Num recente programa de rádio, o escritor norte-americano Jack Hitt contou uma história sobre como explicar o Natal à sua filha de quatro anos. Um dia, quando ela lhe perguntou sobre o que era essa festa, ele falou-lhe do nascimento de Jesus, o que aguçou a sua curiosidade. Compraram-lhe uma Bíblia para crianças e ela aprendeu sobre o nascimento de Jesus e os seus ensinamentos, incluindo a antiquada expressão «faz aos outros como gostarias que te fizessem».
Noutro dia, passaram de carro por uma grande igreja com um enorme crucifixo no exterior. «Quem é aquele?», perguntou ela. Hitt percebeu que nunca tinha falado à filha dessa parte da história. «Então respondi-lhe alguma coisa como "oh, bem, é Jesus. E eu esqueci-me de te dizer o final. Ele entrou em conflito com o governo romano», recordou Hitt na emissão.
«Esta mensagem que Ele tinha foi tão radical e perturbadora para as autoridades do tempo, que elas tiveram de o matar. Elas chegaram à conclusão de que Ele tinha de morrer. A sua mensagem era muito problemática», explicou o escritor à criança.
Algumas semanas após aquele Natal, a escola pré-primária fechou por causa do feriado dedicado a Martin Luther King Jr., e Hitt levou a filha a almoçar. Na mesa do restaurante estava o suplemento artístico do jornal local, que tinha um grande desenho de Luther King feito por uma criança. «Quem é este?», interrogou ela.
Ele respondeu que King tinha sido um pregador que havia afirmado que «deves tratar todos da mesma forma, sem olhar à aparência». Ela ficou a pensar naquelas palavras por alguns momentos. «Então foi o que Jesus disse», respondeu. Hitt afirmou que nunca tinha pensado nisso daquela maneira, mas sim, tem muito a ver com a frase «faz aos outros...».
A criança voltou a ficar pensativa por instantes, depois olhou para o pai e interrogou: «Também o mataram?».
Esta história andou às voltas na minha cabeça a 26 de dezembro, a festa de Santo Estêvão, o primeiro mártir cristão. Os novos brinquedos da nossa filha continuavam dispersos por toda a sala de estar, o quarto dela, a entrada. As imagens do Menino Jesus descansavam pacificamente na meia dúzia de presépios espalhados pela casa. E a Igreja celebrava um jovem do primeiro século que foi apedrejado por causa do que acreditava e fez. É uma justaposição dissonante. Segue até ao extremo a mensagem de amor e paz revelada na manjedoura e pode ser que acabes numa cruz ou na varanda de um hotel.
Nunca vi uma imagem mais poderosa sobre esta verdade do que a fotografia que povoou a internet nos dias a seguir ao Natal: crentes amontoados na secção frontal da catedral maronita católica em Alepo, tendo atrás de si a grande nave da igreja totalmente bombardeada.
A palavra "mártir" significa testemunha, e estas testemunhas sírias deixaram-me estupefado. As suas vidas do dia a dia tornam-nas pessoalmente mais íntimas com a história de Santo Estêvão do que a maioria de nós alguma vez será. Ainda assim, confrontadas com uma violência inimaginável, apareceram para adorar juntas o Príncipe da Paz. Apareceram. Apareceram.
Eu, quanto a mim, passei os olhos pela seleção de cânticos da nossa Missa do Galo. Tenho evitado olhar diretamente para os olhos da maior parte dos sem-teto que vejo nas ruas em redor do meu escritório. Muitas vezes, demasiadas vezes, não estou a aparecer.
«Digo-vos uma coisa», afirmou o papa Francisco no dia de Santo Estêvão. Na sua habitual forma direta, pareceu-me que estava a falar precisamente para mim e para os meus confortáveis companheiros cristãos: «Os mártires de hoje são muitos mais em relação aos dos primeiros séculos [da Igreja]. Quando lemos a história dos primeiros séculos, aqui, em Roma, lemos tanta crueldade com os cristãos; eu digo-vos: hoje existe a mesma crueldade, em número superior».
«Hoje queremos pensar neles que sofrem perseguições, e estar próximos deles com o nosso afeto, a nossa oração e também com o nosso pranto», continuou ele. «Não obstante as provas e os perigos, eles testemunham com coragem a sua pertença a Cristo e vivem o Evangelho comprometendo-se a favor dos últimos, dos mais esquecidos, fazendo o bem a todos sem distinção; testemunham assim a caridade na verdade.»
Eis aqui alguma inspiração para uma resolução de Ano Novo que valha a pena. Pertencer a Jesus. Viver o Evangelho. Favorecer os últimos e os esquecidos. Fazer o bem a todos sem distinção. Extrair energia da coragem de Martin Luther King, dos cristãos de Alepo e de Santo Estêvão. Por outras palavras: ser uma testemunha, por amor de Deus.
Mike Jordan Laskey
In "National Catholic Reporter"
Trad. / adapt.: Rui Jorge Martins
Publicado em 03.01.2017 no SNPC
Porque é que colocamos tanta resistência em parar e a conceder-nos formas de descanso que nos restituam a nós próprios? Por uma razão simples: o movimento parece-nos mais fácil de viver.
O movimento preenche o tempo, mantém-nos ocupados nas suas voltas vertiginosas, enquanto o repouso inicia-se muitas vezes com a sensação de um esvaziamento, surpreendente, incómodo, difícil de gerir.
Por isso fugimos do repouso verdadeiro, no qual o encontro conosco próprios é inevitável. É o que com frequência acontece às pessoas superatarefadas que finalmente decidem dar-se um tempo de pausa ou de retiro.
Não é raro que a sua primeira experiência seja o desejo de escapar, enquanto pensam que o retiro foi uma má decisão: a princípio percebem uma sensação de abandono, como se inesperadamente se encontrassem a combater sozinhos com a sua noite.
Thomas Merton, um mestre que é necessário redescobrir, escreve: «O caminho da quietude nem sequer chega a ser um caminho, e quem o percorre não encontra nada». Soa estranho, não é verdade?
Aprender a repousar é também aprender a libertar-se do imediatismo das nossas expetativas e dos nossos desejos excessivamente idealizados. Repousar é dizer-se, no fundo do coração: «Estou aqui, à espera de nada»
José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 04.01.2017 no SNPC
Durante séculos os primeiros cristãos festejaram como festa das festas a Páscoa da ressurreição de Jesus o primeiro dia da semana judaica, para eles tornado “dia do Senhor”, e não sabemos se em algumas comunidades do Mediterrâneo se recordava o nascimento de Jesus com uma festa particular.
No século IV, após o edito de Constantino e a liberdade de culto concedida aos crentes em Cristo, ocorre a cristianização de uma festa pagã introduzida pouco antes pelo imperador Aureliano (c. 270) e celebrada em Roma como festa do “Sol invictus”, do “Sol vencedor”, que nesse dia começa a alongar o seu tempo de luz sobre a Terra.
Para os cristãos, Jesus o Senhor era «o Sol de Justiça» cantado por Malaquias, era «a Luz do Mundo» proclamada pelo Evangelho. Eis então que no ocidente o renascimento do “Sol invictus” pagão foi cristianizado mediante a festa do Natal, da Natividade de Jesus Cristo. Paralelamente, no oriente (Egito e Síria), onde o solstício de inverno se assinalava a 6 de janeiro, assume-se essa data para celebrar a Epifania como festa da manifestação da vinda do Filho de Deus à nossa humanidade.
Esta é a origem da nossa festa, que desde sempre teve no seu centro o Evangelho do nascimento de Jesus segundo Lucas (2, 1-14). Na missa da noite, celebrada no coração das trevas, refulge uma grande luz: Jesus, dado à luz por Maria em Belém.
Esta narrativa não é uma fábula, ainda que pareça escrita para as crianças, que significativamente a recordam para toda a vida, mas é uma página do Evangelho, uma noa notícia. Por isso Lucas quer antes de mais situar esse acontecimento na grande história do Mediterrâneo, marcada pelo domínio do Império Romano.
César Augusto decide contar os habitantes de todas as terras conquistadas por Roma: para tal ordena um recenseamento, executado na terra de Israel por Quirínio, governador da Síria. José obedece a esta ordem e, juntamente com a mulher, Maria, deixa a sua cidade de Nazaré para se dirigir a Belém, na Judeia, no sul da Terra Santa, onde tinha tido origem a casa e a descendência de David, o Messias, o ungido do Senhor, o rei de Israel.
Enquanto este casal se encontra em Belém, numa condição precária e de pobreza, não tendo encontrado lugar na estalagem, numa pequena construção, somente um abrigo no campo, Maria, que está grávida, dá à luz o seu filho primogénito, a ela anunciado por revelação como gerado pelo Espírito de Deus, um Filho que só Deus podia dar a toda a humanidade.
Aqui já está uma forte contraposição, que caraterizará toda a vida deste recém-nascido. Quem domina o mundo é Augusto – chamado “Divus”, “Deus”; “Sotér”, “Salvador”; “Kýrios”, “Senhor” –, mas o verdadeiro Salvador e Senhor é um seu súbdito, um bebé nascido numa situação pobre, para o qual desde logo parece não haver lugar neste mundo.
Conhecemos todos bem o ícone da Natividade: uma cabana ou uma gruta, e Maria que deita o seu filho numa manjedoura, com José ao lado, testemunha e guardador daquele mistério no qual é envolvido e ao qual presta pontualmente obediência. Tudo acontece na noite, no silêncio, na condição humaníssima de uma mãe que dá à luz um filho. Ninguém conhece aquele casal, ninguém o acolhe, ninguém se dá conta de nada.
Mas eis que Deus envia um seu mensageiro aos pastores que se encontram nas colinas que circundam Belém, para levantar o véu sobre aquele acontecimento: «Um anjo do Senhor apresentou-se a eles e a Glória do Senhor envolveu-os em luz». Os pastores são gente desprezada, marginalizada, que nem sequer são considerados dignos de ir ao templo para encontrar o Senhor. Mas é precisamente a estes últimos da sociedade da Judeia que é dirigido o anúncio, a boa notícia por excelência, que é alegria para todo o Israel, para todo o povo de Deus. Pela sua condição de pobres e últimos, os pastores são os primeiros destinatários por direito desta boa notícia:
«Hoje, na cidade de David, do Messias, nasceu para vós um Salvador, que é o Messias, Senhor».
Neste anúncio colhemos como que uma antecipação da boa notícia pascal: Jesus é o “Kýrios”, o Salvador. Não Augusto, que se vangloriava desse título, mas um menino recém-nascido recebe esse mesmo título da parte de Deus. Assim acontece a revelação aos pequenos, aos últimos, da qual são excluídos quantos acreditavam ser destinatários de direito: sacerdotes, peritos da Lei, crentes militantes convencidos de serem só eles os verdadeiros filhos de Abraão.
Aos pastores é dado também um sinal, uma indicação para que possam ver e compreender: nada de extraordinário ou de divino mas, de novo, uma realidade humaníssimas: «Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas, deitado numa manjedoura». Realidade simples e humilde, sem ornamentos, sem “extraordinário”.
E todavia este anúncio é dado por um coro incontável de criaturas invisíveis, numa espécie de liturgia cósmica, essa liturgia do céu que não conseguimos ver nem escutar mas que enche o universo e canta a santidade e a glória de Deus, isto é, proclama quem e como Deus ama. Com efeito, o que nesse canto coral é revelado é a vontade de Deus: «Deus tem peso (“kabod”, glória), Deus age no mundo mesmo sendo Santo e está no mais alto dos céus, Deus dá a paz à humanidade que Ele ama».
Eis a boa notícia do Natal: Deus ama-nos de tal modo que quis ser um de nós, entre nós, igual a nós, um homem como nós.
Enzo Bianchi
In Monastero di Bose
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 22.12.2016 no SNPC
Na penumbra da noite, olhos carregados de nuvens, encontro oculto um convite a descobrir o sentido da chuva em mim. O piano toca baixinho a melodia dedilhada nas batidas do coração. Raios cortam o céu, fazem um espetáculo acontecer. Tomada pelo assombro diante do espetáculo da vida sinto essa sensação quase esquecida... Gravo na retina a imagem do céu, que cai sobre minha face no meio da escuridão. Soberana a natureza manifesta sua grandeza. Recorda-me a pequenez e a fragilidade da vida humana e ainda assim, a vida humana encarnada por Deus...
Durmo no embalo dessa torrente de águas que envolve meus sonhos. Aconchegada a cobertas e travesseiros entrego-me. O inconsciente, esse mundo desconhecido, então se abre à graça. Não sei, mas sinto: é aí que acontecem os milagres que já não posso ver. É nesse lugar que Deus afasta nuvens pesadas, carregadas de tantas preocupações e passeia tranquilo por entre os fios de meus cabelos. Ventos impetuosos abrem portas e janelas no meu interior. Suas mãos num delicado gesto derramam sem pressa, o bálsamo perfumado sobre as cicatrizes endurecidas. Sou banhada como a chuva em terra seca, embalada como um recém nascido. Suavemente sinto o sopro sobre os meus sonhos sufocados. Respiro profundamente e solto-me dos travesseiros... Liberdade chega sorrateira no toque de seus lábios a cobrir de beijos enternecidos os meus, seus, desejos em mim. Seus pés tocam com intimidade o chão da minh'alma e as franjas de sua veste varrem carinhosamente tudo que preciso esquecer. Então Ele sorri pra mim num rosto de criança fazendo alegre a menina dos meus olhos.
O tempo, amigo, lá não existe. Os raios de sabedoria vão formando mandalas de vida brincando com a luz na escuridão... e os medos, esses que falam mansinho o dia todo ao pé do ouvido, esses saem voando ao som dos trovões. Assim que eles saem a chuva mansa vem então testemunhar, o amor eterno de meus pais que me visitam só para lembrar: meu lugar de filha em seus corações para sempre vai estar.
Acordo desejando lá permanecer... mas a chuva mansa se transforma numa melodia alegre anunciando o novo dia. Agora posso sentir o assombro e a surpresa pela vida renascida em mim. Descubro o sentido de ter nascido assim... em meio a chuvas, no tempo da espera da vinda, da esperança! Reconheço-me toda Advento, a espera do que já se realiza no meu interior: o natal, o Deus conosco Emanuel.
No meu aniversário é esse o presente que eu desejo: que cada ser humano, em sua fragilidade tão divina, sinta o assombro pela vida renascida a cada dia, na presença do Amor encarnado em seus corações em forma de esperança que encharca de sentido o existir.
Lilian Carvalho
BH - 18.12.2016
«A duração da nossa vida é de setenta anos e, para os mais fortes, de oitenta…», diz o Salmo 90 (89), que o papa Francisco reza muitas vezes na liturgia das horas e talvez até na oração pessoal, com mais insistência porque chegou agora a esta etapa. A cada dia o constatamos: Francisco é um homem ainda forte, de boa saúde, e por ele o povo de Deus ora a fim de que possa continuar a tornar evangélico o poder que está ligado ao seu ser bispo de Roma e papa. Em espírito de atenção e de escuta do seu ensinamento, podemos esboçar uma leitura do que mudou na Igreja católica nestes três anos e meio e das expetativas que encontraram no papa Francisco motivos de iluminação.
Antes de tudo gostaria de sublinhar o ambiente novo em que esta leitura é possível. O caminho que precedeu e acompanhou os dois sínodos dos bispos, assim como os repetidos convites do papa Francisco tornaram mais franca e transparente a dialética no interior da Igreja: a vivacidade de uma opinião pública no espaço eclesial tornou a ser não só possível mas também desejada, como na estação inaugurada pelo anúncio do Concílio Vaticano II e continuada durante toda a sua prossecução.
Também a excessiva sobre-exposição dos movimentos eclesiais, que tinham quase monopolizado a veia carismática nunca ausente da história, foi reconduzida ao leito de uma Igreja mais ordenada, numa comunhão mais visível e novamente pacificada, de tal modo que os movimentos podem agora oferecer o seu testemunho sem que exista a suspeita de um desejo de ocupar espaços ou gerir poder. A Igreja é mais que nunca “povo de Deus”, expressão cara ao papa Francisco, não só pela sua matriz conciliar, mas porque é capaz de indicar a qualidade “popular”, não elitista, da comunidade cristã.
Graças também a esta diferente aproximação, é mais fácil colher um dos traços salientes deste pontificado: o novo impulso conferido ao ecumenismo. Parecia estagnado, ao ponto de alguns falarem de «inverno ecuménico», mas o papa Francisco, com gestos inesperados e audazes, mais ainda do que com palavras, voltou a despertar o desejo de unidade que tinha acompanhado o tempo após o Concílio Vaticano II na Igreja católica e, paralelamente, nas outras Igrejas. Pense-se na viagem para encontrar a Igreja valdense em Turim, uma Igreja que permaneceu sempre no cone de sombra do ecumenismo católico; na “obstinação” profética e eficaz no querer encontrar como irmão o patriarca de Moscovo, Cirilo, encontrando-o em Cuba; na viagem a Lund, Suécia, para dizer aos protestantes que Lutero, se é verdade que produziu uma rutura com a Igreja católica, estava todavia animado pela paixão por uma Igreja mais evangélica. Esperemos que agora não se volta a usar a palavra “protestantização” para designar negativamente cada reforma que a Igreja católica empreender. Nenhum papa após Paulo VI ousou tanto como Francisco no ir ao encontro do outro irmão cristão, inclusive ao ponto de humilhar a própria pessoa na condição de o ministério petrino ser desempenhado como presidência na caridade.
E, como prova de que a procura da unidade visível dos cristãos não contrasta nada com a missão e o anúncio do Evangelho, o magistério do papa Francisco sobre alguns aspetos decisivos da presença cristã na sociedade moderna – a salvaguarda do criado, a paz e as migrações – encontraram partilha e solidariedade também da parte das outras Igrejas. Pense-se na visita à ilha de Lesbo, símbolo da tragédia dos migrantes, juntamente com o patriarca ecuménico Bartolomeu e o arcebispo de Atenas, nos repetidos apelos contra o tráfico de armas e de seres humanos, na incessante mediação em situações de conflitos – desde a Síria à Colômbia – na denúncia da “terceira guerra mundial em partes” ou ainda nas resolutas tomadas de posição pela salvaguarda do criado: o papa Francisco sempre se moveu e pôde falar como portador de uma mensagem de humanidade dirigida a todos, essa boa notícia evangélica que vai para além de toda a divisão confessional e constrói pontes em vez de muros. Não por acaso, precisamente sobre o tema da ecologia assistimos a uma novidade absoluta: uma encíclica papal que cita e valoriza o pensamento de um patriarca ecuménico e que é foi apresentada no Vaticano também por um bispo e teólogo ortodoxo.
Por fim, toda a Igreja – tantas vezes tentada a exercitar o ministério da condenação, tentada pela intransigência – foi convidada, com o Ano da Misericórdia como selo dos dois sínodos dos bispos, a ser inclusiva e nunca exclusiva, a ir ao encontro a quem está em pecado anunciando-lhe o perdão de Deus e afirmando que além da lei está a misericórdia. Desde o início do pontificado escrevi que íamos ter um papa da misericórdia: assim foi e é. E é significativo que precisamente sobre esta atitude se verifiquem não só críticas mas oposições duras da parte daqueles que o papa chama «pessoas religiosas mas rígidas», «justas mas insensíveis», homens da lei que muitas vezes nem sequer sabem reconhecer em si próprios o que reprovam nos outros. A misericórdia, sob o pontificado de Francisco, não é só tema de vida espiritual pessoal, mas é estilo, prática nas relações eclesiais de quem tem necessidade da misericórdia de Deus, da Igreja, dos irmãos.
Ora, que expetativas nutre o povo de Deus ao escutar as palavras de Francisco? São expetativas de reforma da Igreja “in capite et in membris” [na cabeça e nos membros]. Sabemos, todavia, que se fala de reforma da Igreja há pelo menos oito séculos e que a Igreja deve estar sempre em dinamismo de reforma: “ecclesia sempre reformanda”. O papa Francisco está animado por esta intenção e declara-o muitas vezes, mas devemos estar conscientes de que quando mais a Igreja se reformar segundo o primado do Evangelho, mais desencadeia as forças adversas que se revoltam contra ela. Mais vida segundo o Evangelho significa mais cristãos perseguidos no mundo, mais crentes hostilizados pelos seus próprios irmãos de fé, na própria Igreja. Há uma ingenuidade que temo possa levar só a reformas, se não mundanas, de simples maquilhagem. Mesmo a própria reforma da cúria só acontecerá se o papa a conseguir fazer com a cúria e a cúria com o papa, porque de outro modo não será possível realizar mutações eficazes numa realidade tão complexa e estruturada. Muitos bispos e fiéis confiam-me: esperemos que o papa reforme poucas coisas essenciais, mas de tal modo que não se possa voltar atrás depois dele. É este o desejo para o seu 80.º aniversário.
Enzo Bianchi
In "Monastero di Bose"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 20.12.2016 no SNPC
A nossa humanidade enriquece-se muito se estamos com todos os outros e em qualquer situação em que se encontram. É o isolamento que faz mal, não a partilha. O isolamento desenvolve o medo e a desconfiança e impede de beneficiar da fraternidade. É preciso com efeito dizer que se correm mais riscos quando nos isolamos do que quando nos abrimos ao outro: a possibilidade de nos fazermos mal não está no encontro mas no fechamento e na rejeição. A mesma coisa vale quando assumimos o cuidado de alguém: penso num doente, num idoso, num imigrante, um pobre, num desempregado. Quando tomamos conta do outro complicamos menos a vida do que quando estamos concentrados em nós mesmos.
Estar no meio das pessoas não significa só estar abertos e encontrar os outros, mas também deixar-se encontrar. Somos nós que temos necessidade de ser olhados, chamados, tocados, interpelados, somos nós que temos necessidade dos outros para nos podermos fazer participantes de tudo o que só os outros nos podem dar. A relação pede este intercâmbio entre pessoas: a experiência diz-nos que habitualmente dos outros recebemos mais do que damos.
Entre a nossa gente há uma autêntica riqueza humana. São inumeráveis as histórias de solidariedade, ade ajuda, de apoio que se vivem nas nossas famílias e nas nossas comunidades. É impressionante como algumas pessoas vivem com dignidade a restrição econômica, a dor, o trabalho duro, a provação. Encontrando estas pessoas tocas com a mão a sua grandeza e recebes quase uma luz através da qual se torna claro que se pode cultivar uma esperança para o futuro; pode acreditar-se que o bem é mais forte do que o mal porque elas estão ali. Estando no meio das pessoas temos acesso ao ensinamento dos fatos.
Dou um exemplo: contaram-me que há pouco tempo morreu uma jovem de 19 anos. A dor foi imensa, muitas pessoas participaram no funeral. O que a todos tocou foi não só a ausência de desespero, mas a percepção de uma certa serenidade. As pessoas, após o funeral, falavam da admiração de terem saído da celebração aliviadas de um peso. A mãe da jovem afirmou: «Recebi a graça da serenidade». A vida quotidiana é entretecida destes fatos que marcam a nossa existência: eles nunca perdem eficácia, mesmo se não fazem parte dos títulos dos jornais. Acontece precisamente assim: sem discursos ou explicações compreende-se o que na vida vale ou não vale.
Estar no meio das pessoas significa também dar-se conta de que cada um de nós é parte de um povo. A vida concreta é possível porque não é a soma de muitas individualidades, mas a articulação de muitas pessoas que concorrem para a constituição do bem comum. Estar juntos ajudar-nos a ver o conjunto. Quando vemos o conjunto, o nosso olhar é enriquecido e torna-se evidente que os papéis que cada pessoa desempenha no interior das dinâmicas sociais nunca podem ser isoladas ou absolutizadas. Quando o povo está separado de quem comanda, quando se fazem escolhas por força do poder e não da partilha popular, quando quem comanda é mais importante do que o povo e as decisões são tomadas por poucos, ou são anônimas, ou são impostas sempre por emergências verdadeiras ou presumidas, então a harmonia social é colocada em perigo, com graves consequências para as pessoas: aumenta a pobreza, a paz é posta em risco, manda o dinheiro e as pessoas passam mal. Estar no meio das pessoas, por isso, faz bem não só à vida de cada um mas é um bem para todos.
Estar no meio das pessoas evidencia a pluralidade de cores, culturas, raças e religiões. As pessoas fazem-nos tocar com a mão a riqueza e a beleza da diversidade. Só com uma grande violência se poderia reduzir a variedade à uniformidade, a pluralidade de pensamentos e de ações a um único modo de fazer e de pensar. Quando se está com as pessoas toca-se a humanidade: nunca é só a cabeça, há sempre também o coração, há mais concretude e menos ideologia.
Para resolver os problemas das pessoas é preciso partir de baixo, sujar as mãos, ter coragem, escutar os últimos. Penso que é espontânea a pergunta: como é que se faz assim? Podemos encontrar a resposta olhando para Maria. Ela é serva, é humilde, é misericordiosa, está a caminho conosco, é concreta, nunca está no centro da cena, mas é uma presença constante. Se olharmos para ela encontraremos a melhor maneira de estar no meio das pessoas. Olhando para ela podemos percorrer todas as sendas do humano sem medo e preconceitos, com ela podemos tornar-nos capazes de não excluir ninguém.
Papa Francisco
Excertos da mensagem em vídeo para o Festival da Doutrina Social da Igreja (Verona, Itália)
24.11.2016
Publicado em 25.11.2016 no SNPC
«Ide aprender o que quer dizer “misericórdia quero, e não sacrifícios”» (Mateus 9, 13). Assim Jesus se dirigia aos homens religiosos do seu tempo que o censuravam porque se sentava à mesa com publicanos e pecadores. Ele, com efeito, veio «não para os justos, mas para os pecadores». E sobre este «aprender a misericórdia» o papa Francisco quis configurar o jubileu que se encerrou no domingo: não uma rejeição daquilo que é bem e daquilo que é mal em absoluto, não uma relativização da gravidade de certos comportamentos, mas a convicção evangélica de que, para usar as palavras do papa João XXIII na abertura do Vaticano II, «no tempo presente a Igreja prefere usar o remédio da misericórdia em vez de pegar nas armas do rigor; pensa que se deve ir ao encontro das necessidades contemporâneas, expondo mais claramente o valor do seu ensinamento, em vez de condenar».
Não fez outra coisa o papa Francisco durante este ano senão evidenciar algumas das «necessidades contemporâneas» a que a Igreja deveria responder com o remédio da misericórdia para curar os doentes ou aliviar-lhes o sofrimento, não para contentar os justos que não carecem de conversão. E esta, naturalmente, é uma tarefa que não se pode esgotar num ano, não se pode deter nos umbrais das portas das catedrais, agora simbolicamente a nível litúrgico infelizmente “encerradas”: trata-se, efetivamente, de “aprender” uma arte, “aprender” o que quer dizer usar misericórdia nas nossas relações no interior da Igreja e na companhia dos homens.
O âmbito que suscitou maior ênfase foi o da vida familiar: infelizmente da exortação pós-sinodal “Amoris laetitia” foram explorados só poucos parágrafos e algumas notas relativas à possibilidade ou não de acesso aos sacramentos da parte dos divorciados recasados, enquanto se negligenciou a solicitude pastoral que atravessa o conjunto do texto e abraça os muitos aspetos de alegria e de sofrimento ligados à vida concreta de milhões de famílias nas realidades sociais e culturais mais díspares.
É nesta ótica autenticamente global que o papa recordou vigorosamente que usar misericórdia não significa calar as realidades que ferem os seres humanos e a sua dignidade: as guerras e a fome, antes de tudo, que semeiam morte e obrigam milhões de pessoas a fugir em condições desesperadas da sua terra e, depois de terem ultrapassado territórios e mares de morte, a encontrarem muros de recusa da parte de quem não sabe abrir o coração e a casa ao pobre que bate à porta.
Mas também a superação das injustiças econômicas estruturais é obra de misericórdia: garantir “terra, casa e trabalho” a cada ser humano significa salvaguardar-lhe a dignidade mais profunda, dignidade que nenhuma lei ou sociedade podem negar, nem sequer a quem está na prisão. Neste sentido, o papa Francisco não hesitou em estigmatizar o mercado quando percorre caminhos desumanos ou mortíferos – como no caso dos traficantes de armas – ou a própria justiça humana quando por um crime, ainda que brutal, prevê a pena de morte evidente ou a “oculta” da prisão perpétua.
Misericórdia, recordou-nos o papa durante este jubileu, é também revisitar as divisões históricas entre os cristãos para regressarem juntos ao Evangelho e juntos caminharem para a unidade querida por Jesus para os seus discípulos.
Nos últimos dias alguns tentaram fazer um balanço deste ano jubilar a nível turístico e econômico para a cidade de Roma, mas torna-se impossível elaborar a nível mundial o único balanço que conta para quem leva a peito o Evangelho: o da conversão das consciências e da mudança de comportamentos por parte de quem se professa cristão. Sem dúvida que a centralidade do Evangelho manifestada e afirmada de muitos modos e em diversas ocasiões sacudiu e até escandalizou quantos estão mais preocupados pela religião do que pela mensagem de Jesus Cristo. Neste sentido, se a hostilidade para com o papa Francisco se manifestou ou cresceu é por causa do seu arrojo no mostrar e pregar a misericórdia.
É certo que não basta um ano para “aprender” o que quer dizer misericórdia e agir em consequência, mas o papa Francisco quis recordar que sobre ela se mede para os cristãos a fidelidade ao Evangelho e para todos a possibilidade de percorrer caminhos de humanização.
Enzo Bianchi
Prior do Mosteiro de Bose, Itália
Trad: Rui Jorge Martins
Publicado em 25.11.2016 no SNPC
Não leve a mal o silêncio, meu amigo. São horas de equilíbrio instável até chegar a uma trilha arborizada, depois mais algumas horas até poder pensar uma palavra. E assim vão as semanas. Passando um tempo imenso sem registro. Um tempo imenso livre de ser registrado. Nenhuma peripécia aparente. Nada de prazeres transatlânticos. É só um café depois do almoço. Uma hora a mais de sono de vez em quando. Um banho morno. Um chá à noite. Prazeres inversamente proporcionais a seu nível de extravagância, mas como fossem graças, pequenas graças. Uma cópula aérea de borboletas. Seis hibiscos abertos mais três brotos. Um reflexo de fogo no vidro do apartamento em frente. Coisa pouca, para cuidar que os ecos do mundo não quebrem uma alma através dessas janelas para os muitos cantos da Terra com seus meninos cobertos de cinzas, como tatus enfiados em abrigos, retirados de escombros, meninos salvos de bombardeios, meninos em botes apinhados de gente em pânico, bichos enlouquecendo em cativeiros, essas imagens do dia que entram por nossos olhos e depositam seus ovos aqui dentro. Então o silêncio. Então um tempo imenso sem registro, mas de íntimas batalhas. Para colher do mundo um mundo que mereça uma criança. Como aquela mulher que caminhava debaixo de chuva, com bolhas nos pés, em tempos de guerra, procurando um ramo de rosas para trazer para casa. Como o passarinho que vai preparando seu ninho contra o vento com centenas de minúsculos gravetos: ainda cuidar de fazer dentro de um dia uma cama de pequenas graças. Não são as palavras que custam a ganhar forma, custa é colocar alento nelas. Não leve a mal, meu amigo. Uma palavra demora um milagre a nascer.
Mariana Ianelli
Escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli, da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre (ed. ardotempo, 2013). Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.
in: RUBEM, revista de crônica
Colocar a sociedade brasileira nos trilhos sob os parâmetros da justiça social e do desenvolvimento integral é um caminho complexo. Por isso, todos os cidadãos devem buscar se envolver no necessário processo de discernimento relacionado à Proposta de Emenda Constitucional 241 (PEC 241). Em pauta, estão importantes definições que vão impactar nossas vidas ao longo de duas décadas. Imagine o que significa vinte anos para o país. Podem ser décadas de avanços rumo ao desenvolvimento integral, um caminhar promissor para todos, especialmente para quem é mais pobre. Mas, é preciso atenção para a permanente ameaça de se seguir na direção oposta, com a multiplicação dos vergonhosos cenários de miséria e exclusão já presentes no país. Por isso, a escolha dos rumos com a PEC 241 merece uma mobilização nacional, que contemple análises e discussões, envolvendo os mais diversos atores: economistas, especialistas e movimentos da área social, igrejas, universidades e, de modo particular, o parlamento brasileiro, que a partir do voto, fundamentado nas necessárias ponderações, indicará o passo a ser dado.
Não se pode, imprudentemente, apoiar ou definir escolhas que, se equivocadas, pesarão crucialmente sobre os ombros de todos - mais perversamente atingirá os excluídos. Isso não significa deixar de investir nos ajustes e readequações que são necessários, adotando lógicas de gestão capazes de extinguir as dinâmicas que garantem certas regalias a determinadas classes, grupos e indivíduos, privilégios que estão na contramão da equidade e da justiça social. O Governo Federal e o Parlamento têm o dever de encontrar, criativamente, saídas para as crises e apresentar soluções para os graves problemas enfrentados pela nação brasileira. Evidentemente, isso não é tarefa fácil e exige complexas ponderações para não se perder as conquistas alcançadas na Constituição Cidadã de 1988, marco para o início do pagamento de dívidas sociais históricas.
Em um momento tão determinante para o futuro, nada de precipitações. São esperadas análises e um amplo processo de escuta da sociedade para que os mecanismos escolhidos, diante da necessidade de se colocar o Brasil nos trilhos, não ameacem, irreversivelmente, a vida de todos, principalmente a vida de quem já sofre. Assim, oportuno é sublinhar que as mudanças propostas não podem ser justificadas e definidas apenas pelas avaliações do ponto de vista econômico. É preciso considerar e buscar intervir, de modo mais profundo, no tecido cultural brasileiro, habituado a funcionar nos trilhos dos privilégios e das regalias.
Nesse sentido, a PEC 241 não pode ser, simplesmente, fruto da interlocução entre Executivo Federal e o Parlamento. Sua análise e discussão têm que se tornar um fato político e social mais amplo, permitindo o envolvimento dos segmentos todos da sociedade. É preciso haver debates entre especialistas, de diferentes áreas, e também uma convocação do povo, por diversos modos, para uma ampla mobilização nacional, de modo a criar entendimentos. Restringir a definição de uma diretriz que terá impacto nas próximas duas décadas à Praça dos Três Poderes em Brasília é algo desrespeitoso e temerário. Afinal, não se pode definir o futuro de um país sem análises e clarividências capazes de incluir, junto com a busca pela regulamentação e limitação dos gastos públicos, outros graves desafios que precisam ser enfrentados. Não bastam as afirmações políticas, em tom de promessa acalentadora, diante de mecanismos que podem funcionar, mais uma vez, como guilhotina destinada aos mais pobres e indefesos. Esses mecanismos precisam ser configurados a partir dos parâmetros da justiça social.
Entre os pares envolvidos na ampla discussão que o momento politico requer está a Igreja Católica, cujo tom de voz deve estar sempre em sintonia com as orientações do Papa Francisco. O magistério e a singularidade pastoral de Francisco impulsiona essa instituição bimilenar a contribuir com a construção de uma sociedade justa e solidária. Por isso, antes de qualquer elogio ou apoio apressado, embora sempre reconhecendo e dialogando com os interlocutores e agentes da sociedade pluralista, particularmente nos âmbitos governamentais, a Igreja recorda o que pede o Papa Francisco, em sua Exortação Apostólica Alegria do Evangelho: não à economia da exclusão, não à idolatria do dinheiro, não a um dinheiro que governa em vez de servir.
No cumprimento de sua tarefa missionária, a Igreja está atenta às transformações vividas pela humanidade, às singularidades próprias da realidade brasileira. Reconhece tudo o que contribui para o bem-estar das pessoas, nos âmbitos da saúde, educação, da comunicação e em tantas outras áreas. Mas também é, diante das graves situações sociais e políticas, porta-voz de quem vive precariamente. Cada vez mais, crescem o medo e o desespero no coração de inúmeras pessoas. A alegria de viver, frequentemente, se desvanece por falta de respeito à dignidade humana, pelo crescimento da violência e da desigualdade social. Urge reverter a fonte desses males, a cultura do descartável. Isso inclui avaliar medidas necessárias, ponderar suas consequências, contemplando a exigência de não se correr o risco de acertar de um lado, mas, por outro, favorecer o aumento da vergonhosa exclusão. Somente com o fim da exclusão de quem vive nas periferias de todo tipo é que se pode constituir um verdadeiro projeto capaz de colocar o Brasil nos trilhos.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
In: Opinião e notícias 14.10.2016
Quando penso no contributo que a experiência religiosa dá no presente e poderá dar, num futuro próximo, à cultura, ao tempo e ao modo de existência humana, penso no imenso património espiritual que nasce da amizade com os pobres. Os pobres sentam-se muitas vezes às portas das igrejas. Na realidade, eles não estão sentados à frente da porta, são eles a porta para chegar a Deus, este Deus que nos pergunta sempre: «Onde está o teu irmão?» (Génesis 4, 9). Os pobres mostram-nos Deus. Eles são testemunhas e mestres da fé na sua forma mais concreta, porque são os últimos, os pequenos, os marginalizados, os esquecidos, as vítimas, aqueles que sem voz gritam pela justiça, os esfomeados, os que podem só contar com Deus. As religiões nunca podem esquecer a centralidade dos pobres na sua missão. Os pobres são a porta santa. São a mais santa das portas santas.
Os pobres ensinam-nos muito sobre a vida espiritual. Ensinam-nos a escuta. A escuta não é apenas aprender o discurso verbal. Antes de tudo é atitude, inclinar-se para o outro, é dedicar-lhe a nossa atenção, é disponibilidade para acolher aquilo que foi dito e não dito. Escutar significa oferecer um ombro onde o outro possa apoiar a mão, para rapidamente se levantar. Poder ser escutado relança-nos no caminho. Um dos textos que mais impressionam sobre o valor da escuta é o conto "Angústia", de Tchekhov. Descreve a história de um cocheiro, Iona, que perdeu um filho e não encontra, entre os humanos, nenhum disposto a confortá-lo. «Sente a necessidade de contar como adoeceu o filho, os seus sofrimentos, o que disse antes de morrer e como morreu (...). Sente a necessidade de descrever o funeral, de contar quando foi ao hospital procurar as roupas do defunto. Na vila ficou a filha, Aníssia (...). Quer falar também dela (...)» mas ninguém escuta. O cocheiro dirige-se então ao seu cavalo, e enquanto lhe dá de comer começa a expor-lhe, num longo e dolente monólogo, tudo aquilo que viveu. As últimas palavras do conto de Tchekhov são estas: «O cavalo continuou a mastigar, enquanto parecia que escutava, porque soprava na mão do seu dono... Então Iona, o cocheiro, animou-se e contou-lhe tudo».
Os pobres ensinam-nos a força terapêutica da presença: um simples toque ajuda a dissipar as perturbações, tranquiliza um espírito agitado e transmite um conforto que nenhuma máquina ou fármaco pode dar. Jesus, por exemplo, vai tocar o intocável. Estende a mão àqueles que é proibido tocar. Um homem doente de lepra quebra o cordão sanitário e aproxima-se de Jesus para dizer: «Senhor, se quiseres, podes curar-me» (Lucas 5, 12). Naquele tempo os leprosos tinham a obrigação de viver longe das povoações, separados da família, num afastamento que servia para evitar o contágio. Pois bem, Jesus não se limita às palavras - «Eu quero» -, mas estende a mão e toca-o. Prefere correr o risco do contágio, no desejo de tocar a ferida do outro; querendo partilhar, como só através do toque se partilha, aquele sofrimento; ajudando a vencer o ostracismo, interiorizado com a separação forçada. O que é que cura o homem? O que é que cura a mulher que, noutro ponto do Evangelho, segue Jesus e o toca (cf. Lucas 8, 43-48)? A curá-los está certamente o poder de Deus que se manifesta em Jesus, mas num processo onde a forma não é de todo indiferente. Cura-os o facto de se saberem tocados, e tocados no sentido de encontrados, assumidos, aceites, reconhecidos, resgatados, abraçados. A mística não é um estado de impermeabilidade, mas exatamente o seu contrário: uma radical porosidade sobre a vida e sobre os outros. Uma pele, uma presença, um batimento do coração, um encontro, uma alegria partilhada com os pobres.
Os pobres ensinam-nos o acolhimento de Deus. Recordo sempre esta história: era uma vez um homem devoto que, na sua oração, pede a Deus uma coisa desmesurada, mas Deus imediatamente satisfez. O homem pede que Deus fosse visitá-lo na sua casa. Tendo obtido o sim de Deus, o homem iniciou grandes preparativos (limpeza, reparações, ornamentos...) para receber o seu Hóspede. No dia estabelecido para a visita, o homem coloca-se à porta de casa, à espera de Deus. De manhã cedo vem um rapazinho que procurou, da janela, roubar-lhe uma maçã sobre a mesa, mas ele impede-o, repreendendo-o duramente. Ao meio dia um mendigo vem perturbá-lo com os seus pedidos, mas ele explicou-lhe que estava à espera de uma visita ilustre, que viesse noutro dia. À tarde um viajante exausto pede-lhe hospitalidade, que ele lhe negou, porque esperava Deus. Só que Deus não vem. Por isso, quando cai a noite, também o homem cai num grande desânimo. E durante a sua oração protestou contra Deus, que não tinha mantido a sua palavra. Mas Deus responde-lhe: «Por três vezes procurei entrar em tua casa, mas tu próprio mo impediste».
José Tolentino Mendonça
Assis, Itália, 19.9.2016
In "Assis 30 - Sede de paz"
Trad. Rui Jorge Martins no SNPC de Portugal
«Havia bom senso; mas estava oculto, por medo do senso comum»: esta é uma famosa frase do romance "Os noivos", de Alessandro Manzoni, que distingue os dois «sensos», colocando-os em contraste.
O primeiro, com efeito, poderia ser reconduzido à ideia de "sabedoria". Ele traduz a capacidade de examinar pessoas, coisas e acontecimentos com critério e juízo. É o dom do discernimento e da sensatez, é o evitar os extremos passionais, é o esquivar-se ao facciosismo, é o equilíbrio no saber julgar, e assim por diante.
Trata-se de um dom precioso que o cristão deve implorar ao Espírito Santo, fonte, precisamente, dos dons da sabedoria e do conselho.
Emboscado, todavia, há uma espécie de momice do bom senso, o «senso comum», que se disfarça com as características do critério, equilíbrio e sensatez acima evocadas, mas que na realidade é lugar comum, banalidade, tacanhez, conformidade, mesquinhez, hipocrisia.
François de La Rochefoucauld, moralista francês do século XVII, descrevia assim, nas suas "Máximas", um aspeto deste falso bom senso: «Raramente atribuímos o bom senso aos outros, a não ser àqueles que estão de acordo connosco».
Sim, porque o senso comum é muitas vezes usado para vantagem própria, é colocar ao próprio serviço a verdade de tal modo que se deixa a aparência mas corrói-se a substância.
Como Salomão no dia da sua entronização, peçamos a Deus «um coração que saiba sempre distinguir o bem do mal» (1 Reis 3, 9). É este o verdadeiro «bom senso».
P. (Card.) Gianfranco Ravasi
Madre Teresa: A misericórdia como prática, a defesa da fé, o papel da mulher na Igreja
A santidade de Madre Teresa de Calcutá é a principal razão para ser declarada santa, no próximo domingo, mas esta canonização também tem algo a dizer a outros níveis: a misericórdia tornada prática, a defesa da fé face aos críticos e o papel da mulher na Igreja católica.
Quando Madre Teresa se tornar Santa Teresa de Calcutá, a 4 de setembro, 19 anos menos um dia após a sua morte (5 de setembro de 1997, aos 87 anos), espera-se que a celebração, no Vaticano, presidida pelo papa Francisco, seja o maior evento do Ano da Misericórdia. A sua beatificação, em 2003, atraiu cerca de 300 mil pessoas à praça de S. Pedro e imediações, e os organizadores antecipam que a afluência deste domingo seja maior.
Nos últimos dias é provável que tenhamos ouvido, mais do que uma vez, que Francisco está "a fazer" de Madre Teresa uma santa. Os teólogos dirão, porém, que nada está mais longe da verdade. A crença católica sustenta que se alguém é verdadeiramente santo, então já está no céu. Uma canonização é entendida como um reconhecimento do que já aconteceu.
Por outras palavras, a canonização não é para o santo, é para nós, que erguemos um novo modelo de santidade e uma nova amizade no céu, a quem toda a Igreja pode rezar. Vale também a pena relembrar que a santidade, pelo menos em teoria, é um dos processos mais democráticos na vida católica. É suposto começar com o que é tradicionalmente conhecido como "culto", ou seja, a devoção popular a uma dada figura que teve reputação de santidade. A declaração oficial ocorre só depois da investigação do candidato e, por fim, se todos os critérios estiverem preenchidos, for aplicado o selo de aprovação.
Com toda a honestidade, houve alguns poucos casos ao longo dos anos onde essa vontade popular é algo difícil de encontrar, mas não é definitivamente este o caso. Como João Paulo II, de quem a multidão gritava "Santo subito!" na missa do funeral, Madre Teresa foi uma santa nos corações da maior parte dos católicos muito antes de o seu nome ter entrado no cânone oficial.
Contudo, há três outros aspetos que se combinam para fazer da celebração um dos mais fascinantes e potencialmente influentes acontecimentos na vida católica recente.
Manual de como fazer misericórdia
A misericórdia é, no seu núcleo, uma virtude espiritual, mas o papa Francisco tem insistido ao longo deste Ano que, para ela ser sincera, deve ter uma expressão tangível em ações concretas de serviço. Na tradição cristã, os exemplos tornam-se presentes nas obras corporais de misericórdia, que incluem alimentar os esfomeados, dar abrigo aos sem-teto, visitar os doentes, e assim por diante.
Poucas figuras católicas alguma vez, e provavelmente nenhuma no seu tempo, ilustraram melhor esse impulso para a misericórdia concreta do que Madre Teresa, desde os centros para doentes com SIDA às casas de acolhimento para crianças perdidas e refugiados. Não houve virtualmente qualquer espécie de sofrimento humano a que ela não tivesse dado uma resposta prática.
Nesse sentido, Santa Teresa de Calcutá ficará para sempre como um "manual de como fazer misericórdia" em carne e sangue, uma espécie de guia do utilizador para o que a misericórdia é na prática. Daqui por diante Francisco não tem de oferecer qualquer explicação detalhada do que deseja que as pessoas façam; tudo o que tem de fazer é apontar para Madre Teresa e dizer: «Tenta ser como ela». Por outras palavras, é possível sustentar que o Ano da Misericórdia alcança o seu auge espiritual no próximo domingo.
Como veículo para a aplicação prática da misericórdia, Francisco apelou a todas as dioceses do mundo para lançarem uma nova iniciativa durante este Ano Santo, como uma clínica, escola ou hospital, para assegurar que o seu espírito continua após o encerramento formal do Jubileu, a 20 de novembro. Se os responsáveis diocesanos estão tentados a murmurar sobre a falta de tempo ou recursos, Madre Teresa também oferece outro valioso exemplo. Não é realmente necessário ter grandes bolsos para infraestruturas gigantes que respondam ao apelo, só a inabalável vontade de o tornar real.
Defesa da fé em ação
O bispo auxiliar de Los Angeles, Robert Barron, uma das figuras mais entendidas na paisagem católica americana no que diz respeito à fé na cultura secular, disse-me recentemente que acredita que um dos "evangelistas" mais efetivos das últimas décadas foi Christopher Hitchens, cuja agressiva argumentação a favor do ateísmo inspirou uma geração de novos e determinados discípulos.
Quando Hitchens começou a aparecer em debates públicos com líderes religiosos, referiu Barron, normalmente limpava-os todos: «Era como dá-los aos leões... ficavam completamente destruídos».
Porém Hitchens perdeu claramente pelo menos um dos seus principais argumentos, que foi a sua famosa tentativa, em 1995, de roubar a Madre Teresa a sua auréola com o polémico livro "A posição missionária".
Hitchens acusou Madre Teresa de uma variedade de duvidosas práticas morais, desde levar dinheiro de ditadores a gerir instalações médicas abaixo dos padrões. A sua objeção geral era de que Madre Teresa não estava realmente interessada em servir os pobres, mas em fazer propaganda das suas obscurantistas crenças católicas.
Foi um ataque devastador, talvez o melhor murro que uma crítica secular tenha acertado numa proeminente figura católica além do papa, e certamente voltará a estar em debate nestes dias que antecedem a canonização.
Contudo, no tribunal da opinião popular, Hitchens foi um fiasco. Em dezembro de 1999, no fim do século XX, a empresa de sondagens Gallup perguntou a norte-americanos qual a pessoa que mais admiravam nos últimos 100 anos. Madre Teresa surgiu destacadamente em primeiro lugar, com 49 por cento, seguindo-se Martin Luther King Jr., com 34 por cento.
Ironicamente, Madre Teresa prevaleceu sem que alguma vez tenha pronunciado uma palavra de refutação - o máximo que alguma vez falou sobre Hitchens foi «eu rezarei por ele». Na verdade, claro, ela não precisava de dizer nada, porque as pessoas viram toda a sua vida como uma refutação da crítica de Hitchens.
Mulheres na Igreja
Se alguém quisesse compor uma pequena lista das mais icónicas figuras católicas da segunda metade do século XX, em termos de personalidades mais faladas, celebradas, fotografadas, ímanes de multidões, capas de revistas, prémios, altas taxas de aprovação e assim por diante, há provavelmente três que se destacam: papa João XXIII, papa João Paulo II e Madre Teresa.
Os dois primeiros foram significativamente ajudados pelo facto de se terem tornado papas. Se Angelo Roncalli tivesse permanecido como patriarca de Veneza ou Karol Wojtyla como arcebispo de Cracóvia, é improvável que tivessem subido ao palco mundial como veio a suceder.
Madre Teresa, porém, fez tudo sem mais. O único cargo que alguma vez ocupou foi o de superiora das Missionárias da Caridade, congregação por ela fundada, dado que estava demasiado ocupada a servir os pobres.
O papa Francisco criou recentemente uma comissão para ponderar a ordenação diaconal de mulheres, levantando um tabu de longa data na discussão oficial de tal ideia. Ainda que ele tenha afastado a possibilidade da ordenação sacerdotal de mulheres, isso não afastou o debate sobre o assunto nos círculos católicos.
Os pronunciamentos oficiais podem dizer o que quiserem sobre a «complementaridade» e o sacerdócio como serviço, mas há algumas pessoas, incluindo dentro da Igreja, que nunca acreditarão que as mulheres no catolicismo sejam mais do que cidadãs de segunda classe enquanto estiverem excluídas da ordenação.
O que a Madre Teresa claramente ilustra, todavia, é que não é preciso um cabeção ou uma cruz peitoral para exercer influência na Igreja católica.
Ela foi uma mulher, afinal de contas, que não teve hesitações em dizer a bispos e padres o que fazer, e ao longo dos anos a maior parte deles fê-lo - não por causa da cadeia de comando, mas porque foram inspirados, e frequentemente até impressionados, pelo poder espiritual que ela libertava.
Quaisquer que forem os argumentos a favor das diaconisas que a nova comissão vier a considerar, há pelo menos um que podem afastar da mesa, que é o de que sem se tornarem parte do clero, as mulheres (ou os leigos em geral) não têm acesso à liderança.
Se alguém foi um modelo de líder católico de sucesso foi Madre Teresa. Como mais nova santa da Igreja, ela continuará sem dúvida a liderar num modo completamente novo.
John L. Allen Jr.
In "Crux"
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 29.08.2016 no XNPC
«O sapato que fica bem a uma pessoa é pequeno para outra: não há uma receita de vida que vá bem para todos.» Esta consideração é de um dos pais da psicanálise, Carl Gustav Jung, no seu ensaio "O homem moderno à procura de uma alma". Encontro-a citada num semanário alemão que realiza um inquérito sobre modelos de vida na sociedade contemporânea.
Parte-se precisamente daquela observação para chegar a uma conclusão antitética: a homologação, favorecida pela comunicação de massa, impôs "receitas de vida" comuns. Não havia seguramente necessidade de um inquérito para saber que se avança em rebanho: basta examinar certa modas dos jovens e a sua linguagem (mas isto, mais ou menos, vale também para os adultos).
É também fácil compreender que Jung está errado e tem razão ao mesmo tempo. Está errado porque existe um tecido comum de humanidade, porque há valores permanentes universais, porque o bem e o mal nunca se devem anular segundo as situações e as conveniências. Mas tem fortemente razão porque nos remete para a singularidade da pessoa, melhor, de cada pessoa, para a identidade do indivíduo, para a multiplicidade das experiências.
É por isso que uma moral genuína deve ser firme nos princípios e apoiada em valores objetivos, mas deve ser respeitosa das consciências e capaz de incarnar com rigor, mas também com compreensão e misericórdia, esses princípios e valores na concretude da vida de cada um. Em suma, como dizia o escritor americano Oliver W. Holmes (1809-1894), «a vida é como pintar um quadro, não como fazer uma soma».
P. (Card.) Gianfranco Ravasi
As festas de Olímpia no Peloponeso eram as mais antigas e celebradas da Grécia clássica, ao ponto de se tornarem, na sua cadência quadrienal a medida de rferência da própria cronologia. As várias competições desportivam tinham como base uma visão geral da pessoa, da sociedade e da própria cultura. A "paideia", isto é, a formação grega da pessoa, associava-se à "euritmia", ou seja, a harmonia física (pense-se nas imagens das pinturas vasculares ou no "Discóbolo" do escultor "Míron). As mesmas Olimpíadas ligavam-se à poesia, como atestam as "Olímpicas", célebres odes de Píndaro (séc. V a.C.) e as dos poetas Simónides e Baquilides.
Por ocasião do acontecimento olímpico do Rio de Janeiro, tentaremos um esboço sobre a relação entre desporto e espiritualidade no cristianismo. O judaísmo, a esse respeito, foi mais reticente, por causa do risco de contaminação idolátrica, como aconteceu em alguns judeus "traidores" durante a grande epopeia dos macabeus. Eles, com efeito, entravam nus nos "ginásios", as sedes educativas e desportivas helenistas, e chegavam ao ponto de se submeter a uma intervenção cirúrgica, dita em grego "epispasmós", para eliminar o sinal da circuncisão.
A reserva anti-idolátrica estava presente também em alguns Padres da Igreja - reserva que se alargava aos espetáculos teatrais -, que se opuseram aos Jogos Olímpicos, como Ambrósio, que impede o imperador romano Teodósio de os repropor em 393. Na raiz, além do risco de contaminação com a idolatria e o paganismo, havia a crítica ao exibicionismo dos atletas que, através do exercício físico, pareciam contradizer ou deformar a obra do Criador em relação ao corpo humano.
Todavia, diferente foi a atitude nas origens cristãs primordiais. O próprio Jesus, efetivamente, tinha partido do jogo das crianças para definir a geração que o estava a ouvir, incapaz de uma opção como aqueles jovens que, «estando sentados na praça gritam aos companheiros: tocámos a flauta e não dançastes, entoámos lamentações e não batestes no peito» (Mateus 11, 16-17). Dito por outras palavras, àquelas crianças tinham sido propostos os jogos mais díspares, como imitar uma festa de casamento ou um funeral, mas elas tinham sempre oposto uma recusa pouco amigável.
É, contudo, sobretudo S. Paulo que, por diversas vezes, recorre a metáforas desportivas para delinear o compromisso apostólico e do cristão. Em particular, ele faz referência à corrida no estádio e ao pugilismo, dois desportos muito praticados na sociedade greco-romana.
Interessante é um parágrafo da Primeira Carta aos Coríntios onde é usado o léxico técnico desportivo: «Não sabeis que nas corridas no estádio todos correm, mas só um conquista o prémio? Correi também vós de modo a conquistá-lo. Mas cada atleta ("agonizómenos", "que compete lutando") submete-se em tudo à disciplina. Fazem-no para onter uma coroa corruptível, nós, ao contrário, incorruptível. Eu, portanto, corro mas não como quem está sem meta. Faço pugilato ("pyktéuô", "faço com murros"), mas não como alguém que bate no ar. Na realidade, atinjo duramente ("hypopiàzô", literalmente "atinjo sob os olhos", isto é, no ponto mais fraco do adversário) o meu corpo e reduzo-o à escravidão, para que não suceda que, depois de ter pregado aos outros, eu próprio seja desqualificado» (9, 24-27).
Também naquela espécie de testamento que ele endereça ao seu fiel colaborador Timóteo, o apóstolo, depois de ter usado imagens rituais (o ser «entregue em libação»), náuticas ou nómadas («desfazer as velas» ou «as tendas») e militares («combati a boa batalha»), recorre à cena desportiva da corrida no estádio para exprimir o seu compromisso total em conservar alta a chama da fé. A frase em grego é até ritmada, "ton drómon tetélexa, ten pístin tetéreka", «levei ao termo a corrida, conservei a fé» (2 Tomóteo 4, 7). E continua, referindo-se sempre à simbologia desportiva: «Resta-me a coroa de justiça que o Senhor, justo juiz, me entregará nesse dia, não só a mim mas a todos aqueles que esperaram com amor a sua epifania» (4, 8).
Chegados aqui não podemos, contudo, ignorar um capítulo que é dramaticamente verdadeiro também para o desporto. Em termos religiosos é o exercício da liberdade no pecado que atinge também este âmbito. Assim, o jogo-desporto torna-se lucro económico, e já não é mais livre exercício; o espetáculo transforma-se em doença violenta (a palavra italiana "tifosi", "adeptos", baseia-se no grego "typhos", "febre"); a beleza e a força física são devastadas pelo "doping", falsificando o exercício desportivo que nas Olimpíadas gregas era dito "àskesis", isto é, "ascese". Ela amplia ao máximo a potencialidade do organismo, tornando o ato físico natural e espontâneo, como acontece à dançarina clássica ou ao atleta autêntico. Além disso, o jogo, de instrumento até de cura ("ludoterapia"), degenera em formas maníacas ("ludopatia"). As sublevações mais ameaçadoras e obscuras do ser humano revelam-se através da brutalidade, a vulgaridade e o racismo nos estádios.
Uma nota particular de partilha e de apoio merecem, ao contrário, os atletas dos Jogos Paralímpicos que não se deixam vencer pela sua deficiência, empenhando-se em superá-lo num desafio contínuo a ir mais longe, em direção a uma meta mais prestigiosa. Assim, além de representarem um verdadeiro e próprio exemplo no desafiar os limites das possibilidades físicas - alma de toda a competição desportiva -, são chamados a superar também a fasquia da sua deficiência. São, por isso, pessoas que podemos legitimamente considerar "duplamente atletas".
As Paralimpíadas nasceram oficialmente nos anos 60 do século passado, contribuindo para contar e representar inúmeras histórias de feitos atléticos, acompanhadas de emoções, sentimentos, lágrimas e sorrisos, alegrias e sofrimentos. Permitiram descrever autênticos feitos heróicos, ajudando-nos a superar preconceitos ancestrais, lugares-comuns destituídos de qualquer fundamento. Comovemo-nos com estas mulheres e estes homens, vendo demolidos os muros da indiferença e do ceticismo, da suficiência coberta de comiseração, admirando-os pela coragem e pela orgulhosa dignidade dos seus gestos atléticos, convictos de que as medalhas por eles conquistadas não valem menos do que as olímpicas.
Concluímos regressando à relação entre jogo e religião, fazendo-o, em espírito ecumênico, com uma bela representação que Lutero delineia da meta paradisíaca precisamente na base da analogia do jogo: «Então o homem com o Céu e com a Terra, jogará com o Sol e com todas as criaturas. E todas as criaturas experimentarão um prazer imenso e uma felicidade lírica e rirão contigo, Senhor». Também o monge Notker, da abadia de S. Galo, falecido em 912, poeta, músico e bibliotecário, descreveu assim a Igreja que joga em paz sob a videira fecunda, símbolo de Cristo, no jardim celeste: «Eis, ó Cristo, a tua Igreja que joga serena e em paz á sombra de uma videira luxuriante».
Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In "Italpress"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 31.07.2016 no SNPC
Para contemplar essa cena é preciso voltar no tempo e viajar no espaço. Quase 500 anos atrás, estamos num castelo da Espanha onde vamos encontrar um homem deitado num leito.
Ele chama-se Inácio e pertence à família de Loyola. Criado na corte, é um homem cheio de sonhos e vaidades. Mas agora, ali, naquela cama, tudo nele é a humilhação e o sofrimento de um soldado derrotado na guerra.
Mas, vamos observá-lo, contemplar seu rosto e ouvir o que nos diz o seu coração.
De repente o guerreiro acorda de um longo, doloroso e sobressaltado sono. O corpo dói horrivelmente. Qualquer movimento na cama, por menor que fosse, era como se mil punhais se cravassem em suas pernas, com a dor subindo como fogo até o cérebro.
Inácio tenta lembrar. As imagens eram confusas. A febre ainda lhe queima a fronte. Aos poucos, entre mil dores, cena de batalha vem à sua mente.
O bombardeio intenso. O ataque à muralha. A resistência teimosa, heróica, mas inútil, impossível. Pamplona em chamas. A explosão, o vazio, o nada. Lembranças truncadas pela ferida aberta, o sofrimento, a dor.
Acorda mais uma vez sem noção de tempo e espaço. Apenas as paredes em volta, a cama, as pernas imobilizadas por ataduras sob as quais parece haver ferrões em brasa. Então, aos poucos, vai tomando consciência de tudo.
Há meses esta cena se repete.
Inácio se recupera lentamente dos terríveis ferimentos da batalha. É uma surpresa o fato de estar vivo, apesar de ainda haver riscos.
Ao lado, na cabeceira, os dois únicos livros que havia para ler. Ele estende a mão e toma “A vida dos santos”. Folheia o texto que quase decorara, tantas vezes o lera, mas seus olhos estão longe, atravessam as páginas do livro como se fossem transparentes e fixam-se na lembranças de outros tempos. O ambiente da corte, as festas, o luxo e a riqueza. Belas mulheres e belos sonhos. Conquistas e vitórias.
Feitos heróicos a serviço do rei, títulos de nobreza...
Tais recordações enchiam o seu coração de entusiasmo. Mas logo uma fisgada na perna traz outra lembrança... a derrota, o fracasso. Aquela batalha perdida não havia destroçado apenas sua carne e seus ossos. Muitos sonhos foram também dilacerados...
Inácio, então, vê-se tomado por uma grande melancolia. Seu coração se aperta e um nó na garganta anuncia mais uma madrugada de insônia.
Se vivesse em nosso tempo, Inácio talvez se espantasse com a letra de uma canção de Guilherme Arantes que retrata bem o seu momento...
Quando eu fui ferido, vi tudo mudar, das verdades que eu sabia.
Só sobraram restos que eu não esqueci. Toda aquela paz que eu tinha.
Eu que tinha tudo hoje estou mudo, estou mudado à meia-noite, à meia luz
Pensando!
Daria tudo, por um modo de esquecer...
Eu queria tanto estar no escuro do meu quarto, à meia-noite, à meia luz
Sonhando!
Daria tudo, por meu mundo e nada mais...
Não estou bem certo se ainda vou sorrir sem um travo de amargura.
Como ser mais livre, como ser capaz, de enxergar um novo dia...
Eu queria tanto estar no escuro do meu quarto
À meia-noite, à meia luz
Sonhando!
Daria tudo, por meu mundo e nada mais...
Sem um rádio ou uma canção a que recorrer, os olhos de Inácio abrem-se para o livro em suas mãos. Lê, a princípio, para ocupar o tempo, mas, aos poucos, as histórias ali narradas fazem brotar em seu espírito outros sonhos, um entusiasmo novo, diferente...
Naquele leito, reduzido ao repouso absoluto, Inácio de Loyola, o guerreiro orgulhoso, não tinha outra coisa a fazer a não ser sonhar, pensar e repensar a vida.Contemplando seus sentimentos, a partir das lembranças que lhe vinham ao coração, iniciou um processo de redescoberta de si mesmo, do sentido da própria vida. Inácio sai daquela cama para começar de novo. Mais que isso; para começar DO novo.
Uma novidade que vinha do gênesis dos milênios.
Aos poucos ele irá descobrir que foi amado primeiro, e que a única forma de responder a este amor é com uma vida de amor. Uma vida em que, em tudo, ele se sentirá chamado a amar e servir...
Retomando a caminhada do ano, após a pausa de Julho, rezemos como Inácio de Loyola rezou.
Senhor, nosso Deus, dá-nos a Tua força, para que cada um de nós,
assim como teu filho, Inácio de Loyola,
possa RECOMEÇAR a vida, a cada dia com o coração cheio de entusiasmo, alegria, disposição.
Que a tua graça esteja em nós,
recriando sempre o desejo de “em tudo, amar e servir” aos que estão ao nosso lado,
companheiros de caminhada pela vida.
Toma em tuas mãos os dons que Tu mesmo nos deste
e faz com que tudo em nós e à nossa volta possa acontecer para a maior glória do teu Reino.
Fica conosco, Senhor, agora e sempre,
Amém!
Eduardo Machado
Educador
Ainda que um homem misture a massa, é sempre Deus o construtor. O destino mistura as cartas, mas somos nós a jogá-las.
Juntamos duas frases distantes entre elas quase três milênios, mas tematicamente complementares. A primeira provém da antiga cultura egípcia: trata-se de um dito da Sabedoria de Amen-em-ope, escrito do século IX-VIII a.C., que deixou um importante traço também na Bíblia (no livro dos Provérbios 22,17 - 24,22). A segunda citação está presente nos Aforismos da Sabedoria do Viver, do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860).
São duas as perspetivas com que se examina o destino ou, para o crente, a Providência. De um lado, exalta-se a eficácia da ação humana, com a sua liberdade; do outro, reconhece-se que existe qualquer coisa, ou Alguém, que nos ultrapassa e que intervém no projeto da história humana.
Esta duplicidade deve conservar-se, segundo um equilíbrio que não é nem garantido nem simples. É preciso continuar a misturar a cal necessária para a construção do edifício da nossa existência, trabalhando com empenho e responsabilidade.
Mas deve ter-se também a consciência de que não somos os únicos árbitros do resultado: não só porque nos apoia a graça divina, mas também porque há um mistério no projeto global do ser e da história.
Temos, portanto, nas mãos cartas que não valem uma sequência lógica e definida, mas somos nós que as devemos jogar com inteligência e habilidade para que obtenham um resultado positivo.
Os extremos da resignação desencorajada, convencida de que os jogos já estão todos decididos, e da eficácia orgulhosa, certa de que tudo depende de nós, devem por isso ser evitados. A vida é dom e compromisso, é surpresa e certeza, é aceitação e reação ao mesmo tempo.
P. [Card.] Gianfranco Ravasi
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 10.05.2016 no SNPC em Portugal.
O sinal revelador de que já se deixou de amar torna-se manifesto quando os sacrifícios começam a custar; o sinal de que se ama pouco acende-se quando te dás conta de que os estás a fazer.
É verdade que há outros sinais: por exemplo, um escritor afirmava que quando dois namorados começam a explicar-se e a justificar-se, é porque estão prestes a deixarem-se.
Mas não há dúvida de que é o egoísmo, quando aflora de maneira prepotente, o indício de que o amor está a regredir. Sente-se o peso daquilo que se faz pelo outro, começa a calcular-se quanto se dá e quanto se recebe.
Quando alguém se dá conta de que está em crédito de bem em relação a outra pessoa, então está aí o sinal claro de que começou o declínio do amor.
Uma mãe ou a um pai, se são verdadeiramente tais, não são esmagados pelo cansaço de um trabalho stressante, de vigílias e de sacrifícios vários quando o fazem pelo seu filho.
A característica fundamental do amor é a gratuidade, não se admite o interesse ou o cálculo; não se espera recompensa nem gratidão, porque para a pessoa amada tu só queres o seu bem e a sua felicidade.
A sociedade contemporânea, que é decididamente mais egoísta, desabituou-nos ao gratuito puro, ao dar sem pedir em troca, ao sacrifício de si por amor. É por isso que não conhece a verdade daquela frase de Jesus, referida por Paulo: «Há mais alegria no dar do que no receber» (Atos dos Apóstolos, 20, 35).
P. [Card.] Gianfranco Ravasi
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