«A nossa democracia está minada. E os nossos representantes são como os mineiros inconscientes que se põem a fumar cigarros numa mina cheia de grisu.» É um clássico literário falar mal dos políticos, mas é preciso reconhecer que eles fazem tudo para merecê-lo.
Nunca como nos nossos dias se confirma (...) a suspeita do escritor inglês Robert L. Stevenson (sim, o do doutor Jekyll e do senhor Hyde), segundo o qual «a política é a única profissão para a qual não se considera necessária nenhuma preparação específica».
Mas o filósofo Norbeto Bobbio (1909-2004), na carta por nós citada, endereçada em 1964 ao historiador Tamburrano, acrescentava um aspeto: o risco que toda uma nação corre com a impreparação, a superficialidade, a inconsciência de uma certa classe política.
E a propósito de fumo, queria citar aqui as palavras ásperas de Indro Montanelli: «Estranho país o nosso. Bate nos vendedores abusivos de cigarros mas premeia os vendedores de fumo». E continuava: «Temos um fraco pelos governantes que dizem o que pensam. Só gostaríamos que de vez em quando pensassem no que dizem».
Dito isto, todavia, desejava confiar-vos uma reflexão proposta por um político bem diferente, Giorgio La Pira (1904-1977): «Não se diga aquela habitual frase pouco séria: a política é uma coisa má! Não: o compromisso político é um compromisso de humanidade e de santidade; é um compromisso que deve poder envolver para si os esforços de uma vida toda tecida de oração e de meditação, de prudência, de fortaleza, de justiça e de caridade».
E se é verdade que cada país tem os governantes que merece, talvez seja melhor que a honestidade, o rigor, a preparação, a seriedade, a justiça se afirmem antes de tudo a partir de baixo.
Card. Gianfranco Ravasi
In "Avvenire"
Publicado em 25.04.2017 no SNPC
As árvores e as pedras ensinar-te-ão aquilo que tu
nunca aprenderás com os mestres.
(Bernardo de Claraval)
Cultivar o apreço pela natureza é aprofundar a nossa própria vida espiritual, aproximarmo-nos mais da criação, ver a nossa própria responsabilidade moral por ela, segundo a forma como tratamos cada hastezinha de erva. Viver em harmonia com a natureza significa estarmos nós próprios mais vivos.
A nossa sincronia com a natureza é demonstrada pelo efeito emocional que essa exerce sobre nós. Quando está escuro, podemos tornar-nos mais taciturnos. Quando a neblina paira sobre as montanhas que nos cercam, quando o nevoeiro nos envolve, também nós nos tornamos mais reflexivos. Quando o sol aquece as pedras, cada nervo cobra vida dentro de nós. Cada mudança da natureza é esta a nos chamar a entrar mais a fundo nos ritmos da vida. É vendo-nos como parte da natureza, e não exteriores a ela, que sincronizamos a alma com os ensinamentos da natureza.
Não podemos controlar a natureza, é ela que nos controla. O único problema é que um mundo moderno e laborioso leva várias gerações a compreendê-lo. Quando destruímos a natureza sem ter em conta as consequências daquilo que estamos fazendo ao futuro, a natureza tem sempre a última palavra. Basta olhar para aquilo que estamos a fazer à Terra, para saber que mudanças precisamos de introduzir na nossa própria vida, se quisermos ser verdadeiros buscadores de Deus.
Caminhando através da natureza, vamos de mãos dadas com Deus, que lhe deu a vida. A única questão é: dar-lhe-emos vida ou morte? Numa das suas visões, Hildegarda de Bingen, mística do século XII, diz acerca da natureza: “Eu sou aquela essência viva e ardente da substância divina... Eu brilho dentro da água e ardo no sol, na lua e nas estrelas”. Oh, quem nos dera viver tempo suficiente e suficientemente bem para chegarmos a ver estas coisas!.
Joan Chittister
In "Os tempos do coração", ed. Paulinas
Handel, em sua obra Messiah (HWV56), já depois de entoar um Aleluia, capaz de fazer ressuscitar os mortos de tanta alegria, parece divertir-se pondo logicamente a morte e o túmulo nos lugares que lhes pertencem: a irrelevância. Diz o texto cantado, repetidamente cantado: «Oh death, where is thy sting? / Oh grave, where is thy victory? (Oh morte, onde está o teu aguilhão? / Oh túmulo, onde está a tua vitória?)».
Parece temeridade ou bravata alguém arriscar-se a relativizar «morte» e «túmulo» deste modo. Parece. E assim seria, não fora o significado do que é proclamado, gritado ao mundo, no momento, no acontecimento, do Aleluia.
É que a Ressurreição que tal grito sagrado comemora inaugura um campo lógico que subverte toda a racionalidade humana anterior, subjugada à pura imanência finitista de uma vida sem futuro possível, que tudo, absolutamente, relativiza à morte e ao túmulo, morte que é o operador da impossibilidade da continuidade da vida, túmulo que é o destino, único, inexorável, da mesma vida, seja ela qual for.
Com a ressurreição de Cristo, é o «logos» da vida que surge não apenas a uma nova luz perante a inteligência humana, é todo o sentido possível, consequentemente realizável, de tudo, de precisamente tudo, que surge substancial e essencialmente modificado: a morte já não é isso que destina o túmulo como fim único e inexorável da vida humana.
O anseio fundamental que marca o específico próprio da humanidade – o seu desejo de nunca morrer ou de para sempre viver –, que se expressou de tantos e belos modos ao longo da história das muitas culturas humanas que formam a humanidade como coisa cultural, por oposição a mera coisa natural, recebe concretamente com a ressurreição de Cristo a concretização que manifesta não apenas a possibilidade – coisa metafísica, mundanamente irreal – da perenidade infinita da vida, mas a sua realidade posta mundanamente: é no mundo e para o mundo que Cristo primeiro ressuscita. A sua subida ao Céu é posterior à sua subida à Terra, pois de uma subida se trata, também.
A ressurreição é o momento-chave absolutamente significativo que opera a metamorfose mundana de uma substância condenada a si própria – símbolo do túmulo e da sua vitória – a uma substância liberta de si própria enquanto coisa meramente mundana, doravante aberta, em absoluto, à autotranscendência no modo da vida que não tem fim, algo de impossível num mundo submetido ao movimento, ao tempo, à necessária entropia.
O grande escândalo da ressurreição reside no seu caráter absolutamente antientrópico, que subverte tudo o que se considera ser lei do universo, leis de necessária morte, universo que, deixado a si próprio, ou é um frio túmulo ou é um anedótico pulsar sem outro sentido que não o próprio pulsar, ainda outra forma, esta dinâmica, de túmulo.
Sem que se possa compreender o que a ressurreição seja no seu pormenor, se se quiser, qual o seu «algoritmo», mundanamente entendido – embora todo o domínio matemático seja, em si mesmo, metafísico –, a vida pré-morte do Ressuscitado é comparável a um especial “algoritmo”: o do amor, da caridade, em seu sentido propriamente cristão, que é, precisamente, esse em que Cristo a exerceu.
A vida de Cristo é, até morrer, um “algoritmo” mundano de amor, quer isto dizer que é um contínuo ato, uma contínua fórmula de ato de amor, de agência de bem para com tudo. Tudo. Assim como ao Deus-Pai criador nada “escapou” enquanto objeto de ereção do nada relativo de si próprio, assim ao Deus-Filho-Homem recriador nada “escapou” enquanto alvo de uma amorosa atenção: das Marias Madalenas, aos lírios do campo; dos paralíticos, às águas dos mares; dos pães e peixes escassos, aos Samaritanos vários; da água feita bom vinho, ao decoro do Templo; da matéria da madeira de carpinteiro, ao olhar da Maria cuja matéria mais íntima metamorfoseou o amor de Deus pelos seres humanos em humano infante.
Tudo Cristo divinamente amou no mundo. E como Deus só pode amar infinitamente, tudo amou infinitamente.
Ora, nós, por mais pobres ontologicamente que sejamos – eu – sabemos o que é amar alguém ao ponto de desejar infinitamente que esse alguém viva: ainda vivo ou já morto para nós, que viva! Se este nosso infinito fosse não ao modo da sucessão, mas ao modo de um ato absoluto, não seria este nosso desejo capaz de conseguir isso a que se propõe?
A ressurreição é este infinito desejo de vida transformado em vontade, isto é, a sua concretização. Nunca está em nosso poder realizá-lo plenamente. Mas, a Deus, basta querer.
Como?
Também sabemos, pois tudo o que o nosso em ato finito amor quer – e só pode querer podendo ontologicamente – realiza: do mudar a fralda ao Jesus bebé, ao acompanhá-lo junto da cruz. Pegue-se no simbolismo destes dois atos e realize-se a sua expansão simbólica sobre todos os atos de amor: o que é que, neste sentido, não podemos criar? Apenas o que não queremos.
A ressurreição é, então, apenas, o resultado de um ato de amor que é capaz de transformar em vida o desejo de vida que se tem, na forma do ato pleno de outorga de bem. Por analogia percebe-se: se eu, finito, posso dar vida finitamente através dos meus atos de amor, assim Deus também, infinitamente.
A ressurreição é o ato – o resultado – da plenitude do ato de amor de Deus-Pai por Deus-Filho.
É o mesmo ato que há entre mim e esse a quem amo, só que imperfeitamente. Em Deus, é perfeito. É esta a única diferença.
Note-se, no entanto, que estamos a falar de amor, não de emoções ou de sentimentos, que, ao contrário do amor, têm, ainda, no túmulo o seu destino.
É o amor que vence a morte e o túmulo. Não apenas o especial amor de Deus-Pai por Deus-Filho, mas cada ato de amor, por mais consideravelmente ínfimo que pareça, pois ínfimo é algo que o amor nunca é.
Como corolário, e é a mensagem a retirar em termos antropológicos da ressurreição, temos que cada ato de amor é um ato de ressurreição: se todos os atos de todos os seres humanos fossem atos de amor, não haveria aguilhão da morte ou triunfo do túmulo, pois o reino do amor é indiferenciável do Reino de Deus no seio da humanidade, que foi onde Jesus o veio anunciar como coisa possível e realizável.
A cada momento, ressuscitemos, isto é, mesmo contra toda a morte e túmulos omnipresentes, amemos. Em cada ato de amor, não apenas ressuscitamos como começamos a saborear o absoluto do que é viver, coisa espiritual, não biológica.
Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 17.04.2017
Aprovado em primeiro turno na Câmara Municipal, o Projeto de Lei 751 visa “flexibilizar” a Lei do Silêncio, aumentando o limite de ruído permitido na cidade. Sua alegação grita aos céus: os limites estariam baixos porque o barulho está alto, legalizar o ruído estratosférico atenderia melhor a cidadãos e negócios para os quais ruído é “legal”. Seguindo o mesmo raciocínio: deveríamos legitimar a corrupção já que se apresenta como comum, norma infalível em certos ramos de atividade “social”? O escândalo quer ganhar patente.
“Pedra de tropeço” é o significado literal de skandalon em grego, quando colocada diante do cego para que tropece, “pedra” indica engano, tentação, armadilha, tudo aquilo que faz cair, que induz a pecar (Levítico). Escândalo é metáfora de tropeços e vícios morais que diariamente se armam para nós, de obscuros poderes que nos
preferem cegos, isto é, surdos, imersos no ruidoso nada que nos exaure. A relação entre ética e audição é mais que estreita, sem audição a boa conduta é impensável. Má audição é maldição, corrupção ativa dos ouvidos esquecidos. Não é lucro, é escândalo.
A população carece de uma Lei de Educação e Saúde Auditiva, não de uma Lei Anti-Silêncio que garanta impunidade, que prometa isenção de responsabilidade na escalada de violência deci-bélica. O barulho é astro coadjuvante da violência, a zoeira é o som da mentira em excesso. É a Lei do Ruído, melhor, é uma compulsória Lei da Surdez (moral e auricular) que se impõe em nosso cotidiano. Se os valores referenciais em decibéis nos parecem baixos, é porque já estamos surdos; não são os limites que estão baixos, nós é que andamos “altos” demais.
Da árvore do silêncio pende seu fruto, a paz, assim dizia Schopenhauer. O silêncio desperta e fertiliza a consciência, aqueles que acolhem o silêncio e suas bênçãos ganham asas, cantam, conversam, tocam, transbordam paz e esperança para todos. Silêncio é a eterna voz do divino que anima a vida, que ganha forma na música, no tempo, na palavra, na memória, ela é ouvida pela alma em busca de sentido. Silêncio não é ausência, mas presença que nos ensina o essencial, é o ruído que em desespero berra ausências e insuficiências. Muitos ficam apavorados sempre que o silêncio ameaça surgir, sempre que a consciência vem à tona para alertar sobre os rumos que sua vida tem tomado. Medo inconfesso projeta para fora de si a ruidolatria, adoração de ruído compensatório viciante ensurdecedor, destinada a “silenciar” o silêncio que tudo revela.
O ídolo é nossa melhor armadilha. Difícil andar sem tropeçar. Na guerra das frequências repetitivas, promíscuas, desrespeitosas, em meio à inflação de escândalos, ídolos competem com ídolos, vícios com vícios, ruídos com ruídos, pedras com pedras, brigam pelo poderio decibélico. Inventamos uma espécie de realidade paralela, esquizoide, esquizofônica, dissociada da vida, em que a idolatria do ruído opera a serviço dos mecanismos de fuga e escape. O projeto 751 é pedra no sapato, digo, pedra no nosso ouvido, não se deve querer tirar vantagem política e comercial da surdez alheia.
Escutem: precisamos inserir a noção de silêncio em nosso tecido social, fazer a contenção do barulho (multidão de ruídos viciados) que nos amaldiçoa e tortura, permitir as verdadeiras vozes da vida e da música, voltar à simplicidade das boas condutas. Senão no fim chegamos à calamidade na qual já nos (des)encontramos.
Ilan Grabe
Músico e Educador
Artigo publicado no Jornal O TEMPO em sua edição de sábado, dia 07 de janeiro de 2017, Número 7329, Coluna Opinião, Belo Horizonte, p. 14
A humanidade sofre sérias consequências quando deixa de investir na unidade interior – ponto de equilíbrio e sustentação que permite a cada pessoa agir de modo assertivo nos diversos campos da vida. Sem a unidade interior, as muitas possibilidades oferecidas pela inteligência humana não são suficientes para superar os obstáculos que pesam sobre a humanidade. E, muitas vezes, o “progresso” desconsidera as estaturas humanitária e espiritual que precisam permear as atitudes de cada pessoa. Percebe-se, frequentemente, um descompasso entre a dimensão existencial e a posição que se ocupa, no campo profissional ou no exercício de outras responsabilidades. Para além da competência técnica, da experiência ou da força política, é preciso investir na unidade interior, o ponto de equilíbrio.
Mas não se busca esse caminho. Concentra-se fortemente, e até exclusivamente, nos projetos que resultam em conquistas de poder, nas oportunidades que garantam ganhos financeiros. Tudo a partir de uma compreensão equivocada do que é bem-estar, considerado apenas como a experiência de se usufruir das coisas, das benesses. Esse modo de compreender obscurece o olhar humano, que não consegue mais enxergar a necessidade do investimento na unidade interior. Há uma exigência fundamental que deve desafiar todo indivíduo: o cuidado com o próprio “poço”. Há um “poço interior” que alicerça a conduta de cada pessoa e define os rumos de suas escolhas. Incide, determinantemente, sobre a qualidade dos exercícios cidadãos, profissionais e familiares. A medida, portanto, não está “do lado de fora”. Decisivo e mais importante é o “poço”, a interioridade de cada pessoa, responsável pela consciência, pelos sentimentos e pela articulação humanística dos valores.
A interioridade é que gera a competência para as ações cidadãs. Sem investir nesse âmbito, os comprometimentos são muitos, a mediocridade torna-se regra. Não basta ter alcançado um título, vencido eleições, ocupar cargos e nem mesmo a convicção de se estar onde está por ser merecido. Cada pessoa deve mensurar seus atos, considerando a qualidade de suas intervenções e sua influência nos necessários processos de transformação. Tudo temperado por uma simplicidade que forja um tecido cultural de respeito e de unidade. Assim é possível superar descompassos que estabelecem o caos na sociedade.
A humanidade perdida precisa, com mais velocidade, reencontrar rumos. Por isso, a importância do empenho em buscar a unidade interior, alicerce para condutas adequadas, balizadas por valores que podem deter os problemas humanitários, a exemplo das guerras, migrações forçadas, insensibilidade diante da dor dos pobres e crescimento incontrolável da violência. Em busca da unidade interior, há um percurso a trilhar: é preciso e urgente investir em uma espiritualidade que possibilite aprender a lidar com a interioridade. E que contribua, assim, com o exercício diário de limpar o próprio “poço”. A espiritualidade pode qualificar o sentir e o agir de cada indivíduo, tornando-o instrumento de construção da solidariedade e da cultura da paz.
Chega agora, mais uma vez, a oportunidade de ouro para se investir na unidade interior e requalificar o tecido humano: a vivência da Semana Santa, a Semana Maior. Não como um “feriadão”, mas reconhecendo nesse tempo a chance de se fazer um fecundo retiro espiritual. Esse exercício é fundamental para limpar a própria interioridade de tudo o que se origina nos limites e fragilidades humanas. O segredo é fixar o olhar em Jesus Cristo. De modo silencioso e amoroso, deixar-se tocar por seus gestos, por suas palavras e pelo acolhimento de suas indicações. Uma experiência que não pode ser substituída por futilidades, pela fugacidade de sensações.
Vale a pena vivenciar e engajar-se na celebração da Semana Santa, no coração da própria família e na comunhão da comunidade de fé, compreendendo o sentido de cada uma dessas celebrações. Um investimento forte e determinante na ordem pessoal e social para renovar a unidade interior, alicerce que sustenta as competências e a vida cidadã. Eis um remédio indispensável.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Para além de uma configuração apocalíptica, há dois modos de representar o que a ideia de fim do mundo evoca. Um sublinha a propensão para a conduta isolacionista. Outro concebe o fim do mundo como proveniência, como referência de origem, como margem ou periferia da qual se tende para o centro, da qual se procura alcançar o centro, e sobre a qual se procura atrair a atenção do centro. Hoje a periferia, incarnada na figura de Francisco, toma a palavra, convida o mundo. Com Francisco o mundo quer falar a partir da sua periferia. Tê-lo eleito papa implica por isso uma disposição para escutar essa periferia, a recorrer a ela, a dar-lhe lugar, a deslocá-la para o centro.
Pois bem, essa periferia não remete apenas a um limite geográfico. Não indica só e sobretudo uma latitude planetária extrema, uma margem. Implica em primeiro lugar a presença de problemas mandados para trás, renegados, marginalizados, a reação contra o silêncio que habitualmente envolve a periferia, a voz daquilo que é marginal que se faz ouvir. Francisco mostra-se decidido a voltar a dar a palavra a tudo aquilo que foi calado, relegado, excluído, a tudo aquilo que para ele significam termos como "pobre", "pobreza", "empobrecido".
Com Francisco sublinha-se por isso uma outra concepção do fim do mundo. O fim do mundo passa assim a significar aquilo que chega ao centro para se fazer ouvir e também para reformular a ideia de centralidade. A palavra de Francisco propõe uma tarefa: transferir a periferia para o centro. A velha cruz de ferro no lugar da cruz de outro. Os velhos sapatos no lugar dos principescos sapatos papais. A humildade do compromisso com a pobreza no centro da prática sacerdotal. A austera simplicidade da fraternidade com quem vive na necessidade no coração da vocação religiosa.
Há mais: a Argentina passa, mediante o novo papa, a desempenhar um papel inesperado na reconsideração crítica do futuro do ocidente, na promoção de mudanças indispensáveis, seja na Igreja seja fora dela. Francisco aspira a fazer com que a nossa civilização se interrogue sobre o seu futuro, sobre o que o obscurece e sobre aquilo que lhe poderia voltar a dar consistência e clareza. O ocidente é chamado a deixar de ser, e para sempre, a vanguarda espiritual no mundo? A eficiência no ocidente esmagou definitivamente a ética? Os seus valores decisivos e fundamentais poderão ir além do aspeto financeiro, do consumismo desenfreado, do auge da corrida aos armamentos? Até que ponto a Igreja poderá tornar o seu destino independente daquele que está a acontecer ao mundo secular? A Igreja irá recuperar, encorajando assim o renascimento espiritual da nossa civilização? (...)
Espera-se de Francisco, o papa americano, uma sã integração entre tradição e vanguarda. Ela espera-se como algo de indispensável. A Igreja pode contribuir decisivamente através das mudanças que deve enfrentar e promover, para que possamos compreender se o ocidente ainda tem um futuro ou só tem um passado.
O cardeal Carlo Maria Martini disse em tempos ainda recentes: «A nossa Igreja está 200 anos para trás, a nossa cultura está envelhecida, os nossos conventos estão vazios, o nosso aparato burocrático cresce». Francisco ligar-se-á a este diagnóstico. Procurará levar coragem à vida onde a coragem definha. Conhece as causas do mal. Conhece o empenho na procura do bem. Procurará voltar a dar atualidade, transparência e firmeza à Igreja. Assim fazendo dará ao ocidente a possibilidade de reencontrar no catolicismo, que é um dos fundamentos da sua civilização, uma fonte revitalizada de energia.
Por fim vale a pena recordar que no centro das preocupações daquele que hoje é o papa Francisco palpitam há anos as interrogações em torno da globalização, da bioética, dos desafios ecológicos, da educação e da justiça social. Recorde-se igualmente a sua preocupação perante o papel da mulher dentro e fora da Igreja, os problemas das vocações religiosas, o debate sobre o matrimónio dos sacerdotes. Própria de Francisco é também a reflexão constante sobre o vínculo apaixonante e intenso entre fé e conhecimento, entre ética e política.
Em suma, o papa Francisco é sem dúvida um líder inesperado. Tão inesperado como imprescindível num mundo angustiado pela incredulidade.
Neste dia, Quarta-feira de Cinzas, entramos no tempo litúrgico da Quaresma. E dado que estamos a desenvolver o ciclo de catequeses sobre a esperança cristã, hoje gostaria de vos apresentar a Quaresma como caminho de esperança. Com efeito, esta perspectiva é logo evidente se pensarmos que a Quaresma foi instituída na Igreja como tempo de preparação para a Páscoa, e portanto todo o sentido deste período de quarenta dias recebe a luz do mistério pascal para o qual se orienta. Podemos imaginar o Senhor ressuscitado que nos chama a sair das nossas trevas, e nós colocamo-nos a caminho para Ele, que é a Luz.
A Quaresma é um caminho para Jesus ressuscitado, um período de penitência, bem como de mortificação, mas não é um fim em si própria, e sim dirigida a fazer-nos ressurgir com Cristo, a renovar a nossa identidade batismal, isto é, a renascer novamente «do alto», do amor de Deus. Eis porque a Quaresma é, pela sua natureza, tempo de esperança.
Para compreender melhor o que isto significa, devemos referirmo-nos à experiência fundamental do êxodo dos israelitas do Egito, narrada pela Bíblia no livro que tem esse nome: Êxodo. O ponto de partida é a condição de escravidão do Egito, a opressão, os trabalhos forçados. Mas o Senhor não esqueceu o seu povo e a sua promessa: chama Moisés e, com braço poderoso, faz sair os israelitas do Egito e guia-os através do deserto em direção à Terra da liberdade.
Durante este caminho da escravidão à liberdade, o Senhor dá aos israelitas a lei, para o educar a amá-lo, único Senhor, e a amarem-se entre eles como irmãos. A Escritura mostra que o êxodo é longo e tormentoso: simbolicamente dura 40 anos, isto é, o tempo de vida de uma geração. Uma geração que, perante as provações do caminho, é sempre tentada a recordar com saudade o Egito e a ele regressar; também todos nós conhecemos a tentação de voltar atrás, todos. Mas o Senhor permanece fiel e aquela pobre gente, guiada por Moisés, chega à Terra prometida.
Todo este caminho é realizado na esperança: a esperança de alcançar a Terra, e precisamente neste sentido é um "êxodo", uma saída da escravidão à liberdade. E estes 40 dias são também para nós uma saída do pecado e um caminho para o Senhor. Cada passo, cada esforço, cada prova, cada queda e cada retomada, tudo tem sentido apenas no interior do desígnio de salvação de Deus, que quer para o seu povo a vida e não a morte, a alegria e não a dor.
A Páscoa de Jesus é o seu êxodo, com o qual Ele nos abriu o caminho para chegar à vida plena, eterna e feliz. Para abrir este caminho, esta passagem, Jesus deve de despojar-se da sua glória, humilhar-se, fazer-se obediente até à morte e à morte de cruz. Abrir-nos a estrada para a vida eterna custou todo o seu sangue, e graças a Ele nós fomos salvos da escravidão do pecado.
Mas isto não quer dizer que Ele fez tudo e nós não temos de fazer nada, que Ele passou através da cruz e nós "vamos para o paraíso de carruagem". Não quer dizer isto. Não é assim. A nossa salvação é certamente dom seu, dado que é uma história de amor, requer amor, requer o nosso "sim" e a nossa participação, como nos demonstra a nossa Mãe Maria e depois dela todos os santos.
A Quaresma vive desta dinâmica: Cristo precede-nos com o seu êxodo, e nós atravessamos o deserto graças a Ele e atrás dele. Ele foi tentado por nós e venceu o Tentador por nós, mas também nós temos com Ele de enfrentar as tentações e superá-las. Ele dá-nos a água viva do seu Espírito, e a nós cabe extrair da sua fonte e beber, nos sacramentos, na oração, na oração; Ele é a luz que vence as trevas, e a nós é pedido alimentar a pequena chama que nos foi confiada no dia do nosso Batismo.
Neste sentido, a Quaresma é «sinal sacramental da nossa conversão», quem faz a estrada da Quaresma está sempre na estrada da conversão, do nosso caminho da escravidão à liberdade, sempre a renovar. Um caminho certamente exigente, como é justo que seja, pois o amor é exigente, mas um caminho repleto de esperança. Aliás, direi mais: o êxodo quaresmal é o caminho em que a própria esperança se forma.
O esforço de atravessar o deserto - todas as provações, as tentações, as ilusões, as miragens -, tudo isto serve para forjar uma esperança forte, sólida, sobre o modelo daquela da Virgem Maria, que no meio das trevas da paixão e da morte do seu Filho continuou a acreditar e a esperar na sua ressurreição, na vitória do amor de Deus.
Com o coração aberto a este horizonte, entremos hoje na Quaresma. Sentindo-nos parte do povo santo de Deus, iniciamos hoje com alegria este caminho de esperança.
Papa Francisco
Audiência Geral 1.2.2017
O infinito que a nós cabe viver é sempre um infinito ferido. E é bom que assim seja. As perguntas «quem estou disposto a amar?», «até que ponto me torno disponível para a confiança?», «como me disponho a abraçar a vida nos seus rasgões e nas suas convulsões?» trazem tatuada uma interrogação que não vemos, em que raramente pensamos, mas que é intrínseca a tudo, precisamente a tudo aquilo que somos: «Por que coisas me sinto capaz de sofrer?».
E isto nada tem a ver com um qualquer confuso masoquismo autosacrificial. É antes o contrário. Onde se lê «sofrer» entenda-se «viver», investir gratuitamente desejo e esforço, escutar em profundidade, acompanhar passo a passo com amor incondicional, dar a vida. Exatamente como faz a semente que mergulha na terra, onde está como se morresse, e desse modo assume o risco de hipotecar e transmudar a sua própria existência para gerar um fruto novo.
Poderemos nós pensar a vida de outra maneira? Podemos, certamente. E infelizmente muitos (por medo, por egoísmo, por insegurança) lidam com ela nessa perspetiva. Mas essa não é vida. Permanecerá sempre, mesmo se bem camuflada, uma vida aparente, mutilada de algumas dimensões fundamentais, vida a realizar. Uma aventura apenas esboçada. Um dom que não chegou a sê-lo.
José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 12.01.2017 no SNPC
Num recente programa de rádio, o escritor norte-americano Jack Hitt contou uma história sobre como explicar o Natal à sua filha de quatro anos. Um dia, quando ela lhe perguntou sobre o que era essa festa, ele falou-lhe do nascimento de Jesus, o que aguçou a sua curiosidade. Compraram-lhe uma Bíblia para crianças e ela aprendeu sobre o nascimento de Jesus e os seus ensinamentos, incluindo a antiquada expressão «faz aos outros como gostarias que te fizessem».
Noutro dia, passaram de carro por uma grande igreja com um enorme crucifixo no exterior. «Quem é aquele?», perguntou ela. Hitt percebeu que nunca tinha falado à filha dessa parte da história. «Então respondi-lhe alguma coisa como "oh, bem, é Jesus. E eu esqueci-me de te dizer o final. Ele entrou em conflito com o governo romano», recordou Hitt na emissão.
«Esta mensagem que Ele tinha foi tão radical e perturbadora para as autoridades do tempo, que elas tiveram de o matar. Elas chegaram à conclusão de que Ele tinha de morrer. A sua mensagem era muito problemática», explicou o escritor à criança.
Algumas semanas após aquele Natal, a escola pré-primária fechou por causa do feriado dedicado a Martin Luther King Jr., e Hitt levou a filha a almoçar. Na mesa do restaurante estava o suplemento artístico do jornal local, que tinha um grande desenho de Luther King feito por uma criança. «Quem é este?», interrogou ela.
Ele respondeu que King tinha sido um pregador que havia afirmado que «deves tratar todos da mesma forma, sem olhar à aparência». Ela ficou a pensar naquelas palavras por alguns momentos. «Então foi o que Jesus disse», respondeu. Hitt afirmou que nunca tinha pensado nisso daquela maneira, mas sim, tem muito a ver com a frase «faz aos outros...».
A criança voltou a ficar pensativa por instantes, depois olhou para o pai e interrogou: «Também o mataram?».
Esta história andou às voltas na minha cabeça a 26 de dezembro, a festa de Santo Estêvão, o primeiro mártir cristão. Os novos brinquedos da nossa filha continuavam dispersos por toda a sala de estar, o quarto dela, a entrada. As imagens do Menino Jesus descansavam pacificamente na meia dúzia de presépios espalhados pela casa. E a Igreja celebrava um jovem do primeiro século que foi apedrejado por causa do que acreditava e fez. É uma justaposição dissonante. Segue até ao extremo a mensagem de amor e paz revelada na manjedoura e pode ser que acabes numa cruz ou na varanda de um hotel.
Nunca vi uma imagem mais poderosa sobre esta verdade do que a fotografia que povoou a internet nos dias a seguir ao Natal: crentes amontoados na secção frontal da catedral maronita católica em Alepo, tendo atrás de si a grande nave da igreja totalmente bombardeada.
A palavra "mártir" significa testemunha, e estas testemunhas sírias deixaram-me estupefado. As suas vidas do dia a dia tornam-nas pessoalmente mais íntimas com a história de Santo Estêvão do que a maioria de nós alguma vez será. Ainda assim, confrontadas com uma violência inimaginável, apareceram para adorar juntas o Príncipe da Paz. Apareceram. Apareceram.
Eu, quanto a mim, passei os olhos pela seleção de cânticos da nossa Missa do Galo. Tenho evitado olhar diretamente para os olhos da maior parte dos sem-teto que vejo nas ruas em redor do meu escritório. Muitas vezes, demasiadas vezes, não estou a aparecer.
«Digo-vos uma coisa», afirmou o papa Francisco no dia de Santo Estêvão. Na sua habitual forma direta, pareceu-me que estava a falar precisamente para mim e para os meus confortáveis companheiros cristãos: «Os mártires de hoje são muitos mais em relação aos dos primeiros séculos [da Igreja]. Quando lemos a história dos primeiros séculos, aqui, em Roma, lemos tanta crueldade com os cristãos; eu digo-vos: hoje existe a mesma crueldade, em número superior».
«Hoje queremos pensar neles que sofrem perseguições, e estar próximos deles com o nosso afeto, a nossa oração e também com o nosso pranto», continuou ele. «Não obstante as provas e os perigos, eles testemunham com coragem a sua pertença a Cristo e vivem o Evangelho comprometendo-se a favor dos últimos, dos mais esquecidos, fazendo o bem a todos sem distinção; testemunham assim a caridade na verdade.»
Eis aqui alguma inspiração para uma resolução de Ano Novo que valha a pena. Pertencer a Jesus. Viver o Evangelho. Favorecer os últimos e os esquecidos. Fazer o bem a todos sem distinção. Extrair energia da coragem de Martin Luther King, dos cristãos de Alepo e de Santo Estêvão. Por outras palavras: ser uma testemunha, por amor de Deus.
Mike Jordan Laskey
In "National Catholic Reporter"
Trad. / adapt.: Rui Jorge Martins
Publicado em 03.01.2017 no SNPC
Porque é que colocamos tanta resistência em parar e a conceder-nos formas de descanso que nos restituam a nós próprios? Por uma razão simples: o movimento parece-nos mais fácil de viver.
O movimento preenche o tempo, mantém-nos ocupados nas suas voltas vertiginosas, enquanto o repouso inicia-se muitas vezes com a sensação de um esvaziamento, surpreendente, incómodo, difícil de gerir.
Por isso fugimos do repouso verdadeiro, no qual o encontro conosco próprios é inevitável. É o que com frequência acontece às pessoas superatarefadas que finalmente decidem dar-se um tempo de pausa ou de retiro.
Não é raro que a sua primeira experiência seja o desejo de escapar, enquanto pensam que o retiro foi uma má decisão: a princípio percebem uma sensação de abandono, como se inesperadamente se encontrassem a combater sozinhos com a sua noite.
Thomas Merton, um mestre que é necessário redescobrir, escreve: «O caminho da quietude nem sequer chega a ser um caminho, e quem o percorre não encontra nada». Soa estranho, não é verdade?
Aprender a repousar é também aprender a libertar-se do imediatismo das nossas expetativas e dos nossos desejos excessivamente idealizados. Repousar é dizer-se, no fundo do coração: «Estou aqui, à espera de nada»
José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 04.01.2017 no SNPC
Durante séculos os primeiros cristãos festejaram como festa das festas a Páscoa da ressurreição de Jesus o primeiro dia da semana judaica, para eles tornado “dia do Senhor”, e não sabemos se em algumas comunidades do Mediterrâneo se recordava o nascimento de Jesus com uma festa particular.
No século IV, após o edito de Constantino e a liberdade de culto concedida aos crentes em Cristo, ocorre a cristianização de uma festa pagã introduzida pouco antes pelo imperador Aureliano (c. 270) e celebrada em Roma como festa do “Sol invictus”, do “Sol vencedor”, que nesse dia começa a alongar o seu tempo de luz sobre a Terra.
Para os cristãos, Jesus o Senhor era «o Sol de Justiça» cantado por Malaquias, era «a Luz do Mundo» proclamada pelo Evangelho. Eis então que no ocidente o renascimento do “Sol invictus” pagão foi cristianizado mediante a festa do Natal, da Natividade de Jesus Cristo. Paralelamente, no oriente (Egito e Síria), onde o solstício de inverno se assinalava a 6 de janeiro, assume-se essa data para celebrar a Epifania como festa da manifestação da vinda do Filho de Deus à nossa humanidade.
Esta é a origem da nossa festa, que desde sempre teve no seu centro o Evangelho do nascimento de Jesus segundo Lucas (2, 1-14). Na missa da noite, celebrada no coração das trevas, refulge uma grande luz: Jesus, dado à luz por Maria em Belém.
Esta narrativa não é uma fábula, ainda que pareça escrita para as crianças, que significativamente a recordam para toda a vida, mas é uma página do Evangelho, uma noa notícia. Por isso Lucas quer antes de mais situar esse acontecimento na grande história do Mediterrâneo, marcada pelo domínio do Império Romano.
César Augusto decide contar os habitantes de todas as terras conquistadas por Roma: para tal ordena um recenseamento, executado na terra de Israel por Quirínio, governador da Síria. José obedece a esta ordem e, juntamente com a mulher, Maria, deixa a sua cidade de Nazaré para se dirigir a Belém, na Judeia, no sul da Terra Santa, onde tinha tido origem a casa e a descendência de David, o Messias, o ungido do Senhor, o rei de Israel.
Enquanto este casal se encontra em Belém, numa condição precária e de pobreza, não tendo encontrado lugar na estalagem, numa pequena construção, somente um abrigo no campo, Maria, que está grávida, dá à luz o seu filho primogénito, a ela anunciado por revelação como gerado pelo Espírito de Deus, um Filho que só Deus podia dar a toda a humanidade.
Aqui já está uma forte contraposição, que caraterizará toda a vida deste recém-nascido. Quem domina o mundo é Augusto – chamado “Divus”, “Deus”; “Sotér”, “Salvador”; “Kýrios”, “Senhor” –, mas o verdadeiro Salvador e Senhor é um seu súbdito, um bebé nascido numa situação pobre, para o qual desde logo parece não haver lugar neste mundo.
Conhecemos todos bem o ícone da Natividade: uma cabana ou uma gruta, e Maria que deita o seu filho numa manjedoura, com José ao lado, testemunha e guardador daquele mistério no qual é envolvido e ao qual presta pontualmente obediência. Tudo acontece na noite, no silêncio, na condição humaníssima de uma mãe que dá à luz um filho. Ninguém conhece aquele casal, ninguém o acolhe, ninguém se dá conta de nada.
Mas eis que Deus envia um seu mensageiro aos pastores que se encontram nas colinas que circundam Belém, para levantar o véu sobre aquele acontecimento: «Um anjo do Senhor apresentou-se a eles e a Glória do Senhor envolveu-os em luz». Os pastores são gente desprezada, marginalizada, que nem sequer são considerados dignos de ir ao templo para encontrar o Senhor. Mas é precisamente a estes últimos da sociedade da Judeia que é dirigido o anúncio, a boa notícia por excelência, que é alegria para todo o Israel, para todo o povo de Deus. Pela sua condição de pobres e últimos, os pastores são os primeiros destinatários por direito desta boa notícia:
«Hoje, na cidade de David, do Messias, nasceu para vós um Salvador, que é o Messias, Senhor».
Neste anúncio colhemos como que uma antecipação da boa notícia pascal: Jesus é o “Kýrios”, o Salvador. Não Augusto, que se vangloriava desse título, mas um menino recém-nascido recebe esse mesmo título da parte de Deus. Assim acontece a revelação aos pequenos, aos últimos, da qual são excluídos quantos acreditavam ser destinatários de direito: sacerdotes, peritos da Lei, crentes militantes convencidos de serem só eles os verdadeiros filhos de Abraão.
Aos pastores é dado também um sinal, uma indicação para que possam ver e compreender: nada de extraordinário ou de divino mas, de novo, uma realidade humaníssimas: «Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas, deitado numa manjedoura». Realidade simples e humilde, sem ornamentos, sem “extraordinário”.
E todavia este anúncio é dado por um coro incontável de criaturas invisíveis, numa espécie de liturgia cósmica, essa liturgia do céu que não conseguimos ver nem escutar mas que enche o universo e canta a santidade e a glória de Deus, isto é, proclama quem e como Deus ama. Com efeito, o que nesse canto coral é revelado é a vontade de Deus: «Deus tem peso (“kabod”, glória), Deus age no mundo mesmo sendo Santo e está no mais alto dos céus, Deus dá a paz à humanidade que Ele ama».
Eis a boa notícia do Natal: Deus ama-nos de tal modo que quis ser um de nós, entre nós, igual a nós, um homem como nós.
Enzo Bianchi
In Monastero di Bose
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 22.12.2016 no SNPC
Na penumbra da noite, olhos carregados de nuvens, encontro oculto um convite a descobrir o sentido da chuva em mim. O piano toca baixinho a melodia dedilhada nas batidas do coração. Raios cortam o céu, fazem um espetáculo acontecer. Tomada pelo assombro diante do espetáculo da vida sinto essa sensação quase esquecida... Gravo na retina a imagem do céu, que cai sobre minha face no meio da escuridão. Soberana a natureza manifesta sua grandeza. Recorda-me a pequenez e a fragilidade da vida humana e ainda assim, a vida humana encarnada por Deus...
Durmo no embalo dessa torrente de águas que envolve meus sonhos. Aconchegada a cobertas e travesseiros entrego-me. O inconsciente, esse mundo desconhecido, então se abre à graça. Não sei, mas sinto: é aí que acontecem os milagres que já não posso ver. É nesse lugar que Deus afasta nuvens pesadas, carregadas de tantas preocupações e passeia tranquilo por entre os fios de meus cabelos. Ventos impetuosos abrem portas e janelas no meu interior. Suas mãos num delicado gesto derramam sem pressa, o bálsamo perfumado sobre as cicatrizes endurecidas. Sou banhada como a chuva em terra seca, embalada como um recém nascido. Suavemente sinto o sopro sobre os meus sonhos sufocados. Respiro profundamente e solto-me dos travesseiros... Liberdade chega sorrateira no toque de seus lábios a cobrir de beijos enternecidos os meus, seus, desejos em mim. Seus pés tocam com intimidade o chão da minh'alma e as franjas de sua veste varrem carinhosamente tudo que preciso esquecer. Então Ele sorri pra mim num rosto de criança fazendo alegre a menina dos meus olhos.
O tempo, amigo, lá não existe. Os raios de sabedoria vão formando mandalas de vida brincando com a luz na escuridão... e os medos, esses que falam mansinho o dia todo ao pé do ouvido, esses saem voando ao som dos trovões. Assim que eles saem a chuva mansa vem então testemunhar, o amor eterno de meus pais que me visitam só para lembrar: meu lugar de filha em seus corações para sempre vai estar.
Acordo desejando lá permanecer... mas a chuva mansa se transforma numa melodia alegre anunciando o novo dia. Agora posso sentir o assombro e a surpresa pela vida renascida em mim. Descubro o sentido de ter nascido assim... em meio a chuvas, no tempo da espera da vinda, da esperança! Reconheço-me toda Advento, a espera do que já se realiza no meu interior: o natal, o Deus conosco Emanuel.
No meu aniversário é esse o presente que eu desejo: que cada ser humano, em sua fragilidade tão divina, sinta o assombro pela vida renascida a cada dia, na presença do Amor encarnado em seus corações em forma de esperança que encharca de sentido o existir.
Lilian Carvalho
BH - 18.12.2016
«A duração da nossa vida é de setenta anos e, para os mais fortes, de oitenta…», diz o Salmo 90 (89), que o papa Francisco reza muitas vezes na liturgia das horas e talvez até na oração pessoal, com mais insistência porque chegou agora a esta etapa. A cada dia o constatamos: Francisco é um homem ainda forte, de boa saúde, e por ele o povo de Deus ora a fim de que possa continuar a tornar evangélico o poder que está ligado ao seu ser bispo de Roma e papa. Em espírito de atenção e de escuta do seu ensinamento, podemos esboçar uma leitura do que mudou na Igreja católica nestes três anos e meio e das expetativas que encontraram no papa Francisco motivos de iluminação.
Antes de tudo gostaria de sublinhar o ambiente novo em que esta leitura é possível. O caminho que precedeu e acompanhou os dois sínodos dos bispos, assim como os repetidos convites do papa Francisco tornaram mais franca e transparente a dialética no interior da Igreja: a vivacidade de uma opinião pública no espaço eclesial tornou a ser não só possível mas também desejada, como na estação inaugurada pelo anúncio do Concílio Vaticano II e continuada durante toda a sua prossecução.
Também a excessiva sobre-exposição dos movimentos eclesiais, que tinham quase monopolizado a veia carismática nunca ausente da história, foi reconduzida ao leito de uma Igreja mais ordenada, numa comunhão mais visível e novamente pacificada, de tal modo que os movimentos podem agora oferecer o seu testemunho sem que exista a suspeita de um desejo de ocupar espaços ou gerir poder. A Igreja é mais que nunca “povo de Deus”, expressão cara ao papa Francisco, não só pela sua matriz conciliar, mas porque é capaz de indicar a qualidade “popular”, não elitista, da comunidade cristã.
Graças também a esta diferente aproximação, é mais fácil colher um dos traços salientes deste pontificado: o novo impulso conferido ao ecumenismo. Parecia estagnado, ao ponto de alguns falarem de «inverno ecuménico», mas o papa Francisco, com gestos inesperados e audazes, mais ainda do que com palavras, voltou a despertar o desejo de unidade que tinha acompanhado o tempo após o Concílio Vaticano II na Igreja católica e, paralelamente, nas outras Igrejas. Pense-se na viagem para encontrar a Igreja valdense em Turim, uma Igreja que permaneceu sempre no cone de sombra do ecumenismo católico; na “obstinação” profética e eficaz no querer encontrar como irmão o patriarca de Moscovo, Cirilo, encontrando-o em Cuba; na viagem a Lund, Suécia, para dizer aos protestantes que Lutero, se é verdade que produziu uma rutura com a Igreja católica, estava todavia animado pela paixão por uma Igreja mais evangélica. Esperemos que agora não se volta a usar a palavra “protestantização” para designar negativamente cada reforma que a Igreja católica empreender. Nenhum papa após Paulo VI ousou tanto como Francisco no ir ao encontro do outro irmão cristão, inclusive ao ponto de humilhar a própria pessoa na condição de o ministério petrino ser desempenhado como presidência na caridade.
E, como prova de que a procura da unidade visível dos cristãos não contrasta nada com a missão e o anúncio do Evangelho, o magistério do papa Francisco sobre alguns aspetos decisivos da presença cristã na sociedade moderna – a salvaguarda do criado, a paz e as migrações – encontraram partilha e solidariedade também da parte das outras Igrejas. Pense-se na visita à ilha de Lesbo, símbolo da tragédia dos migrantes, juntamente com o patriarca ecuménico Bartolomeu e o arcebispo de Atenas, nos repetidos apelos contra o tráfico de armas e de seres humanos, na incessante mediação em situações de conflitos – desde a Síria à Colômbia – na denúncia da “terceira guerra mundial em partes” ou ainda nas resolutas tomadas de posição pela salvaguarda do criado: o papa Francisco sempre se moveu e pôde falar como portador de uma mensagem de humanidade dirigida a todos, essa boa notícia evangélica que vai para além de toda a divisão confessional e constrói pontes em vez de muros. Não por acaso, precisamente sobre o tema da ecologia assistimos a uma novidade absoluta: uma encíclica papal que cita e valoriza o pensamento de um patriarca ecuménico e que é foi apresentada no Vaticano também por um bispo e teólogo ortodoxo.
Por fim, toda a Igreja – tantas vezes tentada a exercitar o ministério da condenação, tentada pela intransigência – foi convidada, com o Ano da Misericórdia como selo dos dois sínodos dos bispos, a ser inclusiva e nunca exclusiva, a ir ao encontro a quem está em pecado anunciando-lhe o perdão de Deus e afirmando que além da lei está a misericórdia. Desde o início do pontificado escrevi que íamos ter um papa da misericórdia: assim foi e é. E é significativo que precisamente sobre esta atitude se verifiquem não só críticas mas oposições duras da parte daqueles que o papa chama «pessoas religiosas mas rígidas», «justas mas insensíveis», homens da lei que muitas vezes nem sequer sabem reconhecer em si próprios o que reprovam nos outros. A misericórdia, sob o pontificado de Francisco, não é só tema de vida espiritual pessoal, mas é estilo, prática nas relações eclesiais de quem tem necessidade da misericórdia de Deus, da Igreja, dos irmãos.
Ora, que expetativas nutre o povo de Deus ao escutar as palavras de Francisco? São expetativas de reforma da Igreja “in capite et in membris” [na cabeça e nos membros]. Sabemos, todavia, que se fala de reforma da Igreja há pelo menos oito séculos e que a Igreja deve estar sempre em dinamismo de reforma: “ecclesia sempre reformanda”. O papa Francisco está animado por esta intenção e declara-o muitas vezes, mas devemos estar conscientes de que quando mais a Igreja se reformar segundo o primado do Evangelho, mais desencadeia as forças adversas que se revoltam contra ela. Mais vida segundo o Evangelho significa mais cristãos perseguidos no mundo, mais crentes hostilizados pelos seus próprios irmãos de fé, na própria Igreja. Há uma ingenuidade que temo possa levar só a reformas, se não mundanas, de simples maquilhagem. Mesmo a própria reforma da cúria só acontecerá se o papa a conseguir fazer com a cúria e a cúria com o papa, porque de outro modo não será possível realizar mutações eficazes numa realidade tão complexa e estruturada. Muitos bispos e fiéis confiam-me: esperemos que o papa reforme poucas coisas essenciais, mas de tal modo que não se possa voltar atrás depois dele. É este o desejo para o seu 80.º aniversário.
Enzo Bianchi
In "Monastero di Bose"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 20.12.2016 no SNPC
A nossa humanidade enriquece-se muito se estamos com todos os outros e em qualquer situação em que se encontram. É o isolamento que faz mal, não a partilha. O isolamento desenvolve o medo e a desconfiança e impede de beneficiar da fraternidade. É preciso com efeito dizer que se correm mais riscos quando nos isolamos do que quando nos abrimos ao outro: a possibilidade de nos fazermos mal não está no encontro mas no fechamento e na rejeição. A mesma coisa vale quando assumimos o cuidado de alguém: penso num doente, num idoso, num imigrante, um pobre, num desempregado. Quando tomamos conta do outro complicamos menos a vida do que quando estamos concentrados em nós mesmos.
Estar no meio das pessoas não significa só estar abertos e encontrar os outros, mas também deixar-se encontrar. Somos nós que temos necessidade de ser olhados, chamados, tocados, interpelados, somos nós que temos necessidade dos outros para nos podermos fazer participantes de tudo o que só os outros nos podem dar. A relação pede este intercâmbio entre pessoas: a experiência diz-nos que habitualmente dos outros recebemos mais do que damos.
Entre a nossa gente há uma autêntica riqueza humana. São inumeráveis as histórias de solidariedade, ade ajuda, de apoio que se vivem nas nossas famílias e nas nossas comunidades. É impressionante como algumas pessoas vivem com dignidade a restrição econômica, a dor, o trabalho duro, a provação. Encontrando estas pessoas tocas com a mão a sua grandeza e recebes quase uma luz através da qual se torna claro que se pode cultivar uma esperança para o futuro; pode acreditar-se que o bem é mais forte do que o mal porque elas estão ali. Estando no meio das pessoas temos acesso ao ensinamento dos fatos.
Dou um exemplo: contaram-me que há pouco tempo morreu uma jovem de 19 anos. A dor foi imensa, muitas pessoas participaram no funeral. O que a todos tocou foi não só a ausência de desespero, mas a percepção de uma certa serenidade. As pessoas, após o funeral, falavam da admiração de terem saído da celebração aliviadas de um peso. A mãe da jovem afirmou: «Recebi a graça da serenidade». A vida quotidiana é entretecida destes fatos que marcam a nossa existência: eles nunca perdem eficácia, mesmo se não fazem parte dos títulos dos jornais. Acontece precisamente assim: sem discursos ou explicações compreende-se o que na vida vale ou não vale.
Estar no meio das pessoas significa também dar-se conta de que cada um de nós é parte de um povo. A vida concreta é possível porque não é a soma de muitas individualidades, mas a articulação de muitas pessoas que concorrem para a constituição do bem comum. Estar juntos ajudar-nos a ver o conjunto. Quando vemos o conjunto, o nosso olhar é enriquecido e torna-se evidente que os papéis que cada pessoa desempenha no interior das dinâmicas sociais nunca podem ser isoladas ou absolutizadas. Quando o povo está separado de quem comanda, quando se fazem escolhas por força do poder e não da partilha popular, quando quem comanda é mais importante do que o povo e as decisões são tomadas por poucos, ou são anônimas, ou são impostas sempre por emergências verdadeiras ou presumidas, então a harmonia social é colocada em perigo, com graves consequências para as pessoas: aumenta a pobreza, a paz é posta em risco, manda o dinheiro e as pessoas passam mal. Estar no meio das pessoas, por isso, faz bem não só à vida de cada um mas é um bem para todos.
Estar no meio das pessoas evidencia a pluralidade de cores, culturas, raças e religiões. As pessoas fazem-nos tocar com a mão a riqueza e a beleza da diversidade. Só com uma grande violência se poderia reduzir a variedade à uniformidade, a pluralidade de pensamentos e de ações a um único modo de fazer e de pensar. Quando se está com as pessoas toca-se a humanidade: nunca é só a cabeça, há sempre também o coração, há mais concretude e menos ideologia.
Para resolver os problemas das pessoas é preciso partir de baixo, sujar as mãos, ter coragem, escutar os últimos. Penso que é espontânea a pergunta: como é que se faz assim? Podemos encontrar a resposta olhando para Maria. Ela é serva, é humilde, é misericordiosa, está a caminho conosco, é concreta, nunca está no centro da cena, mas é uma presença constante. Se olharmos para ela encontraremos a melhor maneira de estar no meio das pessoas. Olhando para ela podemos percorrer todas as sendas do humano sem medo e preconceitos, com ela podemos tornar-nos capazes de não excluir ninguém.
Papa Francisco
Excertos da mensagem em vídeo para o Festival da Doutrina Social da Igreja (Verona, Itália)
24.11.2016
Publicado em 25.11.2016 no SNPC
«Ide aprender o que quer dizer “misericórdia quero, e não sacrifícios”» (Mateus 9, 13). Assim Jesus se dirigia aos homens religiosos do seu tempo que o censuravam porque se sentava à mesa com publicanos e pecadores. Ele, com efeito, veio «não para os justos, mas para os pecadores». E sobre este «aprender a misericórdia» o papa Francisco quis configurar o jubileu que se encerrou no domingo: não uma rejeição daquilo que é bem e daquilo que é mal em absoluto, não uma relativização da gravidade de certos comportamentos, mas a convicção evangélica de que, para usar as palavras do papa João XXIII na abertura do Vaticano II, «no tempo presente a Igreja prefere usar o remédio da misericórdia em vez de pegar nas armas do rigor; pensa que se deve ir ao encontro das necessidades contemporâneas, expondo mais claramente o valor do seu ensinamento, em vez de condenar».
Não fez outra coisa o papa Francisco durante este ano senão evidenciar algumas das «necessidades contemporâneas» a que a Igreja deveria responder com o remédio da misericórdia para curar os doentes ou aliviar-lhes o sofrimento, não para contentar os justos que não carecem de conversão. E esta, naturalmente, é uma tarefa que não se pode esgotar num ano, não se pode deter nos umbrais das portas das catedrais, agora simbolicamente a nível litúrgico infelizmente “encerradas”: trata-se, efetivamente, de “aprender” uma arte, “aprender” o que quer dizer usar misericórdia nas nossas relações no interior da Igreja e na companhia dos homens.
O âmbito que suscitou maior ênfase foi o da vida familiar: infelizmente da exortação pós-sinodal “Amoris laetitia” foram explorados só poucos parágrafos e algumas notas relativas à possibilidade ou não de acesso aos sacramentos da parte dos divorciados recasados, enquanto se negligenciou a solicitude pastoral que atravessa o conjunto do texto e abraça os muitos aspetos de alegria e de sofrimento ligados à vida concreta de milhões de famílias nas realidades sociais e culturais mais díspares.
É nesta ótica autenticamente global que o papa recordou vigorosamente que usar misericórdia não significa calar as realidades que ferem os seres humanos e a sua dignidade: as guerras e a fome, antes de tudo, que semeiam morte e obrigam milhões de pessoas a fugir em condições desesperadas da sua terra e, depois de terem ultrapassado territórios e mares de morte, a encontrarem muros de recusa da parte de quem não sabe abrir o coração e a casa ao pobre que bate à porta.
Mas também a superação das injustiças econômicas estruturais é obra de misericórdia: garantir “terra, casa e trabalho” a cada ser humano significa salvaguardar-lhe a dignidade mais profunda, dignidade que nenhuma lei ou sociedade podem negar, nem sequer a quem está na prisão. Neste sentido, o papa Francisco não hesitou em estigmatizar o mercado quando percorre caminhos desumanos ou mortíferos – como no caso dos traficantes de armas – ou a própria justiça humana quando por um crime, ainda que brutal, prevê a pena de morte evidente ou a “oculta” da prisão perpétua.
Misericórdia, recordou-nos o papa durante este jubileu, é também revisitar as divisões históricas entre os cristãos para regressarem juntos ao Evangelho e juntos caminharem para a unidade querida por Jesus para os seus discípulos.
Nos últimos dias alguns tentaram fazer um balanço deste ano jubilar a nível turístico e econômico para a cidade de Roma, mas torna-se impossível elaborar a nível mundial o único balanço que conta para quem leva a peito o Evangelho: o da conversão das consciências e da mudança de comportamentos por parte de quem se professa cristão. Sem dúvida que a centralidade do Evangelho manifestada e afirmada de muitos modos e em diversas ocasiões sacudiu e até escandalizou quantos estão mais preocupados pela religião do que pela mensagem de Jesus Cristo. Neste sentido, se a hostilidade para com o papa Francisco se manifestou ou cresceu é por causa do seu arrojo no mostrar e pregar a misericórdia.
É certo que não basta um ano para “aprender” o que quer dizer misericórdia e agir em consequência, mas o papa Francisco quis recordar que sobre ela se mede para os cristãos a fidelidade ao Evangelho e para todos a possibilidade de percorrer caminhos de humanização.
Enzo Bianchi
Prior do Mosteiro de Bose, Itália
Trad: Rui Jorge Martins
Publicado em 25.11.2016 no SNPC
Não leve a mal o silêncio, meu amigo. São horas de equilíbrio instável até chegar a uma trilha arborizada, depois mais algumas horas até poder pensar uma palavra. E assim vão as semanas. Passando um tempo imenso sem registro. Um tempo imenso livre de ser registrado. Nenhuma peripécia aparente. Nada de prazeres transatlânticos. É só um café depois do almoço. Uma hora a mais de sono de vez em quando. Um banho morno. Um chá à noite. Prazeres inversamente proporcionais a seu nível de extravagância, mas como fossem graças, pequenas graças. Uma cópula aérea de borboletas. Seis hibiscos abertos mais três brotos. Um reflexo de fogo no vidro do apartamento em frente. Coisa pouca, para cuidar que os ecos do mundo não quebrem uma alma através dessas janelas para os muitos cantos da Terra com seus meninos cobertos de cinzas, como tatus enfiados em abrigos, retirados de escombros, meninos salvos de bombardeios, meninos em botes apinhados de gente em pânico, bichos enlouquecendo em cativeiros, essas imagens do dia que entram por nossos olhos e depositam seus ovos aqui dentro. Então o silêncio. Então um tempo imenso sem registro, mas de íntimas batalhas. Para colher do mundo um mundo que mereça uma criança. Como aquela mulher que caminhava debaixo de chuva, com bolhas nos pés, em tempos de guerra, procurando um ramo de rosas para trazer para casa. Como o passarinho que vai preparando seu ninho contra o vento com centenas de minúsculos gravetos: ainda cuidar de fazer dentro de um dia uma cama de pequenas graças. Não são as palavras que custam a ganhar forma, custa é colocar alento nelas. Não leve a mal, meu amigo. Uma palavra demora um milagre a nascer.
Mariana Ianelli
Escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli, da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre (ed. ardotempo, 2013). Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.
in: RUBEM, revista de crônica
Colocar a sociedade brasileira nos trilhos sob os parâmetros da justiça social e do desenvolvimento integral é um caminho complexo. Por isso, todos os cidadãos devem buscar se envolver no necessário processo de discernimento relacionado à Proposta de Emenda Constitucional 241 (PEC 241). Em pauta, estão importantes definições que vão impactar nossas vidas ao longo de duas décadas. Imagine o que significa vinte anos para o país. Podem ser décadas de avanços rumo ao desenvolvimento integral, um caminhar promissor para todos, especialmente para quem é mais pobre. Mas, é preciso atenção para a permanente ameaça de se seguir na direção oposta, com a multiplicação dos vergonhosos cenários de miséria e exclusão já presentes no país. Por isso, a escolha dos rumos com a PEC 241 merece uma mobilização nacional, que contemple análises e discussões, envolvendo os mais diversos atores: economistas, especialistas e movimentos da área social, igrejas, universidades e, de modo particular, o parlamento brasileiro, que a partir do voto, fundamentado nas necessárias ponderações, indicará o passo a ser dado.
Não se pode, imprudentemente, apoiar ou definir escolhas que, se equivocadas, pesarão crucialmente sobre os ombros de todos - mais perversamente atingirá os excluídos. Isso não significa deixar de investir nos ajustes e readequações que são necessários, adotando lógicas de gestão capazes de extinguir as dinâmicas que garantem certas regalias a determinadas classes, grupos e indivíduos, privilégios que estão na contramão da equidade e da justiça social. O Governo Federal e o Parlamento têm o dever de encontrar, criativamente, saídas para as crises e apresentar soluções para os graves problemas enfrentados pela nação brasileira. Evidentemente, isso não é tarefa fácil e exige complexas ponderações para não se perder as conquistas alcançadas na Constituição Cidadã de 1988, marco para o início do pagamento de dívidas sociais históricas.
Em um momento tão determinante para o futuro, nada de precipitações. São esperadas análises e um amplo processo de escuta da sociedade para que os mecanismos escolhidos, diante da necessidade de se colocar o Brasil nos trilhos, não ameacem, irreversivelmente, a vida de todos, principalmente a vida de quem já sofre. Assim, oportuno é sublinhar que as mudanças propostas não podem ser justificadas e definidas apenas pelas avaliações do ponto de vista econômico. É preciso considerar e buscar intervir, de modo mais profundo, no tecido cultural brasileiro, habituado a funcionar nos trilhos dos privilégios e das regalias.
Nesse sentido, a PEC 241 não pode ser, simplesmente, fruto da interlocução entre Executivo Federal e o Parlamento. Sua análise e discussão têm que se tornar um fato político e social mais amplo, permitindo o envolvimento dos segmentos todos da sociedade. É preciso haver debates entre especialistas, de diferentes áreas, e também uma convocação do povo, por diversos modos, para uma ampla mobilização nacional, de modo a criar entendimentos. Restringir a definição de uma diretriz que terá impacto nas próximas duas décadas à Praça dos Três Poderes em Brasília é algo desrespeitoso e temerário. Afinal, não se pode definir o futuro de um país sem análises e clarividências capazes de incluir, junto com a busca pela regulamentação e limitação dos gastos públicos, outros graves desafios que precisam ser enfrentados. Não bastam as afirmações políticas, em tom de promessa acalentadora, diante de mecanismos que podem funcionar, mais uma vez, como guilhotina destinada aos mais pobres e indefesos. Esses mecanismos precisam ser configurados a partir dos parâmetros da justiça social.
Entre os pares envolvidos na ampla discussão que o momento politico requer está a Igreja Católica, cujo tom de voz deve estar sempre em sintonia com as orientações do Papa Francisco. O magistério e a singularidade pastoral de Francisco impulsiona essa instituição bimilenar a contribuir com a construção de uma sociedade justa e solidária. Por isso, antes de qualquer elogio ou apoio apressado, embora sempre reconhecendo e dialogando com os interlocutores e agentes da sociedade pluralista, particularmente nos âmbitos governamentais, a Igreja recorda o que pede o Papa Francisco, em sua Exortação Apostólica Alegria do Evangelho: não à economia da exclusão, não à idolatria do dinheiro, não a um dinheiro que governa em vez de servir.
No cumprimento de sua tarefa missionária, a Igreja está atenta às transformações vividas pela humanidade, às singularidades próprias da realidade brasileira. Reconhece tudo o que contribui para o bem-estar das pessoas, nos âmbitos da saúde, educação, da comunicação e em tantas outras áreas. Mas também é, diante das graves situações sociais e políticas, porta-voz de quem vive precariamente. Cada vez mais, crescem o medo e o desespero no coração de inúmeras pessoas. A alegria de viver, frequentemente, se desvanece por falta de respeito à dignidade humana, pelo crescimento da violência e da desigualdade social. Urge reverter a fonte desses males, a cultura do descartável. Isso inclui avaliar medidas necessárias, ponderar suas consequências, contemplando a exigência de não se correr o risco de acertar de um lado, mas, por outro, favorecer o aumento da vergonhosa exclusão. Somente com o fim da exclusão de quem vive nas periferias de todo tipo é que se pode constituir um verdadeiro projeto capaz de colocar o Brasil nos trilhos.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
In: Opinião e notícias 14.10.2016
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