Desde há milénios a sabedoria bíblica repete: «Onde há um homem ou uma mulher, há procura de vida, desejo de felicidade». Esta, na realidade, é a vocação mais radical que habita o ser humano. O desejo ínsito em nós como uma pulsão e uma força que brota da nossa profundidade é desejo de felicidade. Fome, sede, necessidade de respirar são instintos e carências de todos os animais, enquanto felicidade, amor, sentido de vida são desejo e busca em cada pessoa humana.
Mas o ser humano pode ser arrastado por este desejo, deixando de saber discernir os necessários limites, e assim o desejo, de vocação, arrisca tornar-se em instinto mortífero. Infelizmente, entre as dez palavras de Moisés não há a necessária reflexão sobre aquela que diz: não desejes aquilo que pertence ao teu próximo. Este mandamento especifica bem a origem da inveja, do ciúme, do rancor e das formas de violência de que podem revestir-se. O desejo pode ser tão forte que se torna cupidez, uma voragem que impele a tomar, a extorquir; e quando tal não é possível, induz a negar e destruir aquilo que se deseja e é possuído pelos outros.
O desejo de obter aquilo que não se tem ou de se tornar aquilo que não se é, se não é disciplinada e contida, desencadeia inveja e rancor para com as pessoas que beneficiam dessas condições, como alguém chegou a dizer: «Eram felizes, eu não, por isso matei-os». Este desejo muda o olhar (“inveja” deriva do latim “in-videre”, não querer ver, portanto, olhar de maneira turva, má). O olhar alterado vive do confronto e da comparação, vê a carência e o sofrimento como sendo causados por quem, ao contrário, é feliz, tem sucesso, recebe reconhecimentos, tem riqueza. Assim, a existência é envenenada pelo confronto que faz emergir sem cessar a pergunta: “Porquê a ele sim, e a mim não?”.
Vivemos hoje uma estação de incerteza e rancor social, que acaba por suscitar tentações de inveja, e portanto de violência, sobretudo em pessoas “infelizes”: pessoas desafortunadas a quem é negado qualquer tipo de amor humano, desde logo por parte dos pais, ou que não souberam reconhecê-lo; pessoas que podem recriminar-se contra a história familiar ou até contra o destino… Uma só é a certeza, sob a forma de pretensão: tem de se ser feliz a todo o custo.
Também não pode ser esquecida a presença dentro do invejoso do narcisista, que espera tudo do exterior, da admiração dos outros. Esta figura substitui com o amor de si a sua dor inconfessável pelo facto de não ser amado e de não saber amar. Tem medo do amor, e por isso sofre de uma impotência que o conduz a ser vingativo e cruel para quantos agravam a imagem que ele tem de si ou lhe apresentam a imagem daquilo que ele gostaria de ser, mas sem o conseguir.
Disciplinar o desejo deveria ser uma verdadeira exigência da educação, sobretudo nos jovens, mas na realidade é um exercício necessário em cada idade da vida: então, sim, é possível construir a felicidade.
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Louvado sejas, meu Senhor, pelos irmãos que são todos
Forma de vida com sabor a Evangelho. Disto se trata em Fratelli Tutti, a nova encíclica do Papa Francisco «sobre a fraternidade e a amizade social», que se segue a Laudato Sì’ e a amplia. Todos Irmãos. Todos e todas, habitando a mesma casa comum, responsáveis pelo bem e pelo desenvolvimento integral de cada um. Depois do apelo ao cuidado da criação através de uma ecologia integral, e não querendo oferecer páginas-resumo de «doutrina sobre o amor fraterno», Francisco detém-se, agora, na dimensão universal do amor e na sua abertura a todos. Fá-lo como «humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as muitas formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras». Parte, obviamente, das «convicções cristãs» que o «animam» e o «nutrem» [6], mas com o propósito de gerar diálogo com todas as pessoas de boa vontade e de promover com todas elas processos efetivos de transformação social, política e económica. Porque é importante sonhar juntos – não aconteça que, sozinhos, se tenham miragens e se veja o que não existe [cfr. 8] –, este é um novo passo que retoma e faz avançar a reflexão feita em diálogo com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum, e o compromisso conjunto assinado em Abu Dhabi, em fevereiro de 2019.
Francisco de Assis continua a inspirar e a mover o Papa Francisco. Mas também outros grandes sonhadores de uma fraternidade universal sem excluídos: Luther King, Desmond Tutu, Gandhi. E Carlos de Foucauld, que no interior do deserto africano, identificando-se radicalmente com os últimos, reconheceu o desejo íntimo de «sentir todo o ser humano como um irmão» [286]. De Francisco de Assis, o Papa Francisco colhe o sabor e o saber do «essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física», dando vida a um amor simples e fecundo que «ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço» [1]. E colhe em concreto o exemplo desarmante e eloquente da visita em pobreza do poverello de Assis ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito, em pleno ambiente de Cruzadas, reconhecendo o Papa como, passados oito séculos, continua a ser impressionante a recomendação que deixa aos seus irmãos: «evitar toda a forma de agressão ou contenda» e «viver uma “submissão” humilde e fraterna, mesmo com quem não partilhasse a sua fé» [3]. Da sua adesão radical ao Evangelho de Jesus pobre e humilde e do estilo de vida que escolhe para si, verdadeiramente pobre e genuinamente alegre – alguém se lhe referiu como “nu que canta” –, Francisco de Assis recebeu «no seu íntimo a verdadeira paz, libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros, fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos» [4]. Por isso, continua a inspirar tanto. Deste sopro transformador de vida evangélica, o Papa Francisco continua a fazer-se caixa de ressonância.
Da indiferença a uma cultura diferente
Do fechado ao aberto, do isolamento ao diálogo, do meu ao nosso, do monocolor ao poliédrico, por aqui vai o caminho proposto por Fratelli Tutti para reavivar e arriscar cumprir a necessidade e o anseio mundial de uma fraternidade entre todos. São oito as etapas. Oito capítulos. A luz bíblica para a caminhada é dada, no Cap. II, pela parábola eloquente do Bom Samaritano, registada pelo evangelista Lucas (Lc 10, 25-37). O Papa Francisco adverte: «A narração – digamo-lo claramente – não desenvolve uma doutrina feita de ideais abstratos, nem se limita à funcionalidade duma moral ético-social. Mas revela-nos uma caraterística essencial do ser humano, frequentemente esquecida: fomos criados para a plenitude, que só se alcança no amor» [68]. Como pano de fundo originário e, por isso, permanente, fica esse aguilhão que é a pergunta de Deus a Caim: “onde está Abel, teu irmão”. Só respondendo a esta pergunta se dará responsa conveniente à outra, a primeiríssima, feita a Adão: “onde estás?” (Gn 3, 9). Na verdade, a via que dá acesso à própria identidade é a mais longa, aquela que passa pelo outro, pela sua alteridade. A hora da verdade sobre si próprio acontece quando se cuida dos sofrimentos dos outros ou quando se passa ao largo; quando se debruça sobre o caído ou quando se olha distraído ou se acelera o passo [cf.70]. Em vários momentos e de vários modos, o Papa vai-o repetindo nesta Encíclica. Também vale para a Igreja e para a compreensão que tem da verdade que professa. Como diria Michel de Certeau, pas sans toi, não sem ti. Se quero ser eu mesmo, não o posso ser sem ti. Se queremos ser nós mesmos, não o poderemos ser sem o outro diferentes de nós, o outro cada homem e mulher, próximo ou afastado; o outro passado e que ainda há de nascer; o outro natureza; o outro história; o Outro transcendente que se dá e reclama responsabilidade em cada outro.
Encontrando-me inesperadamente com um estranho no caminho (Cap. II), o que faço? Ignoro? Olho para o lado? Passo à margem, indiferente? Escutada a parábola do Bom Samaritano, importa perguntar: «Com quem te identificas? É uma pergunta sem rodeios, direta e determinante: a qual deles te assemelhas? Precisamos de reconhecer a tentação que nos cerca de se desinteressar dos outros, especialmente dos mais frágeis». Se é verdade que crescemos em muitos aspetos – somos tecnologicamente avançados, somos esteticamente sofisticados estamos conectados mundialmente –, permanecemos «analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades desenvolvidas». Porque nos habituamos «a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar as situações até elas nos caírem diretamente em cima» [64]. Porém, «diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano» [67]. Porque «viver indiferentes à dor não é uma opção possível; não podemos deixar ninguém caído “nas margens da vida”. Isto deve indignar-nos de tal maneira que nos faça descer da nossa serenidade alterando-nos com o sofrimento humano. Isto é dignidade» [58]. Vêm à memória palavras fortes de outros momentos, que puseram o dedo na ferida da nossa insensibilidade ao sofrimento alheio, da nossa incapacidade de nos comovermos e de chorar pelo outro. Por isso, uma vez que a parábola não é para os outros e porque «o facto de crer em Deus e de O adorar não é garantia de viver como agrada a Deus» [74], concretamente para a Igreja, «é importante que a catequese e a pregação incluam, de forma mais direta e clara, o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos» [86]. Para que a cultura da atenção, da escuta e do diálogo seja aprendida como caminho; para que a colaboração seja tida como conduta; para que o conhecimento mútuo passe a ser método e critério [cf. 284].
Das sombras de um mundo fechado à geração de um mundo aberto
Antes de percorrer a parábola, logo no Cap. I, Francisco começa por expor as sombras de um mundo fechado, as «tendências do mundo atual que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal» [9]. Não é sua intenção fazer «uma asséptica descrição da realidade» [56], mas levar a tomar consciência das grandes feridas e dos abismos do momento mundial que vivemos, para acolher o apelo imperioso da mudança de que são portadoras e para projetar sobre elas a luz do amor fraterno que brilha do Evangelho de Jesus Cristo, o amor tangível do bom samaritano, critério de verdade de uma vida humana.
São muitas e densas as sombras deste mundo fechado, em movimento de se fechar ainda mais. «Durante décadas, pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando para variadas formas de integração» [10]. «Mas a história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais» [11].
Importa tomar nota. A aldeia global em que nos tornámos esconde o isolamento, o afunilamento ideológico, o consumismo acrítico, o empobrecimento da riqueza cultural. A globalização e o progresso fazem-se sem um rumo comum, sob o domínio dos interesses e estratégias globais da economia e da finança, tantas vezes sem escrutínio político. Estes impõem globalmente um modelo cultural único. Somos tidos e tornámo-nos consumidores sem limites, individualistas sem conteúdo, personagens sem história, sem antes nem depois. Lisos, sem rugas, sem dramas, sem densidade, narcisistas, sem herança, sem rumo, sem história, como diria Byung-Chul Han. Tudo imediatamente, sem projetos comuns de longo prazo. Vivemos prisioneiros da virtualidade, das conexões imediatas e rápidas. Impacientes e inseguros, movemo-nos em círculos fechados, em bolhas protetoras reforçadas, agora, pela pandemia. Sem apreço pela fraternidade. Sem gosto pela realidade que se toca. A nível político, tende-se a exasperar, a exacerbar, a polarizar. Ridiculariza-se, desqualifica-se, lançam-se suspeitas para alimentar a controvérsia e a contraposição. Divide-se para reinar. Acentuam-se formas insólitas de agressividade. A cultura de descarte reforça-se. Descarte de coisas. Descarte de pessoas. Descarte de povos. Descarte de diversidade e de riqueza cultural. Promove-se e afirma-se uma mentalidade de medo e de desconfiança. A ética deteriora-se. Os valores espirituais enfraquecem, como enfraquece o sentido de responsabilidade. Esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade. O sonho de construir juntos uma humanidade comum é tida como devaneio, utopia ingénua de outros tempos. Globaliza-se a indiferença acomodada e fria.
Neste contexto cada vez mais fechado e monocromático, a indiferença insensível e a resignação passiva não podem ser caminho. Importa, por isso, pensar e gerar um mundo aberto (Cap. III). Pensar e gerar. Precisamos da ideia e da ação, começando por ter bem presente que «o ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude “a não ser no sincero dom de si mesmo” aos outros», e que «não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no encontro com os outros: “Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que comunico com o outro”. Isso explica por que ninguém pode experimentar o valor de viver sem rostos concretos a quem amar. Aqui está um segredo da existência humana autêntica, já que “a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte”» [74].
Sair de si para encontrar e se encontrar com os outros, os outros apreciados por aquilo que são, é por aqui o caminho de conversão e de reforma de vida, de estilo de vida, não só pessoal, mas também dos grupos e das instituições. O que põe o “corpo” em movimento em relação ao outro, para que passe de “corpo estranho” ou de “exilado oculto” [cf. 98] a irmão que me é caro, precioso e digno, é o amor. Não haverá que ter pudor com a palavra. Francisco usa-a também como categoria social e mesmo política [cf. 180ss], enquanto verdade das outras virtudes, segredo de relações humanas e institucionais que reconhecem no outro um irmão, carne da mesma carne, e não um simples sócio distante e funcional. É o amor que nos coloca «em tensão para a comunhão universal»; que faz harmonizar os direitos individuais com um bem maior; que gera benevolência, enquanto forte desejo do bem [cf. 112]; que promove solidariedade, gesto de quem se sente responsável pela fragilidade do outro, corresponsável com ele por um destino comum [cf. 114ss]; que leva a transcender-se a si mesmo e ao próprio grupo de pertença. «Ninguém amadurece nem alcança a sua plenitude, isolando-se. Pela sua própria dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, maior capacidade de acolher os outros, numa aventura sem fim, que faz convergir todas as periferias rumo a um sentido pleno de mútua pertença» [95]. O amor abre. Expande. Amplifica, geográfica e existencialmente. É aqui, sublinha o Papa, no «amor que se estende para além das próprias fronteiras» que está a «base daquilo que chamamos “amizade social”» [99].
Para se caminhar para a amizade social, que implica indivíduos e instituições, e para a fraternidade universal, sendo esta a garantia quer da liberdade quer da igualdade, sublinha o Papa que «há que fazer um reconhecimento basilar e essencial: dar-se conta de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer circunstância». Só por si. Só por ser homem ou mulher. A ser assim, «se cada um vale assim tanto, temos de dizer clara e firmemente que “o simples facto de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente”. Trata-se de um princípio elementar da vida social que é, habitualmente e de várias maneiras, ignorado por quantos sentem que não convém à sua visão do mundo ou não serve os seus objetivos» [106]. Por isso, «todo o ser humano tem direito de viver com dignidade e desenvolver-se integralmente, e nenhum país lhe pode negar este direito fundamental. Todos o possuem, mesmo quem é pouco eficiente porque nasceu ou cresceu com limitações. De facto, isto não diminui a sua dignidade imensa de pessoa humana, que se baseia, não nas circunstâncias, mas no valor do seu ser». Assim, importa ter claro que, «quando não se salvaguarda este princípio elementar, não há futuro para a fraternidade nem para a sobrevivência da humanidade» [107]. Mas não basta aceitar em abstrato igual possibilidade para todos, deixando efetivamente cada um à sua sorte. As leis de mercado, a eficiência, o mérito não bastam. «A verdade é que “a simples proclamação da liberdade económica, enquanto as condições reais impedem que muitos possam efetivamente ter acesso a ela (…), torna-se um discurso contraditório”. Palavras como liberdade, democracia ou fraternidade esvaziam-se de sentido […]». Uma sociedade humana e fraterna deverá ser «capaz de preocupar-se por garantir, de modo eficiente e estável, que todos sejam acompanhados no percurso da sua vida, não apenas para assegurar as suas necessidades básicas, mas para que possam dar o melhor de si mesmos, ainda que o seu rendimento não seja o melhor, mesmo que sejam lentos, embora a sua eficiência não seja relevante» [110]. Como consequência, é preciso abordar séria e amplamente temas como a função social da propriedade, o destino comum dos bens criados, os direitos elementares dos povos ou a rede de relações internacionais. «Se se aceita o grande princípio dos direitos que brotam do simples facto de possuir a inalienável dignidade humana, é possível aceitar o desafio de sonhar e pensar numa humanidade diferente». Se se tomar efetivamente como base a dignidade humana, assumindo, assim, o esforço de entrar numa outra lógica, será possível sonhar, pensar e agir uma humanidade diferente, percorrendo o caminho da paz assente numa «“ética global de solidariedade e cooperação ao serviço de um futuro modelado pela interdependência e corresponsabilidade na família humana inteira”» [127].
Um mundo aberto pede um coração aberto ao mundo inteiro
Procurando implicações práticas, o Cap. IV começa assim: «Se esta afirmação – como seres humanos, somos irmãos e irmãs – não ficar pela abstração mas se tornar verdade encarnada e concreta, coloca-nos uma série de desafios que nos fazem mover, obrigam a assumir novas perspectivas e produzir novas reações» [128]. Entre os desafios que exigem atenção, mudanças e ação, o Para Francisco reflete sobre os migrantes e a gestão das fronteiras; a relação com o diferente de si; as relações Ocidente-Oriente; as várias dimensões da tensão entre local e universal.
Obviamente, «para se tornar possível o desenvolvimento duma comunidade mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a amizade social, é necessária a política melhor [sublinhado meu, tratando-se do título do Cap. V], a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum», movida pela caridade. Vários números deste capítulo [180-197] são dedicados ao melhor da política – ao “amor político” e à “atividade do amor político” – lugar onde os cristãos também devem estar presentes e dar testemunho qualificado e qualificador. «Mas hoje, infelizmente, muitas vezes a política assume formas que dificultam o caminho para um mundo diferente». Entre estas, o Papa Francisco presta especial atenção a traços marcantes e limitadores dos populismos e liberalismos. Também o poder internacional merece atenção. «“Torna-se indispensável a maturação de instituições internacionais mais fortes e eficazmente organizadas, com autoridades designadas de maneira imparcial por meio de acordos entre governos nacionais e dotadas de poder de sancionar”. Quando se fala duma possível forma de autoridade mundial regulada pelo direito, não se deve necessariamente pensar numa autoridade pessoal. Mas deveria prever pelo menos a criação de organizações mundiais mais eficazes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais» [172]. Para o Papa Francisco, a necessária reforma da ONU deverá fazer parte deste processo.
Diálogo e amizade social (Cap. VI) é outro movimento vital de respiração de um coração aberto ao mundo inteiro. Entre a indiferença egoísta e o protesto violento, cabe dispor-se a praticar o diálogo, a promover a cultura do encontro. «Aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contato: tudo isto se resume no verbo “dialogar”. Para nos encontrar e ajudar mutuamente, precisamos de dialogar. Não é necessário dizer para que serve o diálogo; é suficiente pensar como seria o mundo sem o diálogo paciente de tantas pessoas generosas, que mantiveram unidas famílias e comunidades. O diálogo perseverante e corajoso não faz notícia como as desavenças e os conflitos; e contudo, de forma discreta mas muito mais do que possamos notar, ajuda o mundo a viver melhor» [198]. Já a «falta de diálogo supõe que ninguém, nos diferentes setores, está preocupado com o bem comum, mas com obter as vantagens que o poder lhe proporciona ou, na melhor das hipóteses, com impor o seu próprio modo de pensar. Assim a conversação reduzir-se-á a meras negociações para que cada um possa agarrar todo o poder e as maiores vantagens possíveis, sem uma busca conjunta que gere bem comum». Porém, «os heróis do futuro serão aqueles que souberem quebrar esta lógica morbosa e, ultrapassando as conveniências pessoais, decidam sustentar respeitosamente uma palavra densa de verdade» [202], a começar pela verdade da dignidade humana. «Numa sociedade pluralista, o diálogo é o caminho mais adequado para se chegar a reconhecer aquilo que sempre deve ser afirmado e respeitado e que ultrapassa o consenso ocasional. Falamos de um diálogo que precisa de ser enriquecido e iluminado por razões, por argumentos racionais, por uma variedade de perspectivas, por contribuições de diversos conhecimentos e pontos de vista, e que não exclui a convicção de que é possível chegar a algumas verdades fundamentais que devem e deverão ser sempre defendidas. Aceitar que há alguns valores permanentes, embora nem sempre seja fácil reconhecê-los, confere solidez e estabilidade a uma ética social» [211].
A cultura do encontro ou o encontro feito cultura, estilo de vida, como forma concreta de amabilidade [cf. 222-224], implica dispor-se e implicar-se em percursos de um novo encontro (Cap. VII). Da verdade dos factos se deve partir. «Novo encontro não significa voltar ao período anterior aos conflitos. Com o tempo, todos mudamos. A tribulação e os confrontos transformaram-nos. Além disso, já não há espaço para diplomacias vazias, dissimulações, discursos com duplo sentido, ocultamentos, bons modos que escondem a realidade. Os que se defrontaram duramente falam a partir da verdade, nua e crua. Precisam de aprender a cultivar uma memória penitencial, capaz de assumir o passado para libertar o futuro das próprias insatisfações, confusões ou projeções. Só da verdade histórica dos factos poderá nascer o esforço perseverante e duradouro para se compreenderem mutuamente e tentar uma nova síntese para o bem de todos» [226]. Partindo daqui, o caminho não se fará sem assumir o árduo esforço por superar o que divide, sem perder o que dá identidade a cada uma das partes envolvidas. O sentido basilar de pertença e do bem maior que ainda se poderá procurar em comum deverão permanecer acima dos conflitos e ser fundamento do encontro gerador de paz. Se há lutas legítimas, o perdão não poderá deixar de fazer parte do percurso da fraternidade e da amizade social. Porque «o perdão livre e sincero é uma grandeza que reflete a imensidão do perdão divino. Se o perdão é gratuito, então pode-se perdoar até a quem resiste ao arrependimento e é incapaz de pedir perdão» [250]. «Aqueles que perdoam de verdade não esquecem, mas renunciam a deixar-se dominar pela mesma força destruidora que os lesou. Quebram o círculo vicioso, frenam o avanço das forças da destruição» [251].
Ainda neste capítulo, há lugar para abordar outros dois temas. Primeiro, a guerra, para qualificar como injustas todas as guerras, porque «toda a guerra deixa o mundo pior do que o encontrou. A guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota perante as forças do mal» [261]. Se olharmos para as vítimas reais, que é verdadeiramente para quem se deve olhar quando se fala de guerra, «consideremos a verdade destas vítimas da violência, olhemos a realidade com os seus olhos e escutemos as suas histórias com o coração aberto. Assim poderemos reconhecer o abismo do mal no coração da guerra, e não nos turvará o facto de nos tratarem como ingénuos porque escolhemos a paz» [261]. O outro tema, a pena de morte, para reiterar que «não é possível pensar num recuo relativamente a esta posição. Hoje, afirmamos com clareza que “a pena de morte é inadmissível” e a Igreja compromete-se decididamente a propor que seja abolida em todo o mundo» [263].
Por fim, a terminar Fratelli Tutti, o lugar d’As religiões ao serviço da fraternidade no mundo (Cap. VIII). «As várias religiões, ao partir do reconhecimento do valor de cada pessoa humana como criatura chamada a ser filho ou filha de Deus, oferecem uma preciosa contribuição para a construção da fraternidade e a defesa da justiça na sociedade. O diálogo entre pessoas de diferentes religiões não se faz apenas por diplomacia, amabilidade ou tolerância». Porque «“o objetivo do diálogo é estabelecer amizade, paz, harmonia e partilhar valores e experiências morais e espirituais num espírito de verdade e amor”» [271]. A experiência de fé e da sabedoria religiosa «que se vem acumulando ao longo dos séculos e aprendendo também das nossas inúmeras fraquezas e quedas, como crentes das diversas religiões» permite reconhecer «que tornar Deus presente é um bem para as nossas sociedades». Que «buscar a Deus com coração sincero, desde que não o ofusquemos com os nossos interesses ideológicos ou instrumentais, ajuda a reconhecer-nos como companheiros de estrada, verdadeiramente irmãos» [174]. A fraternidade universal não rege unicamente assente sobre o contrato social. A dignidade humana pede o reconhecimento da sua transcendência. Também por isso importa não se resignar a que o debate público sobre o humano comum seja só ocupado e todo ocupado por “poderosos” e “cientistas”. Cabe reconhecer o direito de cidadania no espaço público ao fundo secular da experiência e da sabedoria religiosa. O Papa sublinha mesmo que o papel público da Igreja não se esgota na assistência e na educação. Por isso, «embora a Igreja respeite a autonomia da política, não relega a sua própria missão para a esfera do privado. Pelo contrário, não pode nem deve ficar à margem na construção de um mundo melhor nem deixar de “despertar as forças espirituais” que possam fecundar toda a vida social. É verdade que os ministros da religião não devem fazer política partidária, própria dos leigos, mas mesmo eles não podem renunciar à dimensão política da existência que implica uma atenção constante ao bem comum e a preocupação pelo desenvolvimento humano integral» [276].
Fratelli Tutti termina com uma oração, em duas versões [202]: Oração ao Criador e Oração Cristã Ecuménica. Assim se conclui o percurso feito e se relançam, oferecendo-os ao Senhor, os muitos contornos do novo sonho de fraternidade, para reagir à indiferença.
Impacto onírico e força profética do Papa Francisco
Diante do sobressalto que deveria provocar a pergunta bíblica originária “onde está Abel, teu irmão?”, dirigida por Deus a Caim acerca de seu irmão Abel que matara, e da tendência para responder de modo indiferente e frio “sou, porventura, guarda do meu irmão?” (Gn 4, 9), o Papa Francisco provoca-nos a reagir com um novo sonho de fraternidade. Por aqui vai passando a força profética de Francisco: estar atento aos apelos da realidade ferida e deixar-se olhar e ferir por aqueles que, excluídos, não têm voz e ficam abandonados e esquecidos na margem; deixar-se tomar pela força transformadora do Evangelho, para que, como afirma em Evangelii Gaudium, o anúncio cristão se centre «no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário» [35]; com os pés bem firmes na realidade, ousar sonhar e desejar um mundo diferente e melhor, promovendo uma outra lógica de vida que, com o cuidado da criação, assuma a humanidade que é comum, que é una, polifónica, poliédrica e atravesse o risco da fraternidade universal. Outra lógica que mova indivíduos, mas também instituições. Porque o que está em causa implica processos alargados e pactos mundiais. Para que ninguém seja excluído, para que ninguém fique para trás, para que os últimos tenham voz e se tornem protagonistas a partir da sua própria riqueza, para que a vida plena floresça e gere sempre novos frutos humanos de beleza e de bondade.
O Papa Francisco, que diz dormir bem, sonha. Também S. José compreendia a vontade de Deus enquanto sonhava. Em Querida Amazónia já tinha partilhado quatro sonhos: um sonho social sobre o cuidado da criação e a atenção aos últimos; um sonho cultural que passasse pela valorização do tesouro das culturas e a salvaguarda das suas raízes: um sonho ecológico, onde o olhar contemplativo e grato tem lugar primeiro e maior; um sonho eclesial de encarnação do Evangelho e de inculturação da Igreja. De algum modo, já antecipava este grande sonho sobre a fraternidade e a amizade social que agora oferece à Igreja e ao Mundo, como motivo e impulso de transformação humana e de progresso social. É extraordinário que o Bispo de Roma queira que a Igreja viva em escuta radical e, sem medo de se sujar e de perder algo de si, se exponha ao diálogo. Francisco tem claro, e repete-o mais do que uma vez nesta Encíclica, que a alteridade de sujeitos, de tempos e de lugares é o caminho longo para o conhecimento mais íntimo de si próprio. Abrir-se seriamente à diferença não significa renunciar à própria identidade. De todo. É a afirmação de si que pede essa exposição e passagem pelo outro, precisamente, porque não posso ser sem ele. A humanidade que partilhamos não me permite ser sem ti. E é extraordinário que Francisco queira que a Igreja seja capaz de se fazer intérprete de desejos dos homens e mulheres de hoje e que seja lugar de elaboração de sonhos. Uma Igreja em contato com o seu tempo e em atitude de escuta radical, não por condescendência ou porque o assunto “tem boa imprensa”, mas porque é esse o caminho de reelaboração profunda da própria identidade cristã. À substância da fé tem-se acesso pela história, o que vai pedindo novas formulações e outras práticas.
Por vezes, durante a leitura do texto podemos perguntar-nos como será possível realizar tal sonho. O próprio Papa vai partilhando essa compreensível perplexidade. Não será tudo um devaneio [127]? Passará de uma utopia de tempos já idos [180]? Não ficaremos só em palavras [6]? De facto, também a nós, quando terminamos o texto de Francisco, pode ficar a pergunta como será possível, atendendo ao estado de coisas, ao modo habitual das coisas acontecerem? O Papa Francisco aponta muito alto, não deixando nada nem ninguém de fora. Vai da conversão do coração à reforma da ONU; de uma nova lógica de vida à forma de fazer política e de organizar a economia global; da adesão a uma forma de vida com sabor a evangelho ao diálogo entre culturas, zonas do globo e religiões; do papel da razão e da fé religiosa para o estabelecimento do fundamento da dignidade humana ao amor político. Porém, no mais íntimo, fica o desejo de que o sonho possa ganhar corpo e gerar realidade, porque se trata do risco de sonhar um mundo novo, melhor e mais belo, que seja construído sobre o reconhecimento de cada um como um irmão. Precisamos deste sonho. O drama da pandemia que vivemos bem o demonstra. E não chega dizer que estamos todos na mesma barca. Precisamos de sentir que todos os que vão na barca são irmãos, carne da mesma carne, sangue do mesmo sangue, caminho que revela e realiza a verdade da minha vida.
Ouve-se frequentemente que nos faltam líderes. Aqui temos um que ousa sonhar, que cultiva as raízes, que cuida da alma humana, que aponta para longe, para uma humanidade melhor e mais bela. O seu sonho não é abstrato. Quando abre os olhos, começa por deixar-se olhar e tocar pelo irmão que está ao lado, talvez caído à beira do caminho. E faz-se próximo. Se é assim, todos podemos começar por aqui. O sonho de tutti fratelli e sorelle começará já a ser realidade.
Pe. José Frazão Correia sj
In: pontosj.pt
11.10.2020
Faz semanas que o louco não passa na avenida. Não à hora em que passava, no meio da madrugada, se valendo do silêncio do bairro para redobrar o alcance do seu grito. Não morreu de frio, isso é certo, porque, nas noites mais severas de inverno, ele ainda passava, sensivelmente mais louco, mais desesperado, nos amaldiçoando um por um. Então, uma noite, ele não veio. Outra noite e nenhum sinal dele. E daí para uma semana, duas semanas, três. Tem isso relação com as sirenes de polícia no lugar dos gritos? Ou tem a ver com uma pandemia desacreditada, o vírus correndo solto? Ou será que, num dos seus surtos circulantes, o louco topou com um desses neo-nazis de rua, caçadores de pretextos? O fato é que, depois de desaparecer, ele ressurgiu apenas uma vez, e à luz do dia, abafado pelo trânsito da avenida. Desde então se faz notar por sua falta. É sua falta que grita. Como se tivesse levado com ele, com seu berro animal, a urgência de uma revolta onde cabe tudo o que dói até o ponto do insuportável, uma revolta que não espera ocasião nem negociação: rebenta, revolta-se. Como se tivesse deixado conosco uma paz estranhíssima e imerecida, que fica ainda mais absurda quando cantam os passarinhos. Todos os sons da indignidade escamoteados, os sons da violência bem-sucedida escondidos. À falta do louco, nós do bairro temos essa quase alucinação coletiva de uma calma com passarinhos. Que ele volte, o nosso louco, o nosso bode-expiatório, para nos amaldiçoar como merecemos, e também para drenar os nossos gritos, e fazê-los circular pela cidade, como prévia dos jornais do dia, todo dia.
Mariana Ianelli
In: Rubem
19.09.2020
Há perguntas que nos fazem medo, e talvez não devessem. Há interrogações que não nos pedem unicamente informações, mais sérias ou mais banais que sejam, que estamos educadamente dispostos a fornecer, mas aquela verdade concreta de nós que nos custa reconhecer.
Há indagações que não são apenas técnicas, dirigidas às nossas competências e aos nossos argumentos defensivos. Há questões dirigidas a um território interior feito de silêncios, adiamentos, fadigas, sonhos que se extinguiram sem deixar espaço a outros sonhos.
Vem à minha memória um pequeno fato que me foi contado por um amigo. Um destes dias, quando trazia da escola para casa a filha, ela, com os seus quatro anos, perguntou-lhe: «Papai, os adultos são felizes?».
Ele tomou a menina nos braços, e só conseguiu abraçá-la com força, durante muito tempo. «Se respondo, desabo em lágrimas», dizia para si.
Ajuda-nos, Senhor, a colher a importância das perguntas que nos desestabilizam, em vez de nos tornarmos, com idade adulta, profissionais da fuga.
imagem: pexels.com
Há um refrão que Jesus repete muitas vezes, no final de uma parábola ou de um ensinamento, de tal maneira que se tornou uma expressão típica do seu falar: «Quem tem ouvidos para ouvir, ouça».
Teremos nós ouvidos para ouvir? Podemos dizer que sabemos escutar verdadeiramente? E realmente escutar Jesus? Grande desafio interior, o de nos pormos à escuta. Comporta uma autêntica conversão, uma espécie de renascimento da nossa alma.
O sentido da escuta tem a ver com a prontidão. Estar pronto para. Uma boa imagem da escuta espiritual é a dos atletas no início de uma corrida, recolhidos na expetativa do sinal de partida.
Quem escuta cria dentro de si uma vigilância, uma atenção que lhe permite agir com diligência e fidelidade em cada circunstância, sem exceções. A qualidade da escuta interior determina a qualidade da resposta.
Mesmo sem nos darmos conta, a cada momento estamos a responder, dizendo sim ou refutando, abrimos o nosso coração a Jesus ou barramos-lhe a porta. Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele, e ele comigo» (Apocalipse 3,20).
«Não vos preocupeis com a vida» (Lucas 12,22). Isto diz-nos Jesus. E isto parece-nos a coisa mais paradoxal que alguma vez podemos escutar, porque, ao contrário, nós nunca nos libertamos das preocupações, que se tornam, quase sem nos darmos conta, o motivo principal da nossa existência.
Tu insistes: «Não vos preocupeis». A certo ponto, parece que a única coisa que sabemos fazer bem é preocupar-nos. Deixamos de saber criar, entretecer, projetar. Deixamos de sorrir sem uma razão, de estar com os outros gratuitamente, de passear sem um porquê ou de rezar sem tempo. Damo-nos conta, unicamente, do preso cru da vida, a responsabilidade nervosa por cada coisa, fazendo cálculos, procurando seguranças.
Mas Tu, Jesus, explicas-nos: «A vida vale mais do que o alimento e o corpo mais do que a veste» (Lucas 12,23). Se não colhermos isto como uma verdade que apaixona, que salva, acabaremos por esgotar a vitalidade do dom, reduzindo-a a uma inútil luta.
Quando percebemos que a vida é mais, é então que cessamos de viver obcecados por aquilo que é mais pequeno, prisioneiros de detalhes ridículos que nos escravizam.
Ensina-nos, Senhor, que a espiritualidade não é, na realidade, uma preocupação a mais entre todas as outras. A verdadeira espiritualidade é aquela que se experimenta no abandono, apenas aí.
Muitas vezes acontece que, diversamente das nossas expectativas, o amor não nos reclama força, antes espera de nós uma fraqueza ainda maior do que aquela que já transportamos em nós.
Muitas vezes acontece que o amor não dê importância, ou pelo menos a grandiosa importância que tínhamos idealizado, ao quanto temos de dar, mostrando-se, antes, sobretudo interessado em adestrar o nosso coração para a arte de receber.
E, do mesmo modo, que o amor não exija de nós novas palavras a adicionar àquelas que já dissemos, mas desafia-nos à aprendizagem de uma contemplação e de um silêncio que tínhamos até agora ignorado.
Na verdade, o amor, para revelar-se, não escolhe esta ou aquela preciosa veste, mas decide-se na exata e difícil nudez da vida normal. O amor não é um estado excepcional caracterizado pelo extraordinário e pelo entusiasmo, mas o reiterado percurso de espinhos que conduz à rosa.
Por isso, Senhor, ajuda-nos a compreender que amar é descobrir, no próprio coração, o quanto o amor é grande e livre, mais do que as imagens que dele possamos fazer. Que o compromisso incondicional com tal amor seja o nosso modo quotidiano de estar diante de ti.
Como todo não-italiano, detenho-me sempre de novo com admirado maravilhamento diante deste monumento da cultura italiana [“(Divina) Comédia”, de Dante Alighieri], e, como todo o leitor, considero-me pequeno e frágil diante de tanta elevação, mas nunca estranho e indiferente, porque o milagre da poesia de Dante é precisamente o de fazer sentir em casa cada pessoa que lhe vá ao encontro com espírito aberto e receptivo, de conduzir cada um de nós a reconhecer-se na humanidade ferida e redentora que ela representa, com uma verdade e uma profundidade que tem poucas comparações na literatura mundial.
As páginas que pretendo ler convosco, que encontramos no segundo canto da segunda parte, colocam-nos numa fase de transição, na passagem perplexa e cautelosa entre um ciclo acabado de concluir (a travessia infernal do mal privado de redenção) e o início de um novo (a purgatória reconstrução do bem através da expiação purificadora). Dante e Virgílio, acabados de subir da voragem infernal, vagueiam pela margem da ilha do Purgatório para encontrar o ingresso da montanha penitencial. A novidade da situação, a ausência de direções traçadas, desconcerta-os, retarda-os, confunde-os. O Antipurgatório, espaço de suma indefinição e desorientação, aprisiona quem o atravessa num estado de inércia, de impasse: Do mar ao longo inda éramos nessa hora,/ Como quem pensa no seu caminho,/ que vai com o coração e com o corpo demora (cf. “Purgatório” II, 10-12). Como acontece a todos aqueles que não sabem que estrada escolher, o coração diz aos dois viandantes que têm de avançar, mas trava-os a incerteza sobre o que fazer: ficam bloqueados. Bem depressa descobrem que não estão sós nesse estado de indecisão. Pelo leme de um anjo enigmático e silencioso, desembarca, com efeito, na margem um grupo de almas nem beatas nem penitentes, também elas à procura do acesso ao percurso de purificação, e não menos desorientadas que os dois poetas: A turba que ali permanece, selvagem/ parecia de espanto apoderada, olhando à volta/ como quem novas coisas experimenta (cf. 52-54).
Esta turba, agitada pela novidade daquilo que está a experimentar, comporta-se como todo o viajante privado de mapa, que pede informações ao primeiro desconhecido com quem se depara. Quando nos sentimos perdidos, é difícil encontrar quem nos possa guiar: Quando a nova gente ergueu a fronte/ a nós se dirigiu dizendo:/ “Se sabeis,/ mostrai-nos o caminho para chegar ao monte”./ E Virgílio responde: “Vós acreditais/ talvez que somos especialistas deste lugar;/ mas nós somos peregrinos como vós o sois” (cf. 58-63).
Como toda a geografia da “Comédia”, o Antipurgatório não representa um lugar, mas um estado, especificamente a condição de se ser recém-chegados, de se estar numa situação que nos apanha completamente impreparados, na qual as nossas coordenadas habituais se tornam insuficientes e falíveis, lançadas fora por uma crise intensa, que acabámos de superar, mas que ainda domina sobre nós: Chegámos aqui, de vós pouco antes,/ por outra estrada, tão áspera e forte,/ que subir ao monte, em comparação, é jogo de crianças (cf. 64-66). Ao ler estes versos, poderoso e irresistível, toma corpo, aos nossos olhos de leitores, o paralelo entre a cena descrita por Dante e o momento histórico que estamos a viver. Também nós, neste singular setembro de 2020, agora para além do ponto de inflexão de um ano excepcionalmente doloroso e denso de perguntas ainda sem resposta (acabados de sair de uma estrada áspera e forte que profundamente nos provou como indivíduos e como comunidade), nos encontramos numa espécie de Antipurgatório; também nós experimentamos coisas novas, como a turba de almas que se cruzaram com Dante e Virgílio, e ninguém se sente capaz de dizer experiente do lugar para onde a pandemia nos arremessou, colhendo-nos totalmente de imprevisto, abrindo cenários inéditos, sacudindo certezas, hábitos que pareciam inabaláveis de tal maneira eram óbvios, a indolente rotina da normalidade.
Olhamos à nossa volta, desorientados e perplexos, e não reconhecemos esta estação estranha. Não sabemos que outono nos espera, se de isolamento ou de presença reencontrada. Sentimo-nos bloqueados, nesta terra incógnita que queremos atravessar o mais rapidamente possível, olhando em redor sem saber exatamente que caminho escolher para sair. Nenhuma pessoa sensata se arrisca a desenhar mapas e a batizar percursos. Os experientes descobrem-se inexperientes nesta fase forçosamente transitória na qual todos somos peregrinos, recém-chegados e desejosos de sair o quanto antes, se ao menos soubéssemos como… Uma só coisa, porém, é certa na incerteza total do momento: a crise do coronavírus, que se faz tão áspera e forte, transportou-nos para um mundo desconhecido, nada será como antes, e a novidade é tão grande, que hesitamos, sabendo que, em todo o caso, será um caminho de árdua reinvenção, de redefinições purificadoras.
Se desejamos um futuro para a nossa sociedade, temos de enfrentar o purgatório de colocar em questão erros, excessos e omissões. Naquele momento extraordinário de oração que o papa Francisco celebrou sozinho no adro da basílica de S. Pedro, em março passado, recordou-nos: «Caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem… Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente». Temos, agora, de aceitar o doloroso exercício das “correções”, como corajosamente propôs, recentemente, um autor americano.
Obviamente, resistimos. Retardamo-nos, adiando, mais ou menos conscientemente, o momento de nos despedirmos do mundo que deixamos para trás para nos adentrarmos naquele que lhe segue. Como quem pensa no seu caminho,/ que vai com o coração e com o corpo demora, pensamos até ao infinito naquilo que há a fazer, mas tergiversamos, agarrando-nos ao “dejà vu”. O pensamento da purificação purgatória é intimidatório, e foi extirpado da nossa autoconsciência de modernos, ilusoriamente substituído por formas secularizadas de autoaperfeiçoamento, que acabam por reforçar o narcisismo e a solidão. O Purgatório, segundo o Catecismo da Igreja católica, recorda-nos que estamos «imperfeitamente purificados» e que devemos submeter-nos «a uma purificação, a fim de obter a santidade necessária para entrar na alegria do Céu».
Também no plano histórico temos de empreender o difícil caminho purgatório da correção do nosso modo de viver, dos nossos hábitos, da inércia a que nos acomodamos há demasiado tempo, deixando que a Terra corresse de encontro ao colapso ecológico, as que as diferenças econômicas se aprofundassem de maneira iníqua, que o tecido comunitário se degradasse na estéril cegueira do individualismo. Seremos capazes? Esta pergunta pesa sobre nós como um grande desafio, marcado pela consciência de que aquilo que temos pela frente é um caminho que não se percorre a sós. Requer um compromisso comum, uma sintonia coral: “Isräel de Aegypto”/ cantavam todos a uma voz (cf. 46-48). Só cantando a uma só voz se sai do Egito do mal para reencontrar a liberdade de uma convivência de justiça e de paz, para chegar à terra prometida de uma sociedade em que a dignidade de cada um floresce ao pôr em comum recursos e oportunidades, em que a solidariedade leva a melhor sobre a competição, a tenção recíproca sobre a indiferença, o respeito e a confiança sobre a violência e a desconfiança.
A raiz do perfeccionismo é o medo.
O perfeccionismo é todo o conjunto de pensamentos, sentimentos e ações postos em movimento por medo à nossa imperfeição.
Ora, como a perfeição é apenas uma ideia da nossa cabeça, torna-se impossível alcançá-la na realidade: é uma fasquia que sobe sempre mais alto que as nossas possibilidades.
Então podemos passar uma vida inteira a almejar objetivos impossíveis, a sentir uma frustração esmagadora e a dar machadadas na nossa autoestima; ou, em alternativa, podemos cuidar do nosso medo escondido.
A solução para o perfeccionismo não é a perfeição: é a aceitação da imperfeição.
João Delicado
In: verparaalemdolhar.blogspot.com
“Em colóquio com os seus discípulos, Jesus convidava-os a reconhecer a relação paterna que Deus tem com todas as criaturas e recordava-lhes,
com comovente ternura, como cada uma delas era importante aos olhos d’Ele” (laudato si’ n. 96)
Todas as religiões e culturas se servem de relatos para revelar a verdade e fazer chegar até nós a sabedoria de nossos antepassados. A revelação mais antiga e universal é que a Terra e todas as suas criaturas, assim como o ar, o solo, a pedra e a água são sagrados, e que esta verdade deve refletir-se em nossas vidas.
Como cristãos, seguir Jesus Cristo hoje é adquirir conhecimento e experiência consciente desta história oculta e sagrada. Com efeito, a Terra acolheu Jesus como acolhe toda pessoa que vem a este mundo.
É a casa verdadeira, a mais básica. Jesus sentiu a companhia desta Terra que é irmã e mãe. Os Evangelhos destacam de muitas maneiras a boa relação que Ele teve com a Terra. Jesus soube viver as noites e empregá-las, para além de sua solidão e aspereza, para encontrar sentido e para dar profundidade às suas atuações mais decisivas. Desfrutou dos caminhos andados, dos campos semeados, do vento que se assemelha ao Espírito, das árvores que empregará como parábolas do Reino, das vinhas que serão símbolo de sua oferta em novidade... Experimentou a dureza da Terra, sua aspereza no deserto e o calor de seu abrigo à hora da morte; pisou o chão de terra batida, machucada, rasgada... Teve uma mentalidade inclusiva porque, no fundo, entendeu que tudo estava relacionado e que as coisas e as pessoas espreitam o mesmo horizonte.
Na 2ª. Semana dos EE alimentamos nossa relação com Deus e com a Criação; ou, formulando de maneira mais adequada, nossa relação com Deus passa através da natureza. Pedimos a graça do conhecimento interno de Jesus, aquele Jesus que sempre manteve uma relação íntima com a Criação. Seu ministério começou com quarenta dias no deserto e terminou no horto do Getsêmani; Ele viveu experiências místicas na montanha (a transfiguração) e nas águas do Jordão (batismo). Seus relatos e parábolas utilizam as imagens da natureza para explicar o Reino de Deus. Este é o Jesus com quem nossa relação se faz mais profunda.
É impressionante que o núcleo central das parábolas de Jesus é formado por imagens que “ligam”, que integram e comprometem. O fermento da relação é que constitui o material do Reino de Deus. É precisamente o sentido particular da relação pessoal de Jesus com a Trindade, com os demais seres humanos e com o mundo que nos permite descobrir o significado espiritual da dimensão da “relação”.
O relato da Encarnação nos faz ser conscientes da atitude da Trindade na sua relação com o cosmos. Em Jesus Cristo, nos fazemos conscientes da conexão que há entre todos os seres humanos e destes com todas as demais criaturas e com o Criador. Ele não só tornou próximo um Deus cujo próprio ser é relacional (cerne da doutrina cristã da Trindade), mas revelou que o caminho para a plenitude e a transformação consiste numa correta e justa relação e conexão entre todos os seres. Na verdade, Ele chamou o ser humano a sair de seu mundo fechado, de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para expandir-se em direção a uma nova forma relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho do Reino de Deus.
Isto significa que o discípulo de Jesus deve apresentar um estilo de vida completamente contrário à ética do individualismo consumista e do domínio competitivo do mundo atual. O olhar de Jesus sobre a Criação, tal qual o apresenta Mt. 6,26-36, se alimenta de sua relação com o Pai; trata-se de um olhar e de um receber que se faz abandono confiante ao Pai.
A primeira atitude diante da Criação é a de reaprender a olhar, a observar: “olhai”. Ele nos chama a um olhar novo e ao mesmo tempo antigo sobre a Criação: o da maravilha diante de uma natureza dada para acender em nós o assombro, a emoção e o encanto. No fundo, trata-se do mesmo olhar que Deus, segundo Gen. 1, teve diante de sua criação (“... e Deus viu que era belo, bom”). A natureza dada desperta o olhar receptivo daquele que a acolhe como dom e como promessa.
A primeira relação do ser humano com a Criação, portanto, não é a da posse, nem a da pergunta pelo seu porquê, mas a da acolhida em seu ser dado. A forma dessa acolhida é a maravilha de sua presença e o temor diante de sua possível perda. Essa é a primeira experiência que todos fazemos. Todos os bens da Criação são recebidos por nós deste modo, ou seja, como dons. A confissão no Deus Criador não é, portanto, em sua origem, da ordem do conceito, mas da acolhida da Criação como dada a nós.
Mateus nos indica ainda que o olhar ao qual nos convida Jesus leva ao reconhecimento Daquele que é fonte do dom. De novo aqui, mais que se perguntar pelo porquê do mundo, Jesus nos convida a reconhecer o Doador que cuida assim dos pássaros do céu e reveste de tal glória os lírios do campo.
A Criação como realidade doada, convida à compreensão de sua origem, não para dominá-la e manipulá-la, mas para tornar o dom uma benção fecunda para todos.
No fundo, trata-se de reconhecer que a Criação “dada-a” é “doada-por”. Ela deve, por isso, ser recebida como fecundidade, não como algo que é objeto de conquista e domínio. Isso fundamenta não um fazer produtivo, mas um agir compartilhado: “trabalhar com” o Criador, levando a Criação á sua plenitude.
Segundo o relato bíblico, a primeira vocação do ser humano é a de ser jardineiro, pois recebeu do Criador a missão de cuidar e preservar a Sua “vinha”: lugar onde os homens, as mulheres e as crianças convivem em harmonia e compartilham os frutos abundantes das videiras.
Existimos para acariciar a terra, para prepará-la, para fertilizá-la, para cuidá-la, para torná-la bela.
Mas que coisas horríveis fizemos com a vinha que herdamos!
Quando observamos vinhas outrora verdejantes e agora destruídas ou entulhadas de lixo, uma sensação de violação, de tragédia, quase de sacrilégio, se manifesta no nosso interior. E uma voz ecoa das profundezas da destruição: “Quê fizestes de minha vinha?”.
O cuidado e a beleza da vinha impõe-se ao desejo consumista desenfreado, pois somos jardineiros e não exploradores.
O que caracteriza essa nova atitude é o cuidado em lugar da dominação, o reconhecimento do valor de cada criatura e não sua mera utilização humana, o respeito por toda forma de vida e os direitos e a dignidade da natureza, não sua exploração.
Assim, o exercício do cuidado, por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina, contribuir com o crescimento e a evolução, garantir a sua continuidade, cuidar e fazer da vinha uma fonte de bênçãos, ou seja, de comunhão com ela e, a partir dela, harmonia interior, comunhão com as outras pessoas e estreitamento de relações com o próprio Criador.
Quem sabe, um dia, os seres humanos olharão novamente para a vinha do Senhor com olhos encantados e sofrerão ao vê-la violentada pelos vândalos que a estupram em nome do crescimento econômico.
Textos bíblicos: Mt. 21,33-43 Is. 5,1-7
Na oração: Este sentido profundo nasce do uso que fazemos de nossa imaginação na oração para contemplar cenas da vida de Cristo no Evangelho. Nela, somos convidados a entrar na cena como se formássemos parte do mundo natural: a semente plantada, a tumba de Cristo de pedra talhada, o azeite que unge os pés de Cristo, a água que lava os pés dos apóstolos, as flores, os pássaros... Tais contemplações provocam em nós sentimentos de gratidão e nos impulsionam à ação em favor da Criação. A contemplação destas cenas nos dá valor e um novo tipo de humildade reverencial pelo dom da criação – as mesmas virtudes que Jesus cultivou seguindo a Vontade do Pai.
A combinação desta nova linguagem de imagens, junto ao assombro e à graça da criação, tem o poder de plenitude. Ao entrar na contemplação adotando o ponto de vista da terra, experimentamos uma profunda sensação de harmonia e de cura.
- assumir gestos de cuidado para com o meio ambiente: reduzir, reciclar, reutilizar, replantar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
01.10.2020
“Mas somos chamados a tornar-nos os instrumentos de Deus Pai para que o nosso planeta
seja o que Ele sonhou ao criá-lo e corresponda ao seu projeto de paz, beleza e plenitude” (Laudato Si’ no. 53)
O exercitante, depois de alcançar uma experiência de grande bondade, compaixão e misericórdia, sente seu coração cheio de gratidão, desejo e generosidade, e pergunta a si mesmo o “quê poderia fazer” para responder a semelhante amor compassivo e criativo de Deus.
Neste momento de transição entre a 1ª. e 2ª. Semanas S. Inácio lhe propõe o “Exercício do Reino”.
O objetivo do Exercício do Reino é chegar a fazer-nos discípulos(as) de Jesus para a reconstrução da comunidade universal de vida. A contemplação nos ajudará a responder melhor ao chamado de Jesus Cristo (EE. 91-98) e unir-nos a Ele na grande missão de trabalhar por um mundo melhor, de intensa beleza, diversidade e a complexidade. Ao “pessimismo cósmico” opõe-se o “otimismo cósmico” próprio da nossa vocação: procurar e despertar a “esperança cósmica”.
No exercício do Reino, ter Jesus diante dos olhos que nos convida a unir-nos à sua missão e nos diz: “Meu desejo mais profundo é mostrar a beleza de nossa terra e levar todos os nossos semelhantes à libertação e à realização. Eu te peço que aprecies todos os membros da comunidade, a matéria e os seres vivos, e que cooperes com eles para cumprir este desejo profundo. Se queres seguir-me nesta missão, deverás estar disposto a trabalhar e sofrer comigo, e espero que todas as pessoas de bom coração, juízo e razão se ofereçam totalmente para realizar comigo esta missão. Eu te peço também que demonstres amor e humildade, e trabalhes para procurar e sentir a beleza e o verdadeiro parentesco com toda a comunidade de vida”.
Segundo o relato bíblico, a primeira vocação do ser humano é a de ser jardineiro, pois recebeu do Criador a missão de cuidar e preservar a Sua “vinha”: lugar onde os homens, as mulheres e as crianças convivem em harmonia e com-partilham os frutos abundantes das videiras.
Na perspectiva bíblica, a vinha aparece sempre como aliada do ser humano; ela nos ensina a viver em harmonia com a água, com a terra e com todos os seres, numa relação de aliança, de gratuidade...
A primeira relação do ser humano com a Vinha, portanto, não é a de dominação arbitrária e exploradora, mas a da acolhida e da gratuidade, por ela ser dada em herança.
No fundo, trata-se de reconhecer que a Vinha “dada-a” é “doada-por”. Ela deve, por isso, ser recebida como fecundidade, não como algo que é objeto de conquista e domínio. Isso fundamenta não um fazer produtivo, mas um agir compartilhado: o ser humano é chamado a “trabalhar com” o Criador, cuidando da Vinha para que ela seja fecunda e alimente a alegria de todos.
A vinha é dada por Deus em função da vida. Por isso a Vinha é sagrada e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador; ela é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina.
O cuidado e a beleza da vinha impõem-se ao desejo consumista desenfreado, pois somos jardineiros e não exploradores. Existimos para acariciar a terra, para prepará-la, para fertilizá-la, para cuidá-la, para torná-la bela.
Os profetas sempre insistiram neste ponto: quando o povo guarda a aliança com Deus e respeita a terra, esta torna-se fértil e generosa. Quando as pessoas rompem a aliança com Deus e se afastam d’Ele, a vinha fica estéril.
A vinha não é o lugar para a espoliação e a devastação, mas para o louvor e o serviço a Deus.
A vinha não foi dada em herança para o consumismo, mas para a vida; não é para que uns poucos se apropriem dela como donos, mas para todos abrigar e alimentar; ela não é campo para a guerra, mas para a convivência fraterna, a solidariedade, a justiça e a paz. Somente a vivência dessa relação do ser humano com a vinha possibilitará novas relações sociais e ambientais, o novo tempo de paz e justiça.
Os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de sua alma, sonhos de rara beleza. São desejos de convivialidade, de superação da dor e da solidão, sonhos de fraternidade e da harmonia cósmica...
Era certamente nessa direção que Jesus apontava ao falar do Reino de Deus como o mundo das esperanças e possibilidades. “Um outro mundo é possível”.
O que caracteriza essa nova atitude é o cuidado em lugar da dominação, o reconhecimento do valor de cada criatura e não sua mera utilização humana, o respeito por toda forma de vida e os direitos e a dignidade da natureza, não sua exploração.
Assim, o exercício do cuidado, por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina e contribuir com o crescimento e a evolução da natureza em todas as suas dimensões; igualmente, cuidar e
fazer da vinha uma fonte inesgotável de bênçãos, ou seja, de comunhão com ela e, a partir dela, crescer em harmonia interior, comunhão com as outras pessoas e estreitamento de relações com o próprio Criador.
Como seguidores(as) d’Aquele que veio “trazer Vida, e vida em plenitude”, somos convocados a desenvolver uma consciência criatural, em que a Criação deixa de ser vista como objeto de domínio. Ela é um dom de Deus que deve ser acolhido com reverência, respeito e louvor.
É nesse momento dramático que uma nova cosmologia se revela inspiradora. Em vez de “dominar” a natureza, situa-nos no seio dela em profunda sintonia e sinergia.
Enfim, a imagem bíblica da Vinha aponta para uma relação de acolhida agradecida e reconhecida, pois ela é o lugar no qual não só existimos, mas somos chamados a uma plenitude de vida, em aliança e comunhão com o Deus Trindade.
Somos todos “lavradores” encarregados de tornar a vinha fecunda. Quem sabe, um dia, olharemos novamente para a Vinha do Senhor com olhos encantados e sofreremos ao vê-la violentada pelos vândalos que a estupram em nome do crescimento econômico.
Textos bíblicos: Lc 10,1-12 Gen 2,1-17 Mc 3,7-19
Na oração: - O exercício do Reino deve afetar o mundo dos desejos, aspirações, sonhos, esperanças...
- quais são seus sonhos? Quê esperanças você carrega no coração? A quê você se anima a gastar sua vida? Que medos o(a) paralisam?
- assumir gestos de cuidado para com o meio ambiente: reduzir, reciclar, reutilizar, replantar...
- Peça a Deus para que lhe conceda a graça de poder responder com generosidade ao apelo de Jesus para dedicar-se a promover o bem-estar ecológico. Ofereça todo o seu ser com palavras como estas:
“Eterna fonte de todo criado, na presença de Tua bondade infinita, de Tua Mãe e de todos os santos do céu, eu me ofereço a Ti com tua graça e tua ajuda. Desejo de todo coração e decido... …(escrevo).
Tenho consciência daquilo que eu gostaria de fazer para colaborar contigo em promover um aumento da beleza e do parentesco na comunidade universal de vida, bem como ser um defensor da vida, sabendo que isto pode me acarretar situações de afronta, de incompreensão e de perseguição. Peço a graça de poder chegar a servir-te melhor, sempre que seja Teu desejo admitir-me neste estilo de vida. Amém!”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum” (Laudato si’ n. 13)
No princípio era a Misericórdia e a Misericórdia é o nome bíblico de Deus. Por ela tudo foi criado.
Deus é Criador e das suas “entranhas de misericórdia” faz brotar novidades surpreendentes em meio ao “caos”. A Criação aparece então como um grande gesto de Misericórdia e todas as expressões de vida tornam-se a história da fidelidade dessa misericórdia gratuita. E foi do transbordamento da misericórdia divina que brotou a vida, pois a misericórdia é sempre criativa, original: ela cria e recria continuamente e desencadeia um movimento expansivo em direção à plenitude.
Segundo os relatos da Criação, a Misericórdia é criadora, é poeta, é pintora, é cantora – é irradiante, expansiva. Deus é Pai-Mãe e artista da Criação: sua obra é eternamente “obra aberta”, possível de ser revisitada, contemplada, admirada... Um universo que é fecundado pela Misericórdia de Deus é um universo abençoado, salvo e seguro.
A misericórdia é a luz e a chave de nossa vida tão preciosa e frágil, de nosso pequeno planeta tão vulnerável, do universo imenso e interrelacionado e do qual fazemos parte.
Todo o Universo é um suspiro do amor misericordioso.
As concepções judaica e cristã do mundo e do tempo rompem com a visão cíclica dos gregos antigos, desenvolvendo mais uma perspectiva histórica de um tempo aberto ao futuro e no qual há lugar para a novidade. Muitos textos bíblicos falam da criação como um processo e que deve, sim, recomeçar cada vez que o ser humano a corrompe. “O Senhor criou algo novo sobre a terra” (Jer. 31,22)
A misericórdia fecunda o universo e o torna fecundo. Conforme o Gênesis, Deus dá à terra e ao mar capacidade para produzir vegetais, animais e peixes, segundo a sua espécie.
A Criação não é só criada; é co-criadora, geradora de vida, pois cria, protege, sustenta... Ela prolonga e participa do ato criador de Deus, pois em tudo encontramos “faíscas” de misericórdia.
Segundo Walter Kasper “o testemunho de toda a Escritura, a misericórdia é o atributo de Deus que ocupa o primeiro lugar na autorrevelação de Deus na História da Salvação; é o lado visível e operativo para fora da essência de Deus, que é amor”.
Na Sagrada Escritura o termo “rahamim” traduz o caráter “generoso” da misericórdia: um amor com potência regenerativa: aproxima, perdoa, resgata, cura, refaz. É amor que reconstrói a vida.
“A misericórdia é o segundo nome do Amor”.
A expressão “rahamim” é sintetizadora de sentimentos de compaixão, misericórdia, pela força criadora de afirmar a vida em meio ao caos.
O coração de Deus é o de um Deus com “entranhas de misericórdia”, entranhas que se comovem e que O fazem sair e transbordar-se como amor terno sobre a Criação e sobre a humanidade. Nesse sentido, a Criação é o transbordamento da misericórdia divina.
As páginas do AT estão cheias de afirmações e de atitudes de misericórdia de Deus, inclusive com respeito a todos as criaturas. Todas elas são fruto do Amor de Deus, e portanto de sua misericórdia.
A Criação inteira tem um centro habitado pela Misericórdia e Ternura de Deus, que sustentam a Aliança do Criador com a Criação e com a Humanidade inteira; ao mesmo tempo, é a Misericórdia que move o ser humano a viver a aliança relacional com todos e com tudo.
Por isso, somos “seres orbitais”. Como planetas, vivemos em busca de um Sol em torno do qual gravitar. Estamos sedentos da luz da misericórdia. Na cotidiana convivência com os nossos semelhantes e na relação amorosa com todas as criaturas, somos todos quais partículas localizadas no espaço; porém, quando nos deixamos banhar pela misericórdia divina, somos onda que se propaga, todo o nosso ser flui e, de fato, estamos lá onde o nosso coração nos arrebata.
Só a Misericórdia é capaz de deter a dinâmica da ruptura das relações. E nesta Misericórdia não está só Deus, mas também as demais criaturas, o cosmos inteiro.
Ou seja, graças a uma “conspiração misericordiosa” da Criação, não fomos aniquilados pelo caos do pecado, senão que existe uma consistência relacional e solidária no mundo criado por Deus que faz com que não sucumbamos, ainda que façamos todo o possível por perder-nos.
Deixar-nos conduzir pela Misericórdia leva a sairmos de nós mesmos e a abrir-nos à contemplação sobre qual é o verdadeiro modo de ser e de existir que restaura a imagem e semelhança originais e que devolve ao mundo sua condição paradisíaca.
Movidos pela misericórdia reconstrutora, é urgente refazer o caminho de volta, como filhos pródigos, rumo à ”comunidade universal de vida” e restabelecer a re-ligação com o Todo e com todos.
Se há algo que caracteriza nosso tempo é a nova consciência de ser rede-comunhão-interconexão-unidade. Encontramo-nos em um tempo surpreendente: as espetaculares inovações tecnológicas nos convidam a entrar numa inimaginável rede de informações, imagens, conexões... Nosso planeta está dotado de uma complexíssima textura de comunicações.
“Deixar-se enredar pela misericórdia” é implicar-se na vida daqueles que dela mais precisam, ser presença misericordiosa em situações de fronteira, colocando nossas energias, nossa formação, nossa vida a serviço... para criar, alimentar e sustentar os laços humanos, o cuidado com a natureza, o fortalecimento das relações sociais, a criação de estruturas políticas e econômicas que tornem possível a solidariedade entre todos os seres humanos e aponte para um mundo fraterno e justo.
Este tempo pede de nós cristãos “uma espiritualidade da conexão”, da busca da experiência da Unidade, de estender pontes entre culturas, raças, sexos, crenças religiosas, ideologias, de romper fronteiras a partir da não-violência, de criar redes que inter-atuam. Precisamos sair de nossos pequenos círculos para criar vínculos com tantos grupos e organizações sociais, movimentos ecológicos que buscam outra globalização, a globalização da solidariedade, da misericórdia, da partilha...
Este novo mundo que emerge pede de nós uma nova espiritualidade das relações misericordiosas: chegou a hora de renunciar às relações de poder; de dominação-submissão, para viver relações humanizadoras com a marca da “misericórdia”, reflexo do Deus Misericórdia em quem cremos. Isso tornará possível que a comunidade universal de vida deixe transparecer os valores evangélicos de justiça, amor, paz, cuidado, libertação...
Nós cristãos somos chamados a articular redes e desarticular pirâmides; articular participação e desarticular hegemonias; articular os sonhos de outro mundo possível, e desmanchar teorias da “desigualdade natural”. A comunidade cristã articula redes de esperança. Essas redes somam forças, criam energias, estabelecem comunicação. Com isso, acontecerá um novo fluxo energético e pentecostal no interior da nossa “Casa comum”. O Espírito Santo também atua nos sites, bites, satélites... movendo a história na construção da grande rede da misericórdia solidária.
Textos bíblicos: Lc. 15,11-32 Jo. 8,1-11 Os 11 Is 65,17-25
Na oração: Recorde o que Deus sonhava com a criação do mundo: a felicidade dos primeiros pais; a terra não é inimiga do ser humano, mas é rica e generosa; tudo é de todos; há uma perfeita harmonia entre o ser humano e as criaturas; reina perfeita fraternidade: a humanidade como uma só comunidade...
Despertar o impulso para ser presença inspiradora e reconstrutora, diante de um mundo fragmentado e dividido.
Entrar no “fluxo” da misericórdia divina: ser canal por onde circula o amor misericordioso em favor dos outros.
Somos chamados a exercer o “ofício da misericórdia”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.09.2020
“Essas situações provocam os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo. Nunca maltratamos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos” (Laudato Si’ n. 53)
Depois de considerar o sentido de nossa existência diante de Deus (texto anterior), agora nos é pedido que façamos oração sobre os pecados estruturais da comunidade humana e sobre os nossos pecados pessoais, até que alcancemos a graça que nosso coração deseja. No exercício anterior, enchemo-nos de gratidão e assombro pela nossa existência, pelo amor da Trindade e pela comunidade universal de vida que nos sustenta.
No entanto, contemplando o cenário da Criação, vamos também tomando consciência que perdemos o sentido da corrente única da vida e de sua imensa diversidade. Esquecemos a teia das inter-dependências e da comunhão de todos com a Fonte originária de tudo.
Por isso, em nossa oração, situados diante da Bondade infinita do Criador, vamos implorar sua misericórdia por termos sidos negligentes no “cuidado da Casa comum”, plena de beleza e harmonia; misericórdia que nos chama a uma “metanoia”, ou seja, para uma conversão nos nossos relacionamentos com a Mãe natureza, tal como ela foi criada.
Todos somos filhos e filhas da Terra. Mais ainda, como humanos, somos a pró-pria Terra em seu momento de sentimento, de pensamento, de amor e de veneração. Historicamente cometemos um sacrilégio: rompemos a aliança fundamental de todo o universo, a solidariedade cósmica pela qual nunca existimos sozinhos, mas co-existimos e inter-existimos uns pelos outros, com os outros e para os outros. Separamo-nos da comunidade planetária, colocando-nos acima de todos os seres, ao invés de vivermos a comunhão com eles.
Na perspectiva bíblica, o pecado aparece em primeiro lugar como a ruptura de uma aliança com o Criador, com os outros e com as criaturas. Cometemos um pecado ecológico. Ficamos surdos e mudos diante das mil mensagens que nos vem de cada ser e do universo inteiro. O pecado se mostrou como uma força de desintegração do ser humano com sua Fonte Original, como força de desintegração do ser humano consigo mesmo e, por fim, como força de desintegração com o Todo.
Por trás da palavra “pecado” se esconde o drama da existência humana. Esse drama mostra-se trágico, pois revela uma aparente situação insolúvel que dilacera o coração e estraçalha a esperança humana.
A experiência do pecado é de desvio de rota, de frustração da própria vocação, experiência que nos desumaniza e nos faz viver uma existência vazia; com isso passamos a viver exilados, desterrados, solitários...
Nossa comunhão sagrada com a natureza, nossa fonte de vida e de significado, foi substituída por um profundo desespero. De fato, temos lavrado nosso próprio “inferno”.
Hoje constatamos as chagas ecológicas estampadas por toda parte e os próprios seres humanos deformados pela miséria e exclusão. Não levamos em consideração a vulnerabilidade dos equilíbrios vitais dos ecossistemas. Nesse sentido crescem as situações em que os seres vivos e o próprio ser humano encontram-se fragilizados e ameaçados em sua sobrevivência e desenvolvimento.
A degradação do ambiente natural e social fragiliza e ameaça o próprio ser humano.
Buracos na camada de ozônio, mutações climáticas provocadas pelo efeito estufa, enchentes diluvianas, secas prolongadas e devastadoras, desertificação de imensas áreas, erosão de solos férteis, desaparecimento de florestas devido ao desmatamento e às chuvas ácidas, rios assoreados e poluídos devido ao esgoto doméstico e aos detritos industriais, ar irrespirável pela presença de monóxido de carbono e outros gases venenosos, poluição sonora e visual das grandes cidades, crescimento e acúmulo de lixo urbano e industrial, esgotamento das fontes de energia não renováveis e dos lençóis freáticos de água, extinção continuada e crescente de espécies vegetais e animais, pondo em risco a biodiversidade e o equilíbrio dos ecossistemas são pecados do nosso dia-a-dia...
O drama do ser humano é perder a memória de que é parte do todo: seu instinto de posse e domínio o leva a romper a relação cordial com todas as criaturas, caindo num devastador vazio existencial. A “centração em si mesmo”, sem levar em conta a rede de relações que o envolve, provoca a quebra da “re-ligação” com tudo e com todos. Este é o veneno que corrói o ser humano por dentro: petrificação de sua interioridade, a perda do gosto pela verdade, pelo belo e pelo bem, o extravio da ternura e da transcendência, a atrofia da comunhão com o todo cósmico...
Diante da Misericórdia reconstrutora de Deus, devemos tomar consciência de que o ser humano está procedendo de maneira destrutiva contra a natureza e contra si mesmo, produzindo um verdadeiro colapso ecológico e humano. Há uma crise ecológica que se alastra rapidamente, corroendo o equilíbrio vital que sustenta a Criação toda.
A natureza está sendo “desnaturada” e o ser humano “desumanizado”. Esta crise aponta para um ser humano doente e a doença consiste justamente na separação entre o ser humano e a natureza, no esquecimento de seu parentesco e solidariedade.
A crise ecológica é a própria crise do ser humano. Nossa “oikós” (casa) está em ruínas, devido à maneira como a habitamos. Arrancamos pedaços dela para satisfazer nossos interesses individuais e não nos damos conta que estamos destruindo nosso próprio habitat. “O ser humano transformou o Éden num matadouro e o Paraíso ocupado num paraíso perdido” (E. Wilson)
Em termos inacianos, podemos qualificar tudo isso de desolação comunitária: o lugar pós-moderno do inferno. Conquistamos demais e cuidamos de menos. A ameaça provém da atividade humana altamente depredadora da natureza.
No entanto, a experiência cristã afirma: o ser humano é resgatável. Ele não está condenado definitiva-mente à condição de pecador; ao contemplar o universo desolado e devastado, a misericórdia de Deus faz brotar do seu interior uma “exclamação de admiração com intenso afeto” (EE. 60).
Na oração, considero a fidelidade com que o sol ilumina a terra para que a vida se desenvolva e se multiplique; a fidelidade com que a rotação do planeta nos traz a noite e o repouso. Recordo como a água limpa, o ar e a boa alimentação me sustentam cotidianamente; como a madeira das árvores me protegem dos rigores do tempo, como as fibras das plantas e dos animais me servem de abrigo; recordo como os micróbios produzem antibióticos para curar-me. Fico admirado e assombrado diante da generosidade da natureza que me proporciona todas as coisas boas em abundância.
Assim também, o amor, os cuidados e os sacrifícios de muitas pessoas e criaturas fazem minha vida mais fácil e enchem-na de alegria.
Louvo a misericórdia da Trindade que me re-cria a cada momento e revela Seu rosto nas criaturas.
Podemos parafrasear o no. 60 dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, dizendo:
“Quando contemplo a maravilhosa harmonia da criação, fico admirado que ela não tenha se voltado contra mim, considerando-me uma nódoa no conjunto de sua beleza. Quando me fecho em mim mesmo, a terra continua me sustentando e o sol se nega a me queimar como a um plástico. Quando expresso violência, as flores me oferecem sua fragrância. Quando eu me afasto de Deus e dos outros, o ar continua entrando em meus pulmões e a luz ilumina meus olhos... Apesar de estar totalmente fora de sintonia com tanta beleza, a natureza inteira está sempre disposta a me perdoar, a me reconquistar e a me embelezar. Do meu coração brota uma exclamação de admiração com intenso afeto”.
Textos bíblicos: Os 2,9-10.16-25 Rom 1,18-32 Is. 24 Ef 6,10-13
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.09.2020
“Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra”
(Laudato Si’, n. 92).
O núcleo da experiência bíblica é a tomada de consciência do Amor divino presente e atuante no mundo. Este mistério primordial da relação de Deus com a Criação constitui o centro mesmo da Revelação. A Criação aparece então como um grande gesto de Amor e todas as expressões de vida tornam-se a história da fidelidade desse Amor gratuito. A Criação é obra do Amor exagerado de Deus.
E foi do transbordamento do Amor divino que brotou a vida, pois o Amor é sempre criativo, original: ele cria e re-cria continuamente e desencadeia um movimento expansivo em direção à plenitude. E o Amor de Deus é irradiante e expansivo; por isso, tudo está habitado e perpassado por esse Amor. Tudo está inter-ligado, conectado e enredado pelo Amor. É o Amor que nos faz sentir a inter-dependência, pois ele mantém inter-conectados os fios da vida. Tudo é dom do Amor; o Amor está presente em tudo; ele continua trabalhando e re-novando tudo, e em tudo encontramos vestígios dele. Assim, um universo que é fecundado pelo Amor de Deus é um universo abençoado, salvo e seguro.
O amor é a força maior existente na Criação, nos seres vivos e nos humanos. Porque o amor é uma força de atração, de união e de transformação. O amor é a expressão mais alta da vida que sempre irradia e pede cuidado, porque sem cuidado ela definha, adoece e morre.
- O que é que nos une? O que é que nos põe em relação uns com os outros?
É a “comunidade universal de vida”, isto é, tudo o que existe, tudo o que vive e que tem sentido pelo fato de estar em relação, em comunhão, desde o mais ínfimo ser ao mais elevado. Pertencemos a uma comunidade cósmica de vida tal como foi criada e sustentada por Deus.
Há uma interação entre nós, seres humanos, e a natureza. Nosso corpo e nosso cérebro são compostos das mesmas partículas que tecem o brilho das galáxias que ardem nas profundezas siderais. Impossível estabelecer uma nítida separação entre o ser humano e o universo.
Somos quem somos somente na relação e por nossa relação com todas as criaturas e com o próprio planeta. Os acontecimentos da evolução estão inter-relacionados. É um desafio, para a experiência de oração, assumir que o mundo é um santuário que deve ser respeitado e cuidado, que é a morada de tudo, que foi a morada do Filho de Deus, e que continuará sendo a morada da Humanidade e da Criação.
A fé na Criação diz que no princípio do processo da evolução do cosmos há um amor criador. Os textos ligados à Criação falam de Deus como Pai, mas também como Mãe; devemos integrar, nesta visão de Deus criador, a dimensão feminina da Mãe Divina que sofre dores de parto e gera o Universo como ato de amor. Todo o Universo é um suspiro do amor misericordioso.
No poema da Criação (Gen 1) o verbo usado para “criar” (“qaná”) pode ser traduzido por gerar; a criação é uma espécie de parto divino. Deus diminui a si mesmo para que o Universo possa nascer.
A Palavra criadora e amorosa de Deus gera e sustenta toda a Criação. Isso significa que a ação criativa de Deus não diz respeito apenas à origem do mundo, mas à uma relação de aliança com esse Universo hoje. Não foi uma vez que Deus criou, mas continua permanentemente a “gerar”, a “dar à luz” tudo o que existe. Acreditar na Criação é ver por trás de cada ser do Universo o amor de Deus nele presente e atuante.
Para a Bíblia, a natureza é sagrada, porém não é divina. É de Deus e manifesta Deus. Podemos sempre encontrar Deus no contato com a natureza, mas ela é criatura e sacramento, não a divindade em si mesma; a natureza também é mãe geradora. Conforme o Gênesis, Deus dá à terra e ao mar capacidade para gerar vegetais, animais e peixes, segundo a sua espécie. A criação não é só criada. É co-criadora, participa do ato criador de Deus. Por participação, é também divina.
A Bíblia insiste que é criação de Deus para salientar que toda ela depende de um amor que a ordena. Esse amor é que a tornará ecológica, isto é, casa comum para todos os seres vivos.
A Criação não se completa com a chegada do ser humano, embora a criação do homem e da mulher ocupe o centro do segundo relato do Gênesis (Gen. 2). Deus cria a humanidade da argila da terra, indi-cando que a natureza do ser humano é a mesma da terra. O ser humano tem uma relação visceral com a terra (em hebraico: “adamá”), de onde veio e para onde volta. E o sentido de tudo é a vida.
Deus não criou o ser humano para ser senhor absoluto da criação, mas para “cultivar e guardar a criação” (Gen 2,15) com carinho e ser para com as outras criaturas como Deus é: amor e ternura.
A visão bíblica sobre a criação revela que existe uma pertença mútua, um parentesco cósmico, uma irmandade universal entre todos os seres. Fora de Deus, tudo é criatura. Todos os seres da terra são criaturas de Deus. Todos tem impresso em seu ser mais profundo a marca do seu Criador, uma dignidade própria e maravilhosa. Por isso o Universo é sagrado e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador. O Universo é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina. Por isso, no primeiro relato da criação, o cume está na instituição do “sétimo dia”, o shabat, o descanso divino ou, em termos mais precisos, a plenitude da relação gratuita e amorosa do Divino com o Universo.
O termo “shabat” significa descanso e, ao mesmo tempo, plenitude, realização profunda. Isso significa que a realização mais profunda das pessoas e da natureza está na gratuidade, não no seu aspecto utilitário. O sentido da celebração do sábado é novamente se conceber a si mesmo, e à criação, como parceiros da aliança de Deus. O sábado é completude da criação: o repouso, a festa, o coroamento da criação. O sábado faz o casamento entre Deus e a criação.
A instituição do sábado é um dos elementos mais ecológicos de toda a Bíblia. “O ano sabático é uma política ambiental de Deus com suas criaturas e com a terra” (J. Moltmann).
A Aliança com Deus é ligada à relação com a terra. Nessa visão de aliança, a Bíblia destaca que a criação tem uma bondade estrutural: “Deus viu tudo o que tinha criado e viu que tudo era muito bom” (Gen. 1,31). Em toda a Bíblia, a terra aparece sempre como aliada do ser humano; ela nos ensina a viver com a água, com a terra e com todos os seres do Universo uma relação de aliança, não de dominação arbitrária e exploradora. Os profetas do Primeiro Testamento insistiram em que quando o povo guarda a aliança com Deus e respeita a terra, esta fica fértil e generosa. Quando as pessoas rompem a aliança com Deus e se afastam d’Ele, a terra fica estéril.
Uma leitura deformada do livro do Gênesis deu margem a uma ruptura de harmonia com todos os seres da terra. “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e subjugai-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem pelo chão” (Gen. 1,28).
O termo “subjugar” (“kabas”), na maior parte dos textos bíblicos é usado no sentido de “amparar”, “proteger”. Da mesma forma, o verbo hebraico usado para “dominar” (“radah”), é um termo usado para expressar o caminhar do pastor com o seu rebanho, conduzindo-o às pastagens, protegendo-o contra o ataque dos animais selvagens. “Dominar”, portanto, vem do latim “dominus”, que significa “senhor”.
Dominar significa exercer o senhorio sobre as demais criaturas, e este exercício do senhorio deve ser exercido à maneira do “senhor”, que é o próprio Deus. A narrativa da Criação nos mostra como Deus exerce o senhorio em relação à Criação: ele a cria, ordena o seu crescimento e a sua evolução, garante a sua continuidade, cuida dela e a abençoa.
Assim, o exercício do senhorio, ou a dominação, por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina, contribuir com o crescimento e a evolução da natureza em todas as suas dimensões, cuidado com o meio ambiente e fazer dele uma fonte de bênçãos, ou seja, de comunhão com ela e, a partir dela, harmonia interior, comunhão com as outras pesso-as e caminho de conhecimento e estreitamento de relações com o próprio Criador.
Textos bíblicos: Gen 1 Dan 3,51-90 Sl 136(135)
Na oração: Durante o tempo de oração deixe que seu sentimento de “irmandade universal” se expresse como gratidão, assombro, louvor, admiração...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
No século V a.C., Sócrates pedia aos seus discípulos aquilo que estava esculpido no frontão do templo de Apolo em Delfos: «Homem, conhece-te a ti mesmo». O conhecimento de si é indispensável para percorrer o itinerário da vida interior e humana. É verdade que tal conhecimento nunca é pleno: cada um continua a ser um mistério inclusive para si mesmo, e por vezes pode parecer até um enigma com sombras e lados obscuros que não quereria ver, e que talvez estigmatize nos outros…
Todavia, é absolutamente necessário conhecer-se a si mesmo, para saber aquilo de que se é capaz, quais são os seus limites e as suas forças, para se ser responsável por si e pelos outros, segundo as impressionantes palavras de Dostoiévski: «Cada um de nós é responsável por tudo e por todos diante de todos, e eu sou mais responsável do que os outros». Trata-se de se conhecer a si próprio como processo de leitura psicológica de si; de conhecer-se para ter de si um juízo justo; de conhecer-se na pertença a uma porção precisa de humanidade.
Cada um de nós existe porque foi gerado, por isso é precedido por pais específicos; existe num tempo e num lugar particulares, por isso veio e vem a cada dia ao mundo, agora e aqui, Está no meio dos outros, por isso está em relação com outros. Sim, cada um é chamado a conhecer-se na consciência de ser também tudo aquilo que a vida e os outros fizeram de si, contribuindo para a formação do seu eu.
Em tal faixa de relações, conhecer-se a si mesmo comporta um necessário passo preliminar: aderir à realidade, conhecer a sua relação com a história, os outros, o mundo, porque é assim que cada um de nós existe e está envolvido. Muitos caminhos espirituais e psicológicos são estéreis, quando não desumanizadores, porque carecem de adesão à realidade. É extremamente perigoso iniciar o caminho interior sem sentir-se no meio dos outros, necessitado dos outros, e nunca sem os outros! Quantas derivas existem da parte de pessoas que se isolam, que deixaram de escutar, que vivem só das suas certezas e descobertas…
Neste processo, alguns têm a tendência de confundir o dado espiritual com o psicológico, reduzindo um ao outro. Por outro lado, no longo trabalho de conhecimento de si nem sempre é possível distinguir estas duas dimensões. Sabemos por experiência que erros de espiritualidade podem tornar-se patologias psíquicas (por vezes até com resultados somáticos), e que, vice-versa, patologias psíquicas podem influenciar a espiritualidade. O ser humano é mais unido do que pensamos: corpo, psique e espírito têm uma profunda relação recíproca, e a vida é o caminho que tende para a sua unificação.
Conhecer-se a si mesmo é, por isso, uma tarefa e um trabalho quotidiano, que requer perscrutar o seu sentir, pensar, falar e agir. Sempre “in dulcedine societatis”, na alegria do intercâmbio fraterno. Graças à prática deste exercício tem início a infinita viagem interior, bem descrita por Dag Hammarskjöld no seu diário: «A viagem mais longa é a viagem interior».
Enzo Bianchi
In Monastero di Bose
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 30.06.2020 no SNPC
Faz cinco anos que foi publicada e divulgada a carta encíclica Laudato Si. No presente contexto marcado por uma grave crise – de saúde pública, social e ambiental – a Laudato Si tornou-se um documento mais atual do que nunca que vale a pena revisitar. Vejamos três dimensões específicas da sua atualidade e acuidade.
Em primeiro lugar o facto de abordar transversalmente os problemas ambientais e humanos de uma forma integrada que sublinha a sua complexidade e aponta a sua dimensão ética. Escrupulosamente baseado em informação científica rigorosa e clara, o documento do Papa Francisco traça o retrato do gravíssimo estado em que se encontra esta nossa maltratada ‘casa comum’, fazendo apelo a uma tomada de consciência. E está lá tudo o que constitui a crise ambiental global contemporânea: o erro brutal de destruir a biodiversidade, que é fundamental ao equilíbrio ecosistêmico, e também a base da produção de alimentos e de medicamentos. Está lá um apelo ao reconhecimento e valorização dos bens comuns. Está o desacordo face à privatização da água, recurso escasso e vital, que ‘não é uma mercadoria sujeita às leis do mercado’, mas um direito humano sem o qual outros direitos não se poderão exercer. Estão os oceanos e a necessidade de alterar os sistemas de governança dos bem comuns globais. Está a crítica à substituição da flora e floresta autóctones pelas monoculturas; está a desumanização das ‘monoculturas’ do betão em subúrbios abjetos. Estão obviamente as alterações climáticas: ‘mudanças inauditas de uma destruição sem precedentes’ se a atual tendência se mantiver e continuarmos tão dependentes dos combustíveis fosseis.
Estão também os abusos da lógica cega da ideologia neoliberal que se instalou; e a irresponsabilidade social e ambiental de muitas multinacionais que abusam, poluem e degradam sobretudo os países pobres; está lá a crítica à atual subjugação da Política à finança; e está a corrupção que nos corrói. É toda a problemática global – e não apenas ambiental – que é abordada a partir do ponto de vista da Humanidade e não do jogo cego dos mercados.
E isso abre para a segunda dimensão: a da equidade e da justiça. A encíclica aponta com clareza o modo como os problemas ambientais se ligam aos problemas das desigualdades, mostrando que não é possível pensar uns sem os outros pois o ciclo é vicioso: a degradação dos recursos vai de par com a degradação social e humana. E aponta essa ‘verdade inconveniente’ que há muito devia estar assumida e resolvida, que é a da inaceitável pobreza espalhada pelo mundo inteiro e da enorme responsabilidade política a todas as escalas. Aqui o Papa evidencia claramente a dívida dos países do Norte – pelo uso e abuso dos recursos naturais e pelo excesso das suas emissões fosseis – aos países mais pobres do Sul que já sofrem as consequências das alterações climáticas e que agora vêem a sua situação dramaticamente agravada pelos impactos do Covid-19. O problema da dívida – das ‘dívidas’ – está hoje mais do que nunca na ordem do dia e tem que ser assumida. Não se trata apenas de reequacionar a dívida, mas sim de a pagar objetivamente com: transferência de conhecimento e tecnologias limpas e apropriadas; apoios explícitos à capacitação; assistência técnica e manutenção dos recursos de sobrevivência (água, floresta, recursos marinhos, etc.). Como escreve o Papa: “é necessário que os países desenvolvidos forneçam recursos aos países mais necessitados para promover políticas e programas de desenvolvimento sustentável” (Laudato Si, 2015, pp. 42). Num mundo global e interdependente não se trata apenas de uma obrigação, mas de uma medida de segurança, uma espécie de investimento na nossa sobrevivência coletiva.
A terceira dimensão a destacar é que a encíclica não se limita a diagnosticar; afirma que há soluções ao nosso alcance e por isso propõe um modelo de ação abrindo várias pistas de orientação para agir – do individual e local, ao coletivo e global. Desde logo, é necessário combater fortemente três entraves à implementação das soluções: a tendência para a negação dos problemas, a resignação acomodada e a confiança cega nas soluções técnicas. Isto valorizando simultaneamente a ciência e tecnologia, reconhecendo o papel central dos cientistas e de “usar a técnica, mas orientá-la e colocá-la ao serviço de outro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral” (pp. 86), pois “a tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano.”
Indica em seguida novas formas e fórmulas para repensar a economia e o progresso, desafiando-nos na busca de um desenvolvimento que seja sustentável – a ‘Ecologia Integral’. Nesta linha propõe o que hoje se designa como uma nova Economia Circular que constitui aliás um desígnio da União Europeia e que implica maximizar a eficiência no aproveitamento dos recursos, reutilizando e reciclando. Para o Papa “a resolução desta questão seria uma maneira de contrastar a cultura do descarte que danifica todo o planeta.” (pp. 22).
Depois a encíclica também reforça uma globalização de propósitos humanos que exige uma diplomacia ativa e influente e implica o reforço das Instituições Internacionais que considera indispensável serem “mais fortes e eficazmente organizadas” (pp. 130). Bem como os Acordos internacionais como projetos comuns para um mundo interdependente: “Torna-se indispensável um consenso mundial que leve a programar uma cooperação internacional no cuidado do ecossistema de toda a Terra – quem contaminar deve assumir economicamente os custos derivados (…). Os custos seriam baixos se comparados com os riscos das alterações climáticas.” (pp. 125).
Por fim sublinha a educação para a cidadania ambiental, pois toda a mudança depende da educação e da aprendizagem e é a capacitação que dá viabilidade à ação necessária. Uma cidadania que passa também por estimular o acesso à informação e uma regular participação da sociedade nas decisões às escalas nacional e local. Tal aponta para a importância de novos mecanismos de participação, novas metodologias, novos passos de civismo e a importância das redes comunitárias, nomeadamente nas Paróquias. Exatamente o oposto às funções manipulatórias das redes sociais e à criação de um mercado das consciências a que tristemente assistimos nos últimos anos.
Em suma, temos de evitar deixar às próximas gerações “demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo de consumo, desperdício e alteração do ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está a acontecer periodicamente em várias regiões (…). A dificuldade em levar a sério este desafio tem a ver com uma deterioração ética e cultural que acompanha a deterioração ecológica (…)” (pp. 162).
De forma clara e simples, a encíclica indica o caminho que se deve trilhar para decidir a nível internacional; apela ao diálogo para concretizar novas políticas nacionais e locais; insiste no desígnio de pôr a economia ao serviço dos povos e na imperiosa necessidade de outro estilo de vida no caminho da paz e da justiça.
Lançada em 2015 os efeitos da encíclica têm-se feito sentir profundamente – tanto na vida científica como na vida política e cívica com vários movimentos a despontar reunindo várias sensibilidades católicas, e não só, um pouco por todo o mundo. E assim uniu um campo disperso, apesar de convergente, de sensibilidades ambientais e ético-políticas. Em Portugal refira-se a Rede ‘Cuidar da Casa Comum’ (https://casacomum.pt/) que a saudosa economista Manuela Silva lançou entre nós, inspirada justamente pela encíclica e que promove a Ecologia Integral aí proposta.
Cinco anos depois e sobretudo num momento de viragem e recomeço provocado pela pandemia em que tudo tem que ser repensado, a Encíclica Laudato Si mantém-se mais atual do que nunca. Neste sentido, o Vaticano lançou em Junho deste ano um ‘manual’ de aplicação da encíclica ’Laudato Si’ com mais de 200 recomendações em defesa da vida humana e do ambiente. O documento designado ‘A caminho para o cuidado da Casa Comum – Cinco anos depois da Laudato Si’ reforça e atualiza as propostas da encíclica. Lembramos algumas: a educação, o apelo ao ‘investimento ético’ e não ao consumismo cego, o reconhecimento jurídico da figura de ‘refugiado climático’, a exigência crucial de se acabar com a vergonha revoltante dos paraísos fiscais.
A Laudato Si é um guia de sobrevivência para a Humanidade no presente e no futuro e um contributo fundamental para a viabilidade humana no Planeta que nos acolhe. E não temos outro.
artigo postado em ponto.sj.pt em 17.08.2020
É a uma carta do poeta John Keats que se deve a origem deste curioso conceito. A 22 de dezembro de 1817, ele escrevia aos irmãos, George e Thomas, anunciando haver compreendido qual era o segredo que garantia a realização plena de um homem e o tornava, como ele dizia, a “man of achievement”. Este segredo era a capacidade de caminhar na incerteza; de se deixar fluir através dos enigmas da vida, mesmo na dúvida; de se abandonar serenamente ao que lhe é dado viver, sem escapismos nem ressentimentos; e, sobretudo, a capacidade de não cair no erro de avaliar unicamente o caudal da existência pela viciada máquina do cálculo ou da razão. Os trabalhos da vida em nós estão para lá disso, insistia Keats. E um dos mestres para o qual apontava era Shakespeare, pois num grande poeta o sentido da beleza declara supérflua qualquer outra consideração. A esta resiliência para conduzir a embarcação que nos pertence através do oceano vasto e desconhecido, na ausência de mapas e de formas exaustivas de controle, John Keats designava como “capacidade negativa” (negative capability). “Negativa” porque contraposta à necessidade “positiva”, que reconhecemos em nós, de prever tudo, de perscrutar cada pequeno acontecimento pela lente da razão ou de lhes assegurar, de imediato, um desfecho, como se a vida fosse orientada por um guião.
De fato, ao romantismo devemos a abertura da nossa sensibilidade a critérios não puramente empíricos, procurando uma síntese mais polifónica e integradora do humano, onde, por exemplo, a imaginação e o sentimento, a arte ou a religião não fossem enxotados para um estatuto epistemológico de menoridade, como se não tivessem nada a dizer sobre a existência. Novalis escreveu que “quanto mais poético mais verdadeiro”, uma sentença que conserva ainda muito para aprofundar. Sim, os livros de contabilidade dizem alguma coisa sobre o real, mas não dizem tudo e, porventura, não dizem o mais importante.
Wilfred Bion irá recuperar este conceito de Keats e colocá-lo dentro do seu modelo psicanalítico, pretendendo descrever a capacidade (trata-se, na verdade, de um treino) para permanecer na confusão e na dúvida enquanto se escuta, sem precipitar-se na tentação de intervir cedo demais. Isso vale para a escuta analítica, mas também para as outras formas e contextos de escuta: o ouvinte tem certamente de aprender a compreender o que o outro lhe comunica; porém, também lhe será útil aprender a resistir à compreensão prematura, aceitando que muitas vezes se tem de relacionar com o que surge como incompreensível, ambíguo e contraditório, sabendo acolher e esperar. Para compreender é necessário esse abraço ao incompreensível de forma desarmada, que permitirá depois ao conhecimento que se constrói superar a dimensão plana, que tão frequentemente o aprisiona.
Penso, por exemplo, nestes tempos que nos cabe viver e de como nos estamos a relacionar com a sua incerteza. A proposta de Keats inspira-nos a tomá-la humildemente como caminho, renunciando à ilusão de encontrar uma resposta rápida para as perguntas que nos estão a ser feitas e que se calhar não ouvimos ainda por inteiro. Há momentos, ensina o poeta, em que a modalidade mais próxima da sabedoria é essa difícil passividade, sem a qual não experimentaremos a receptividade mais verdadeira.
Mas, por fim, “Negative Capability” é também o título que Marianne Faithfull deu ao seu último e comovente disco, um disco feito depois dos 70 anos (depois de um tumor e de inúmeros golpes), tentando agora conjugar o desejo de viver em plenitude com a maturação das próprias incertezas. Foi este disco que me mandou ler Keats.
Dom José Tolentino Mendonça
In: imissio.net 10.08.2020
Declarou o concílio Vaticano II:
«No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser» (“Gaudium et spes”, 16).
O que é, então, a consciência? É a voz de Deus em cada ser humano criado à sua imagem e semelhança, capaz de bem e de mal. É, para cada pessoa, o critério último e definitivo do seu pensar, falar e agir.
No hebraico bíblico, não há um termo correlativo do nosso “consciência”. Na tradução latina das Escrituras, o termo “conscientia” aparece 35 vezes, das quais só três no Antigo e 32 no Novo Testamento. Os termos hebraicos “conhecer” (“jada’) e “coração” (“leb”), como também o grego “syneídesis”, confluem com a sua riqueza semântica para o nosso conceito de “consciência”. Em particular, uma expressão fundamental é «coração que escuta» (1 Reis 3,9), pedido de dom a Deus por Salomão, para poder discernir como concretizar a sua função de rei: o coração capaz de escutar a voz da verdade, a voz de Deus que lhe indica o caminho. Paulo, por seu lado, afirma: «Tudo aquilo que não vem da consciência é pecado» (Romanos 14,23), palavras retomadas pelo axioma: «Quem age contra a sua consciência merece a condenação».
A consciência é voz de Deus, eco da Palavra que ressoa na intimidade, ainda que sempre limitada e condicionada pelo ser humano. Ela é um eco do Espírito Santo, eco reflexo da liberdade de que toda a pessoa é dotada, sempre condicionado pela própria condição humana. Certamente que para exercer a consciência é preciso poder dizer «eu», e, portanto, condição prévia é que haja um espaço de liberdade para este «eu». Isto, no entanto, na consciência de que sobre cada pessoa pesam vários condicionamentos: a história social, familiar, pessoas, as estruturas que nos plasmam, a cultura em que estamos mergulhados, as alterações devidas ao pecado…
É sobre o terreno da consciência que todos os humanos deveriam confrontar-se para caminhar juntos. É a consciência o órgão a exaltar para indicar a verdadeira dignidade de cada homem e de cada mulher: um órgão que deve ser absolutamente exercido, para deixar às novas gerações um esboço de criticismo, de resistência, para as habilitar às escolhas que terão, com responsabilidade e criatividade, de assumir e exercer.
Por isso, os cristãos não esqueçam a realidade da consciência, porque é nela que Deus pode falar:
- quando lê a Escritura, saiba que na sua consciência elas podem tornar-se Palavra endereçada pessoalmente a ele;
- quando pensa, exercite-se no discernimento, interrogando-se longamente, em vez de procurar respostas fáceis. Com efeito, é na consciência que, através do exercício da crítica e do confronto, se pode abrir o caminho para a verdade;
- quando reza, procure antes de tudo escutar mais do que falar a Deus. A voz de Deus é um «silêncio subtil» (1 Reis 19,12), e, por vezes, se Ele parece mudo, é porque a surdez do crente se torna impedimento a uma verdadeira escuta;
- quando tem de fazer escolhas, invoque o «Espírito de sabedoria e de discernimento» (Isaías 11,2), dom sempre renovado a quem o invoca (cf. Lucas 11,13). É o Espírito que ilumina e dá força e coragem, parrésia.
A consciência não é uma voz que nos recorda uma lei “já feita”, a aplicar de maneira mecânica, mas pede-nos criatividade e profecia no discernir situações novas, sempre iluminadas pelo princípio fundamental do amor. Por isso, é inviolável, é um santuário, é o tesouro que cada humano recebeu de Deus como dom.
A consciência deve ser ajudada a descobrir os seus erros, deve confrontar-se, mas nenhuma autoridade humana tem o direito de pisar a consciência pessoal. Nenhuma autoridade, no limite nem o papa, segundo a famosa frase de John Henry Newman: «Se eu tivesse de fazer um brinde à religião após um almoço …, então brindaria pelo papa. Mas primeiro pela consciência, e depois pelo papa».
Estaremos celebrando, no próximo dia 31 de julho, a festa de S. Inácio de Loyola. No período 20 de maio de 2021 a 31 de junho de 2022, a Companhia de Jesus nos convida a viver o “ano inaciano”, ou seja, “fazer memória” dos quinhentos anos da conversão de S. Inácio.
Depois de cinco séculos, S. Inácio continua sendo uma figura única e paradigmática. O marcante nele está no fato de ter sido capaz de situar-se, de maneira original e através do ritmo de decisões pessoais aprofundadas, no contexto de mudanças de seu mundo e de seu tempo. Ele é considerado o santo dos “tempos novos” que despontavam perante seus olhos deslumbrados. Novos valores emergiam, novos modos de pensar, de sentir, de viver, novas descobertas, novas terras...
Inácio é o homem da mudança, da transição no tempo, dos tempos novos, agitados, turbulentos, de transbordantes mudanças que colocavam em questão tudo o que até então era recebido.
Depois de ter posto seus pés sobre as pegadas de seu Senhor e beijar o solo que Ele havia pisado, Inácio compreende que a “terra de Cristo” era o vasto mundo de seu tempo. Desde então, para além do deserto e da peregrinação a Jerusalém, abre-se diante de seus olhos, outro caminho.
A partir de então, o mundo o aproxima de Deus e a saudade de Deus não o afasta do mundo.
Mas, seu itinerário não é unicamente geográfico. A grande originalidade da história e da vida de Inácio não é a que ocorreu fora, mas a que aconteceu dentro dele mesmo. Sua principal contribuição à história da Igreja e da humanidade não é o que pessoalmente ele realizou em suas atividades de apostolado e de governo, ou sua obra exterior mais conhecida, a Companhia de Jesus, mas a descoberta de seu “mundo interior” e, através dela, a descoberta desse continente sempre inexplorado e surpreendente, que é o coração, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa.
Tudo começou em 20 de março de 1521: A “bala” que feriu Inácio na batalha de Pamplona não transpassou tão somente sua perna; atravessou também, de modo igualmente profundo e traumático, todo o mundo de ambições e sonhos de glória que ele havia buscado e fantasiado até esse momento. Todo um sistema de ideais se vê deste modo derrubado.
Foi forçado a um confinamento, de uns nove meses. Nas primeiras semanas debateu-se com a dor e com a morte, mas logo começou a abrir-se, para ele, algo diferente, e desse tempo nasceu um homem novo.
Um castelo interior (um tipo ideal de homem) se desmoronou, ao mesmo tempo que começou a surgir outro edifício humano, não mais centrado na busca de poder e prestígio, mas na força dos grandes desejos e na sedução pela pessoa de Jesus Cristo, que, desde então, ocupará a tela inteira de sua vida.
A partir deste momento, toma como ponto de partida o protagonismo ativo e criativo de Deus em sua história pessoal; Inácio é movido a fazer uma leitura de sua própria história com a chave do protagonismo de Deus. A leitura de alguns livros - “Vita Christi” e “Legenda Áurea” foi, para ele, a primeira porta de acesso ao Mistério.
Da “leitura de textos” à “leitura de si mesmo”: este é o deslocamento que Inácio experimenta em seu interior. Inicia-se uma travessia do “texto escrito” ao “texto da vida”. Leitura provocativa e questionado-ra, pois ela desmonta uma estrutura fincada em falsos fundamentos e desperta o desejo de construir a vida sobre uma nova base. Uma leitura conflituosa, marcada por resistências e medos…, mas, ao mesmo tempo, uma leitura atenta e centrada, com pausas para reflexão sobre as reações que ela despertava. Leitura que o compromete com outra escrita, carregada de sentido, valor e utopia. Leitura que o ajuda a “ordenar” seu mundo interior. Descobre, então, ser possuidor de uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.
“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas. Aí se pode encontrar o sentido de tudo “aquilo que se é, daquilo que se faz, se espera, busca e deseja”.
A situação pandêmica, na qual estamos vivendo, pode nos oferecer uma outra perspectiva, se cairmos na conta que talvez estejamos vivendo, de um modo coletivo, o que aconteceu com Inácio de Loyola: não é um tiro de canhão que está detendo nossa correria maluca; rapidamente fomos imobilizados por um pequeno vírus, que nem sequer vemos, derrubando-nos do pedestal da autossuficiência, da soberba, do falso sentimento de que não éramos vulneráveis.
A pandemia está “des-velando” (tirando o véu) como são, no fundo, os nossos estilos de vida, onde, muitas vezes, não há lugar para o humano, não há lugar para o encontro, não há lugar para uma vida interior, não há lugar para a oração...
Confusos e aturdidos, com dor e também com temor, estamos prostrados na cama, cada qual na sua (porque cada um precisa fazer seu próprio processo), mas todos no mesmo quarto, porque esta prostração nos afeta e nos diz respeito a todos.
Inácio precisou de tempo para compreender tudo o que se passava com ele. No começo, teve de lutar contra a febre e a dor de suas feridas; quando elas começaram a diminuir, buscou primeiro entreter-se com leituras amenas e finalmente foi encontrado por Aquele que o buscava, através dessa ferida. Aquilo que no início foi vivido como uma derrota e um fracasso, foi seu segundo nascimento.
Como Inácio, talvez busquemos, num primeiro momento, nos entreter lendo “livros de cavalarias” que nos fazem fugir e esquecer a angustiante situação que estamos vivendo; ou talvez, já tenhamos começado a ler textos verdadeiros, textos reveladores e instigantes que nos devolvem a nós mesmos para dispor-nos a uma outra escuta, agora interna.
O novo de tudo isto é que não se trata de uma situação individual, mas coletiva. É agora que nos é dada a oportunidade de nos colocar realmente a escutar e a discernir os sinais. Mas, não sozinhos, e sim, juntos. Talvez seja esta a diferença fundamental com respeito a Inácio de Loyola. Como aconteceu com ele, o desafio está em passar de um confinamento forçado a um distanciamento, livremente acolhido e carregado de presenças.
Dispomos de muitas ferramentas, entre elas, aquelas que o mesmo Inácio nos deixou, para converter este confinamento coletivo em um retiro partilhado, em Exercícios coletivos de discernimento e re-conversão. São muitos os apelos, as inspirações, os movimentos internos, as reações e os impulsos que estão em jogo. S. Inácio, em seu leito de convalescente em Loyola, começou a dar nomes a tudo isso. Ali aprendeu a discernir e a decidir; ao sair de seu confinamento, não voltou à “normalidade” da vida, mas abriu-se ao novo, sonhando grande, ensaiando outros caminhos, indo ao encontro de um mundo em efervescência.
Também para nós, este é um tempo de kénosis, de esvaziamento, um tempo de silêncio, um tempo para despertar uma outra sensibilidade e entrar em sintonia com o Deus presente e atuante em tudo; em qualquer situação que nos encontremos, estamos envolvidos por suas mãos providentes. Aos poucos vamos descobrindo que este tempo é de uma grande intensidade espiritual.
Bendito confinamento se nos serve para receber uma luz e um conhecimento que não teríamos e bendita prova quando ajuda a nos tornar mais humanos e compassivos! Mais do que nunca, precisamos uns dos outros. A luz de um é luz para todos.
Que S. Inácio nos inspire a viver este tempo de distanciamento social como momento privilegiado para uma intensificação nas relações, para dar passos novos, para reinventar a vida e carregá-la de sentido.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
28.07.2020
Às seis da manhã nem sempre o céu se abre, mas já passou há meia hora o primeiro ônibus roncando, e, meia hora depois, se não está ventando, cantam os bem-te-vis. Nem mais cem dias de confinamento podem me fazer conhecer o que é a vida de um encarcerado. Estamos, no fundo, a nos enviar cartas, que não serão necessariamente respondidas agora ou amanhã. Venho até aqui para atestar se ainda estou viva, se ainda sou capaz de comunicar aquela espécie de revolta que floresce de um bom estado da fé. Uma revolta que vem da boa raiva, a raiva fecunda, aquela raiva que Maria da Conceição Tavares definiu como energia. Num campo de trânsito, há 77 anos, toda terça-feira partia um trem para Auschwitz numa média de mil pessoas por viagem. Agora, aqui, é como se partisse um trem por dia. A lua tem aparecido antes das nove, vem despontando amarela e magnífica entre dois prédios como através de um dólmen. Será fútil pensar na solidão dos museus? Os parques devem começar a ser reabertos a partir da próxima semana, o que é mais um risco à vida e, à tentação da loucura, um desafogo. Recebo notícias de amigos, sinais de farol, suprimentos de energia. O sol tem aparecido só às sete e, se não vieram ainda, agora sim, vêm os bem-te-vis. A vizinha do andar de cima também parece querer provar sua existência batendo porta, batendo janela, arrastando móvel, pondo para gritar a furadeira. Se calhar de voltar como história esse tempo e a cronista com suas cartas ainda estiver por aqui, podendo fazer coincidir desejo com necessidade, só queria envelhecer perto do mar e não ser mais o ouvido que amortece cada pancada de raiva estéril da vizinha.
Mariana Ianelli
In: Rubem 11.07.2020
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