O Hipopótamo de Deus
Um dos passos mais intrigantes da Bíblia tem a ver com um hipopótamo. E não é propriamente um divertimento teológico, pois surge numa obra que explora muito seriamente os limites da responsabilidade humana perante a experiência devastadora do Mal. Falo do Livro de Jó, claro. O que primeiro surge ali é o protesto de Jó contra o Mal que se abate inexplicavelmente sobre a sua história, protesto que se estende até Deus, já que, afinal, Ele não isenta os justos das tribulações. Mas depois vem o momento em que Deus se propõe interrogá-lo. E nesse diálogo assombroso, desenvolve-se um raciocínio que não pode ser mais desconcertante. Jó só consegue pensar nas suas aflições, nas razões e desrazões com as quais, inutilmente, esgrime. Deus, porém, desafia-o a olhar de frente para... um hipopótamo. “Vê o hipopótamo que criei como a ti... Ele levanta a sua cauda como um cedro; os tendões das suas coxas estão entrelaçados. Os seus ossos são como tubos de bronze, a sua estrutura é semelhante a prachas de ferro. É a obra-prima de Deus..., ninguém se atreve a provocá-lo”.
O método de Deus neste singular encontro com Jó é trabalhar a medida do olhar humano, rasgá-lo imensamente para que ele vislumbre o incomensurável, tudo o que não tem resposta, mostrando-lhe que se o Mal é um enigma que nos cala, o Bem é um mistério ainda maior. A maravilhosa criação também não tem resposta. Porque pretender a todo o custo uma solução para o Mal, se o Bem é igualmente uma pergunta, e uma pergunta ainda mais funda, vasta e silenciosa?
“Olha de frente tudo o que é grande” – é o desafio que Deus lança a Jó. E, perante isto, Jó responde ao Senhor: “Os meus ouvidos tinham ouvido falar de ti, mas agora viram-te meus próprios olhos, por isso retrato-me e faço penitência no pó e na cinza”. Ele tinha apenas ouvido, mas agora viu, fixou-se na grandeza, reparou de frente na imensidão. Jó queria desvendar a dobra do Mal e esquecia que é o Bem o gigantesco segredo, o inesperado desígnio que mais nos visita.
José Tolentino Mendonça
Padre e poeta português
In: O Hipopotamo de Deus e outros textos. Assírio & Alvim Editora.
Os protestos... Admiro que não aconteceram antes. Havia tanto buraco no asfalto que cedo ou tarde o carro teria de parar. Mas qual foi precisamente a causa?
No curso ginasial aprendemos a distinguir entre causa e ocasião. Os protestos que hoje tomam a rua têm sua ocasião, aliás, bem escolhida: o Brasil está na vitrine graças ao amado e odiado futebol. Ademais, as eleições se aproximam... Isso não é mera coincidência.
Mas as causas, quais são? Não é só por R$ 0,20. Embora façam diferença, para muita gente, esses vinte centavos (diversas vezes multiplicados por causa de transportes não integrados)!
Protesta-se contra a desproporção entre o custo da infraestrutura e organização da Copa e os parcos investimentos em outros serviços públicos, bem mais essenciais. Está certo, nada a comentar.
Outra causa é a saúde. Faltam milhares de médicos nas regiões periféricas, e importá-los também não resolve tudo, pois em muitos municípios a infraestrutura se restringe a uma ambulância para levar os pacientes até a próxima cidade maior. Precisa-se antes de motorista do que de médico...
Uma causa profunda é o problema da educação. A falta de percepção penetrante e de responsabilidade assumida —a meta da educação— manifesta-se, não tanto no banditismo, que quase inevitavelmente acompanha protestos sem firme liderança, mas na classe dirigente, que tratou com extrema leviandade as prioridades do povo, desde os dias em que a redemocratização fez nascer esperanças nunca realizadas. Isto é, durante uma geração inteira. Geração que, em vez de educação sólida e profunda, recebeu smartphones que permitem convocar manifestações instantâneas.
Parece que agora está havendo alguma percepção. Os manifestantes estão percebendo alguma coisa, ainda que seja difícil distinguir o quê. E os destinatários do protesto, que não estavam percebendo nada senão seu poder —seu próprio mundo, alienado daquilo que o povo percebe sem poder expressá-lo—, parece que de repente ficaram capazes de tomar, no atropelo, decisões que há muito deveriam ter tomado.
A educação não se restringe à escola, mas esta é, sobretudo diante da atual desintegração da família e do tecido comunitário, a última esperança da educação. Ora, os profissionais das escolas públicas descrevem o lugar onde trabalham como depósitos de crianças, sem estrutura pedagógica nem programas adequados para ensinar realmente alguma coisa. Um exemplo de como as coisas evoluem: em Betim-MG, município grande e comparativamente rico, a Secretaria de Educação decide substituir os pedagogos na escola por professores, já que, destes, muitos vão sobrar com o remanejamento que prevê 35 alunos por turma no ensino básico e 40 no médio (com ‘inclusão’ dos casos problemáticos). Escolas menores são fechadas, bibliotecário/as reduzidos à metade, eliminado o atendimento nos intervalos, quando as crianças poderiam aproveitar a biblioteca. E daí em diante.
Além disso, o discurso em torno da educação só fala em qualificação (para o mercado), nunca em formação humana integral para a vida. Neste sentido, os protestos e até o vandalismo que os acompanha são reveladores... Lula ficaria satisfeito, declarou, se todos os brasileiros tivessem três refeições por dia. Não precisa algo a mais?
Há também fatores mais submersos, fatores socioculturais que não foram levados em consideração. A frustração da não participação: jovens despolitizados, alheios e indiferentes em relação ao sistema político vigente. Mas isso não quer dizer que não percebem nada. Pode até ser que a aparente despolitização seja a sua verdadeira posição política. O governo não soube dialogar em tempo. Mas quais seriam os canais do diálogo? Os partidos? Os sindicatos? Os movimentos populares? Além de esvaziados, correspondem a outras épocas. A juventude não se comunica através de organizações, mas através do instantâneo. Será que as estruturas de nossa vida política correspondem à mutação sociocultural causada pelas novas tecnologias e os correspondentes novos comportamentos?
Finalmente, vejo uma causa mais profunda ainda: uma estrutura de natureza cultural. Uma estrutura é um conjunto de relações permanentes e autorreprodutoras; está aí para funcionar e se reproduzir. Ora, na cultura brasileira existe uma estrutura, talvez consequência da enorme presença da escravidão, que reproduz no povo um medo quase incompreensível. Assembleias votam manifestos que depois ninguém tem coragem de entregar. O jeitinho, o medo do confronto. Os coronéis mudaram de nome e de roupa, tornaram se SA e Cia Ltda, mas continuam mandando.
Só espero que não organizem alguma ‘marcha da família’ para pôr em segurança uma estrutura que está corroendo a família junto com a sociedade toda.
Pe.Johan Konings
Publicado no site Dom Total em 28.06.2013
Tem gente que pensa que essa “onda verde” de preocupações ecológicas, sustentabilidade, consumo consciente, é coisa dos tempos modernos. Nem tanto. O que mudou, e muito, foi a intensidade e competência do marketing que hoje se faz em torno de ações que, antes, eram naturais.
Quando eu era menino, ou seja, ainda dentro do nosso tempo histórico, meu e do caro leitor, as garrafas de leite, de refrigerante e cerveja eram de vidro e deviam ser devolvidas na hora da compra de outra unidade. A loja mandava os “cascos” vazios de volta às fábricas onde eram lavados e esterilizados, podendo, assim, ser reutilizados inúmeras vezes.
A vida se concentrava nos bairros, mas se precisássemos ir ao centro da cidade para uma consulta médica ou ir ao dentista, por exemplo, em geral subíamos escadas, porque não havia escadas rolantes nos edifícios, lojas e escritórios. Lembro-me quando foram inauguradas as primeiras escadas rolantes de BH, na Galeria do Ouvidor. A gente ia lá para conhecer e passear na novidade. Vejam só o programa de sábado; passear em escada rolante...
De volta pra casa, caminhávamos até o armazém da esquina para fazer compras na caderneta. Para quem não sabe, a caderneta era usada em estabelecimentos comerciais tipo padarias, farmácias, vendas e assemelhados. O balconista entregava o produto e anotava o valor a lápis, na página onde havia o nome do freguês. No final do mês era só ir lá, somar e acertar. Simples como a vida.
Não havia super nem hiper-mercados, com estacionamentos caros e lotados de carros de 300 cavalos de potência usados para andar dois quarteirões. A polêmica sobre o uso das sacolinhas plásticas nem passava pela cabeça dos consumidores que levavam, de casa, uma sacola de pano ou de lona listrada que era usada quantas vezes fosse necessário. Isso quando a montanha, ou melhor, o produto não chegava a Maomé através de um ecológico delivery: de bicicleta, vinham a nós o verdureiro, o padeiro, o peixeiro, o leiteiro e outros vendedores a quem conhecíamos pelo nome e pela qualidade dos produtos oferecidos.
As fraldas dos bebês eram lavadas, porque não havia fraldas descartáveis. Aliás, a palavra ‘descartável’ era uma ilustre desconhecida. Para secar as fraldas de pano, energia eólica e solar, ou seja, o varal. Nada de turbinadas e barulhentas máquinas de lavar e secar. E lá em casa, com a escadinha de seis filhos, o varal era sempre uma festa onde “nossas roupas comuns, dependuradas na corda, qual bandeiras agitadas, pareciam um estranho festival...” E as roupas eram mesmo “em comum”. Eu, sendo o mais velho daquela penca de seis irmãos, tinha o privilégio de inaugurar a camisa do uniforme escolar. Os irmãos menores iam “herdando” as roupas que tinham sido dos irmãos mais velhos, que eram usadas, cerzidas, ajustadas até a exaustão. E a gente achava essa reciclagem a coisa mais natural do mundo.
Havia só uma tomada em cada quarto, e não um quadro de tomadas em cada parede para alimentar uma dúzia de aparelhos. E nós não precisávamos de um GPS para receber sinais de satélites a milhas de distância no espaço, só para encontrar a pizzaria mais próxima. A pizza era feita em casa mesmo.
Naquela tomada ligava-se uma única TV, uma só pra todo mundo da casa, e não uma TV em cada quarto. Sem controle remoto, ligar e desligar, mudar de canal, ajustar o som e mexer na antena exigiam constantes exercícios abdominais no senta e levanta do sofá. Mas nem precisava de TV, pois havia um cinema “Paradiso” em cada bairro e a gente ia a pé para a matinê.
Naquela era pré-McDonalds, terminado o filme, voltávamos correndo pra casa para curtir o lanche. Nada de Hambuguer, X-Burguer, X-Tudo. Sem praça de alimentação, sem as geringonças elétricas e eletrônicas que fazem tudo por nós, minha mãe, avó e tias colocavam a mão na massa no preparo de roscas e biscoitos caseiros, bolos fantásticos, doces inesquecíveis. E cada uma tinha sua especialidade.
Ninguém fazia empadinhas como Dinhaía, caçarola italiana como tia Elza, biscoitos de polvilho torcidinhos como vovó Nega, capa de canudinho (que a gente recheava de doce de leite na hora) como tia Célia, bolo como tia Délia, broa de fubá como dona Tutu e outros quitutes cuja lembrança dos sabores fazem minha memória salivar.
E mesmo com essas delícias nada diets à mesa, éramos magros e atléticos (com perdão da palavra), sem necessidade de dietas mágicas, sibutraminas e moderadores de apetite. Exercitar-se era comum no dia a dia, sem precisar ir a uma academia (que nem existiam) ou usar esteiras que também funcionam a eletricidade e hoje viram varais na área de serviço dos nossos modernos “apertamentos”.
Naqueles tempos não se usava um motor a gasolina para aparar a grama. Utilizava-se um tesourão ou um cortador que exigiam músculos. Mas isso foi num tempo em que havia quintais e gramados. Hoje, em tempos de playgrounds de cimento e campos de grama sintética...
Sem playgrounds, nossa diversão era o futebol no campinho, as brincadeiras – bente-altas, pique-esconde, mãe-da-rua, garrafão e outras molecagens, sempre na rua, num tempo em que ser moleque e estar na rua eram as coisas mais naturais e saudáveis do mundo.
Bebíamos água da bilha ou do filtro de barro, em canecas de alumínio que faziam com que a água parecesse ter saído diretamente da fonte. Nada de copos descartáveis ou garrafas pet que tornam-se lixo por séculos e séculos amém.
A caneta tinteiro Parker 51 do meu pai era recarregável. Para fazer a barba, ele amolava sua própria navalha, ao invés de jogar fora todos os aparelhos 'descartáveis' quando a lâmina fica sem corte.
Ninguém gastava horas de estresse e litros de combustível para ir e voltar do trabalho. As pessoas tomavam o bonde ou ônibus sem atropelos, sem congestionamentos, sem hora do rush. Íamos à escola a pé ou de bicicleta, ao invés de usar a mãe como serviço de táxi 24 horas.
É verdade que éramos bem menos e vivíamos menos assustados, pois não havia os Datenas para nos aterrorizar. No Estádio Independência, na era pré-Mineirão, o máximo de agressão entre cruzeirenses e atleticanos eram as torcidas, sentadas lado a lado, sem divisão, gritando “cachorrada!” e a outra respondendo, “refrigerados!”.
Na verdade, já éramos ecológicos e tínhamos uma vida absolutamente sustentável.
Bons tempos, em que a gente era verde e não sabia...
Eduardo Machado
12/06/2013
Para a Elodie e o Marco Miranda
Tenho tido nestes anos, como padre, a gratíssima alegria de casar dezenas de amigos. Sei por eles, e da forma mais pura, a verdade daquele verso de Dante que diz: «o amor move o sol e as outras estrelas». Ao olhar para o interior das suas vidas, para dentro dos seus sonhos e até dos seus temores é esse incomparável mistério que se detecta: o modo como o amor, como a frágil força do amor é capaz de mover, de transfigurar e de unir, até ao fim, cada fragmento do corpo e cada filamento da alma.
Um outro autor italiano escreveu: «Somos anjos de uma asa apenas. Só permanecendo abraçados podemos voar». O casamento é a serena e criativa conjugação destes dois sentimentos que, fora dele, pareciam destinados a existir unicamente em contraste: a solidão e a comunhão. O amor agudiza a consciência de sermos um; descobre, aos nossos próprios olhos, a irresolúvel incompletude que individualmente nos caracteriza, a nossa insuperável carência; e ensina-nos o sabor de uma, até aí desconhecida, solidão: aquela que se sente por estar privados do ser amado. No bíblico livro de Rute isso vem assim explicitado: «a vida tratar-me-á com duros rigores se outra coisa, a não ser a morte, me impedir de olhar diariamente o teu rosto» (Rt 1,17). A solidão incandescente com que o amor fere os que se amam é, porém, o que faz dele uma prática de desejo e de caminho, um exercício de mendicância (na verdade, o amor é sempre uma conversa entre mendigos) e de busca, uma forma de entrega e de súplica. Por alguma razão a experiência religiosa da mística recorre a uma linguagem próxima desta amorosa. Os enamorados percebem o estado dos grandes orantes e vice-versa, creio.
Mas o amor é sobretudo milagre da comunhão. Uma comunhão construída também com esforço, é claro, conquistada continuamente ao território muito defendido do egoísmo, traduzida em decisões quotidianas e vigilantes. Porém, não é propriamente de uma conquista que se trata, mas do arrebatamento comum pelo dom, do espanto inesgotável, de uma hospitalidade radical. «Se me tapares os olhos: ainda poderei ver-te. Se me tapares os ouvidos: ainda poderei ouvir-te. E mesmo sem pés poderei ir para ti. E mesmo sem boca poderei invocar-te». O fundamental é vislumbrado e servido em completa dádiva, acontece sem porquês, no âmbito de uma gratuidade infatigável, numa geografia sem condições nem reservas. O amor não se explica: implica-se. É uma voluntária hipoteca, um sigilo de sangue, entrelaçamento vital. Os enamorados conspiram com o milagre e, por isso, tornam-se, de forma tão íntima, cúmplices de Deus.
Compreendo o aviso meio irónico que Auden faz contra as festas de casamento. Ele diz que os noivos deviam ser humildes e não fazer logo no primeiro do seu casamento uma festa colossal, quando, no fundo, está ainda tudo por construir. Mas também acho impossível não celebrar a alegria do casamento, e fazê-lo com uma simbólica desmesura. Poucos momentos dão a ver assim a vida na sua transparência.
Pe. José Tolentino Mendonça
padre e poeta português
Dias atrás, Gabriel Prehn Britto, do blog Gabriel quer viajar, tuitou a seguinte frase: “Precisamos redefinir, com urgência, o significado de URGENTE”. (Caixa alta, na internet, é grito.) “Parece que as pessoas perderam a noção do sentido da palavra”, comentou, quando perguntei por que tinha postado esse protesto/desabafo no Twitter. “Urgente não é mais urgente. Não tem mais significado nenhum.” Ele se referia tanto ao urgente usado para anunciar notícias nada urgentes nos sites e nas redes sociais, quanto ao urgente que invade nosso cotidiano, na forma de demanda tanto da vida pessoal quanto da profissional. Depois disso, Gabriel passou a postar uns “tuítes” provocativos, do tipo: “Urgente! Acordei” ou “Urgente: hoje é sexta-feira”.
A provocação é muito precisa. Se há algo que se perdeu nessa época em que a tecnologia tornou possível a todos alcançarem todos, a qualquer tempo, é o conceito de urgência. Vivemos ao mesmo tempo o privilégio e a maldição de experimentarmos uma transformação radical e muito, muito rápida em nosso ser/estar no mundo, com grande impacto na nossa relação com todos os outros. Como tudo o que é novo, é previsível que nos atrapalhemos. E nos lambuzemos um pouco, ou até bastante. Nessa nova configuração, parece necessário resgatarmos alguns conceitos, para que o nosso tempo não seja devorado por banalidades como se fosse matéria ordinária. E talvez o mais urgente desses conceitos seja mesmo o da urgência.
Estamos vivendo como se tudo fosse urgente. Urgente o suficiente para acessar alguém. E para exigir desse alguém uma resposta imediata. Como se o tempo do “outro” fosse, por direito, também o “meu” tempo. E até como se o corpo do outro fosse o meu corpo, já que posso invadi-lo, simbolicamente, a qualquer momento. Como se os limites entre os corpos tivessem ficado tão fluidos e indefinidos quanto a comunicação ampliada e potencializada pela tecnologia. Esse se apossar do tempo/corpo do outro pode ser compreendido como uma violência. Mas até certo ponto consensual, na medida em que este que é alcançado se abre/oferece para ser invadido. Torna-se, ao se colocar no modo “online”, um corpo/tempo à disposição. Mas exige o mesmo do outro – e retribui a possessão. Olho por olho, dente por dente. Tempo por tempo.
Como muitos, tenho tentado descobrir qual é a minha medida e quais são os meus limites nessa nova configuração. E passo a contar aqui um pouco desse percurso no cotidiano, assim como do trilhado por outras pessoas, para que o questionamento fique mais claro. Descobri logo que, para mim, o celular é insuportável. Não é possível ser alcançada por qualquer um, a qualquer hora, em qualquer lugar. Estou lendo um livro e, de repente, o mundo me invade, em geral com irrelevâncias, quando não com telemarketing. Estou escrevendo e alguém liga para me perguntar algo que poderia ter descoberto sozinho no Google, mas achou mais fácil me ligar, já que bastava apertar uma tecla do próprio celular. Trabalhei como uma camela e, no meu momento de folga, alguém resolve me acessar para falar de trabalho, obedecendo às suas próprias necessidades, sem dar a mínima para as minhas. Não, mas não mesmo. Não há chance de eu estar acessível – e disponível – 24 horas por sete dias, semana após semana.
Me bani do mundo dos celulares, fechei essa janela no meu corpo. Mantenho meu aparelho, mas ele fica desligado, com uma gravação de “não uso celular, por favor, mande um e-mail”. Carrego-o comigo quando saio e quase sempre que viajo. Se precisar chamar um táxi em algum momento ou tiver uma urgência real, ligo o celular e faço uma chamada. Foi o jeito que encontrei de usar a tecnologia sem ser usada por ela.
Minha decisão não foi bem recebida pelas pessoas do mundo do trabalho, em geral, nem mesmo pela maior parte dos amigos e da família. Descobri que, ao não me colocar 24 horas disponível, as pessoas se sentiam pessoalmente rejeitadas. Mas não apenas isso: elas sentiam-se lesadas no seu suposto direito a tomar o meu tempo na hora que bem entendessem, com ou sem necessidade, como se não devesse existir nenhum limite ao seu desejo. Algumas declararam-se ofendidas. Como assim eu não posso falar com você na hora que eu quiser? Como assim o seu tempo não é um pouco meu? E se eu precisar falar com você com urgência? Se for urgência real – e quase nunca é – há outras formas de me alcançar.
Percebi também que, em geral, as pessoas sentem não só uma obrigação de estar disponíveis, mas também um gozo. Talvez mais gozo do que obrigação. É o que explica a cena corriqueira de ver as pessoas atendendo o celular nos lugares mais absurdos (inclusive no banheiro...). Nem vou falar de cinema, que aí deveria ser caso de polícia. Mas em aulas de todos os tipos, em restaurantes e bares, em encontros íntimos ou mesmo profissionais. É o gozo de se considerar imprescindível. Como se o mundo e todos os outros não conseguissem viver sem sua onipresença. Se não atenderem o celular, se não forem encontradas de imediato, se não derem uma resposta imediata, catástrofes poderão acontecer.
O celular ligado funciona como uma autoafirmação de importância. Tipo: o mundo (a empresa/a família/ o namorado/ o filho/ a esposa/ a empregada/ o patrão/os funcionários etc) não sobrevive sem mim. A pessoa se estressa, reclama do assédio, mas não desliga o celular por nada. Desligar o celular e descobrir que o planeta continua girando pode ser um risco maior. Nesse sentido, e sem nenhuma ironia, é comovente.
Por outro lado, é um tanto egoísta, já que a pessoa não se coloca por inteiro onde está, numa aula ou no trabalho ou mesmo em casa – nem se dedica por inteiro àquele com quem escolheu estar, num encontro íntimo ou profissional. Está lá – mas apenas parcialmente. Não há como não ter efeito sobre o momento – e sobre o resultado. A pessoa está parcialmente com alguém ou naquela atividade específica, mas também está parcialmente consigo mesma. Ao manter o celular ligado, você pertence ao mundo, a todo mundo e a qualquer um – mas talvez não a si mesmo.
Me parece descortês alguém estar comigo num restaurante, por exemplo, e interromper a conversa e a comida para atender o celular. Assim como me parece abusivo ser obrigada a aturar os celulares das pessoas ao redor tocando em todas as modalidades e volumes, invadindo o espaço de todos os outros sem nenhuma consideração. Ou ainda estar em um lugar público e ter de ouvir a narração de uma vida privada, uma que não conheço nem quero conhecer. Será que isso é realmente necessário? Será que uma pessoa não pode se ausentar, ficar incomunicável, por algumas horas? Será que temos o direito de invadir o corpo/tempo dos outros direta ou indiretamente? Será que há tantas urgências assim? Como é que trabalhávamos e amávamos antes, então?
Bem, eu não sou imprescindível a todo mundo e tenho certeza de que os dias nascem e morrem sem mim. As emergências reais são poucas, ainda bem, e para estas há forma de me encontrar. Logo, posso ficar sem celular. Mas tive de me esforçar para que as pessoas entendessem que não é uma rejeição ou uma modalidade de misantropia, apenas uma escolha. Para mim, é uma maneira de definir as fronteiras simbólicas do meu corpo, de territorializar o que sou eu e o que é o outro, e de estabelecer limites – o que me parece fundamental em qualquer vida.
Tentei manter um telefone fixo, com o número restrito às pessoas fundamentais no campo dos afetos e também no profissional. Mas o telemarketing não permitiu. É impressionante como as empresas de todo o tipo – e agora até os candidatos numa eleição – acham que têm o direito de nos invadir a qualquer hora. Considero uma violência receber uma ligação ou gravação dessas dentro de casa, à minha revelia. E parece que sempre encontram um jeito de burlar nossas tentativas de barrar esse tipo de assédio. Assim, também botei uma gravação no telefone fixo – e ele virou um telefone só para recados, porque foi o único jeito que encontrei de impedir o abuso do mercado.
Minha principal forma de comunicação é hoje o e-mail, porque sou eu que escolho a hora de acessá-lo. E, ao procurar alguém, seja por motivo profissional ou pessoal, tenho certeza de não estar invadindo seu cotidiano em hora imprópria. É assim que combino encontros e entrevistas ao vivo, que são os que eu prefiro. Ou marco horário para conversas por Skype com quem está em outra cidade ou país. E quando viajo ou preciso desaparecer do mundo, para ficar só comigo mesma, ou me dedicar a um outro por completo, ou à escrita de um livro, basta deixar uma mensagem automática. Tento me disciplinar para acessar o Twitter, que para mim é hoje uma ferramenta fundamental para dar, receber e principalmente compartilhar informações, em horários específicos. E desligo o computador antes de dormir, como gesto simbólico que diz: fechei a porta.
Uma amiga foi assaltada por uma insônia persistente. Ao despertar, na madrugada, tinha a sensação de que o mundo se movia em ritmo veloz enquanto ela dormia. Parecia que estava perdendo algo importante, que ficaria para trás. E parecia até que estava morta para o mundo, “offline”. Às vezes não resistia e saía da cama para caminhar até o escritório, onde ficava o computador, e entrar no Facebook e no Twitter, dar uma circulada nos sites de notícias, manter-se desperta, presente e alinhada ao mundo que não parava, correndo atrás dele. Depois, passou a deixar o notebook ao lado da cama e já acessava a internet dali mesmo, apesar dos protestos do marido.
Quando a insônia já estava comprometendo seriamente os seus dias, ela procurou um psiquiatra em busca de remédio. O médico perguntou bastante sobre seus hábitos, e ela descobriu que o pesadelo que a deixava insone era aquele computador ligado, com o mundo acontecendo dentro dele num ritmo que ela não podia acompanhar nem mesmo se mantendo acordada por 24 horas. Bastou desligar o computador a cada noite para que passasse a despertar menos vezes e menos sobressaltada nas madrugadas. Aos poucos, voltou a dormir bem. O mundo estava onde devia estar – e ela também, na cama. Estava offline, mas viva.
Conheço pessoas que botam fita adesiva sobre a câmera do computador. Foi o meio encontrado para se protegerem da sensação de que estavam sendo espiadas/monitoradas 24 horas por dia por algum tipo de Big Brother – no sentido do 1984, do George Orwell (não no do reality show da TV Globo). A câmera tinha se tornado uma espécie de olho do mundo, que podia abrir as pálpebras mesmo à revelia, como nas histórias fantásticas e nos filmes de terror.
Conto minhas (des)venturas, assim como as de outros, apenas porque acho que não somos os únicos a ter esse tipo de inquietação. É um momento histórico bem estratégico de redefinição de limites, de territórios e também de conceitos. Que tipo de efeito terá sobre as novas gerações a ideia de que não há limites para alcançar, ocupar e consumir o tempo/corpo dos pais e amigos e mesmo de desconhecidos? Assim como não há limites para ter o próprio tempo/corpo alcançado, ocupado e consumido?
Ainda acho que o gozo de ser imprescindível a quase todos os outros – no sentido de não poder se ausentar ou se calar – e também de ser onipotente – no sentido de alcançar, a qualquer hora, o corpo de todos os outros – é maior do que o incômodo. Mas talvez só aparentemente, na medida em que é possível que não estejamos conseguindo avaliar o estrago que esses corpos/tempos violáveis e violados possam estar causando na nossa subjetividade – e mesmo na nossa capacidade criativa e criadora.
A grande perda é que, ao se considerar tudo urgente, nada mais é urgente. Perde-se o sentido do que é prioritário em todas as dimensões do cotidiano. E viver é, de certo modo, um constante interrogar-se sobre o que é importante para cada um. Ou, dito de outro modo, uma constante interrogação sobre para quem e para o quê damos nosso tempo, já que tempo não é dinheiro, mas algo tremendamente mais valioso. Como disse o professor Antonio Candido, “tempo é o tecido das nossas vidas”.
Essa oferta 24 X 7 do nosso corpo simbólico para todos os outros – e às vezes para qualquer um – pode ter um efeito bem devastador sobre a nossa existência. Um que sequer é escutado, dado o tanto de barulho que há. Falamos e ouvimos muito, mas de fato não sabemos se dizemos algo e se escutamos algo. Ou se é apenas ruído para preencher um vazio que não pode ser preenchido dessa maneira.
Será que não é este o nosso mal-estar?
Viver no tempo do outro – de todos e de qualquer um – é uma tragédia contemporânea.
Eliane Brum
In: site da Revista Época – 29.04.2013
Affonso Romano de Santana
"Mas você sabe que a pessoa pode encalhar numa palavra e perder anos de vida?" Clarice Lispector
Vejam só: encalhar numa palavra. A pessoa lá vai no seu barquinho vida adentro e, de repente, encalha numa palavra. Pode ser “marxismo”, “Deus”, “pai”, “vanguarda”, “revolução”, “Paris”, “aposentadoria”. As palavras são paralisantes. O Brasil, por exemplo, no princípio do século estava encalhado na “febre amarela”. Nos últimos anos reencalhou na “ditadura” e na “censura”. Tem hora que encalha na “inflação”. Agora encalhou no “desemprego”. E está difícil desencalhar da “reforma agrária”, da “corrupção” e do “subdesenvolvimento”. (...)
Quem leu O nome da rosa se lembra que havia lá na biblioteca medieval um texto impossível, envenenado, como o fruto interditado no meio do jardim. É que as palavras, com essa coisa de se plantarem em nossa vida, nos alimentam e nos matam, são remédio e veneno, e, como os produtos de uma farmácia, são drogas que podem sarar ou curar.
Aurélio Buarque de Hollanda, enfatizando o lado positivo das palavras, me disse um dia: “nós temos que dar oportunidade às palavras”. Entendi isto como uma sugestão para a gente se desencalhar e ir desfrutando palavras novas, como o amante que com um novo amor renasce vida afora.
Em algumas culturas, certas palavras não podem sequer ser pronunciadas, pois trazem desgraças. Mas em algumas narrativas, certos vocábulos abrem grutas, cofres e corações. Sim, algumas palavras ajudam o barco a flutuar: “esperança”, “amanhã”, “utopia”. Pode-se também passar uma estação com algumas delas, como se pode passar uma temporada num determinado lugar, num certo corpo, num certo amor. Certas palavras são como hotéis: nelas fazemos pernoite, mas outras demandam moradia maior, são grutas ou catedrais que exigem contemplação.
Com as palavras a gente tem que tomar cuidado, pois no primeiro encontro nos libertam, depois nos aprisionam. Há palavras tão duras e montanhosas, que nem com trator, só dinamitando. E o fato é que um simples “bom dia” ou “alô” pode salvar uma vida. A psicanálise pretende ser o método da “cura pela fala”, mas também pode se tratar pelo ouvido. As palavras ouvidas também curam. Vejam a mãe soprando o dedinho do filho dizendo: “já passou o dodói, pronto”.
Viver também é a arte de lidar com as palavras. E como já disse alguém - as palavras são caminhos para encontrar as coisas perdidas.
(Adaptação. In: http://midiaeopiniao.blogspot.com - acessado em 06/10/2010)
Equipe do Centro Loyola
30.04.2013
“Não é um acaso que os mitos de sucesso de hoje apelem para pessoas que deixaram a escola de lado”
As pessoas não gostam de pensar. Dá trabalho. Sobretudo quando a exigência de reflexão parece jogar contra tudo que se convencionou considerar como valor: o sucesso, o dinheiro e o poder. Por isso os pensadores estão em baixa, o estudo deixou de ser um bem, a ideia de preparação apenas um atraso à chegada ao mundo das mercadorias e do prazer imediato e com preço na etiqueta.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman vem, nas últimas décadas, alertando para esse tipo de cenário, a modernidade líquida (que substituiu a modernidade sólida), e para o tipo de homem funcional nesse contexto. Sua extensa obra é um alerta que, embora fundamentado na melhor ciência social, parte sempre do cotidiano e de experiências presentes na vida de todos: o medo que paralisa e nos entope de ansiedade, a fragilidade dos laços amorosos, transformação do homem em mercadoria pela sanha do consumo, o desprestígio da política, a aceitação da injustiça social como um mero dano colateral da globalização.
Com 30 livros já lançados no Brasil, Bauman vive na Inglaterra desde 1971 e, a cada estudo, parece operar um poderoso do-in em nossas fragilidades. Com a capacidade de ir no ponto certo, sua massagem intelectual faz circular energias necessárias para quem ainda se dispõe não apenas a compreender nossos descaminhos, como a atuar para modificar seu rumo. O que Bauman mostra não é um panorama de depressão e tristeza. Ele sabe que a modernidade líquida, ainda que ansiogênica em sua natureza, se alimenta da cota de prazer que promete em termos de consumo e felicidade imediata. A modernidade líquida não é um descaminho, mas um projeto.
Por isso, o mais recente livro do sociólogo, Sobre educação e juventude (Editora Zahar), é tão interessante. Dado o diagnóstico, Bauman se preocupa em mostrar o projeto de formação educacional que está por trás de um mundo sem futuro. Mesmo a mais liberal das ideologias sempre via na educação um momento necessário para renovação das elites culturais e políticas. Estava na educação o bastão que se transmitia de uma geração a outra, em termos de valores e conhecimentos fundamentais. Na sociedade líquida, na cultura de cassino, na expressão de George Steiner, esquecer é melhor que lembrar. O consumo é ponto de partida e de chegada.
Não é um acaso que os jovens, hoje, se sintam desnorteados e raivosos quando percebem que a promessa de um emprego se frustra numa sociedade que não valoriza o conhecimento (há algumas décadas se falava orgulhosamente em sociedade do conhecimento, hoje se defende que devemos ser formados para esquecer o que aprendemos ontem sob o risco da obsolescência). Há vários sinais desse desprestígio: a corrida para os concursos (a estabilidade acima do desafio de criar e mudar o mundo), o excesso de relações virtuais, o abuso de drogas, o comportamento violento, o consumismo. Não é um acaso que os mitos de sucesso de hoje apelem tanto para pessoas que deixaram a escola de lado, como Steve Jobs, Jack Dorsey e David Karp, todos da área de informática: no mundo do sucesso imediato, a educação é um atraso de vida.
Em Sobre educação e juventude, o sociólogo, em diálogo com o italiano Ricardo Mazzeo, enfrenta os desafios da educação na sociedade contemporânea. Não se trata apenas de uma defesa genérica que costuma ser traduzida em termos de busca de mais recursos, ampliação da jornada, valorização dos professores e primazia do conhecimento, como se todos os males se devessem a um déficit no setor. Na verdade, o projeto de educação para o consumo é funcional e vitorioso, não sinal de uma derrota. Mudar a educação é um passo importante para a transformação da sociedade. Não se pode querer menos que isso.
Bauman começa lembrando a contribuição do antropólogo Gregory Bateson e sua distinção entre níveis de educação. No primeiro patamar, o mais baixo, há apenas a transferência de informação a ser memorizada. No segundo, se busca a formação de uma estrutura cognitiva que permita, no futuro, que outras informações possam ser absorvidas e incorporadas, criando um patrimônio de saber e habilidades. O terceiro nível se refere à capacidade de desfazer a estrutura anterior, sem deixar no lugar um elemento substituto. O que pode, em momentos muito especiais, ser a abertura para novo paradigmas (é importante lembrar que quebrar paradigmas é algo mais profundo que mudar de ideia), na maioria das vezes tem efeito paralisador sobre o conhecimento.
Na educação contemporânea, o primeiro nível deixou de ser importante, já que a mera informação foi transferida para a memória das máquinas, e o que era potencialmente um câncer se tornou um valor. Hoje, em alguns contextos, esquecer é mais importante que manter viva a memória. A tradução dessa operação, por exemplo, no mundo do trabalho, se dá na desvalorização de carreiras longas, de aprendizagens cumulativas, de patrimônios de experiência plasmados no tempo. Em muitas áreas de prestígio, vale mais ter tido muitos empregos dispersos e até conflitantes do que uma trajetória coerente de construção de um saber e de um saber fazer. A liquidez moderna exige desprendimento, volatilidade, mudança. Como os personagens de Lewis Carrol em Alice no País das Maravilhas, é preciso ir rápido para ficar no mesmo lugar e correr duas vezes mais rápido para sair de onde está.
Alimentar o ódio
A juventude atual vive um cenário de decréscimo de expectativas como não se via há muito tempo. Ter um diploma não é mais garantia de nada. Na geração de seus pais, não havia esforço mais amoroso que investir na educação do filho. Hoje, sobretudo na Europa, a ausência de perspectivas dos jovens, que se vêm forçados a aceitar ocupações abaixo de sua formação, domina as consciências infelizes. O resultado, ao lado de uma saudável revolta, contudo, muitas vezes se transforma em ódio geracional (como se a previdência fosse culpada de tudo) ou mixofobia, traduzida em comportamentos racistas e xenófobos, como se os estrangeiros fossem responsáveis pelo desequilíbrio de um capitalismo que não vê fronteiras na hora de expandir e quer criar barreiras no momento da distribuição.
Os alertas e propostas de Zygmunt Bauman não se voltam para a nostalgia de um passado de ouro. Há novos desafios no mundo. O que suas reflexões sobre a educação parecem trazer são alguns pressupostos que não podem ser deixados de lado quando se pensa, hoje, em soluções amplas para temas sociais e políticos.
O diagnóstico parece conter em si a terapia: somos herdeiros de uma era de diferenças, as questões globais só são pensáveis no terreno dos temas locais, a assimilação à cultura dominante não é mais um destino, o capitalismo gera mais problemas do que é capaz de resolver com seus próprios instrumentos, a tecnologia não vai dar conta de nosso impasse ecológico, a conquista dos ideais modernos foi interrompida, o mercado de consumo não vai obturar nossas faltas enquanto indivíduos e cidadãos.
Sobre educação e juventude é um livro para todos, já que, mesmo não sendo mais jovens, precisamos voltar à humilde disposição para aprender. Somos responsáveis pela mixórdia em que nos metemos. Mas é sempre mais cômodo colocar a culpa nos outros e apostar numa genérica saída “pela educação”. Qual educação? Como afirmou Paulo Freire, “o educador precisa ser educado”. O que era um acicate contra o conservadorismo talvez mereça hoje ser tomado como uma tarefa saneadora de nossas arrogâncias e certezas combalidas.
João Paulo Cunha
Editor de Cultura do Jornal Estado de Minas
15.04.2013
Francisco, o Papa Bergoglio é primeiro em muitas coisas. Primeiro Papa latino-americano, primeiro Papa argentino, primeiro Papa com nome de Francisco. É também e não menos o primeiro Papa jesuíta. A ordem fundada por Inácio de Loyola nunca havia dado um Papa à Igreja. Em parte por ser uma Ordem relativamente nova, com menos de 500 anos de existência. Também por ser uma Ordem numerosa e poderosa, que granjeou pelo mundo afora muitas simpatias, mas também muitos inimigos. Estes últimos tinham medo de que um Papa jesuíta pudesse fazer crescer exponencialmente a força da Companhia de Jesus.
Porém chegou o dia. Francisco, como escolheu chamar-se o cardeal Jorge Mario Bergoglio ao ser eleito Papa, é jesuíta. Entrou jovem na Companhia, recebeu sua formação na Argentina e no Chile. Ocupou todos os cargos importantes na Companhia de Jesus na Argentina: mestre de noviços, provincial, reitor do Colégio Máximo, antes de ser bispo e depois arcebispo de Buenos Aires.
Tudo isso demonstra quão profundamente o novo Papa está marcado em sua espiritualidade e seu modo de ser pelos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Espiritualidade cristocêntrica e essencialmente missionária, tem no discernimento dos espíritos para buscar e encontrar a vontade de Deus a fim de colocá-la em prática na vida de cada dia. Espiritualidade que move os afetos e a vontade na direção do querer de Deus, ensina a tomar decisões em plena liberdade sem ser pressionada pelas afeições desordenadas. Espiritualidade que acredita que o espírito deve exercitar-se assim como o corpo a fim de encontrar agilidade e flexibilidade em responder aos convites divinos, faz apelo à liberdade para que esta se deixe mover em direção ao que mais conduz ao louvor e ao serviço de Deus Nosso Senhor.
O novo Papa encontrará pela frente inumeráveis desafios. Alguns deles são administrativos e emergiram com mais força no final do pontificado anterior. Dizem respeito à transparência na comunicação interna da cúria, às finanças do Vaticano, etc. Outros tocam na própria imagem da Igreja como tal que se encontra arranhada pelos terríveis escândalos da pedofilia. A todos esses deverá responder com a indiferença – nome inaciano para a liberdade interior – que lhe permitirá enfrentar os conflitos e dores que o processo como um todo certamente lhe acarretará.
A espiritualidade inaciana pretende converter aquele que passa pela experiência dos Exercícios Espirituais em outro Cristo que possa andar pelo mundo com as atitudes, os gestos do próprio Jesus, pobre e humilde, que passou pela vida fazendo o bem a todos, sobretudo aos mais oprimidos e necessitados. Para isso expõe o exercitante à contemplação incessante desse Jesus, nos mistérios de sua infância, vida oculta, vida pública, paixão e morte e ressurreição. O desejo de Inácio é que o exercitante fique totalmente embebido e configurado pela pessoa de Jesus a fim de que todos os seus sentimentos, ações e decisões sejam imbuídos pelo espírito do mesmo Jesus, em seguimento obediente de sua pessoa, fazendo a vontade do Pai.
A espiritualidade inaciana ensina também aquele que a vive a pensar grande, desejar grande, ter grandes sonhos tendo como fim a glória de Deus. Por isso na hora de assumir uma missão ou um trabalho pastoral o critério tem que ser se isso conduz ao MAGIS, ou seja, ao bem mais universal que é necessariamente mais divino. Ao mesmo tempo deve colocar-se diante deste MAGIS com absoluta liberdade, não desejando outra coisa senão que se faça a vontade de Deus e que seu Reino cresça neste mundo.
Esta é a espiritualidade que vive o novo Papa e compreende-se que tenha aceitado a missão que lhe foi dada pela eleição de seus irmãos cardeais como uma oportunidade de ajudar a Igreja neste momento difícil a realizar o bem mais universal e mais divino. Compreende-se igualmente seu estilo de vida: pobre, simples, com uma cruz peitoral de ferro e sem outro revestimento a não ser a veste branca própria dos Papas. Entende-se e é motivo de alegria que tenha feito sua primeira comunicação aos fiéis reunidos na Praça São Pedro com tamanha simplicidade e despojamento.
Mais ainda: sente-se em sua pessoa e em seu discurso a sólida formação teológica que recebeu da Companhia de Jesus. Apresentou-se como bispo de Roma que é o que vem em primeiro lugar para aquele eleito pelo conclave para sentar-se na cadeira de São João de Latrão. Seu magistério ordinário é ser bispo de Roma e pastor dos católicos que ali vivem. E continuou: “E agora iniciamos este caminho, Bispo e povo... este caminho da Igreja de Roma, que é aquela que preside a todas as Igrejas na caridade.” Aí explicou o sentido de seu múnus universal como Papa.
Inclinando a cabeça pediu a oração do povo por sua pessoa e seu ministério. Foi um gesto típico de alguém formado na escola de Inácio de Loyola, cuja maior aspiração é seguir e servir o Cristo pobre e humilde. Esperemos que a fidelidade do novo Papa Francisco aos Exercícios que o formaram o ajude a ser um Papa segundo o coração de Deus: pobre, humilde, mas também cheio de ardentes desejos de pastorear a Igreja sempre mais em direção à vontade de Deus e à implantação de seu Reino de amor e justiça. Este será seu segredo e também e sobretudo, sua força.
Maria Clara Bingemer
teóloga, professora da PUC-Rio
(texto enviado pela internet - 24.03.2013)
O teólogo alegra-se com a escolha do nome do Papa. Cada nome de algum Papa do passado carrega o peso da história do antecessor. O nome Francisco rompe com tal tradição. Gesto original, simbólico. Sem especificação, o pensamento dirige-se primeiro ao santo de Assis. Lá o novo Papa busca inspiração para a vida de pontífice, confirmando teor de vida simples que já vinha levando como bispo e cardeal de Buenos Aires.
Esse nome faz-nos esperar que ele cumprirá a missão de fazer a Igreja Católica mais parecida com o santo de Assis que, por sua vez, na simplicidade e pobreza, seguia a Jesus Cristo, o pobre de Nazaré. Na linha da simplicidade e pobreza pessoal de vida, ele exprime desejo de renovação na Igreja. Mais:esse teor de vida o aproximou dos pobres em Buenos Aires. Aquilo que começou lá como arcebispo tem, agora, chance de prosseguir em nível amplo de toda Igreja. A proximidade com os pobres possui força enorme de conversão. João XXIII sonhou que o Concílio Vaticano II encarrilhasse a Igreja na direção dos pobres. E conseguiu.
Agora surgiu a ocasião do Papa Francisco realizar os desejos de João XXIII. Não passou despercebido outro gesto simbólico no momento em que apareceu diante da multidão na Praça de São Pedro. Inclinou-se, pediu que rezassem por ele e que o abençoassem. E só depois ele mesmo abençoou o povo. A primeira bênção que recebeu veio da multidão dos fiéis, que em noite de chuva, ali esperava para vê-lo e saudá-lo.
Os gestos simbólicos lançaram luzes de esperança. E no momento do início de pontificado, não cabe vasculhar o passado atrás de sombras e deitá-las sobre a imagem do Papa, mas antes acreditar na confissão de amor, como no caso do primeiro Papa Pedro.
Certamente soa no coração de Francisco as frases do apóstolo: Senhor, tu sabes que eu te amo! Esse amor por Jesus histórico no seguimento, cerne da espiritualidade inaciana, marcou-o desde o noviciado. Nos Exercícios Espirituais, Santo Inácio faz girar a vida espiritual em torno do seguimento de Jesus. Isso ele terá assimilado nos longos anos que viveu na Companhia de Jesus, antes de ser nomeado bispo e depois cardeal arcebispo de Buenos Aires.
Havia no ar o desejo de que viesse alguém de cunho profundamente pastoral, depois de termos tido um Papa teólogo, intelectual, acadêmico de Universidade alemã com rigor de pensamento. E o fato de ter vivido na Argentina dos dias de hoje ter-lhe-á proporcionado a experiência de ver como um país, que antes vivia uma realidade estilo classe média, decai grandemente e gera massas de pobres a amontoarem-se nas periferias por obra do sistema capitalista neoliberal.
Conheceu de perto a triste figura das grandes cidades latino-americanas e assim adquiriu conhecimento e compreensão do mundo dos pobres. Falar-se-á dele não por informação acadêmica, mas a partir da experiência vivida no cotidiano. Não lhe cabem adjetivos de conservador ou de tradicional. Vale mais dizer que lhe habitam o coração vivências que o aproximam dos pobres. E daí refletirão luzes e força pela presença do Espírito, para ajudar a Igreja no caminho em direção aos pobres.
Pe. João Batista Libanio
jesuíta, teólogo e professor da Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (FAJE).
In: Opinião e notícias - arquidiocese de BH - 15.03.2013
Nas redes sociais havia anunciado que o futuro Papa iria se chamar Francisco. E não me enganei. Por que Francisco? Porque São Francisco começou sua conversão ao ouvir o Crucifixo da capelinha de São Damião lhe dizer:”Francisco, vai e restaura a minha casa; olhe que ela está em ruinas”(S.Boaventura, Legenda Maior II,1).
Francisco tomou ao pé da letra estas palavras e reconstruíu a igrejinha da Porciúncula que existe ainda em Assis dentro de uma imensa catedral. Depois entendeu que se tratava de algo espiritual: restaurar a “Igreja que Cristo resgatara com seu sangue”(op.cit). Foi então que começou seu movimento de renovação da Igreja que era presidida pelo Papa mais poderoso da história, Inocêncio III. Começou morando com os hansenianos e de braço com um deles ia pelos caminhos pregando o evangelho em língua popular e não em latim.
É bom que se saiba que Francisco nunca foi padre mas apenas leigo. Só no final da vida, quando os Papas proibiram que os leigos pregassem, aceitou ser diácono à condição de não receber nenhuma remuneração pelo cargo.
Por que o Card. Jorge Mario Bergoglio escolheu o nome de Francisco? A meu ver foi exatamente porque se deu conta de que a Igreja, está em ruinas pela desmoralização dos vários escândalos que atingiram o que ela tinha de mais precioso: a moralidade e a credibilidade.
Francisco não é um nome. É um projeto de Igreja, pobre, simples, evangélica e destituída de todo o poder. É uma Igreja que anda pelos caminhos, junto com os últimos; que cria as primeiras comunidades de irmãos que rezam o breviário debaixo de árvores junto com os passarinhos. É uma Igreja ecológica que chama a todos os seres com a doce palavra de “irmãos e irmãs”. Francisco se mostrou obediente à Igreja dos Papas e, ao mesmo tempo, seguiu seu próprio caminho com o evangelho da pobreza na mão. Escreveu o então teólogo Joseph Ratzinger: ”O não de Francisco àquele tipo imperial de Igreja não poderia ser mais radical, é o que chamaríamos de protesto profético”(em Zeit Jesu, Herder 1970, 269). Ele não fala, simplesmente inaugura o novo.
Creio que o Papa Francisco tem em mente uma Igreja assim, fora dos palácios e dossímbolos do poder. Mostrou-o ao aparecer em público. Normalmente os Papas eRatizinger principalmente punham sobre os ombros a mozeta aquela capinha, cheia de brocados e ouro que só os imperadores podiam usar. O Papa Francisco veio simplesmente vestido de branco. Três pontos são de ressaltar em sua fala inaugural e são de grande significação simbólica.
A primeira: disse que quer “presidir na caridade”. Isso desde a Reforma e nos melhores teólogos do ecumenismo era pedido. O Papa não deve presidir com como um monarca absoluto, revestido de poder sagrado como o prevê o direito canônico. Segundo Jesus, deve presidir no amor e fortalecer a fé dos irmãos e irmãs.
A segunda: deu centralidade ao Povo de Deus, tão realçada pelo Vaticano II e posta de lado pelos dois Papas anteriores em favor da Hierarquia. O Papa Francisco, humildemente, pede que o Povo de Deus reze por ele e o abençoe. Somente depois, ele abençoará o Povo de Deus. Isto significa: ele está ai para servir e não par ser servido. Pede que o ajudem a construir um caminho juntos. E clama por fraternidade para toda a humanidade onde os seres humanos são se reconhecem como irmãos e irmãs mas atados às forças da economia.
Por fim, evitou toda a espetacularização da figura do Papa. Não estendeu os braços para saudar o povo. Ficou parado, imóvel, sério e sóbrio, diria, quase assustado. Apenas se via a figura branca que olhava com carinho para a multidão. Mas irradiava paz e confiança. Usou de humor falando sem uma retórica oficialista. Como um pastor fala aos seus fiéis.
Cabe por último ressaltar que é um Papa que vem do Grande Sul, onde estão os pobres da Humanidade e onde vivem 60% dos católicos. Com sua experiência de pastor, com uma nova visão das coisas, a partir de baixo, poderá reformar a Cúria, descentralizar a administração e conferir um rosto novo e crível à Igreja.
Leonardo Boff
A velhice sofreu uma cirurgia plástica na linguagem
Na semana passada, sugeri a uma pessoa próxima que trocasse a palavra “idosas” por “velhas” em um texto. E fui informada de que era impossível, porque as pessoas sobre as quais ela escrevia se recusavam a ser chamadas de “velhas”: só aceitavam ser “idosas”. Pensei: “roubaram a velhice”. As palavras escolhidas – e mais ainda as que escapam – dizem muito, como Freud já nos alertou há mais de um século. Se testemunhamos uma epidemia de cirurgias plásticas na tentativa da juventude para sempre (até a morte), é óbvio esperar que a língua seja atingida pela mesma ânsia. Acho que “idoso” é uma palavra “fotoshopada” – ou talvez um lifting completo na palavra “velho”. E saio aqui em defesa do “velho” – a palavra e o ser/estar de um tempo que, se tivermos sorte, chegará para todos.
Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também no idioma. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor idade”. Tenho anunciado a amigos e familiares que, se alguém me disser, em um futuro não tão distante, que estou na “melhor idade”, vou romper meu pacto pessoal de não violência. O mesmo vale para o primeiro que ousar falar comigo no diminutivo, como se eu tivesse voltado a ser criança. Insuportável.
A velhice é o que é. É o que é para cada um, mas é o que é para todos, também. Ser velho é estar perto da morte. E essa é uma experiência dura, duríssima até, mas também profunda. Negá-la é não só inútil como uma escolha que nos rouba alguma coisa de vital. Semanas atrás, em um programa de TV, o entrevistador me perguntou sobre a morte. E eu disse que queria viver a minha morte. Ele talvez não tenha entendido, porque afirmou: “Você não quer morrer”. E eu insisti na resposta: “Eu quero viver a minha morte”.
Na adolescência, eu acalentava a sincera esperança de que algum vampiro achasse o meu pescoço interessante o suficiente para me garantir a imortalidade. Mas acabei aceitando que vampiros não existem, embora circulem muitos chupadores de sangue por aí. Isso só para dizer que é claro que, se pudesse escolher, eu não morreria. Mas essa é uma obviedade que não nos leva a lugar algum. Que ninguém quer morrer, todo mundo sabe. Mas negar o inevitável serve apenas para engordar o nosso medo sem que aprendamos nada que valha a pena.
A morte tem sido roubada de nós. E tenho tomado providências para que a minha não seja apartada de mim. A vida é incontrolável e posso morrer de repente. Mas há uma chance razoável de que eu morra numa cama e, nesse caso, tudo o que eu espero da medicina é que amenize a minha dor. Cada um sabe do tamanho de sua tragédia, então esse é apenas o meu querer, sem a pretensão de que a minha escolha seja melhor que a dos outros. Mas eu gostaria de estar consciente, sem dor e sem tubos, porque o morrer será minha última experiência vivida. Acharia frustrante perder esse derradeiro conhecimento sobre a existência humana. Minha última chance de ser curiosa.
Há uma bela expressão que precisamos resgatar, cujo autor não consegui localizar: “A morte não é o contrário da vida. A morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”. A vida, portanto, inclui a morte. Por que falo da morte aqui nesse texto? Porque a mesma lógica que nos roubou a morte sequestrou a velhice. A velhice nos lembra da proximidade do fim, portanto acharam por bem eliminá-la. Numa sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor, envelhecer é perder valor. Os eufemismos são a expressão dessa desvalorização na linguagem.
Não, eu não sou velho. Sou idoso. Não, eu não moro num asilo. Mas numa casa de repouso. Não, eu não estou na velhice. Faço parte da melhor idade. Tenho muito medo dos eufemismos, porque eles soam bem intencionados. São os bonitinhos mas ordinários da língua. O que fazem é arrancar o conteúdo das letras que expressam a nossa vida. Justo quando as pessoas têm mais experiências e mais o que dizer, a sociedade tenta confiná-las e esvaziá-las também no idioma.
Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem. Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra banguela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito. Idoso fala de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada. Idoso pode ser apenas “ido”, aquele que já foi. Velho é – e está. Alguém vê um Boris Schnaiderman, uma Fernanda Montenegro e até um Fernando Henrique Cardoso como idosos? Ou um Clint Eastwood? Não. Eles são velhos.
Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice pela língua, a domesticação que já se dá no lugar destinado a eles numa sociedade em que, como disse alguém, “nasce-se adolescente e morre-se adolescente”, mesmo que com 90 anos. Idosos são incômodos porque usam fraldas ou precisam de ajuda para andar. Velhos incomodam com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para andar. Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas. Acredito que velhos desejam as recreacionistas. Idosos morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver.
Basta evocar a literatura para perceber a diferença. Alguém leria um livro chamado “O idoso e o mar”? Não. Como idoso o pescador não lutaria com aquele peixe. Imagine então essa obra-prima de Guimarães Rosa, do conto “Fita Verde no Cabelo”, submetida ao termo “idoso”: “Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam...”.
Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição.
Como em 2012 passei a estar mais perto dos 50 do que dos 40, já começo a ouvir sobre mim mesma um outro tipo de bobagem. O tal do “espírito jovem”. Envelhecer não é fácil. Longe disso. Ainda estou me acostumando a ser chamada de senhora sem olhar para os lados para descobrir com quem estão falando. Mas se existe algo bom em envelhecer, como já disse em uma coluna anterior, é o “espírito velho”. Esse é grande.
Vem com toda a trajetória e é cumulativo. Sei muito mais do que sabia antes, o que significa que sei muito menos do que achava que sabia aos 20 e aos 30. Sou consciente de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero. Me apavoro bem menos. Não embarco em qualquer papinho mole. Me estatelei de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas. Conheço cada vez mais os meus limites e tenho me batido para aceitá-los. Continua doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas. Troco com mais frequência o drama pelo humor nos comezinhos do cotidiano. Mantenho as memórias que me importam e jogo os entulhos fora. Torço para que as pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais divertidas. E espero que tenha tempo para envelhecer muito mais o meu espírito, porque ainda sofro à toa e tenho umas cracas grudadas à minha alma das quais preciso me livrar porque não me pertencem. Espero chegar aos 80 mais interessante, intensa e engraçada do que sou hoje.
Envelhecer o espírito é engrandecê-lo. Alargá-lo com experiências. Apalpar o tamanho cada vez maior do que não sabemos. Só somos sábios na juventude. Como disse Oscar Wilde, “não sou jovem o suficiente para saber tudo”. Na velhice havemos de ser ignorantes, fascinados pelas dimensões cada vez mais superlativas do que desconhecemos e queremos buscar. É essa a conquista. Espírito jovem? Nem tentem.
Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas, à cosmética da linguagem. Nem consentir que calem o que temos a dizer e a viver nessa fase da vida que, se não chegou, ainda chegará. Pode parecer uma besteira, mas eu cometo minha pequena subversão jamais escrevendo a palavra “idoso”, “terceira idade” e afins. Exceto, claro, se for para arrancar seus laços de fita e revelar sua indigência.
Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha. Me sentirei honrada com o reconhecimento da minha força. Sei que estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro, espero contar com um espírito cada vez mais velho para ter a coragem de encerrar minha travessia com a graça de um espanto.
ELIANE BRUM
texto publicado em Época - 20.02.2013
Não é difícil perceber como as manchetes das revistas do último fim de semana se referem à tragédia humana da boate Kiss de Santa Maria: "Quando o Brasil vai aprender?", "A asfixia não acabou", "Tão jovens, tão rápido e tão absurdo" e "Futuro roubado". É também uma tragédia que pode ser associada às escolas de todo o Brasil. É como se a boate de Santa Maria fosse uma metáfora da escola brasileira. Na primeira delas, os jovens perderam a vida por inalar um gás venenoso; na outra as crianças perdem o futuro por não inalarem o oxigênio do conhecimento. A imprevidência de proprietários, músicos e fiscais levou à morte por falta de ar; a de políticos, pais e eleitores leva a uma vida incompleta por falta de educação. A tragédia despertou para os riscos que correm nossos jovens em seus fins de semana em boates, mas ainda não despertou para o que perdem nossas crianças e jovens no dia a dia de suas escolas. Estamos fechando boates sem sistemas de segurança, mas ainda deixamos abertas escolas sem qualidade. Os pais começaram a não deixar seus filhos irem a boates inseguras, mas levam confiantemente suas crianças a escolas que não asseguram o futuro delas. Exigimos que as boates tenham portas de emergência, mas não exigimos que as escolas sejam a porta para o futuro das crianças.
A tragédia de Santa Maria provoca a percepção imediata da fragilidade vergonhosa na segurança de boates, mas a tragédia de nossa educação, apesar de suas vítimas, não é percebida. Isto porque ela é uma tragédia à qual nos acostumamos e nos embrutece, ou porque são crianças invisíveis pela pobreza, ou ainda porque somos um povo sem gosto pela antecipação, só ouvimos o grito de fogo e vemos a fumaça depois que matam. Por isso fechamos os olhos à tragédia da educação que hoje devasta a economia, a política e o tecido social do Brasil. O abandono de nossas escolas não mata diretamente, mas dificulta o futuro de cada criança que não estuda. Se as escolas fossem de qualidade para todos, teríamos menos violência urbana, maior produtividade, mais avanços no mundo das invenções de novas tecnologias e um país melhor. Por isso, ao mesmo tempo em que choramos as trágicas mortes dos jovens de Santa Maria, choremos também pelo futuro das crianças que não vão receber a educação necessária para enfrentar o mundo. Choremos pelos que perderam a vida na boate ao respirar o ar venenoso, e pelos que não vão receber nas escolas o ar puro do conhecimento. Não vamos recuperar as vidas eliminadas na boate Kiss, podemos apenas chorar e nos envergonhar. Mas podemos evitar o desperdício das vidas que estão hoje nas "Escolas Kiss": metáfora que une boate e escola, sobretudo, quando lembramos que a boate se chamava Kiss, nome que também deveríamos dar às nossas escolas de hoje: beijo do desprezo. Desprezo pelas vidas de jovens ou pelo futuro de nossas crianças.
Cristovam Buarque
In: O Globo, 09/02/2012.
Morri em Santa Maria hoje. Quem não morreu? Morri na Rua dos Andradas, 1925. Numa ladeira encrespada de fumaça.
A fumaça nunca foi tão negra no Rio Grande do Sul. Nunca uma nuvem foi tão nefasta.
Nem as tempestades mais mórbidas e elétricas desejam sua companhia. Seguirá sozinha, avulsa, página arrancada de um mapa.
A fumaça corrompeu o céu para sempre. O azul é cinza, anoitecemos em 27 de janeiro de 2013.
As chamas se acalmaram às 5h30, mas a morte nunca mais será controlada.
Morri porque tenho uma filha adolescente que demora a voltar para casa.
Morri porque já entrei em uma boate pensando como sairia dali em caso de incêndio.
Morri porque prefiro ficar perto do palco para ouvir melhor a banda.
Morri porque já confundi a porta de banheiro com a de emergência.
Morri porque jamais o fogo pede desculpas quando passa.
Morri porque já fui de algum jeito todos que morreram.
Morri sufocado de excesso de morte; como acordar de novo?
O prédio não aterrissou da manhã, como um avião desgovernado na pista.
A saída era uma só e o medo vinha de todos os lados.
Os adolescentes não vão acordar na hora do almoço. Não vão se lembrar de nada. Ou entender como se distanciaram de repente do futuro.
Mais de duzentos e quarenta jovens sem o último beijo da mãe, do pai, dos irmãos.
Os telefones ainda tocam no peito das vítimas estendidas no Ginásio Municipal.
As famílias ainda procuram suas crianças. As crianças universitárias estão eternamente no silencioso.
Ninguém tem coragem de atender e avisar o que aconteceu.
As palavras perderam o sentido.
Fabrício Carpinejar
In: http://carpinejar.blogspot.com.br/ (27.01.2013)
Equipe do site
01.02.2013
Para a maioria das pessoas, a palavra gentileza significa uma postura elegante, refinada, coisa de elite. A gentileza seria a prática corrente do gentil-homem, um termo antigo para designar aristocrata, e tão exclusivo que nem permitia uma versão feminina: alguém aí já ouviu falar de gentil-mulher?
Prefiro pensar em gentileza de forma diversa. Prefiro pensar em gentileza como coisa de gente. Gente, no sentido mais elevado do termo. Aquele sentido que usamos quando dizemos: "Fulano é gente". Ser gente é importante. Ser gente é viver a condição humana com generosidade, com altruísmo, com elegância. E a decorrência lógica deste modo de vida é a gentileza.
Mas do que falamos quando estamos falando em gentileza? Estamos falando, em primeiro lugar, de coisas simples, de pequenos gestos. Exemplo clássico: dar lugar no ônibus. Para uma pessoa idosa, para uma grávida, para uma mulher. Aparentemente é fácil de fazer. Aparentemente deveria ser uma iniciativa espontânea. Não é. Os ônibus têm um aviso lembrando que alguns assentos estão destinados preferencialmente a essas pessoas. Mas nem todos os passageiros dão bola para o aviso. Nem todos os passageiros são gentis. Gentileza, ao contrário da taxa de juros, é algo que está em baixa. E por que está em baixa?
Em primeiro lugar, porque gentileza se traduz exatamente em coisas como esta, em abrir mão de uma situação de vantagem, em dar o lugar. E dar o lugar, qualquer que seja este lugar, é uma iniciativa que poucos tomam.
Compreensivelmente, porque a regra em nosso mundo é ocupar lugar, não dar lugar; a regra é a pessoa conseguir o seu próprio espaço, é abrir caminho usando os cotovelos, se for o caso. Ou seja, a lei da selva adaptada ao convívio urbano - ironicamente, porque urbanidade implica gentileza.
Mas há uma atitude pior: negar a gentileza em nome de uma pretensa igualdade. As mulheres não queriam ser iguais aos homens? Então, que fiquem de pé nos ônibus. Como os homens.
É um raciocínio ao qual não falta uma certa lógica. O que falta a este raciocínio é outra coisa. É serenidade (substituída, não raro, por um mal disfarçado rancor). É generosidade. E as pessoas não renunciam à serenidade e à generosidade sem pagar um preço elevado.
Quando deixamos de dar o lugar, deixamos de dar. De novo, isto pode ser encarado com cinismo. As palavras de São Francisco, "é dando que se recebe", são usadas, sobretudo na política brasileira, como sinônimo de arreglo, de barganha, de toma-lá-dá-cá. É o princípio que preside ao loteamento de cargos. Cargos, como se sabe, representam lugares privilegiados, pelos quais muita gente luta encarniçadamente.
Isto é o raciocínio primário. A pessoa que ultrapassa esse raciocínio sabe que dar o lugar beneficia enormemente aquele que vai ficar de pé. Porque, ficando de pé, ele se torna gente. Ele cresce, figurativamente falando. Ele se destaca entre os demais. O cara que dá o lugar no ônibus é olhado pelos outros. É olhado com respeito, quando não com inveja. A gentileza fala do que existe de melhor na espécie humana. E o que existe de melhor na espécie humana é fácil de conseguir. Com a gentileza, acreditem, a gente fica gente.
Moacyr Scliar
(texto que circulou pela internet)
Todos foram à vila, para missa-do-galo e Natal, deixando na fazenda Tio Bola, por achaques de velhice, com o terreireiro Anjão, imbecil, e a cardíaca cozinheira Nhota. Tio Bola aceitara ficar, de boa graça, dando visíveis sinais de paciência. Tão magro, tão fraco: nem piolhos tinha mais. Tudo cabendo no possível, teve uma idéia.
Não de primeira e súbita invenção.
Apreciara antes a ausência de meninos e adultos, que o atormentavam, tratando-o de menos; dos outros convém é a gente se livrar. Logo, porém, casa vazia, os parentes figuravam ainda mais hostis e próximos. A gente precisa também da importunação dos outros. Tio Bola, desestimado, cumpria mazelas diversas, seus oitentas anos; mas afobado e azafamoso. Quis ver visões.
Seu espírito pulou tão quanto à vila, a Natal e missa, aquela merafusa. Topava era tristeza – isto é, falta de continuação. Por que é que a gente necessita, de todo jeito, dos outros? Velho sacode facilmente a cabeça. A idéia lhe chegou então, fantasia, passo de extravagância.
- “Mecê não mije na cama!” -intimara a Nhota, quando, comido o leite com farinha, ele fingia recolher-se. Não cabia no quarto. Natal era noite nova de antiguidade. Tomou o aviso e voltou-se: estafermado, no corredor, o Anjão fazia-lhe pelas costas gesto obsceno. Ordenou-lhe então - trouxesse ao curral um boi, qualquer!
Saiu o Anjão a obedecer, gostava do que parecesse feitiço ou maldade. E no pequeno cercado estava já o burro chumbo, de que os outros não tinham carecido. Sem excogitamento, o burrinho dera a Tio Bola o remate da ideia.
Lá tora o escuro fechava. O Anjão no pátio acendera fogo, acocorava-se ante chama e brasa. Esse se ria do sossego. Também botara milho e sal no cocho, mandado.
Natal era animação para surpresas, tintins tilintos, laldas e loas! O burro e o boi - à manjedoura - como quando os bichos falavam e os homens se calavam.
Nhota, em seus cantos, rezava para tomar ar, não baixando minuto, e tudo condenava. Tio Bola esperava que o Anjão se fosse, que Nhota não tossisse mas adormecesse.
Estava de alpercatas, de camisolão e sem carapuça, esticando à janela pescoço e nariz, muito compridos. Os currais todos ermos, menos aquele… Tremia de verdade.
Veio, enfim, à sorrelfa; a horas. Pelas dez horas. Queria ver. Devagar descera, com Deus, a escada. Burro e boi diferençavam-se, puxados da sombra, quase claros. Paz. Sem brusquidão nem bulir: de longe o reconheciam.
Os olhos oferecidos lustravam. Guarani, boi de carro, severo brando. Jacatirão, prezado burrinho de sela. Tio Bola tateou o cocho: limpo, úmido de línguas.
Empinou olhar: a umas estrelas miudinhas. Espiou o redor -caruca- que nem o esquecido, em vivido. Tio Bola devia distrair saudades, a velhice entristecía-o só um pouco. Riu do que não sentiu; riu e não cuspiu. Estava ali a não imaginar o mundo.
Por um tempo, acostumava a vista.
Nhota dormia, agora, decerto; até o Anjão. Os outros, no Natal, na vila, semelhavam sempre fugidos… Quem vinha rebater-lhe o ato, fazer-lhe irrisão? De anos, só isto, hoje somente, tinha ele resolvido e em seu poder: a Noite, o curralete, cheiro de estercos, céu aberto, os dois dredemente -gado e cavalgadura. Boi grosso, baixo, tostado, quase rapé. Burro cor de rato. Tão com ele, no meio espaço, de-junto. Caduco de maluco não estava. Não embargando que em espírito da gente ninguém intruje. Apoiou-se no topo do cocho. Bicho não é limpo nem sujo. Ia demorar lá um tanto. Só o viço da noite -o som confuso?
O Anjão, rondava. Nhota, também, com luz em castiçal, corria a casa; não chamava alto, porque lá a doença não lhe dava fôlego. Turro, o boi ainda não se deitara, como eles fazem -havia de sentir falta do Guaraná, par seu de junta. Burro não deita: come sempre, ou pára em pé, as horas todas. A gente podia esperar, assim como eles, ocultado num ponto do curral. Tudo era prazo.
Deitava-se no cocho? Não como o Menino, na pura nueza… O vôo de serafins, a sumidez daquilo. Mas, pecador, numa solidão sem sala. E um tiquinho de claro-escuro.
Teve para si que podia -não era indino- até o vir da aurora. Que o achassem sem tino perfeito, com algum desarranjo do juizo!
Tão gordo fora; e, assim, como era, tinha só de deixar de fora seus rústicos cotovelos. Agora, o comichar, uma coceira seca. Viu o boi deitar-se também -riscando primeiro com a pata uma cruz no chão, e ajoelhando-se- como eles procedem. O mundo perdeu seu tique-taque. Tombou no quiquiri de um cochilo. Relentava. Ouviu. O Anjão estava ali, no segundo curral, havia coisa de um instante. Que se aquietasse, pelo prazo de três credos.
Manteve-se. A hora dobrou de escura. Meia-noite já bateu? Abriu olhos de caçador. Dessurdo, escutou, já atilando. Um abecê, o reportório. Essas estrelas prosseguiam o caminhar, levantadas de um peso. Fazia futuro. O contrário do aqui não é ali… -achou. O boi -testo lento, olhos redondos. O burrinho, orelhas, fofas ventas. Da noite era um brotar, de plantação, do fundo. A noite era o dia ainda não gastado. Vez de espertar-se, viver, esta vida aos átimos… Soporava. Dormiu reto. Dormindo de pés postos.
Acordou, no tremeclarear. Orvalhava. A Nhota dormia também, ali sentada no chão, sem um rezungo. O Anjão, agachado, acendera um foguinho. Conchegados, com o boi amarelão e o burro rato, permaneciam; tão tanto ouvindo se passarinhos em incerta entonação.
A estrela-d’alva se tirou. Já mais clareava. As pretas árvores nos azulados… O Anjão se riu para o sol. Nhota entoava o Bendito, não tinha morrido. Cantando o galo, em arrebato: a última estrelinha se pingou para dentro.
Tio Bola levantou-se -o corpo todo tinha dor-decabeça. Deu ordens, de manhã, dia: o Anjão soltasse burro e boi aos campos, a Nhota indo coar café. Os outros vinham voltar, da vila, de Natal e missa-do-galo. Tio Bola subiu a escada, de camisolão e alpercatas, sarabambo, repetia:
- Amém, Jesus!
João Guimarães Rosa
In: Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
FELIZ POR NADA
Geralmente, quando uma pessoa exclama “Estou tão feliz!”, é porque engatou um novo amor, conseguiu uma promoção, ganhou uma bolsa de estudos, perdeu os quilos que precisava ou algo do tipo. Há sempre um porquê. Eu costumo torcer para que essa felicidade dure um bom tempo, mas sei que as novidades envelhecem e que não é seguro se sentir feliz apenas por atingimento de metas. Muito melhor é ser feliz por nada.
Digamos: feliz porque maio recém começou e temos longos oito meses para fazer de 2010 um ano memorável. Feliz por estar com as dívidas pagas. Feliz porque alguém o elogiou. Feliz porque existe uma perspectiva de viagem daqui a alguns meses. Feliz porque você não magoou ninguém hoje. Feliz porque daqui a pouco será hora de dormir e não há lugar no mundo mais acolhedor do que sua cama.
Esquece. Mesmo sendo motivos prosaicos, isso ainda é ser feliz por muito.
Feliz por nada, nada mesmo?
Talvez passe pela total despreocupação com essa busca. Essa tal de felicidade inferniza. “Faça isso, faça aquilo”. A troco? Quem garante que todos chegam lá pelo mesmo caminho?
Particularmente, gosto de quem tem compromisso com a alegria, que procura relativizar as chatices diárias e se concentrar no que importa pra valer, e assim alivia o seu cotidiano e não atormenta o dos outros. Mas não estando alegre, é possível ser feliz também. Não estando “realizado”, também. Estando triste, felicíssimo igual. Porque felicidade é calma. Consciência. É ter talento para aturar o inevitável, é tirar algum proveito do imprevisto, é ficar debochadamente assombrado consigo próprio: como é que eu me meti nessa, como é que foi acontecer comigo? Pois é, são os efeitos colaterais de se estar vivo.
Benditos os que conseguem se deixar em paz. Os que não se cobram por não terem cumprido suas resoluções, que não se culpam por terem falhado, não se torturam por terem sido contraditórios, não se punem por não terem sido perfeitos. Apenas fazem o melhor que podem.
Se é para ser mestre em alguma coisa, então que sejamos mestres em nos libertar da patrulha do pensamento de querer se adequar à sociedade e ao mesmo tempo ser livre. Adequação e liberdade simultaneamente? É uma senhora ambição. Demanda a energia de uma usina. Para que se consumir tanto?
A vida não é um questionário de Proust. Você não precisa ter que responder ao mundo quais são suas qualidades, sua cor preferida, seu prato favorito, que bicho seria. Que mania de se autoconhecer. Chega de se autoconhecer.
Você é o que é, um imperfeito bem-intencionado e que muda de opinião sem a menor culpa.
Ser feliz por nada talvez seja isso.
Martha Medeiros
In: Jornal “Zero Hora” nº. 16323, 2/5/2010
Eis a primeira direção que seguiremos. Quem diz espírito diz, antes de tudo, consciência. Mas o que é a consciência? É claro que não vou definir algo tão concreto, tão constantemente presente à experiência de cada um de nós. Mas sem dar da consciência uma definição que seria menos clara do que ela própria posso caracteriza-la pelo seu traço mais aparente: consciência significa primeiramente memória. À memória pode faltar amplitude; ela pode abarcar apenas uma parte ínfima do passado; ela pode reter apenas o que acaba de acontecer; mas a memória existe, ou então não existe consciência. Uma consciência que não conservasse nada de seu passado, que se esquecesse sem cessar de si própria, pereceria e renasceria a cada instante; como definir de outra forma a inconsciência? Quando Leibniz dizia que a matéria é “um espírito instantâneo”, não a declarava, bem ou mal, insensível? Toda consciência é, pois, memória – conservação e acumulação do passado no presente.
Mas toda consciência é antecipação do futuro. Consideremos a direção de nosso espírito a qualquer momento: veremos que ele se ocupa do que ele é, mas sobretudo em vista do que ele vai ser. A atenção é uma expectativa, e não há consciência sem uma certa atenção à vida. O futuro lá está: ele nos chama, ou melhor, ele nos puxa: esta tração ininterrupta, que nos faz avançar na rota do tempo, é também a causa de que ajamos continuadamente. Toda ação é um penetrar no futuro.
Reter o que já não é, antecipar o que ainda não é, eis a primeira função da consciência. Não haveria para ela o presente se este se reduzisse ao instante matemático. Este instante é apenas o limite, puramente teórico, que separa o passado do futuro; ele pode a rigor ser concebido, não é jamais percebido; quando cremos surpreende-lo, ele já está longe de nós. O que percebemos de fato é uma certa espessura de duração que se compõe de duas partes: nosso passado imediato e nosso futuro iminente. Sobre este passado nos apoiamos, sobre este futuro nos debruçamos; apoiar-se e debruçar-se desta maneira é o que é próprio de um ser consciente. Digamos, pois, que a consciência é o traço de união entre o que foi e o que será, uma ponte entre o passado e o futuro.
(Henri Bergson, A consciência e a vida.
São Paulo, Abril Cultural, 1974)
Sei que você passa longas horas no computador navegando a bordo de todas as ferramentas disponíveis. Não lhe invejo a adolescência. Na sua idade, eu me iniciava na militância estudantil e injetava utopia na veia. Já tinha lido todo o Monteiro Lobato e me adentrava pelas obras de Jorge Amado guiado pelos “Capitães de areia”.
A TV não me atraía e, após o jantar, eu me juntava à turma de rua, entregue às emoções de flertes juvenis ou sentar com meus amigos à mesa de uma lanchonete para falar de Cinema Novo, bossa nova – porque tudo era novo – ou das obras de Jean Paul Sartre.
Sei que a internet é uma imensa janela para o mundo e a história, e costumo parafrasear que o Google é meu pastor, nada me há de faltar...
O que me preocupa em você é a falta de síntese cognitiva. Ao se postar diante do computador, você recebe uma avalanche de informações e imagens, como as lavas de um vulcão se precipitam sobre uma aldeia. Sem clareza do que realmente suscita o seu interesse, você não consegue transformar informação em conhecimento e entretenimento em cultura. Você borboleteia por inúmeros nichos, enquanto sua mente navega à deriva qual bote sem remos jogado ao sabor das ondas.
Quanto tempo você perde percorrendo nichos de conversa fiada? Sim, é bom trocar mensagens com os amigos. Mas, no mínimo, convém ter o que dizer e perguntar. É excitante enveredar-se pelos corredores virtuais de pessoas anônimas acostumadas ao jogo do esconde-esconde. Cuidado! Aquela garota que o fascina com tanto palavreado picante talvez não passe de um velho pedófilo que, acobertado pelo anonimato, se fantasia de beldade.
Desconfie de quem não tem o que fazer, exceto entrincheirar-se horas seguidas na digitação compulsiva à caça de incautos que se deixam ludibriar por mensagens eróticas.
Faça bom uso da internet. Use-a como ferramenta de pesquisa para aprofundar seus estudos; visite os nichos que emitem cultura; conheça a biografia de pessoas que você admira; saiba a história de seu time preferido; veja as incríveis imagens do Universo captadas pelo telescópio Hubble; ouça sinfonias e música pop.
Mas fique alerta à saúde! O uso prolongado do computador pode causar-lhe, nas mãos, lesão por esforço repetitivo (ler) e torná-lo sedentário, obeso, sobretudo se, ao lado do teclado, você mantém uma garrafa de refrigerante e um pacote de batatas fritas...
Cuide de sua vista, aumente o corpo das letras, deixe seus olhos se distraírem periodicamente em alguma paisagem que não seja a que o monitor exibe.
E preste atenção: não existe almoço grátis. Não se iluda com a ideia de que o computador lhe custa apenas a taxa de consumo de energia elétrica, as mensalidades do provedor e do acesso à internet. O que mantém em funcionamento esta máquina na qual redijo este artigo é a publicidade. Repare como há anúncios por todos os cantos! São eles que bancam o Google, as notícias, a wikipédia etc. É a poluição consumista mordiscando o nosso inconsciente.
Não se deixe escravizar pelo computador. Não permita que ele roube seu tempo de lazer, de ler um bom livro (de papel, e não virtual), de convivência com a família e os amigos. Submeta-o à sua qualidade de vida. Saiba fazê-lo funcionar apenas em determinadas horas do dia. Vença a compulsão que ele provoca em muitas pessoas.
E não se deixe iludir. Jamais a máquina será mais inteligente que o ser humano. Ela contém milhares de informações, mas nada sabe. Ela é capaz de vencê-lo no xadrez – porque alguém semelhante a você e a mim a programou para jogar. Ela exibe os melhores filmes e nos permite escutar as mais emocionantes músicas, mas nunca se deliciará com o amplo cardápio que nos oferece.
Se você prefere a máquina às pessoas e a usa como refúgio de sua aversão à sociabilidade, trate de procurar um médico. Porque sua autoestima está lá embaixo e o computador não haverá de encará-lo como se fosse um verme. Ou sua autoestima atingiu os píncaros e você acredita que não existem pessoas à sua altura, melhor ficar sozinho.
Nas duas hipóteses você está sendo canibalizado pelo computador. E, aos poucos, se transformará num ser meramente virtual. O que não é uma virtude. Antes, é a comprovação de que já sofre de uma doença grave: a síndrome do onanismo eletrônico.
Frei Betto
escritor, autor do livro de contos “Aquário Negro” (Agir), entre outras obras.
1) É habitual que, na infância e na adolescência, um jovem sonhe com vitórias e aplausos, sem pensar nos esforços necessários para merecê-los.
Nestes dias, deparo-me com crianças ninadas por devaneios de glória olímpica. Sem querer, corto seu barato, explicando o que é indispensável fazer para que esses sonhos se transformem numa chance real de chegar lá.
As crianças respondem que elas não têm a intenção de realizar o tal sonho: apenas querem o prazer de devanear em paz. Até aqui, tudo bem, mas os pais me acusam de estragar, além dos sonhos, o futuro dos filhos, os quais, segundo eles, para triunfar na vida, precisariam confiar cegamente em seus dotes.
O problema é que os elogios incondicionais dos pais e dos adultos não produzem "autoconfiança", mas dependência: os filhos se tornam cronicamente dependentes da aprovação dos pais e, mais tarde, dos outros. "Treinados" dessa forma, eles passam a vida se esforçando, não para alcançar o que desejam, mas para ganhar um aplauso.
Claro, muitos pais gostam que assim seja, pois adoram se sentir indispensáveis (no cinema, uma mãe enfia a cara embaixo de seu próprio assento para atender o telefone que vibrou no meio do filme e sussurrar um importantíssimo: sim, pode tomar refrigerante).
2) Meu irmão, aos dez anos, quis que todos escutássemos uma música que ele acabava de "compor". Movimentando ao acaso os dedos sobre o teclado (não tínhamos a menor educação musical), ele cantou uma letra que começava assim: sou bonito e eu o sei. Minha mãe escutou, constrangida, e, no fim, declarou que a letra era uma besteira, e a música, inexistente. Mas, se meu irmão quisesse, ele poderia estudar piano --à condição que se engajasse a se exercitar uma hora por dia. Meu irmão (desafinado como eu) desistiu disso e se tornou um médico excelente.
3) Os pais dos meus pais davam, no máximo, um beijo na testa de seus filhos. Já meus pais nos beijavam e abraçavam. Mesmo assim, não éramos o centro da vida deles, enquanto nossos filhos são facilmente o centro da nossa.
Para a geração de meus avós e de meus pais, a vida dos adultos não devia ser decidida em função do interesse das crianças, até porque o principal interesse das crianças era sua transformação em adulto (criança tem um defeito, foi-me dito uma vez por um tio: o de ser ainda só uma criança).
Lá pelos meus oito anos, eu tinha passado o domingo com meus pais, visitando parentes. A noite chegou, e eu não tinha nem começado meu dever de casa. Pedi uma nota assinada que me desculpasse. Meu pai disse: esta criança está com sono e deve trabalhar, façam um café para ele. Detestei, mas também gostei de aprender que, mesmo na infância, há coisas mais importantes do que sono e bem-estar.
4) Na pré-estreia do último "Batman", em Aurora, Colorado, um atirador feriu 58 pessoas e matou 12. Um comentador da TV norte-americana (não sei mais qual canal) disse, de uma menina assassinada, que ela era "uma vítima inocente".
Se só a menina era inocente, quer dizer que os outros 11, por serem adultos, eram culpados e mereciam os tiros?
Tudo bem, estou sendo de má-fé: o comentador queria nos enternecer e supunha, com razão, que, para a gente, perder um adulto fosse menos grave do que perder uma criança, que tem sua vida pela frente e, como se diz, ainda é "um anjo". No entanto, eu não acredito em anjos e ainda menos acredito que crianças sejam anjos. Também não sei o que é mais grave perder: a esperança de um futuro ou o patrimônio das experiências acumuladas de uma vida? Você trocaria seus bens atuais por um bilhete da Mega-Sena de sábado que vem?
5) Cuidado, não sonho com uma impossível volta ao passado. Essas notas servem para propor uma mudança preliminar na maneira de contabilizar as falhas que podem atrapalhar a vida de nossos rebentos. Explico.
A partir do fim do século 18, no Ocidente, as crianças adquiriram um valor novo e especial. Únicas continuadoras de nossas vidas, elas foram encarregadas de compensar nossos fracassos por seu sucesso e sua felicidade.
Desde essa época, em que as crianças começaram a ser amadas e cuidadas extraordinariamente, nós nos preocupamos com os efeitos nelas de uma eventual falta de amor. Agora, começo a pensar que nossa preocupação com os estragos produzidos pela falta de amor sirva, sobretudo, para evitar de encarar os estragos produzidos pelos excessos de nosso amor pelas crianças.
Contardo Calligaris
Psicanalista e escritor
Texto publicado na Folha de São Paulo em 09.08.2012
Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente tem coragem para aquilo que ele realmente conhece", observou Nietzsche. É o meu caso. Muitos pensamentos meus, eu guardei em segredo. Por medo. Alberto Camus, leitor de Nietzsche, acrescentou um detalhe acerca da hora em que a coragem chega:"Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos". Tardiamente. Na velhice. Como estou velho, ganhei coragem.Vou dizer aquilo sobre o que me calei: "O povo unido jamais será vencido", é disso que eu tenho medo. Em tempos passados, invocava-se o nome de Deus como fundamento da ordem política. Mas Deus foi exilado e o "povo" tomou o seu lugar: a democracia é o governo do povo. Não sei se foi bom negócio; o fato é que a vontade do povo, além de não ser confiável, é de uma imensa mediocridade. Basta ver os programas de TV que o povo prefere. A Teologia da Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação histórica. Nada mais distante dos textos bíblicos. Na Bíblia, o povo e Deus andam sempre em direções opostas. Bastou que Moisés, líder, se distraísse na montanha para que o povo, na planície, se intregasse à adoração de um bezerro de ouro. Voltando das alturas, Moisés ficou tão furioso que quebrou as tábuas com os Dez Mandamentos .E a história do profeta Oséias, homem apaixonado! Seu coração se derretia ao contemplar o rosto da mulher que amava! Mas ela tinha outras idéias. Amava a prostituição. Pulava de amante e amante enquanto o amor de Oséias pulava de perdão a perdão. Até que ela o abandonou. Passado muito tempo, Oséias perambulava solitário pelo mercado de escravos. E o que foi que viu? Viu a sua amada sendo vendida como escrava. Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse: "Agora você será minha para sempre." Pois o profeta transformou a sua desdita amorosa numa parábola do amor de Deus. Deus era o amante apaixonado. O povo era a prostituta. Ele amava a prostituta, mas sabia que ela não era confiável. O povo preferia os falsos profetas aos verdadeiros, porque os falsos profetas lhe contavam mentiras. As mentiras são doces; a verdade é amarga. Os políticos romanos sabiam que o povo se enrola com pão e circo. No tempo dos romanos, o circo eram os cristãos sendo devorados pelos leões. E como o povo gostava de ver o sangue e ouvir os gritos! As coisas mudaram. Os cristãos, de comida para os leões, se transformaram em donos do circo. O circo cristão era diferente: judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praças públicas. As praças ficavam apinhadas com o povo em festa, se alegrando com o cheiro de churrasco e os gritos. Reinhold Niebuhr, teólogo moral protestante, no seu livro "O Homem Moral e a Sociedade Imoral" observa que os indivíduos, isolados, têm consciência. São seres morais. Sentem-se "responsáveis" por aquilo que fazem. Mas quando passam a pertencer a um grupo, a razão é silenciada pelas emoções coletivas. Indivíduos que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incorporados a um grupo tornam-se capazes dos atos mais cruéis. Participam de linchamentos, são capazes de pôr fogo num índio adormecido e de jogar uma bomba no meio da torcida do time rival. Indivíduos são seres morais. Mas o povo não é moral. O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo. Seria maravilhoso se o povo agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo os interesses da coletividade. É sobre esse pressuposto que se constrói a democracia. Mas uma das características do povo é a facilidade com que ele é enganado. O povo é movido pelo poder das imagens e não pelo poder da razão. Quem decide as eleições e a democracia são os produtores de imagens. Os votos, nas eleições, dizem quem é o artista que produz as imagens mais sedutoras. O povo não pensa. Somente os indivíduos pensam. Mas o povo detesta os indivíduos que se recusam a ser assimilados à coletividade. Uma coisa é a massa de manobra sobre a qual os espertos trabalham. Nem Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo confiavam no povo. Jesus foi crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás. Durante a revolução cultural, na China de Mao-Tse-Tung, o povo queimava violinos em nome da verdade proletária. Não sei que outras coisas o povo é capaz de queimar. O nazismo era um movimento popular. O povo alemão amava o Führer.
O povo, unido, jamais será vencido! Tenho vários gostos que não são populares. Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos. Mas, que posso fazer? Gosto de Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de silêncio; não gosto de churrasco, não gosto de rock, não gosto de música sertaneja, não gosto de futebol. Tenho medo de que, num eventual triunfo do gosto do povo, eu venha a ser obrigado a queimar os meus gostos e a engolir sapos e a brincar de "boca-de-forno", à semelhança do que aconteceu na China. De vez em quando, raramente, o povo fica bonito. Mas, para que esse acontecimento raro aconteça, é preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute: "Caminhando e cantando e seguindo a canção.". Isso é tarefa para os artistas e educadores. O povo que amo não é uma realidade, é uma esperança.
Rubem Alves
Texto publicado na Folha de São Paulo
01.10.2012
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