ou como interiormente pode. Mas uma coisa inegável é observar este silencioso sobressalto, esta espécie de “sentimento oceânico” que nos percorre em conjunto, que sem sabermos como nos transporta e que ganhamos em escutar, mesmo se no final as interpretações encontradas possam ser distintas. Recordo-me, a esse propósito, do debate que ligou, por exemplo, Sigmund Freud e o escritor Romain Rolland.
Um dos temas a que Freud prestou atenção foi, como é sabido, a experiência religiosa. O tema fez sempre parte das suas investigações, mesmo quando estas versavam diretamente outros assuntos. E não restam dúvidas sobre a importância que atribuía à religião no âmbito da economia psíquica do sujeito. É certo que a sua tese de fundo remove do fenómeno religioso toda a dimensão externa de revelação e explica-o unicamente à luz dos conflitos não-resolvidos que vêm da primeira infância (desse intrincado e gigante magma, feito, segundo ele, de medos, desejos e culpas a que se procurará a vida inteira dar respostas). Mas, ainda assim, Freud teve a oportunidade de realizar diálogos marcantes neste âmbito. Talvez o mais significativo tenha sido precisamente o que ficou registado na sua correspondência com Rolland. Este, que foi Prémio Nobel da Literatura em 1915, era um intelectual poliédrico, um arquiteto de pontes: entre o Oriente e o Ocidente, entre o ensino académico e a militância pacifista, entre o compromisso civil e a experiência espiritual. Definia-se a si mesmo como um viandante em busca da verdade, e o motor dessa busca era, segundo ele, um “instinto religioso”, que trabalhou com audácia e a modo seu.
Foi Freud quem o procurou, enviando-lhe uma primeira carta, em fevereiro de 1923, e as trocas epistolares durariam até ao ano da morte do pai da psicanálise, em 1939. É curioso constatar como o debate privado que mantinham alcançava depois um eco na produção ensaística de ambos. Recebendo um exemplar de “O Futuro de Uma Ilusão” (dezembro de 1927), Rolland critica Freud por considerar uma mera ilusão supor que as respostas que a ciência não nos pode dar podemos consegui-las noutro lugar (e quando este diz “outro lugar” pensa sobretudo na religião). As representações religiosas não passam, para ele, de ficções que corporizam a necessidade infantil da proteção. A esta radical redução psicológica, Rolland contrapõe “o facto simples e direto” que continua a provar que a religião é uma experiência viva e inalienável: a “sensação de eterno” que ciclicamente assoma ao coração de cada um e nada cancela; a consciência de que somos o ponto de uma relação mais vasta do que nós próprios; a experiência de imersão num “sentimento oceânico”, transbordante e vital, que é uma grafia essencial da vida. Esta corrente espiritual que nos envolve pode-se adjetivar como “oceânica”, por analogia àquilo que o mar desperta em nós. Ao mesmo tempo traz ao coração humano a ressonância de algo primordial e a evidência sensível do que é maior, do que nos transcende, do que só tocamos com o desejo, do que tentamos nomear chamando de infinito. Para Roland, se não se encara de frente o impacto deste “sentimento oceânico”, não se compreende o caminho do humano.
Os dias 24 e 25 de dezembro passam depressa, mas as questões que colocam à nossa humanidade são mais do que lentas. São irremovíveis.
Cardeal Dom José Tolentino Mendonça
27.12.21
In: imissio.net
Há uma síndrome do Natal, como o há da primavera. Às vezes chega a primavera e não nos conseguimos adaptar facilmente a tamanha vitalidade, ao apelo ao renascimento que se pressente em nosso redor. Sentimo-nos embaraçados com essa espécie de recomeço do mundo, estranhamente vulneráveis e vazios, num frustrante desacerto com o surto primaveril. E a mesma coisa pode acontecer em relação ao Natal. De repente, no turbilhão dos dias, vemos avizinhar-se o Natal com todos os compromissos, com o que é necessário preparar, com o que tem de ser — e olhamos para ele esmagados. Há anos em que nos descobrimos entusiasmados por viver este tempo, e há outros em que parece uma violência tudo isto, porque nos percebemos em contraciclo, numa desamparada desolação. É para quem se sente assim que escrevo este texto de Natal.
Sim, o Natal não é apenas a festa do brilho e da abundância. Não é apenas a ronda das vozes felizes. É a festa dos esfomeados, dos sedentos, dos inquietos, daqueles que querem mais, dos que não se conformam com o apaziguamento de rotina, dos que sentem que tem de haver alguma coisa que vá além, dos que obstinadamente tateiam uma verdade, uma razão ou uma brecha algures no cerco da muralha. O Natal é a festa daqueles esfarrapados que não deixam de farejar longe até às estrelas, disponíveis para segui-las para lá das marcas das fronteiras, mesmo se por um incompreensível caminho colado ao chão, como o fizeram os Magos. Ou daqueles que, vivendo expostos ao relento, escutam a boa-nova de uma alegria e acreditam nela. Acreditam que possa ser possível o que habitualmente se declara impossível. E, mesmo na noite, trémulos, precários e puros, partem ao seu encontro, como aconteceu com os pastores de que o Evangelho fala. O Natal não se espelha apenas na fartura de sinais. Toca-se também na escassez e no desabrigo. Na solidão e na margem. Na força nua das direções e das perguntas sem resposta. Sendo assim, que tem o Natal eterno a dizer-nos? Que, no Mistério da Encarnação, a nossa humanidade passa a valer mais. Mesmo na sua indefinição, turbulência ou ruptura: passa a valer mais. Porque, aquele que nasce na manjedoura inaugura um novo ponto de vista, uma compreensão mais ampla, uma hermenêutica dissidente, faz uma leitura mais a fundo daquilo que somos.
Nós olhamos para um homem e dizemos logo: “Um homem é pouco para mudar a história.” Na verdade, que pode um homem perante a complexidade das coisas! Apressamo-nos, por isso, a descrer das suas possibilidades. Seria necessário não um homem, mas um super-homem que efetivamente superasse a endémica vulnerabilidade que trazemos. Seria necessário um ser apetrechado de tudo o que nos falta ou não somos. Uma versão melhorada daquilo que conhecemos. Porém, a história que o Natal desdobra aparece tatuada não no poder, mas na fragilidade; não na diferenciação, mas no desejo de aceitar tudo e se tornar semelhante. Afinal basta um homem. Deus manda à terra o seu Filho e ele vem sem nada, pobre, investido da fragilidade que contemplamos em nós próprios. Mas o Filho, “o Menino que nos foi dado”, vem audaciosamente revelar isto: que a nossa humanidade é o lugar da habitação de Deus. A impreparada humanidade, que tantas vezes nos desilude, a nossa vida inconcludente é a manjedoura de Deus. Por isso, o presépio não exclui ninguém. Ele integra a humanidade na sua inteireza, e ainda mais quando se trata de humanidades feridas. Da humanidade dos últimos, da humanidade subtraída, da vida dos excluídos, dos que se sentem sozinhos ou desadaptados, dos que atravessam o presente desejando outra coisa.
Cardeal Dom José Tolentino Mendonça
24.12.21
Imagem: pexels.com
Somos tentados a sentir que não há condições para o Natal. Não há espírito. Parece que nos falta o que já não volta. Que sentimos as ausências mais do que nunca. Que compreendemos, agora, o que perdemos.
Viramos a cara ao Natal e quase parece que lhe viramos o coração, também. Não nos inquietemos no meio da confusão que nos vamos provocando. O Natal não é uma data. Não é um dia nem dois. Não é uma árvore nem o brilho das luzes das ruas. O Natal é a luz que não passa. Que se acende no lugar mais frio do mundo, mesmo que esse lugar mais frio seja (exatamente) o nosso coração. O Natal não tem nada que ver conosco nem com as nossas vontadezinhas. O Natal foi um presente que nos foi dado e, todos os anos, todos os dias, somos convidados a renovar esse recebimento. E que bonito é perceber que houve um menino que se quis fazer Tudo para nós.
“Mas isso é só para os que acreditam”.
Não.
O Natal é, também, para os que não acreditam nele. Para os que nunca acreditaram. Para os que, um dia, vão acreditar e ainda nem sabem. O Natal é uma mantinha de retalhos das vidas de todos nós. Tal e qual como elas são. Bonitas e feias. Confusas e tristes. Esfusiantes e barulhentas. Mais amargas ou mais doces.
Mas claro que há Natais que doem muito. Que doem mais. Se este Natal for, para ti, um desses dias mais difíceis, lembra-te que não estás sozinho. Que amanhã será melhor. Ou no dia seguinte.
E depois, fecha os olhos, respira fundo e lembra-te que um dia houve um menino-Vida que quis nascer para que a tua fosse melhor. Para que pudesses ter água a correr no lugar do coração. Para que pudesses ser voo em vez de peito estacionado. Para que pudesses ser esperança e asa em vez de tormenta.
Olha para o Céu, assim que puderes. Se usares o telescópio da alma, já deves ver a primeira ponta de luz daquela Estrela que veio para mudar tudo.
Para melhor.
Marta Arrais
In: imissio.net 15.12.21
Imagem: pexels.com
São muitas as luzes que brilham nesta altura. As luzes baças das notícias tenebrosas. As luzes baças dos que nos fazem acreditar que vivemos para trabalhar, para não ter tempo para mais nada. As luzes do que não é essencial, do dinheiro que é rei em tudo e em todos. As luzes da rua que nos ofuscam os olhos, mas não nos aquecem o coração. As luzes do barulho dos que gritam lá fora, dos que discutem, dos que não se entendem.
São muitas as luzes que brilham nesta época…, mas poucas as que, efetivamente, merecem a nossa atenção e o nosso respeito. A dificuldade é, precisamente, saber que luzes precisamos de apagar, de não ver, de não considerar e que luzes precisamos de acender em cada dia, na nossa vida e no nosso coração.
Julgo que estes dias que antecedem o Natal podem servir-nos para refletir sobre a forma como queremos continuar a viver, sobre as luzes que queremos, de facto, ver. Sobre os assuntos e as pessoas que merecem, de fato, a nossa atenção.
O Menino que se prepara para nascer novamente veio mostrar-nos que não precisamos de muito. Que se pode optar pela pobreza e ser verdadeiramente feliz. Que se pode optar pela simplicidade dos gestos, das atitudes, do trato e fazer dos outros pessoas profundamente felizes, também.
No entanto, penso que será necessário que o Menino nasça todos os dias na nossa vida. Para que consigamos visualizar naquele Presépio todos aqueles que merecem a luz da nossa presença e da nossa atenção. É necessário ver no Presépio as famílias que precisam de ajuda, as famílias que não se perdoaram, as famílias que perderam entes queridos e se debatem com o luto, as famílias que estarão separadas, isoladas e confinadas (mais um ano), as famílias que precisam de tempo para curar feridas.
O Natal existe para que sejamos desafiados a ver melhor. A amar melhor. A ser melhores.
Enquanto perdemos tempo a perseguir as estrelas erradas, que nos permitamos recordar que a única estrela que vale a pena perseguir é aquela que nos leva ao Menino que nasceu por nós. Outra vez.
Marta Arrais
In: imissio.net 22.12.21
Talvez, para a maior parte de nós, o Advento seja apenas um marco cronológico que oficializa os preparativos vários para a festa do Natal. Talvez o vejamos apenas como uma espécie de contador decrescente, sem que consigamos perspectivar o seu conteúdo ou que impacto efetivo poderá ter em nós. E, contudo, o Advento é uma entrada decisiva não só para colher o sentido da celebração do Natal, mas para olhar para a inteireza da nossa própria existência. Mais do que supomos somos figuras do Advento, habitamos o seu território e recebemos dele iluminação para as perguntas que transportamos no tempo.
O termo “advento” provém do latim e significa “vinda”. Na gramática cristã esta vinda é o adventus domini, a vinda do Senhor, acontecimento que configura a vida do mundo como abertura e expectativa. Em Jesus, Deus torna-se humano para que, desse modo, todo o humano se torne capaz de Deus. O mistério que celebramos em cada Natal não é simplesmente um sim pontual de Deus à história dos homens, mas é uma confirmação permanente e irrevogável. Deus entra em contato com a nossa Humanidade, torna-se incessantemente “aquele que vem”, deixa-se conhecer como “Deus conosco”. Nesse sentido, o advento é a tomada de consciência desta expectativa da vinda de Deus que atravessa a nossa existência a todo instante. E a fé não é tanto a disponibilidade para crer no extraordinário, quanto a sóbria e vigilante convicção de que a eternidade de Deus pulsa no nosso tempo pequeno, precário e mortal. No nosso tempo humano. Deus veio e vem a cada momento. Como escreve Walter Benjamin, nas suas teses sobre o conceito de história, há possíveis não codificados e existe uma história invisível que reemerge do seu fundo subterrâneo e nos faz compreender que, na sua intensidade descontínua, cada fração de tempo tem uma natureza messiânica. E mais: este exato segundo é a pequena porta pela qual pode entrar o Messias. O advento inscreve-nos aí, expectantes, esperançosos, sedentos.
Recordo aquilo que o teólogo Karl Rahner dizia ser o duplo e esclarecedor impacto do Advento em nós: o primeiro é o sublinhar da nossa condição de precursores; o segundo é o redimensionar surpreendente da nossa visão habitual da vida. De fato, não somos todos, à maneira de João Batista, precursores? Não somos os detentores atuais de uma experiência destinada a ser metamorfoseada e ultrapassada? Os pais são, por exemplo, precursores para os filhos, as gerações mais velhas para as mais novas, a ciência que construímos hoje para a ciência que se formulará em seguida. Mas não apenas nesse sentido somos precursores. O Advento torna-nos precursores porque nos incita a habitarmos criativa e corajosamente a fronteira de um futuro maior do que nós próprios. Porque nos desafia a servir não apenas este presente estabelecido (este presente bloqueado, prisioneiro de tantos impossíveis declarados), mas a antecipar o futuro, ligando-nos desde já a ele, aceitando viver na sua tensão, comprometendo-nos como mediadores credíveis desse horizonte onde cintila a promessa.
E, do mesmo modo, o Advento motiva-nos a compreender o tempo corrente, na sua cinzenta e férrea monotonia, na sua soma de momentos indistintos, na sua extenuante construção como epifania. No seu anónimo e minúsculo formato, naquela que parece ser simplesmente a monocórdica escrita do quotidiano, emerge uma possibilidade radical de ruptura: o nascimento de Deus e o nosso. Não, não é de fora que a vida se ilumina. É por dentro de nós que podemos perceber o mistério que ela é. A vida como advento.
Cardeal Dom José Tolentino Mendonça
06.12.2021
In: imissio.net
Se não deixamos de amar um filho ainda que faça o que julgamos não ser bom, por que razão não amamos também a vida, mesmo quando ela não segue o caminho que pensamos ser o melhor?
Só temos uma vida, a nossa, e quanto mais a amarmos mais felizes seremos.
Quando algo corre mal na nossa vida, e todos os dias isso sucede, uma revolta nossa não serve para nada, porque, afinal, a vida seguirá para onde quer, sem sequer parar um pouco para nos escutar.
Talvez o melhor seja abraçar a nossa vida, não para que consigamos alterá-la, mas para que aproveitemos ao máximo tudo o que de bom há nela. A verdade é que muitos de nós passam a vida sem valorizar o que de bom a sua existência tem. Chega a parecer que até gostam mais do mal que lhe sucede do que de tudo o resto, tal é a forma como o guardam.
Eu sou a história que conto a mim mesmo sobre mim. É aquilo que me acontece e a que atribuo significado e valor que me marca e acaba por constituir a minha identidade.
Ao olhar para o meu passado, se apenas valorizar e guardar o que é menos bom, acabo por me fazer infeliz. Ainda que não me sinta responsável por isso.
Contudo, é possível admirar a minha vida com outro olhar. Se o fizer com amor, darei muito mais importância ao que de bom ocorre. Por pouco que seja… será sempre suficiente para me fazer sorrir.
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