“O pensamento volta-se agora para a Mãe de Misericórdia. A doçura do seu olhar nos acompanhe neste Ano Santo, para podermos todos nós redescobrir a alegria da ternura de Deus. Ninguém, como Maria, conheceu a profundidade do mistério de Deus feito homem. Na sua vida, tudo foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne. A Mãe do Crucificado Ressuscitado entrou no santuário da misericórdia divina, porque participou intimamente no mistério do seu amor”. (Papa Francisco – Misericordiae Vultus)
Existe uma relação muito profunda entre Maria, Mãe de Jesus, o mistério da Misericórdia divina e a vivência da misericórdia. Desde sua concepção, Maria foi envolvida na infinita misericórdia de Deus Pai, pelo Filho e no Espírito Santo. Ela nos foi dada como Mãe, por seu filho Jesus, a própria misericórdia, e ela nos ama também de modo misericordioso, especialmente os pecadores e sofredores.
O Papa João Paulo II destacou na sua Encíclica “Dives in misericórdia” que Maria é a “pessoa que conhece mais a fundo o mistério da misericórdia divina” (n. 9).
Maria é a mãe que gerou a misericórdia divina na Encarnação, graça extraordinária que a coloca numa relação intima com Deus, o “Pai das misericórdias” (2Cor 1,3). Ao responder ao anjo “Eis-me aqui” e “Faça-se”, a Misericórdia divina se “faz carne” e entra na nossa história
Em qual sentido podemos proclamar Maria como “Mãe de misericórdia”?
O título “Mãe de misericórdia” assim se justifica: Maria é a mulher que experimentou de modo único a Misericórdia de Deus, que a envolveu de modo particular desde a sua Imaculada Conceição, passando pela Anunciação, vivendo como fiel discípula e seguidora do seu Filho, até o grande momento da Sua Páscoa (paixão, morte, ressurreição, glorificação e Pentecostes). Ela é “kecharitoméne”, “cheia de graça”, ou seja, totalmente transformada pela benevolência divina (cf. Ef 1,6).
No seu cântico o “Magnificat”, por duas vezes Maria, a profetisa, exalta a misericórdia de Deus; movida pelo Espírito, ela louva o Pai misericordioso: “a sua misericórdia se estende de geração em geração sobre aqueles que o temem”; “socorreu Israel, seu servo, lembrando-se de sua misericórdia”.
A misericórdia que Ela proclama no Magnificat foi vivida em todos os momentos de sua vida: desde o seu sim, até o momento em que acompanha os discípulos de seu Filho nos inícios da Igreja. E segue fazendo até o fim dos tempos.
Uma característica que particularmente toca o nosso interior, dada a nossa condição humana frágil e necessitada do auxílio de Deus, é a Misericórdia, que em Maria ecoa com muita intensidade, como a for-ça de uma cascata, que penetra até os corações mais duros. Maria é, como rezamos, a Mãe de misericór-dia. Mas para entendermos como toda a vida de Maria proclama a misericórdia, devemos primeiro pene-trar no coração do Pai, rico em misericórdia, pois Maria é como a lua que reflete os raios do sol de justi-ça, que segundo a tradição da Sagrada Escritura é o próprio Deus.
Maria é a intercessora incansável do povo de Deus ; ela não deixa de apresentar as necessidades dos fiéis ao seu Filho. As “Bodas de Caná”, por exemplo, é uma concreta evidência de sua presença misericor-diosa. Ela se compadece da situação dos noivos e pede ao seu Filho realizar o primeiro “sinal”. Em Caná, portanto, a novidade está numa nova forma de presença de Maria, que não se encontra interes-sada, em princípio, por fazer coisas, por resolver problemas, senão para traçar uma presença. Ela não está aí para “arrumar” as coisas, mas para escutar e compartilhar um momento festivo. Ela se encontra presente, num gesto de solidariedade que transcende e supera toda atividade.
Porque estava presente a Deus, Maria fez-se presente nos momentos decisivos de seu Filho, bem como fez-se presente na vida das pessoas. Uma presença que faz a diferença: presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de uma mãe. Sua presença não era presença anônima, mas comprometida; presença expansiva que mobilizou os outros, assim como mobilizou seu Filho a antecipar sua “hora”.
Trata-se de uma presença que é “música calada” nos lugares cotidianos e escondidos, que sabe enterne-cer-se e escutar as inquietações que procedem desses lugares. Uma presença que descobre o próximo no próximo, que sabe resgatar a solidariedade na vida cotidiana. Uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.
Em definitiva, Maria descobre que é chamada a dar de graça o que de graça recebeu. Sabe entrar em sintonia com os sentimentos dos outros e construir vida festiva, e vida em abundância.
Sua presença misericordiosa revela um gesto profético de solidariedade e de anúncio: presença que aponta para uma outra presença, a de seu Filho, a misericórdia visível. Sua presença dignifica e revela um novo sentido à presença de Jesus numa festa de Casamento.
A presença misericordiosa, silenciosa, original e mobilizadora de Maria des-vela e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carên-cias. Tal atitude misericordiosa nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossos problemas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetiva-mente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher na própria vida outras vidas; histó-rias que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.
Evidentemente, nem toda presença é “saída de si”; uma pessoa pode passar pelos lugares sem que os lugares deixem pegadas; ela pode tocar a superfície das coisas e das vidas, mas esse contato deixa pouca memória e que logo desaparece. Com isso não há encontro nem aprendizagem.
Quando a pessoa se faz presença misericordiosa que desemboca no verdadeiro encontro, ela se expõe, se faz vulnerável, se deixa afetar... Mas essa é a oportunidade para transformar os olhares e os gestos de quem se atreve a sair dos horizontes estreitos e conhecidos. São muitos os encontros que são fecundos para quem se faz presente e para quem acolhe esta presença. São muitas as pessoas cujas vidas ganham em seriedade, em profundidade, em compaixão e em alegria autêntica ao fazer esse caminho de saída de si.
São muitas as pessoas que, em contato com vidas e histórias diferentes e reais, compreendem melhor suas próprias vidas e sua responsabilidade.
Textos bíblicos: Lc 1,46-55 Jo 2,1-12
Ó Maria, Mãe que experimentastes e gerastes a Misericórdia, Mãe que proclamais e exerceis a misericórdia, fazei de nós autênticos apóstolos deste mesmo mistério de amor em nossos tempos e em nossos ambientes. Amém.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Esta é a voz daquele que grita no deserto: preparai o caminho do Senhor...” Lc 3,4)
Advento nos convida a “fazer estrada”, numa viagem em busca do mundo interior, sede dos desejos, daquilo que é importante e essencial, o nosso modo de projetar o futuro, as nossas decisões... Nesse “mergulho” interno cada um pode construir uma espécie de mapa do “eu”, com as regiões fortes e fracas, vulneráveis e criativas, transparentes e ainda misteriosas.
A figura de João Batista “toca” o coração de cada um e nos possibilita “entrar” em nosso mundo e captar em profundidade a nossa realidade, a perceber a raiz do nosso ideal de vida (cada vez mais atraente-convincente-exigente), como também suas contradições e ilusões, medos e necessidades.
Esse processo interior, motivado pela presença instigante do Batista, nos motiva a elevar vales e rebaixar montes de nossa paisagem interior: desmontar colinas do medo, nivelar os acidentados terrenos de esperança, alongar a “pele da alma” para nos redimir das escleróticas rugas dogmáticas e facilitar os caminhos do Senhor.
Profundidade e amplitude: são as duas dimensões ativadas neste tempo litúrgico do Advento; elas estão intimamente conectadas de modo que quanto mais profunda é uma pessoa, mais livre se faz de seus limites imediatos e mais capaz de olhar amplamente a realidade que a envolve.
E o percurso do caminho interior nos ensina muitas coisas. Aquele que “desce” em seu interior, é alguém que não tem medo de si mesmo, de olhar para si em todos os aspectos e dar-se conta do que está acontecendo. Um fio e intenso raio de luz penetra e ilumina, quase imperceptível, alguns rincões do seu aposento interior. Em seu silêncio interior, nas profundezas de seu ser, acolhe, escuta e reconhece o murmúrio de uma voz, chamando-o a engajar-se na aventura do serviço a Deus e aos outros. Com o passar do tempo, torna-se capaz de reconhecer a ação de Deus.
É ali que a pessoa descobre aquilo que podemos denominar a “bússola interior” do coração, algo capaz de lhe revelar as “moções” de seu íntimo; “moções” que mobilizam a energia vital mais profunda de seu ser. Esta interiorização é abertura, é dilatação do coração, é expansão do ser em direção a um mundo percebido como “morada do Criador”.
No nosso processo espiritual do Advento, devemos também ativar esta capacidade de ver quem somos nós, onde estamos, para onde vamos... sem o temor de nos defrontarmos com respostas desagradáveis. Somente partindo da realidade de nós mesmos, do conhecimento do nosso terreno interior, poderemos crescer como peregrinos em direção a um horizonte que progressivamente se mostrará sempre mais claro. Caminhando por estradas interiores desconhecidas, poderemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer “vozes novas” que nos mobilizam na direção de uma causa nobre e divina.
Dizem que há pessoas capazes de serem curadas por uma voz, pela sonoridade de uma voz determinada. Vozes que “tocam” e despertam forças desconhecidas. Certas vozes nos devolvem ao nosso ser essencial. Quanto aspira nosso coração escutar uma voz que desate em nós forças libertadoras! Livres do domínio de nossas compulsões, livres para amar sem defesas, livres para sermos nós mesmos e poder entrar numa relação nova com a realidade...
Somos seres de palavras e somos também seres de silêncio. Neste mundo de “palavreado crônico” temos esvaziado o dom da palavra, as palavras tem pouco valor, as vozes se fazem estridentes e agressivas... Por isso, precisamos educar nossa voz no calor do silêncio, porque só o silêncio restaura a integridade de nossas palavras. Essas palavras podem curar, elevar, comunicar vida... Vozes que devolvem a dignidade a cada pessoa, remetendo-a a si mesma, ajudando-a a conectar com seu ser mais profundo.
Precisamos ouvir vozes que toquem nossas superfícies endurecidas e nos libertem de tantas ataduras que não nos deixam respirar com profundidade, nem olhar compassivamente, nem considerar a beleza da diversidade e da diferença. Também nós buscamos pessoas que possam nos dizer palavras para viver e somos também cobrados a entregar aos outros uma palavra de vida.
Os primeiros cristãos viram na atuação e na voz do Batista o profeta que preparou decisivamente o caminho para a chegada do Messias. Por isso, ao longo dos séculos, a voz do Batista continua ressoando com intensidade, despertando-nos para uma atitude de acolhida d’Aquele que quer fazer morada entre nós.
Lucas resumiu sua mensagem com este grito tomado do profeta Isaías: “Preparai o caminho do Senhor”.
O importante é a Voz, uma Voz que grita e diz: “preparai”. Ela nos define e nos faz ser mais humanos, pois alimenta nossa esperança e nos abre um caminho de transformação.
É tempo de profetas, tempo para escutar e discernir as vozes que vem do interior e vozes de outros homens e mulheres que abrem, com sua palavra, uma esperança de humanidade. Uma voz que grita no deserto: nossos “reinos neo-liberais” estão demasiados cheios de propaganda deste mundo, de poder e de dinheiro, de intrigas e invejas, de corrupção e falsos amores, de puras imagens que passam e morrem, mantendo as pessoas ocupadas em suas mentiras e ilusões.
É preciso sair ao deserto, retornar ao silêncio dos grandes profetas para escutar as vozes verdadeiras, aquelas que brotam do eu mais verdadeiro e que nos fazem mais humanos. Fernando Pessoa nos diz: “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.
O caminho foi e continua sendo uma experiência de rumo que indica a meta e simultaneamente é o meio pelo qual se alcança a meta. Sem caminho nos sentimos perdidos, interior e exteriormente. Assim se encontra a humanidade, sem rumo e num vôo cego, sem bússola e sem estrelas para orientá-la nas noites tenebrosas.
Cada ser humano é “homo viator”, um caminhante pelos caminhos da vida. Assim disse o poeta cantor argentino Atahualpa Yupanqui: “o ser humano é a Terra que caminha”. Não recebemos a existência acabada; devemos construí-la. E para isso é preciso abrir caminho, a partir e para além dos caminhos andados que nos precederam. Assim, nosso caminho pessoal nunca está dado completamente: tem de ser construído com criatividade e sem medo.
Esse é o sentido de nossa existência: escolher quê caminho construir e como seguir por ele, sabendo que nunca o percorremos sozinhos. Conosco caminham multidões, solidárias no mesmo destino, acompanhadas por Alguém chamado “Emanuel, Deus conosco”.
O cristão é um contínuo peregrino, enamorado do caminho, não da meta. E caminhando aprenderá a ser feliz com pouco e a ser companheiro samaritano; aprenderá também que o caminho é a meta e que é mais importante saber caminhar que chegar. E caminhando, ele se tornará caminho: um caminho de terra e de ar, de pedra e de fontes, de árvores e nuvens, de encruzilhadas incertas e horizontes luminosos.
Num albergue para peregrinos estava escrito: “Tu és o caminho”. Sim, nós também somos o caminho, a verdade e a vida. Como João Batista, que no caminho deixa ecoar sua voz que desperta e mobiliza a entrar em sintonia com “Aquele que está vindo ao nosso encontro”.
Neste longo percurso, os convites de Deus são absolutos e constantes. Se estamos apegados ao que temos, jamais seremos capazes de “fazer estrada com Deus” e participar da preciosa vida que Ele nos oferece.
Texto bíblico: Lc 3,1-6
Na oração: “Senhor, mostra-nos teus caminhos!” Esta é a oração fundamental de Israel, a petição permanente dos Salmos. Para o povo que peregrina no deserto, é essencial conhecer direções e entender ventos. E para o coração que peregrina no deserto da vida, é essencial conhecer os caminhos do Espírito e os ventos da graça.
- Seu caminho tem “alma”? Tem “coração”? Tem “voz”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...levantai-vos e erguei a cabeça, porque a vossa libertação está próxima” (Lc 21,28)
Mais uma vez o Advento vem ao nosso encontro, e com ele o convite para continuar ampliando espaços para Deus em nossas vidas. Uma oportunidade para escutar de novo sua promessa: promessa de nova vida, de um novo ânimo, uma nova esperança.
Podemos acolher este tempo com a marca da rotina (mais um ano, repetir as mesmas palavras, a espera, o “vem, Senhor”...); ou mobilizando-nos e abrindo-nos à surpresa de Deus, que virá a nós como chamado, como possibilidade, como grito para despertar-nos... Que nos abramos ao novo!
O melhor do Deus que vem é que Ele se manifesta de maneiras inesperadas: desfaz certezas, rompe convenções, renova sonhos, não busca brilhos ou ornamentos, aplausos ou adesões forçadas. Sua chegada não exige cobranças nem condiciona com exigências desmedidas. A esperança abre passagem por onde menos esperamos. E Deus continua aparecendo onde e quando ninguém espera.
Para “conhecer” a realidade e a verdade do Advento precisamos de olhos novos e de um coração novo. É necessário despertar aquela “sensibilidade” escondida e abafada pelo ativismo e pelo ritmo estressante de nossa vida. No Advento, toda a humanidade é atingida como que por um raio, é tomada de surpresa. A sua noite, o seu silêncio, o seu sono, a sua rotina diária... é quebrada por uma novidade absoluta.
O Advento é, por sua própria natureza, uma surpresa que quebra a solidão das pessoas abandonadas a si mesmas, que irrompe no meio de uma vida sem sentido e sem direção, que traz luz para os ambientes fechados e frios.
A “sensibilidade” despertada pelo Advento recupera em nós o sentido da surpresa, recobra a atitude da expectativa, da novidade, do assombro... diante da vida. Porque é no traçado das horas e dos dias que Deus prepara sempre a sua novidade, a sua surpresa, o seu dom natalício. Tal surpresa faz brotar o entusiasmo para enfrentarmos os desafios da vida, despertando projetos arquivados, suscitando dinamismo novo no cotidiano pesado, fazendo-nos levantar de novo e retomar o caminho...
Precisamos conservar límpidos os olhos do espírito, prontos para perceber a maravilha que está germinando na nossa vida. O Advento quer reafirmar a possibilidade de uma alternativa, da chegada de um hóspede inesperado, porque é “boa nova”, é evangelho. Por isso, o cristão não deve jamais cair na resignação, mas permanecer em vigília, na expectativa; ele deve ser também uma surpresa para os outros, com seu gesto de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola, com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona. Ele olha o mundo com inteligência, sim, mas também com a simplicidade das pombas; sabe intuir o bem secreto, também sabe apreciar a poesia da vida e da natureza.
No evangelho de hoje(1º dom advento), Jesus dá por suposto a existência de situações desastrosas que nos sacodem, enchendo-nos de ansiedade e preocupação; mas, onde nós só vemos catástrofes, Jesus vê “sinais”. E a condição para descobri-los é erguer a cabeça, levantar os olhos, ir mais além do imediato que nos cega e nos prende em redes de desejos insatisfeitos, em obsessões por conservar modos de vida que considerávamos definitivos, em temores que embotam nosso coração impedindo o fluir da vida.
Curvados sobre nós mesmos, sem horizonte, sem poder olhar de frente, nem entrar em relação de reciprocidade, carregando durante longo tempo um peso excessivamente grande (culpa, ressentimento, vergonha), bloqueados, privados de nosso próprio potencial: este é o drama que nos desumaniza. Nossos corpos encurvados se fazem texto, linguagem, grito, petição... para serem endireitados. Nesse contexto ressoa com força o apelo de Jesus: “levantai-vos e erguei a cabeça, porque a vossa libertação está próxima”.
Nosso corpo fala mais e com mais veracidade que nossas palavras, o que irradiamos revela algo sobre nós. E há corpos que em silêncio clamam por cura e cuidado. É preciso interrogar nossos corpos para que eles nos contem suas histórias guardadas: seus segredos, suas dores, suas vivências. Devemos ser capazes de lê-los e respeitá-los, para poder devolver-lhes sua harmonia e sua beleza originais.
É nosso próprio corpo posto de pé, é nossa própria vida circulando sem ataduras, é a libertação de nossas forças afetivas, a possibilidade de olhar outros olhos sem temor e de entrar em comunicação... que nos faz experimentar uma relação nova com a vida. Aspiração, sede, ansiedade, expectativa, estar de pé: isso é o que nos invade quando sentimos que se aproxima algo que desejamos de verdade. Pois isso é o Advento: tempo para os grandes sonhos.
Só os medíocres ou os desesperados renunciam a sonhar. Pois bem, se o desânimo nos assalta, é tempo novo para levantar a cabeça, olhar ao longe, bem para fora, bem para dentro. Deixar que ressoe como uma promessa a Voz de um Deus que atravessa o tempo para dizer-nos: “aproxima-se vossa libertação”.
Mergulhados naquilo que é margem, passageiro, na superfície das coisas, perdemos de vista o essencial e caímos na resignação. Perdida a capacidade de maravilhar-nos, o Advento esvazia-se e torna-se mais um tempo litúrgico rotineiro.
Poderíamos dizer que o Advento nos apresenta uma “espiritualidade do despertar”. Se estamos adormecidos ou anestesiados, sem nos encantar com a maravilha e o desafio de estarmos vivos, precisamos despertar. Despertar para a gratuidade da vida, para o chamado à convivência e comunhão, despertar para uma presença misericordiosa. Jesus vem despertar-nos e ativar nossa esperança.
É preciso saber olhar, abrir os olhos, ler a vida e despertar-nos para aquilo que acontece à nossa volta. Se há uma palavra que perpassa todas as tradições religiosas, essa palavra é “despertar”, não no sentido individualista e moralizante, ou seja, manter um adequado comportamento moral para, desse modo, alcançar a salvação.
O chamado original a “despertar” reveste-se de uma profundidade muito maior, que conecta com aquela palavra com a qual Jesus inicia sua atividade pública: “convertei-vos”. Na realidade, trata-se de um novo modo de olhar ou de conhecer, de um “conhecer mais além da aparência”.
Quê significa “despertar”? Em quê sonhos estamos mergulhados? Como dar-nos conta de que estamos “adormecidos”? Há algo que possamos fazer?... Todas estas questões são evocadas pelo convite que aparece na boca da Jesus: “Estai sempre despertos”.
A pessoa desperta é aquela que experimentou intensamente a vida e, graças a isso, vive ancorada, enraizada e conectada com a sua verdadeira identidade, ao seu eu original e universal.
Texto bíblico: Lc 21,25-28.34-36
Na oração: Quando foi Deus, para você, o Deus inesperado?”
Em quê se concretiza para você a promessa de Deus? Quê espera ou deseja de verdade? Qual é a boa notícia na qual você acredita? Como vive você este Advento? Quê há, em sua vida, de busca, sonho, aspiração, desejo... em sintonia com Deus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“”Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37)
A liturgia encerra o “ano litúrgico” celebrando “Cristo rei”, festividade promulgada em 1925 pelo Papa Pio XI. Mas, no atual contexto sociocultural, como soa em nossos ouvidos o título de “Cristo rei”? Este título nos permite fazer uma ideia justa de quem é Jesus de Nazaré? Tem sentido falar de “Cristo rei”?
Para começar, é preciso reconhecer que se trata de um “rei” pouco convencional: seu trono é uma cruz e sua coroa é de espinhos. Um rei bem estranho, pois afirmou: “Não vim para ser servido, mas para servir”. Frente a isto, o evangelho de hoje revela-se surpreendente e até escandaloso, porque nos apresenta esse título numa situação de humilhação e impotência extrema: na Paixão, com insultos, escárnios e zombarias dos chefes judeus, de Pilatos, dos soldados romanos...
Diante dos donos do poder e das autoridades religiosas que se julgavam em posse da verdade e que tinham um Deus feito à medida de seus interesses, Jesus afirma que “veio para dar testemunho da verdade”. De acordo com o evangelista João “ser rei” equivale a ser “testemunha da verdade”; e isso a tal ponto que com essas palavras se define a missão de Jesus: “Eu nasci e vim ao mundo para isto”.
Esta afirmação desvela e define a trajetória profética de Jesus: sua vontade de viver na verdade de Deus. Jesus não só diz a verdade, senão que busca a verdade e só a verdade de um Deus que quer um mundo mais humano para todos os seus filhos e filhas. Diante dessa verdade Jesus se revela verdadeiro, pura transparência. “Por isso Jesus fala com autoridade, mas sem falsos autoritarismos. Fala com sinceridade, mas sem dogmatismos. Não fala como os fanáticos que procuram impor sua verdade. Tampouco fala como os funcionários que a defendem por obrigação embora não creiam nela. Não se sente nunca guardião da verdade mas testemunha” (Pagola).
Jesus não transforma a verdade de Deus em propaganda. Não a utiliza em proveito próprio mas em defesa dos pobres e excluídos. Não tolera a mentira ou o encobrimento das injustiças. Não suporta as manipulações. Jesus se converte assim em “voz dos sem voz, e voz contra os que tem demasiada voz” (Jon Sobrino).
Quem é verdadeiro se move com muita liberdade em direção à verdade presente nos outros; não usa máscaras, não se impõe... Sua verdade vibra e se encanta com a verdade presente no outro. Verdades que se encontram, que entram em comunhão, que humanizam...
Toda pessoa verdadeira, transparente... incomoda, é provocativa... porque desmascara as nossas mentiras, nossas falsidades ocultas... Por isso é rejeitada. É difícil até definir e discernir o que seja a verdade, sobre o que é verdadeiro ou falso.
Pilatos, no evangelho de João, pergunta a Jesus: “O que é a verdade?” (18,38). Maior dificuldade ainda reside na imposição da verdade, em querer fazer o outro aceitar como verdadeiro aquilo em que eu acredito. Tentar convencer os outros gera conflito. Mas nem sempre nos contentamos com os argumentos. Especialmente quando o assunto é religião, existe a tendência de querer impor, pela força, pelo medo, aquilo que acreditamos ser verdadeiro.
Quanto fanatismo! Quanto dogmatismo! Quanto fundamentalismo! E tudo isso em nome de Deus. “A verdade também pode ter suas vítimas”.
A verdade não é um dogma e sim um caminho. Quanto mais verdades absolutas, mais estreito vai ficando o nosso mundo. Nunca podemos abrir mão de uma busca por uma verdade que subverta.Verdade não é apenas um princípio abstrato. Verdade é a realidade existente, o fato concreto, o conhecimento comprovado. A verdade des-vela o desconhecido, salienta a dignidade da pessoa, reivindica liberdade e igualdade, sustenta o significado essencial do ser humano, preserva os valores consistentes.
“Conhecer a verdade” é aspiração humana inata. O ser humano tem sede de verdade. Vai buscá-la nas encostas do mundo e nos recôncavos de seu espírito. Descobrir a verdade é conquista alvissareira. Compensa atravessar vigílias e trilhar veredas para chegar à verdade. Uma das angústias humanas é não alcançar o manancial da verdade. Enquanto existir verdade encoberta, o ser humano vive inquieto.
A verdade clareia a vida. Sem a verdade, a existência é sombria. A verdade gera autenticidade. Onde falta a verdade, instala-se uma lacuna na existência. Quem não vive a verdade, está carunchado por dentro. Impregnar-se da verdade é humanizar-se. Onde há verdade há humanidade transparente. Há rosto fascinante. Quando a verdade se des-vela e se faz visível, o ser humano se ilumina.
A humanidade busca a verdade, mas também pode asfixiá-la. Costuma-se reprimir a verdade que incomoda. E aqui tocamos um ponto tão nuclear como habitualmente mal entendido e pior vivido. A verdade não é uma crença (um conjunto de crenças), nem uma formulação ou uma doutrina.
Quando um cristão diz: “Eu tenho a verdade, porque Jesus disse que Ele era a Verdade, e eu creio nele”, caiu numa armadilha e, com frequência, numa danosa confusão. Ter uma crença não nos garante estar na verdade. Como se explica que alguém, em nome da “verdade”, cometa violência aos outros ou simplesmente os desqualifica? Quem faz isso é claro que não está na verdade. Quando a verdade se identifica com “crenças”, “formulações” ou “doutrinas”, acontecem efeitos estranhos, como o de confessar verbalmente uma coisa e estar vivendo a contrária.
Por isso, assim como a crença forçosamente tende a separar (os que creem e os que não creem), a Verdade sempre integra. Seguir a Jesus não significa ter determinadas crenças, mas estar dispostos a realizar a Verdade, o que Ele viu e viveu. Por isso, frente ao fanatismo que revela fechamento e estreiteza, a verdade requer abertura humilde, questionamento e flexibilidade. E é precisamente a pessoa que vive isto aquela que “é da verdade”.
Ser “testemunha da verdade” requer “viver na verdade”, não em algumas crenças. E viver na verdade inclui o reconhecimento e a aceitação da própria verdade, e da verdade presente no outro. Não pode estar na verdade quem não se aceita com toda sua verdade, com suas luzes e suas sombras; não pode estar na verdade quem vive identificado com seu ego ou com sua imagem idealizada. Pelo contrário, quando alguém se aceita assim, começa a viver na humildade e isso é já “caminhar em verdade”.
Afirmando de um modo mais claro: só conhece a verdade quem é verdadeiro, sem máscara ou disfarces. Quando se é verdade, conhece-se a verdade. É significativo que os antigos gregos entenderam a verdade como “a-létheia” (“sem véu”): quando “tiramos o véu” é quando emerge a Verdade do que somos. Aqui, cabe o termo “inventar”, que significa “descobrir o que está oculto”, e também significa “criar, fazer surgir o novo”.
Importa “inventar” a verdade, ir à morada da verdade, encontrar a verdade.
Isso é o que Jesus viveu. Porque chegou a experimentar a verdade profunda de si mesmo, pode dizer: “Eu sou a verdade”. Essa não era uma afirmação egóica, nem tampouco se referia a nenhuma crença ou ideia em particular. Era a proclamação-constatação humilde e jubilosa de quem des-velou e viu o “segredo” último de sua vida.
Texto bíblico: Jo 18,33-37
Na oração: Revele-se diante de Deus e deixe transparecer a verdade de sua vida: na confiança filial, des-cubra o que está recoberto, des-vele o que está velado, des-oculte o que está escondido, des-lumbre o que está ensombreado, des-mascare o que está camuflado, des-emudeça o que está calado, des-cative o que está algemado.
- A verdade que somos nunca pode ser algo que alguém tem e possa transmitir ou impor aos outros, mas a Presença que a todos sustenta e a todos abraça. Só a presença d’Aquele que é a Verdade ativa a verdade escondida em nosso interior.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão” (Mc 13,31)
Estamos chegando ao final de mais um “ano litúrgico” (este é penúltimo domingo), e a liturgia nos propõe leituras que, fazendo referência aos “últimos tempos”, querem nos convidar à “vigilância” e a atenção ao tempo presente.
O Evangelho de hoje é parte do cap. 13 do Evangelho de Marcos, que contém um breve “apocalipse”, ou seja uma revelação, um des-velamento, um des-nudamento dos múltiplos véus que revestem o palco, lúdico e trágico, da encenação do drama humano, com suas contradições, incertezas, promessas e esperanças.
Devido às imagens que este gênero literário utiliza, com frequência atribui-se ao termo “apocalipse” um significado de “catástrofe” ou “destruição”. A realidade, no entanto, é diferente. Etimologicamente “apo-kalypsis” significa “destapar o que está escondido”, “tirar o véu”, “des-velar”, ou seja, “re-velação”.
À mesma raiz pertence a palavra “eucalipto”, cujo significa etimológico é: “eu-bem”; “kalypsis- escondido”, fazendo referência ao fato de que tem perfeitamente escondidas suas minúsculas sementes.
Assimpois, etimologicamente, “apocalipse” equivale a “verdade” (“aletheia”=sem véu). E, como consequência, o escrito apocalíptico pretende “retirar o véu” que nos impede reconhecer as coisas como são, ou seja, revelar-nos o que se encontra por debaixo da superfície, em um nível mais profundo. É como se o autor quisesse nos dizer: “as coisas não são o que parecem ser”.
Em cada momento histórico o texto do Apocalipse é lido e interpretado em função dos acontecimentos. Este gênero literário é uma luz que nos ajuda a “ler” a realidade (interior e exterior), desvelando tudo o que acontece nela e assim poder assumir uma atitude mais coerente com a proposta do Evangelho. Assim, pode-se “ler” esse texto como se escutasse um sonho revelador.
O Apocalipse, portanto, é um empenho da comunidade cristã em dar sentido a tudo o que está acontecendo e assim reencontrar sua dignidade no coração das situações mais difíceis.
A revelação que ocorre no interior de cada um e na realidade que nos envolve é o desvelar (tirar o véu) de uma Presença. No centro de nossa solidão e de nosso exílio não estamos sozinhos, mas temos a visão de Alguém, que vem ao nosso encontro.
No texto evangélico de hoje nos é revelado, através de sinais (abalos celestes e terrestres, tribulações...), que esta ordem das coisas (o “mundo”) vai ser renovado em profundidade. Tudo desmorona à nossa volta, tudo vai desaparecer; mas o que o texto parece resgatar é a contundente confiança na afirmação e na promessa de Jesus: “O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão”. As Palavras do Filho do Homem constituem o nosso rochedo, são a nossa força. É um convite a nos recentrar.
Quando somos transformados pelos acontecimentos e somos levados pelas nossas emoções, pelas nossas reações, pelos nossos medos, é preciso voltar ao centro. O ciclone tem uma violência enorme e gira velozmente, mas seu centro é calmo, imóvel.
É preciso voltar ao centro do ciclone onde está o “Filho do Homem”, onde está o coração, onde está o Cordeiro. Esta vida nova está no centro da situação que vivemos, no centro desse mundo que é o nosso.
É a partir do interior que algo pode mudar.
Nesse sentido, o gênero “apocalíptico” vem nos dizer que, para além daquilo que possa ocorrer na superfície da história pessoal e coletiva, há uma Realidade estável que nos sustenta e que podemos experimentá-la como “rocha firme” sobre a qual firmar nossos pés. A velha ordem virá abaixo para ser substituída por um mundo novo que será inaugurado pela presença do Filho do Homem, reunindo toda a humanidade (“os quatro cantos”) e estabelecendo o “Reinado de Deus”.
Trata-se de um anúncio esperançador e certo. Esperança representada pela imagem da figueira que, carregando-se de brotos, anuncia a primavera. Esse é o nosso destino: caminhamos para uma Primavera que não conhecerá ocaso.
Na realidade, os discursos apocalípticos, a pesar de sua aparência, são sempre um chamado à esperança, que não é uma projeção para um determinado futuro, que serve para fugir do presente ou para poder “suportá-lo”; nem pode ser entendida como mera “expectativa” que nos afasta do presente, senão que nos faz ancorar nele, ou seja, viver na Plenitude do que é, no Presente pleno e com sentido.
A esperança, talvez mais do que qualquer outra inclinação ou disposição, está bem no cerne do ser humano e de sua existência, fazendo-o viver e dando sentido à aventura de sua existência. Basta pensar no que significa o desespero, a ausência de horizonte, a falta ou a perda de todo projeto possível, para compreender que a esperança emerge das profundezas do ser humano. Sem esperança , ele não pode viver.
O ser humano é ser “esperante”.
Segundo Rubem Alves, a esperança é o oposto do otimismo. Otimismo é quando, sendo primavera do lado de fora, nasce a primavera do lado de dentro. Esperança é quando, sendo seca absoluta do lado de fora, continuam as fontes a borbulhar dentro do coração. Otimismo é alegria “por causa de”: coisa humana, natural. Esperança é alegria “apesar de”: coisa divina. O otimismo tem suas raízes no tempo. A esperança tem suas raízes na eternidade.
A esperança carrega uma força misteriosa, um sopro criador, um alento espiritual que nos leva a olhar tudo com fé e encantamento; é um princípio vital, expresso na sábia e verdadeira constatação de que “enquanto há vida há esperança”. Mesmo diante de intransponíveis situações, vislumbramos possibilidades de saída, achamos possível ser de outro modo, inventamos e reinventamos alternativas, recusamos a possibilidade de as realidades nos dominarem e, sem cessar, sonhamos com o mais e o melhor.
A esperança é gestora do futuro e rompedora da dureza do existir.
Paulo Freire insistia que não se pode confundir esperança do verbo “esperançar” com esperança do verbo “esperar”. Esperançar é se levantar, é ir atrás; esperançar é construir e não desistir. Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo.
Uma das coisa mais perniciosas que vivemos no atual momento é o esvaziamento da esperança, que se expressa no desalento, desânimo ou até na covardia tolerante. Michelângelo dizia que “Deus concedeu uma irmã à recordação, e chamou-se esperança”.
A esperança, portanto, é como esse impulso que desafia o presente imediato, sempre curto e sem raízes no futuro; é ela que nos permite escrever nossa história com mais criatividade e ousadia, nos abre à invenção de possibilidades que nos fazem viver, corrige o passado e nos faz recomeçar, mantém a coragem de ser, transforma em nós o ser de puras exigências e de simples necessidades em seres capazes de dom e de desejo. Na esperança, encontramos a abertura e a amplitude de nossa vida.
Não basta esperar, é preciso uma paixão de esperança, a qual somente é possível se conduz para um horizonte plenificante, para um além da vida do dia-a-dia.
Texto bíblico: Mc 13,24-32
Na oração: Como se situa diante dos desafios que é chamado a assumir? Não se sente cansado por já ter vivido tantas mudanças?
- Você se arriscaria por um novo começo?
- Ou talvez desanimado porque as coisas não aconteceram como havia previsto? Ou, ao contrário, cheio de energia, entusiasmado por ser protagonista de uma época considerada de graça e de bênção?
- Quê esperanças você carrega no coração?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Ela ofereceu tudo aquilo que possuía para viver” (Mc 12,44).
Depois de um longo percurso contemplativo, seguindo o evangelista Marcos, hoje nos encontramos com Jesus no templo de Jerusalém, logo após seu gesto escandaloso da purificação e expulsão dos vendilhões. Ele, mais uma vez nos ensina. O episódio de hoje é o melhor resumo que se pode fazer de todo o evangelho de Marcos. Duas imagens, diametralmente opostas, emergem com intensidade. De fato, o contraste entre as duas cenas é total.
Na primeira, Jesus põe a descoberto a atitude dos doutores da lei no templo. Sua religião é falsa: utilizam-na para buscar sua própria glória e projetar-se sobre os outros. Vivem o “complexo do pavão”: só se preocupam com o exterior, as vestimentas, a ostentação, a vaidade, as honras, as saudações...Buscam vestir-se de modo especial e ser saudados com reverência para sobressair sobre os outros, impor-se e dominar. A religião lhes serve para alimentar fantasias. Fazem “longas orações” para impressionar. Não criam comunidade, pois se fazem o centro dela. No fundo, só pensam em si mesmos. Vivem aproveitando-se das pessoas frágeis às quais deveriam servir. Não se deve admirá-los nem seguir seu exemplo.
Na segunda cena, Jesus encontra-se junto ao cofre do templo e observa o gesto de uma pobre viúva que deposita ali duas pequenas moedas. Impactado pelo gesto, Jesus desperta a atenção de seus discípulos para que não esqueçam o gesto desta mulher. É uma pobre mulher, maltratada pela vida, sozinha e sem recursos. Provavelmente vive mendigando junto ao Templo. Desta mulher eles podem aprender algo que os doutores da lei nunca lhes ensinarão: uma fé total em Deus e uma generosidade sem limites.
Jesus descobre o dom da generosidade em uma mulher, a viúva pobre, que lançou no cesto das oferendas tudo o que precisava para viver. Olhar como Jesus olha nos educa, nos faz ter grandes olhos. É um gesto que passa desapercebido para muitos outros e que, no entanto, Ele recebe e elogia.
Enquanto os mestres da lei vivem aproveitando-se da religião, esta mulher despoja-se de tudo em favor dos outros, confiando totalmente em Deus. Para captar toda a força da frase final do Evangelho de hoje (“na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía”), temos que ter em conta que em grego “bios” significa não só vida, senão também modo de vida, recursos, sustento; seria o conjunto de bens imprescindíveis para a subsistência. Isso quer dizer que ela deu todo seu sustento (vida), ou seja, tudo o que constituía sua possibilidade de viver. A atitude da viúva equivalia a colocar sua subsistência (vida) nas mãos de Deus. Sua insignificante esmola demonstra uma atitude de total confiança em Deus e de total disponibilidade diante d’Ele.
Seu gesto nos faz descobrir o coração da verdadeira religião: confiança grande em Deus, gratuidade surpreendente, generosidade expansiva, amor solidário, simplicidade e verdade. Não conhecemos o nome desta mulher nem seu rosto. Só sabemos que Jesus viu nela um modelo para os futuros dirigentes de sua Igreja.
Trata-se de uma mulher anônima que pratica a misericórdia através de sua pobreza e de sua capacidade de partilha. Esta pobre mulher nos ensina a não acumular, a não apegar-nos às coisas, às pessoas, ao que fizemos ou fomos em outro tempo; ela nos ensina a estar abertos para nos deixar conduzir, ali onde a vida precisa de nós, a atrever-nos a lançar nossas duas moedas, apesar de senti-las de tão pouco valor. Porque esse gesto é o que dá sentido à nossa vida e torna fecunda também a dos outros. Aprendemos dela a viver nossa pobreza oferecida, de mãos estendidas, de coração livre.
Em nossas relações com Deus não servem de nada as aparências e as indumentárias. A sinceridade é a única base para que a religiosidade seja efetiva. Não enganamos a Deus com aparências.
Frente a tanta hipocrisia, diante de tantos que gostam de usar longas vestiduras, ser saudados nas praças e ocupar os primeiros lugares, diante da cultura da aparência nestes tempos midiáticos..., quem se despoja de tudo e se descentra em favor dos outros, é libre para “dançar com o Espírito”, na certeza de estar gestando a nova comunidade onde o pão se multiplica e a fraternidade se faz visível.
No filme “Advogado do diabo”, o “coisa-ruim” ri ao dizer que era fácil a disputa com Deus: bastava apenas aguçar a vaidade dos homens e das mulheres.
Hoje estamos condenados, pelos meios de comunicação, a alcançar o sucesso custe o que custar, doa a quem doer, impedidos de realizar gestos de gratuidade e generosidade. Solidariedade e partilha são apenas conceitos idealistas que não correm mais nas nossas veias. A ideologia da vaidade é aquela que responde por essa ânsia de tudo ganhar, de comparar-se com os outros num ritmo frenético, de brilhar, de aparecer, enquanto seu interior está carcomido pela angústia e pela falta de sentido na vida.
Por outro lado, tantas mulheres e homens de fé simples e coração grande e generoso, que sabem amar sem reservas, são o melhor que temos na igreja. Não escrevem livros nem pronunciam sermões, nem se fazem o centro na comunidade, mas são essas pessoas que mantém vivo entre nós o evangelho de Jesus; são elas que fazem o mundo mais humano, são elas que creem de verdade em Deus, são elas que se deixam conduzir pelo Espírito de Jesus em meio a outras atitudes religiosas falsas e interesseiras. Vivem a simplicidade e o despojamento, sem chamar a atenção sobre si mesmas. Na liturgia e nas celebrações não gostam de se exibir com vestimentas vistosas, mendigando saudações vazias e reverências fúteis, nem buscam os assentos de honra e os primeiros lugares. Destas pessoas temos de aprender para seguir a Jesus.
São elas que mais se parecem com Ele.
A generosidade é a virtude do dom.
Por ser mais afetiva, mais espontânea, ligada ao coração... a generosidade revela-se na ação, não em função de um mandato, de uma lei, de um interesse..., mas unicamente de acordo com os impulsos do amor, da solidariedade... O amor é sempre generoso.
A generosidade nos leva em direção aos outros e em direção a nós mesmos enquanto libertos de nosso pequeno eu. É a generosidade que nos liberta da mesquinhez, da vaidade, do auto-centramento...
Ser generoso é ser livre, e é esta a única grandeza verdadeira (magnanimidade).
Texto bíblico: Mc 12,38-44
Na oração: Diante do olhar compassivo do Senhor, experimente a generosidade como libertação, como um mergulho no coração da verdade.
Sinta o coração dilatar-se até às dimensões do universo, livre para qualquer desafio, para lançar-se a uma intensa generosidade.
É a generosidade que alarga o seu coração, rompendo seus estreitos limites e lançando-o a compromissos mais profundos. Sinta que cada nova doação é uma libertação maior: são novas oportunidades de serviço, de maior aproximação d’Aquele que veio, não para ser servido, mas para servir e para dar sua vida pelo mundo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“Pois esta é a vontade do Pai: que toda pessoa que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna. E eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,40)
A Igreja, hoje, nos convida a entrar em comunhão com o Deus da Vida e rezar com nossos falecidos e por nós que “vivemos esta vida com sabor de eternidade”. A celebração deste dia deve alimentar em nós a sabedoria de nos fazer presentes diante da morte.
Começamos nossa reflexão fazendo memória de uma cena encontrada nos relatos da Paixão: junto a Jesus, aos pés da cruz, há um grupo de mulheres. Elas contemplam o absurdo, a morte do inocente; elas não tem medo de olhar a morte de frente.
Elas, porque olham a morte de frente, vão mais além, vão mais profundo e fazem a experiência da não-morte, da vida eterna. Elas vêem o amor na morte; elas sabem que a vida de Jesus não lhe será tomada porque Ele a doou. Aos pés da Cruz elas contemplam o Amor mais forte que a morte.
E é assim que elas, porque olham a morte de frente, vão ser as primeiras testemunhas da Ressurreição.
Por isso elas trazem algo novo à nossa experiência, porque se fugimos da morte não poderemos ir ao outro lado, ao além da morte.
Em algum momento de nossas vidas é preciso nos deixar levar por esta atitude.
Trata-se de aceitar o nosso ser mortal para irmos além do nosso ser mortal. Porque é no fundo desta experiência mortal que podemos entrar na contemplação do que é imortal. Acompanhar a morte dos outros, sentir que caminhamos para a própria morte, vai nos tornar capazes de olhá-la de frente.
E o que se chama de Vida Eterna não é a vida depois da morte, mas é a vida antes, durante e depois da morte. E que é eterna.
Há um dado que nos afeta a todos nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da experiência humana. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana.
Vivemos uma das grandes mentiras de nossa cultura, ou seja, a morte já não está presente no cenário cotidiano, já não existe. A morte é distante e virtual, que não afeta à nossa própria sensibilidade. Vivemos como se tivéssemos que ser imortais. Sempre é assunto dos outros, mas nunca pode ser assunto “meu”. Quando ela está perto, as pessoas se afastam dela, ou então, ela é afastada para locais específicos. É o fracasso radical de uma cultura fundada sobre o êxito e o sucesso e, quando sente a presença da morte, tudo fica desestabilizado.
A negação da morte sempre cobra um preço – o encolhimento da nossa vida interior, o embaçamento da visão, o achatamento da racionalidade, a atrofia dos sonhos. Encarar a morte como plenitude não só nos pacifica como também torna a existência mais aguda, mais preciosa, mais vital. Essa abordagem da morte leva a um compromisso maior para com a vida.
Mas o confronto com a morte não precisa desembocar em um desespero que possa destituir a vida de todo sentido. Ao contrário, ela pode ser uma experiência que nos faz despertar para uma vida mais intensa.
Ela nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ela aumenta a consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida intensa e plenamente.
A experiência da morte pode servir como uma experiência reveladora, um catalisador extremamente útil para grandes mudanças na vida.
“A morte, menos temida, dá mais vida”.
Pensadores mais antigos nos lembram da interdependência entre vida e morte.
Eles nos ensinaram que aprender a viver bem é aprender a morrer bem, e que, reciprocamente, aprender a morrer bem é aprender a viver bem. Quanto mais mal vivida é a vida, maior é a angústia da morte; quanto mais se fracassa em viver plenamente, mais se teme a morte.
S. Agostinho escreveu que “é apenas perante a morte que o caráter de um homem nasce”. Muitos monges medievais mantinham uma caveira humana em suas celas para concentrar os pensamentos na mortalidade e para servir de lição à condução da vida. Montaigne sugeriu que a mesa de trabalho de um escritor deve oferecer uma boa visão do cemitério para estimular o pensamento.
E a morte não é o fim da vida, mas sua plenitude, quando esta é vivida com sentido. A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão... Desperdiçar a vida é estragar a existência. É trágico que a pessoa jogue fora a vida. Quem conhece o valor da vida não pode degradá-la.
E a morte é processo permanente de esvaziamento do ego para viver de uma maneira mais oblativa, no compromisso e na doação aos outros. Este esvaziamento não significa a anulação da “pessoa”, mas sua potenciação. Na medida em que os aspectos que a limitam diminuem, aumenta o que há de plenitude. A vida aumenta quando compartilhada, e se debilita quando permanece no isolamento e na comodidade.
O essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”. A partir deste momento vamos aprendendo a conviver com a morte, com a d’Ele, com a nossa e com a dos outros. Vamos aprendendo, precisamente em meio à morte, a “celebrar a vida”, mesmo intuindo que uma lança também nos atravessará.
“Olhar a morte de frente e aceitá-la como parte da vida é como dilatar a vida... Pode parecer um paradoxo: excluindo a morte de nossa vida, não vivemos em plenitude, enquanto que acolhendo a morte no coração mesmo de nossa vida, dilatamos e enriquecemos esta” (Etty Hillesum).
Fazer memória daqueles(as) que nos precederam e considerar nossa morte como travessia para a plenitude, nos levam a mergulhar na condição humana, a descobrir dimensões de nossa própria humanidade que, nesta cultura mentirosa, são mutiladas e reprimidas de tal maneira que nos tornam incapazes de ser portadores de Boa Notícia. A vida começa a emergir ali onde o mundo só vê fracasso e morte, e que orar a partir de nossas precariedades e fragilidades nos põe no caminho para experimentar o dom da Páscoa.
Só a partir desta implicação, a Páscoa nos abre ao futuro e nos faz perceber que “a morte não multiplica a Vida por zero”.
Texto bíblico: Jo 6,37-40
Na oração: Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos vivem, porque incapazes de reinventar a vida no seu dia-a-dia.
E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
- “Fazer memória” das pessoas que viveram intensamente e deixaram “marcas” em sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
A Igreja Católica celebra, neste primeiro dia de novembro, a festa de “Todos os Santos e Santas”; esta é a festa de todos os(as) amigos(as) de Deus, mulheres e homens que nos precederam e que deixaram sua “marca” na vida de tantas pessoas, melhorando uma parte do mundo. Damos graças a eles e elas por terem sido portadores da vida de Deus: de sua herança herdamos, com sua voz cantamos, de sua presença inspiradora nos alimentamos, de sua vida recebemos Vida, com Aquele que é o Deus dos Vivos.
Na celebração deste dia não temos de pensar somente nos “santos e santas” canonizados(as), nem naqueles que viveram virtudes heróicas, mas em todos os homens e mulheres que descobriram a marca do divino neles(as), e sentiram-se impulsionados a viver com intensa humanidade. Os(as) santos(as) foram e são humanos por excelência. E a plenitude do humano só se alcança no divino, que já está presente em todos nós. Não se trata de celebrar os méritos de pessoas extraordinárias, mas de reconhecer a presença de Deus, que é o único Santo, em cada um de nós.
Nesse sentido, ao invés de dizer “todos os santos e santas”, estabelecendo uma diferença entre os seres humanos, podemos afirmar “Todos santos!”. Para Deus não há diferença alguma, porque na Sua Santidade Ele nos ama a todos igualmente. Assim, no chamado à santidade, aspiramos somente a ser cada dia mais humanos, ativando o amor que Deus derramou em nosso ser.
Na vida de um(a) santo(a), mais que contemplá-lo(a) na sua glória, é bom considerar sua caminhada para a santidade: é o Espírito do Senhor que o(a) conduz.
Um(a) santo(a) é a “irrupção” original e única do Espírito de Deus. Uma maravilha sem comparação que invade a história e permite que seja dito o Indizível e experimentado o Transcendente. A presença de um(a) santo(a) ultrapassa nossa estatura. Algo “maior” se levanta, seduzindo-nos, atraindo-nos e surpreendendo-nos. Uma referência se apresenta à consciência das pessoas e das comunidades.
Os(as) santos(as) são personagens de limiar, de fronteira...; eles vislumbram o novo, a outra margem... são pessoas de atitude “excêntrica”: é sempre o Outro quem os conduz. O heroísmo deles é “deixar-se conduzir”, deixar que se manifeste a força divina ali onde é maior e mais evidente a fraqueza.
“Sejam santos, porque eu sou SANTO” (Lev. 11,45) Esta é a vocação fundamental à qual somos todos chamados, enquanto seguidores de Jesus Cristo. Ser santo(a) é ser dócil para “deixar-nos conduzir” pelos impulsos de Deus, por onde muitas vezes não sabemos e não entendemos. Seus caminhos não são os nossos caminhos.
Este “deixar-se levar” pela mão providente de Deus é uma ousadia. Na vida espiritual a liberdade tem que ser ousada, mas a maior ousadia é “deixar-se levar”.
Ser santo(a) é “arriscar-se” em Deus. É privar-se das humanas certezas em nome da Sua Verdade. É excluir-se das seguranças e estabilidades do mundo. Por isso a santidade é surda aos critérios do mundo, ao cálculo utilitarista...; não sucumbe às idolatrias do progresso a qualquer custo, da eficiência, da produtividade... Ela navega no oceano da gratuidade, da compaixão, da solidariedade...O modo de proceder do(a) santo(a) no mundo é imagem fiel do modo de proceder do próprio Deus, que é princípio e garantia da Verdade, do Bem, da Justiça, da Misericórdia, da Compaixão...
Ser santo(a) é ter a audácia de reinventar o humano; é resgatar a paixão por um ideal irrecusável; paixão rebelde e inquieta diante dos fatos; paixão pela vitória da esperança; paixão pelo sonho de melhorar a si mesmo e o mundo; paixão pelo futuro; enfim, ser santo(a) é ter capacidade ilimitada de paixão.
O seguimento de Jesus pede uma nova forma de santidade: a santidade da vida comum, da resposta à Providência divina em meio às rotinas do tempo, uma caridade tecida nos pequenos gestos... Surge, então, a imagem de um(a) santo(a) que é filho(a) do momento e da situação presente, cujo agir se processa no mundo em que está encarnado. O santo é aquele que, na “loucura santa”, revela uma pulsão de vida para com o mundo; é um biófilo (amigo da vida); é um cooperador, agindo sob o primado da escuta da Palavra de Deus dita na e pela situação cotidiana.
Não é o trivial ou o excepcional que distingue a santidade do ato: o que importa é sua sintonia à Vontade de Deus expressa na situação concreta. O importante é verificar qual é a intenção, qual é a motivação que está por detrás de cada ato, de cada atividade: para quê? para quem?...
Deus colocou no coração de cada pessoa a busca da santidade. Uma busca que se experimenta como impulso vital, sopro do Espírito, aqui e agora, nas circunstâncias concretas da vida.
Nesse sentido, santos e santas são os portadores de vida, homens e mulheres que buscam viver intensamente; que acolhem a vida e a expandem, que bebem do prazer da vida e que ajudam os outros também a beberem, sabendo que a vida é dom, presente que compartilhamos, todos, no mundo. São pessoas em cujo entorno se desatam correntes de vida, esperança, alegria de viver, reconciliação e amor.
“Os(as) santos(as), como os poetas, vivem de encantamentos…” encantados com a vida, com a beleza, com a verdade...
Perguntaram a uma criança de 7 anos quem eram os santos. Ela deu uma resposta magistral: “Um santo é quem deixa passar a luz”. Sem dúvida, em sua imaginação estavam presentes os vitrais da Igreja onde sua mãe a levava. É evidente, os(as) santos (santas) deixam passar a luz de Deus para nós. Essa transparência é sua santidade.
Os(as) santos(as) são pessoas humanas que nos mostram o que se pode atingir quando nos abrimos à luz de Deus, à maravilhosa “influência divina”, à potencialidade de seu Reino.
Santidade é dizer sim à vida. Experimentamos isso quando nos submergimos na vida, quando crescemos nela, buscando, saboreando até o final o que ela nos oferece em cada circunstância. Nunca alheios à vida, nada desprezando, nada lamentando. Esta concepção da Santidade desvela um modo de viver que nos converte em irmãos(ãs) das pessoas, da Criação e filhos(as) de Deus.
A santidade não é um programa. É uma experiência de vida, um modo de estar no mundo a partir da confiança numa promessa. Enraizado na fé-confiança na pessoa e promessa de Jesus, o chamado à santidade propõe um estilo próprio de vida aberta e expansiva: uma maneira alegre, pacífica, compassiva, responsável e generosa de se fazer presente neste mundo onde são centrais o cuidado de todo o vivente e o trabalho em favor da justiça.
Convida-nos a transformar o que, com frequência, é terra hostil ou deserto inóspito em um mundo mais humano e em um lar habitável.
Texto bíblico: Mt 5,1-11
Na oração: As bem-aventuranças não são leis para simplesmente evitar o mal, mas o potencial divino que, criativamente, estende a todos os lugares a Bondade e a Beleza. Expressam de modo conciso e explícito o coração mesmo de Jesus e seu desejo ardente de contagiar a todos os que se encontravam com Ele.
Nas Bem-aventuranças Jesus proclama que o verdadeiro segredo para uma humanidade totalmente recriada é a força do amor e da misericórdia, cimentadas no comum denominador da humildade. Aqueles(as) que percorrem o caminho de sua vida guiados pelo espírito das bem-aventuranças são os(as) santos(as).
- Como ser presença visível das Bem-aventuranças no seu cotidiano?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Mas ele gritava mais ainda: ’Filho de Davi, tem piedade de mim!’” (Mc 10,48)
Jesus está a caminho de Jerusalém, onde vai acontecer o desenlace de sua “missão”. Ele tem pressa; não está sozinho: os discípulos e as multidões o acompanham. O barulho dos passos, a balbúrdia e o vozerio das pessoas despertam a curiosidade de um cego, que estava sentado, mendigando às margens da estrada. Tendo sido informado de quem passava por perto, da sua boca brota uma invocação incontrolável, cada vez mais persistente; uma oração, um ato de fé:
“Jesus, Filho de Davi, tem piedade de mim!”.
O cego ouve a multidão passar com Jesus e aproveita da única e última oportunidade, pois não desfruta da vida em plenitude. Depende dos outros. Sem ver o trajeto, está impossibilitado para seguir a marcha com Ele. Encontra-se deslocado, fora do percurso. À margem do caminho cresce a passividade e o conformismo. Seu lugar revela carência de futuro. Junto à margem não vingam seus projetos e o sentido da existência desaparece.
Encontrando-se incapacitado para progredir por uma rota desconhecida, o cego reage da única maneira que pode, gritando; não lhe basta pedir, grita para ser escutado. Frente àqueles que querem fazê-lo calar, grita mais forte ainda e atrai a atenção de Jesus. Se seus olhos não podem ajudar-lhe, a potência de sua voz expressará sua vontade firme de curar-se e sua tenacidade na busca da recuperação da visão. Porque seus gritos por ajuda foram escutados e seu clamor teve resposta, abriu-se para este homem a possibilidade de uma história com futuro.
A multidão procurava interrompê-lo, porque seu grito incomodava. Aquele grito parecia desviar Jesus do seu objetivo e interromper o “clima sereno” que se criara em torno do Mestre. Merece atenção a atitude das pessoas que caminham com Jesus. É curioso como no início mandam Bartimeu ficar calado e logo mais adiante, quando Jesus lhe chama, o animam. Em tão poucas linhas revela-se o melhor retrato da reação de uma multidão. Dispersos numa massa é difícil manter uma atitude pessoal e diferenciada. No meio de um grupo muito grande as pessoas são mais propensas à mudança rápida e à contradição. A conclusão se impõe: em nossa relação com Jesus não podemos depender do ambiente.
Bartimeu nos ensina a ter personalidade e a buscar Jesus para além do apoio ou da oposição do ambiente.
O gesto e a resposta de Bartimeu ao chamado de Jesus que as pessoas lhe transmitem é muito significativo. Reage com rapidez. Deixa de lado seu manto, sem hesitar: sua riqueza, sua segurança, seu teto... e dá um salto. Sai de seu fechamento (o manto era considerado um prolongamento da pessoa). Desfaz-se daquilo que lhe traz segurança e recupera sua dignidade: “pôs-se de pé”.
Jogar seu manto supõe desfazer-se não só de algo importante que serve para se proteger e que confere dignidade à pessoa, mas é, sobretudo, algo sobre o qual estava sentado e na qual se encontravam as esmolas recebidas. Bartimeu, ao lançá-lo fora, se desfaz de seu sustento na vida, de tudo o que tem nesse momento. Seu salto adquire então toda sua força.
Esquece o que deixa para trás e se fixa no que está à frente. É um autêntico salto na fé, é o salto para o seguimento de Jesus. Seu duplo gesto é toda uma oração que contrasta com a atitude do homem rico preso por suas riquezas, apresentado um pouco antes neste mesmo evangelho (10,17-22).
O cego, que ainda não podia ver, mas consegue entender que está diante de Alguém que o olha, que lê no fundo do seu coração e que vai mudar o rumo, o horizonte e o sentido de sua vida, que vai acabar com seu sofrimento. Ambos se põem um diante do outro. A multidão, ao invés, quase desaparece atrás deste cenário. Bartimeu não está mais excluído, às margens da estrada. Agora, ele se encontra no centro da cena: face a face com o “Filho de Davi”.
- “o que queres que eu te faça? – pergunta-lhe Jesus. É um diálogo de tu a tu, sem intermediários, que lhe oferece a possibilidade de se revelar diante de alguém, de expressar os desejos mais profundos de seu coração. O espaço de diálogo experimentado lhe devolve a confiança, lhe confere autonomia e o ganha para o Reino. A palavra acolhida e oferecida é geradora e criadora.
A resposta do cego foi rápida; já estava pronta, preparada dentro de si, cultivada no seu íntimo, há muito tempo, no segredo e na noite do desejo, no silêncio da espera, na obscuridade do sofrimento. Seu pedido foi claro e direto, cheio de confiança; as migalhas não lhe bastam mais; não se satisfaz mais apenas com esmolas: quer mais, muito mais (“Mestre, quero ver de novo”).
Bartimeu sabe que havia manifestado um desejo que, até então, lhe parecia impossível; ao encontrar-se com Jesus, percebe ter no coração um pedido bem mais profundo: finalmente ele pode ver, não apenas o rosto das pessoas, a côr de uma flôr, o sorriso de uma criança, o encanto da aurora ou o pôr-do-sol, mas, sobretudo, ver a própria existência, o sentido das coisas, da história, dos acontecimentos humanos e da vida, sob o ponto de vista justo e na direção certa.
Jesus não fez nada, não tocou os olhos turvos do cego; com grande delicadeza e profundo respeito, simplesmente pôs a fé daquele homem em evidência (“A tua fé te curou”). Assim, ilumina a fé de Bartimeu e o torna livre: “Vai!”
Finalmente, Bartimeu poderá decidir onde ir, o que fazer da própria vida e como dirigir-se ao próprio Deus. Jesus não o segura; não o convida a segui-lo, mas ativa nele a capacidade de ver na direção certa; desperta-lhe a liberdade; ajuda-o a descobrir que, o desejo de viver, de caminhar, de gritar, nasce da fé. Jesus o ajuda a tomar consciência da própria fé.
E tudo isso começou de um grito...
Pela sua fé, pela sua perseverança na oração e pelo seu seguimento de Jesus, Bartimeu é apresentado como modelo do verdadeiro discípulo.
O relato acentua o contraste entre sua situação no começo e no fim. No início é apresentado como cego, mendigo, parado/sentado, imobilizado, marginalizado, na beira do caminho, na periferia da cidade, distante de Jesus... sem comunhão, sem horizonte e sem futuro. No fim, depois do encontro com Jesus, é apresentado como curado, libertado, iluminado, em movimento, seguindo Jesus como discípulo.
Bartimeu vive a experiência de uma profunda “travessia”: cego e sentado à beira da estrada pedindo esmola à recuperação da vista para seguir Jesus pelo caminho.
Texto bíblico: Mc 10,46-52
Na oração: Dar nome aos seus “mantos” que o mantém preso ao passado, travando sua vida e impedindo uma resposta pronta ao chamado de Jesus.
A existência humana pode ser marasmo, estagnação, medo, repetição, inércia, fixismo... Mas há um momento em que é preciso “dar o salto”: isso requer coragem, ousadia, agilidade e mobilidade para ir adiante na longa jornada que a vida apresenta.
A oração é o ambiente natural para mobilizar-se e preparar-se para o grande salto da vida: um novo projeto, um novo compromisso, uma nova missão...
- O que paralisando você à beira do caminho, travando sua vida e impedindo o salto libertador?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
”Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda quando estiveres na tua glória” Mc 10,37)
Outra vez um texto forte. Jesus acaba de anunciar aos seus discípulos a decisão de ir a Jerusalém, lugar da entrega da vida a serviço do Reino; os doze, no entanto, começando pelos filhos de “Zebedeu”, só pensam em “estar bem colocados” para alcançar uma cota maior de poder. Os “zebedeus” pedem trono, mas Jesus só lhes pode oferecer seu próprio gesto de entrega da vida; os dois irmãos pensam em títulos de honras e preferências, mas Jesus só lhes garante sua fidelidade no caminho do Reino: “Vós bebereis o cálice que eu devo beber e seres batizados com o batismo com que eu devo ser batizado” (Mc 10,38).
Os “zebedeus” seguiam a Jesus, mas não entendiam Sua proposta, não compreendiam que Ele não queria ocupar um trono (não queria reinar), mas doar a vida em favor dos outros, para que todos, homens e mulheres (e em especial os mais necessitados), fossem dignificados. Jesus não busca trono, nem para si nem para seus seguidores, pois seu Reino não pode ser entendido na linha da “tomada de poder”.
Eles caminham ao lado de Jesus mas só escutam aquilo que não lhes convém; fazem estrada com Jesus mas estão fechados em seus próprios interesses; seguem Jesus de perto mas estão bem longe de sua proposta de vida. Todos “sobem a Jerusalém”, mas cada um com sentimentos diferentes.
Marcos insiste em mostrar o contraste radical entre Jesus e seus discípulos, no que se refere à atitude básica diante da vida. Para o Mestre, a vida é oferta que se expressa em serviço; os discípulos, pelo contrário, parecem reduzir a existência a uma questão de autoafirmação do próprio eu, pelo qual se veem enredados pelo apetite de poder e grandezas.
Em certa medida, ambas atitudes manifestam os dois estilos nos quais podemos nos situar na vida: em chave de doação ou em chave de autocentração. Jesus e “zebedeus”: qual dos dois impulsos alimentamos na vida cristã?
Jesus, com seu modo de viver, nos coloca diante da contínua tentação que nos ameaça: o gosto do poder, da comodidade, de pompas, de querer ser como os “chefes das nações”, de ter privilégios, de ser servido... Sua proposta de vida é de uma sabedoria e de uma humanidade finíssima; seu horizonte é o serviço.
A busca de poder nunca consegue unificar nem criar harmonia, mas divide as pessoas, criando ressentimentos, competições, vaidades...
Jesus não quer “chefes” sentados à sua direita e à sua esquerda, mas servidores como Ele, gente de entrega eficaz, que saiba gastar a vida em favor dos outros. Sua comunidade não se constrói a partir da imposição dos de cima, não haverá lugar para o poder que oprime; nela não cabe hierarquia alguma de honra e dominação, mas hierarquia de serviço; tampouco métodos e estratégias de poder; é o serviço que constrói a comunidade cristã. “Quem quiser ser grande seja vosso servidor; e quem quiser ser o primeiro seja o escravo de todos” (Mc 10,43).
O Evangelho se torna assim um guia de servidores. Não é diretório para triunfar, nem manual para ganhar poder e dominar sobre os outros. Por isso, todos aqueles que, alguma vez, buscaram ou buscam poder e prestígio na Igreja, se equivocam de Messias e se afastam do Reino.
No grupo dos seguidores de Jesus, aquele que quer sobressair e ser mais que os outros, deve se deslocar para o último lugar; assim, a partir da perspectiva dos últimos, poderá ter melhor visão daquilo que eles mais necessitam e poderá ser servidor de todos.
A verdadeira grandeza consiste em servir com amor; o serviço é a manifestação prática do amor. E o amor busca sempre o último lugar, precisamente porque esse é o lugar mais universal; é o lugar que mais nos humaniza, o que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade.
A partir deste pano de fundo, os evangelhos aparecem como um manual de uma Igreja de servidores, onde a vida adquire seu mais profundo sentido, onde surgem relações novas, fundadas na gratuidade, na compaixão, na acolhida...
Para o “líder servidor” na Igreja, a liderança não significa cargo, privilégio, títulos ou dinheiro, mas é exercitar uma responsabilidade no serviço. Ele não se pergunta: “quê quero”, mas “em quê posso aju-dar?”, ou “o quê deve ser feito?”.
Assim, os líderes servidores são doadores e não receptores. Nunca se apegam a uma posição ou cargo. Escutam e aprendem daqueles aos quais lideram. São disponíveis, vão de um lugar para outro, falando e ouvindo as pessoas de todos os níveis da instituição.
E assim, servir e ajudar, em lugar de mandar e controlar, são as palavras de ordem dos novos líderes. Portanto, liderar com autoridade implica espírito de confiança, tratar o outro com bondade, ou ir atentamente, ter verdadeiro respeito para com os talentos do outro, ter real interesse por ajudar o outro para que tenha êxito, manter acesa a chama do sonho para que cada um possa tirar o melhor de si mesmo a favor da comunidade, sintonizar com os princípios profundos e valores permanentes da vida, expressar consideração, elogio e reconhecimento pela atuação do outro, afastar todo preconceito...
A identificação com o “divino serviço” atua, em cada cristão, como força rompedora daquilo que é tradicional, o conhecido, o “status quo”... levando-o a “inventar” respostas criativas e originais aos velhos desafios de seu tempo. Ele desenvolve uma liderança clara, realista, centrada, universal, comprometida com a vida; um líder que ama o que faz, pois é consciente de sua missão, descoberta em sua amorosa e infatigável busca da Vontade de Deus.
Ele sabe desenvolver uma liderança inserida nas realidades deste mundo, mas sempre com o olhar fixo em discernir para buscar, encontrar, sentir e fazer o que é “melhor” no serviço divino.
Inspirados no modo de proceder de Jesus, podemos traçar o perfil do servidor cristão,
* Pessoas abertas à ação de Deus com um projeto de vida comum, orientado por uma Espiritualidade e coerentes com seu testemunho de vida.
* Pessoas sensíveis e conscientes frente à realidade social, comprometidas em um testemunho de vida a serviço aos outros e com os outros, para transformar e construir uma sociedade na paz e na convivência.
* Pessoas compassivas: possuidoras de uma qualidade humana fundada no amor, na compaixão, na ternura e no serviço.
* Pessoas comprometidas: que acompanham o processo de crescimento do outro de maneira tolerante, justa, próxima e exigente.
* Pessoas com identidade espírito comunitário, capazes de trabalhar em equipe.
Texto bíblico: Mc. 10,35-45
Na oração: suplicar a graça para “desvelar” (tirar o véu) os “zebedeus ocultos” que atrofiam a vida e
es esvaziam o dinamismo do seguimento de Jesus; verificar em quê circunstâncias eles mais se manifestam: na família? No trabalho? Na comunidade?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Mas quando ele ouviu isso, ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico”
A cena do evangelho de hoje ilustra bem como uma “aderência afetiva” (fixação afetiva) a coisas, posses, pessoas, ideias, cargos, status, ídolos, dependências... nos travam e impedem de nos mover com facilidade. Perdemos o “fluxo” da vida, o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
“Diga-me o tamanho dos seus apegos, e eu lhe direi o tamanho do seu sofrimento”.
“Seis homens que caminhavam em busca de novas terras depararam-se com um rio caudaloso que lhes impedia avançar em seu caminho. Construíram um barco, prepararam os remos e entraram nele. Remaram juntos, e assim chegaram à outra margem. Desembarcaram para prosseguir o seu caminho, mas como o barco havia sido muito útil, carregaram-no sobre os ombros e seguiram assim penosamente sua peregrinação pela terra seca”.
Levamos “cargas” como essas em nosso interior, e são justamente elas que dificultam nossa caminhada pela vida. Se soubemos construir um barco quando foi preciso, também saberemos construir outro caso volte a se apresentar a situação; enquanto isso é melhor desfazer-nos de cargas incômodas para andar com maior desenvoltura e alegria pela vida.
O medo de perder “algo” no futuro atrapalha viver intensamente o presente. Quantos “pesos mortos” arrastamos em nossa vida, com recordações, lembranças, apegos, afetos desordenados...! Na perspectiva bíblica, há uma incompatibilidade radical entre a paixão pelas riquezas e a paixão pelo Reino. Ninguém pode servir a dois senhores.
Não é possível amar a Deus, isto é, amar a generosidade, a entrega, a solidariedade, a compaixão, a misericórdia, e ao mesmo tempo amar a riqueza, isto é, amar ou tomar tudo para si, a acumulação que é base de toda injustiça e de todo desamor: fome, violência, exclusão, exploração... A fidelidade ao Deus único fica interditada e o seguimento de Cristo fica fragilizado.
O apego aos “bens” apresenta-se como uma das tentações mais poderosas para todo seguidor de Jesus.
O dinheiro, os bens, as posses apresentam-se, então, como solo firme sob seus pés; eles provocam o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas.
No evangelho, o “jovem rico” aproxima-se de Jesus, correndo, movido por uma angustiante inquietação que o devorava por dentro e lhe pergunta: “Quê devo fazer para ganhar a vida eterna?” Ajoelhou-se diante do Mestre com respeito, como se visse nele seu último recurso para encontrar resposta à questão que era urgente resolver. Não se dirigia a Jesus como os outros personagens, oprimidos pela enfermidade ou pela pobreza, mas a partir de um mal-estar interior: por quê, apesar de ter tudo e levar uma vida irrepreensível, continuava sentindo-se insatisfeito?
Isto nos causa surpresa, pois tinha tudo o que hoje nos é proposto como meta: juventude, riqueza e status. A vida terrena não lhe preocupava: tinha sua subsistência resolvida; ele perguntava por uma “outra vida”, que lhe desse o sentido e a plenitude que lhe estavam faltando.
O diálogo de Jesus com o jovem rico está marcado por contrastes. O jovem começa com uma pergunta focada no âmbito do “fazer”: “quê devo fazer?”. E a finalidade do “fazer” se formula com o verbo “ter”: “...para ganhar a vida eterna”.
Jesus, no entanto, situa sua resposta em outra dimensão. Primeiro, reconduz o objeto direto do “fazer” a um sujeito com maiúsculas: “Por quê me chamas de bom? Só Deus é Bom”. Logo, não é questão só de “fazer o que é bom”, mas de “ser” como Deus: pura bondade.
O verbo “ter” também se transforma por “entrar” na vida eterna. A vida eterna não se “obtém”; na vida eterna “entra-se”. Os quatro imperativos que o jovem recebeu como resposta (“vai, vende, dá, segue-me”), lhe desconcertaram: ele explicitara sua inquietação pela vida eterna em termos de posse (“quê devo fazer para ganhar”?), pois até os mandamentos ele os havia cumprido. Mas Jesus o orientou em outra direção: não para a acumulação, a posse ou a herança, mas para a desapropriação, o esvaziamento e a entrega.
Isso era “o que lhe faltava”.
Todos nós somos como o jovem rico no momento em que nos aproximamos de Jesus. Todos nós carregamos no coração a mesma inquietação do jovem; nele podemos nos reconhecer, sobretudo neste tempo em que nos ronda a insegurança, a obscuridade do horizonte, a dúvida...
É possível viver, desde agora, uma “vida eterna”, transbordante e plena, apesar das limitações do tempo, da fragilidade e da caducidade das relações humanas, para além das gratificações e das buscas de recompensas? Quais são os condicionamentos afetivos que de fato limitam e atrofiam nossa liberdade e que nos desviam da vivência do evangelho?
Estranhas atitudes estas que Jesus propõe, tão contrárias em uma cultura como a nossa que nos apresenta a apropriação e a acumulação como meta da existência. Ele, imperturbável, apresenta sua alternativa: perder, vender, dar, deixar, não armazenar, não entesourar, não reter avidamente, desapropriar-se, esvaziar-se, partilhar...
Eleger a partilha, o despojamento e a simplicidade de vida é a base e condição para poder seguí-Lo no trabalho do Reino; barcos, redes ou mesa de negócios devem ser abandonados. A escolha de uma vida despojada expressa a liberdade para colocar-se a serviço do Reino. A afeição aos bens, à acumulação, pelo contrário, acarreta o enorme risco de se ficar cego e surdo para atender ao chamado de Jesus.
Estamos em tempo de soltar as ataduras que nos travam e de iniciar, despojados e libres, um caminho novo junto ao Mestre.
Texto bíblico: Mc. 10,17-30
Na oração: Temos muitas atitudes, posses, ideias, cargos, posições, bens... que consideramos como Vontade de Deus; na realidade é tudo “projeção” de nossos medos, de nossa insegurança...
* Quê “tesouros” estão travando nossa vida e impedindo-nos de seguir a Cristo mais livremente? Quantas projeções!... Quantas transferências!... Às vezes, parece que cada um vive à mercê dos ventos dos seus sentimentos!... Por quê você se dedica a tal pastoral?... O que você procura?... Qual a compensação afetiva que espera?... Qual sua “agenda oculta”? O que espera “ganhar ou perder”?
Suas decisões são tomadas a partir de que parâmetros: prazer? compensação? Vontade de Deus?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Então, abraçando as crianças, abençoou-as, impondo as mãos sobre elas”. (Mc 10,16)
No filme “O Decálogo 1” do cineasta polonês K. Kiewsloski, o protagonista é um menino de nome Pawel, órfão de mãe, cujo pai o educa sem ensinamento religioso. Um dia o menino, brincando com o computador, vira-se repentinamente em direção à sua tia que está no quarto e lhe pergunta: “Tia, como é Deus?”. A tia permanece em silêncio por um instante, fixa nele o olhar, depois abre os braços e diz: “Vem aqui Pawel”. Ambos se abraçam intensamente.
E a tia lhe pergunta: “Diga-me Pawel, como você se sente agora?”. O menino responde: “Bem, eu me sinto bem”. E aquela que o abraça, diz: “É isso Pawel, Deus é assim”.
Deus como um abraço: uma das mais sugestivas definições de Deus, elaboradas não a partir de uma linguagem teológica, talvez sofisticada e complexa, definição encontrada nos catecismos, mas uma definição que brota da experiência do abraço, no estilo das parábolas de Jesus.
“Deus como um abraço”, experimentado na ternura e no carinho de um abraço. Um Deus que conforta a vida, porque “nominar” Deus deve equivaler a confortar a vida. Se o Deus que transmitimos não conforta e não aquece a vida, a nossa palavra é inútil. Isso vem de encontro o que dizia Pascal: “Eu estou cansado de dizer Deus, eu quero senti-Lo”.
O filme, de fato, trata da relação com Deus, a fé e a ciência. Pawel vai crescendo junto a um pai racionalis-ta, cujo único “deus” é o seu computador e a ciência, vista como o futuro e o progresso. A ciência não pode errar, tem respostas para todas as perguntas, diminuindo progressivamente o espaço para Deus.
Mas, no fim das contas, ela é incapaz de satisfazer o íntimo desejo do coração, o calor do afeto, que a Pawel é demonstrado por um simples e caloroso gesto da tia, demonstração exemplificada da verdade surpreendente da terna vizinhança de Deus. Se sobre isso se faz experiência, “sente-se Deus” e, a partir disso, supera-se a resistência de falar de Deus e a vida se regenera.
Na Igreja, podemos falar de diversos métodos pastorais. Em primeiro lugar está a importância da palavra, oral ou escrita, para anunciar o Evangelho de Jesus. Mas, junto à palavra, é preciso acrescentar as imagens e os sinais sacramentais que falam a nossos sentidos. “Somos corpo”, “somos sensibilidade”, e Deus quebra as distâncias, “faz-se corpo”, “faz-se sensibilidade” para expressar a ternura do seu coração.
Jesus acrescenta a estes métodos um caminho pastoral novo: a pastoral dos gestos significativos e em concreto a pastoral do abraço. Abraça crianças e enfermos, anciãos e mendigos, os paralíticos...
São abraços ternos e fortes ao mesmo tempo, sem palavras, como os abraços às crianças da Palestina, ou como o abraço do pai a seu filho que chegava à casa fracassado e ferido.
O Mestre de Nazaré se identifica com as “crianças” ou “os últimos” (abraçar significa identificar-se) e deixa claro que só pode compreender e viver seu projeto – que Ele chamava “Reino de Deus” – quem está disposto a “ser criança”, ou seja, a colocar-se voluntariamente no último lugar, como Ele mesmo havia feito: “o filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45).
Para abraçar uma criança é preciso “descer” em direção à ela; com isso o abraço significa colocar-se no mesmo nível dela. Não se abraça de cima para baixo. O abraço nos faz iguais e nos humaniza.
Não é preciso ser especialista culto ou profissional para descobrir que o abraço expressa proximidade, afe-to, carinho, solidariedade, empatía, amor. O abraço é sem dúvida algo comum na família e na sociedade, mas quando se realiza no espaço religioso expressa, com gestos concretos, o amor e a benevolência de Deus Pai a seus filhos e filhas, seja qual for sua situação física, cultural, social ou moral. É um abraço que antecipa o abraço eterno do Pai às suas criaturas no final dos tempos.
A Igreja deve manifestar-se, deste modo, como uma mãe carinhosa e não como uma juíza autoritária que com seu dedo levantado ameaça a todos os que se desviaram do bom caminho. Assim expressou João XXIII na inauguração do Concílio Vat. II: “em nosso tempo a Igreja prefere usar a medicina da misericórdia mais que a da severidade”.
Por isso o papa Francisco não se limita a falar dos pobres ou a optar por eles, mas se aproxima deles e os abraça. Não é simplesmente um abraço pastoral mas algo mais profundo, a pastoral do abraço. É um abraço que tem um profundo sentido profético de denúncia de um sistema que descarta e exclui. Por isso, o papa Francisco abraça sobretudo àqueles que não tem quem os abrace, aos que estão sozinhos, aos marginalizados, aos descartados, aos feridos do caminho; a estes lhes manifesta a ternura e o carinho de Deus.
Seguramente a pastoral do abraço precisa complementar-se com outras mediações pastorais, mas, com certeza, é o caminho pastoral mais impactante, e, em muitos casos, o mais necessário e o único possível, quando as palavras e os gestos são incapazes de expressar algo muito profundo. Os setores populares são aqueles que melhor captam este tipo de pastoral.
O abraço pastoral faz parte da dimensão encarnatória da salvação e da graça. Deus não chega até nós através de uma espécie de fluidos etéreos e invisíveis, mas através de mediações sensíveis, físicas, corporais, sacramentais. O abraço sacramental é como um sacramento que expressa a dignidade de cada pessoa e o amor misericordioso do Pai, que em Jesus se revelou a nós e que o Espírito atualiza na história. E por isto não basta o abraço litúrgico da paz na eucaristia, é preciso sair às ruas e abraçar o pobre, o enfermo, a mulher abandonada, o ancião desamparado, o privado de liberdade...
Como afirma o Papa Francisco, “no abraço ao pobre estamos abraçando a carne de Cristo”.
Através de seus abraços e através da pastoral do abraço Jesus nos aproximou a presença e a ternura de Deus. Com seus abraços nos manifestou e expressou o abraço do Pai a seu povo. E nos abriu um caminho pastoral para que nós façamos o mesmo: a pastoral do abraço. Seremos capazes de segui-la?
O abraço é a palavra da pele que acaricia, das mãos que tocam, dos braços que sustentam, do corpo que diz sua verdade a outro corpo, o compromisso de acolher e defender a outra pessoa. Foi neste nível que Jesus se situou, expressando às crianças a alegria de sua vida e recebendo, em troca, a ternura e a carícia que elas lhe transmitiam com a sua alegria; Jesus se revela em gesto generoso de entrega e doação, para que o outro seja, para que a criança possa crescer em humanidade.
Abraçar é: segurar, envolver alguém com os braços, especialmente de modo afetuoso, manter próximo. É uma forma de carinho, de apoio e compreensão. Não se abraça só o corpo, mas a pessoa. É um gesto que ‘diz’: “eu estou unido a você”.
“O abraço é como uma circunferência. De forma simbólica, é um elo. Um momento em que os corações estão mais próximos e se comunicam. Entrega até anatomicamente.”
Texto bíblico: Mc 10,2-16
Na oração: O abraço fala uma linguagem universal. Abraçados nós nos ajudamos uns aos outros.
A tecnologia ergue barreiras, um abraço as derruba. A linguagem do abraço é a tradução da linguagem do coração.
Deixe que um abraço fale por você, quando as palavras parecerem inoportunas ou saírem com dificuldades...
Um abraço nunca diz: “A culpa é sua”. É comemoração, celebração. Significa apreço, afeição, reconhecimento. Significa confiança, empatia, segurança.
Desde sempre fomos abraçados pelo Criador: prolongue este gesto divino no seu cotidiano. Abrace sempre! Abrace muito!
Pe. Adroado Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“...vimos um homem expulsar demônios em teu nome, mas nós o proibimos, porque ele não anda conosco ” (Mc 9,38)
Toda autêntica vida humana é vida “com” os outros, é convivência, é compartilhar... E convivência implica respeitar e se alegrar com a diversidade, considerando-a riqueza. É maravilhoso que haja raças, costumes, cultura, religiões, formas de pensar... diferentes.
A diversidade nos permite enriquecer-nos, adquirir mais humanismo. Diferença é expressão inerente ao ser humano, é modo de pensar, de dizer, de trabalhar, de existir e de conviver.
Todos temos direito a ser singulares, direito a ser diferentes, direito a partilhar e receber dos outros. Daí a importância de aprender a ver o melhor em cada pessoa e em cada povo, superando as visões estreitas e fundamentalistas de todo tipo de racismo, xenofobia, desprezo, preconceito, intolerância, fanatismo....
Saber conviver com as diferenças é sinal de maturidade.
Historicamente, o ser humano sempre foi e é afetado por estes dinamismos de morte - fanatismo, preconceito, intolerância – que o levam a uma atrofia em sua humanidade, rompendo uma sadia relação com o outro diferente. Tais dinamismos negativos desvelam uma profunda insegurança pessoal. Um eu psicológico e espiritual não suficientemente integrado revelar-se-á carente de “seguranças absolutas”, que sustentem sua precária e instável sensação de identidade. Esta ameaça é a que se esconde por detrás das palavras de João, no evangelho de hoje: “nós o proibimos porque não é dos nossos”.
Diante da postura preconceituosa de João, Jesus reage: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim”. Aqueles que temem a diferença, amoitam-se no comodismo e na estagnação; tornam-se incapazes de viver a intercompreensão, a comunhão e o respeito recíproco. Desumanizam-se na solidão estéril e caem no fundamentalismo fechado, inimigo de toda diferenciação e cego em face da pluralidade. Aqui nasce a intolerância, que por sua vez gera o desprezo do outro diferente, e o desprego gera a agressividade que rompe a harmonia universal.
Aqueles que se fecham à diversidade se tornam preconceituosos, ou seja, dogmáticos e fervorosos fundamentalistas, com hostilidade e intolerância religiosa. Cegos para a verdade, eles preferem o autoengano ao conhecimento de fato; fincam pé naquilo que pensam que sabem, no que está estabelecido e normatizado; não se atualizam, não conseguem ver o novo e a necessidade de mudanças.
Ao tornarem absoluta uma verdade, se condenam à intolerância e passam a não reconhecer e a respeitar a verdade e o bem presentes no outro. Não suportam a coexistência das diferenças, a pluralidade de opiniões e posições, crenças e ideias. Daí surgem o conservadorismo radical, o medo à mudança, a violência diante da crítica, a suspeita, a vigilância, o controle autoritário...
Somos chamados a considerar a diferença como oportunidade, destacando a necessidade de estender pontes de diálogo e facilitar encontros com aqueles que são diferentes, tanto na Igreja como na sociedade.
Como seguidores de Jesus, fazemos parte da identidade da Igreja que é plural e diversa em seus membros, pelo qual é chamada à “comunhão na diversidade” (diferentes espiritualidades, liturgias, teologias...)
No entanto, a busca deste ideal se deparou, desde sempre, com diferentes desafios: dogmatismos, fechamento, sentimentos de superioridade, apego a normas, elitismo, legalismo, moralismo, etc...
A fé cristã em Deus, que é uno e trino, aparece como o primeiro fundamento para acolher a diferença. Também o exemplo de Jesus convida seus seguidores a sair de si mesmos, a acolher o outro como revelação de Deus. Essa fé se expressa no chamado “pluralismo comprometido”, ou seja, a busca, através de um diálogo honesto, de uma verdade, bondade e beleza sempre maiores.
Nós cristãos vivemos inseridos no interior deste mundo de identidades plurais. Como viver essa diversidade? Mais ainda: como conviver com elas na criação de um mundo mais justo e humano para todos?
Não podemos permanecer trancados em redutos que rejeitam as diferenças existenciais. A humanidade deixou de ser distante para tornar-se mais próxima, mediante as diferenças, os diálogos e as convergências.
Daí a importância e a urgência de aprender a valorizar o que é próprio e também o que é diferente, esforçando-se para não transformar as diferenças normais (geográficas, culturais, de raça, de gênero...) em desigualdades. É preciso educar e preservar as diferenças humanas.
Segundo o físico Andréi Sajarov “a intolerância é a angústia de não ter razão”.
É terrível quando alguém se aferra às suas próprias ideias e crenças, gerando fanatismos. O fanatismo cega e impede ver a verdade. O fanático se empenha em permanecer preso ao passado e bate de frente contra quem pretende abrir caminhos de futuro.
Quando alguém se fecha em suas ideias, é inútil mostrar-lhe a verdade. Quando alguém fecha sua mente aos demais é inútil mostrar-lhe a luz. Porque o fanático só crê em seus próprios pensamentos, só crê em suas próprias ideias, crê ser o único dono da verdade.
O fanatismo costuma ser o maior obstáculo para ver e acolher a verdade presente nos outros; o fanatismo costuma ser o maior obstáculo para ver a luz que os outros irradiam. Todo fanatismo é perigoso, mas o pior fanatismo é o religioso. Uma coisa é a fidelidade e outra é o fanatismo. O fanatismo fecha as portas a qualquer luz que venha de fora. Quantas vítimas do fanatismo da lei! E tudo em nome de Deus; e tudo em nome da religião; e tudo em nome da defesa da verdade.
Texto bíblico: Mc 9,38-43.47-48
Na oração: Despertar o eu profundo e universal é descobrir-nos como habitantes de um universo novo e espaçoso, onde a consciência expandida nos conduz ao encontro do “diferente” como chance de enriquecimento vital e de intercâmbio criativo.
Deus “se fez diferente” e é na “diferença” que Ele vem ao nosso encontro. Deixo-me surpreender pelo Deus da vida que rompe esquemas, crenças, legalismos... ou minha vivência de fé se reduz a um ritualismo fechado, impedindo sair de mim mesmo?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“Quem acolher em meu nome uma destas crianças é a mim que estará acolhendo” (Mc 9,37)
Sempre a mesma discussão e a mesma tentação: quem é o maior? quem é o primeiro? quem é aquele que manda?... O Evangelho de hoje nos situa em Cafarnaum, lugar onde são “desvelados” dois dinamismos opostos. De um lado, Cafarnaum como lugar onde o poder se torna competição e intriga, onde o seguimento se torna privilégio, onde palavras como serviço, entrega ou humildade soam vazias porque por de-trás delas há outras intenções menos evangélicas. E é tão difícil sair daí. É tão complicado deixar que a criança ocupe o centro, que os últimos sejam os primeiros. O impulso do poder e da vaidade vão se impondo a tal ponto que acabamos sufocando a criança que quer se expressar e deixar-se surpreender dentro de nós.
De outro lado, Cafarnaum é essa criança que é Boa Nova, que nos abre às alegrias e às surpresas, que crê no amor, que reconhece sua ignorância e não se importa porque para ela sempre são novas todas as coisas, que em cada amanhecer descobre novas oportunidades, que não entende os grandes porque sabe que o essencial está em outro nível, que pede porque se reconhece necessitada, que é vulnerável e não se envergonha de suplicar o cuidado, que vive em meio a sonhos, que espera nas promessas...
Cafarnaum de crianças sempre últimas. Cafarnaum bendita e generosa. Cafarnaum possível.
Qual das duas “cafarnaum” eu alimento?
Diante da oculta intenção dos discípulos de começar a construir uma nova comunidade sobre as bases do poder, a partir do maior e do primeiro, Jesus inverte esse modelo, pois Ele não precisa de seguidores que sejam os grandes nem os primeiros, mas de companheiros que queiram fazer-se últimos e servidores dos outros; Jesus destrói os desejos de poder dentro de seu grupo, e assim apresenta com realismo o que implica segui-lo no caminho do Reino.
Mais uma vez o Evangelista Marcos nos situa Jesus “em casa”, lugar de reunião da comunidade, onde Ele estabelece um diálogo com os Doze. O paradoxo é brutal: pelo caminho, enquanto seguiam a Jesus, iam discutindo para ver “quem era o maior entre eles”. Os Doze tinham interiorizado os critérios da velha sociedade, edificada a partir dos poderosos.
E Jesus, ao descobrir a má intensão dos discípulos, corta o mal pela raiz: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos”. Depois, coloca uma criança no meio deles e a abraça. O gesto de Jesus e as palavras que o acompanham tornam-se chocantes e surpreendentes. O lugar central já não corresponde nem a Pedro nem a João nem a Tiago; no espaço central da Igreja, abraçada a Jesus, encontramos uma criança, ou seja, um ser humano que depende da acolhida e ajuda dos outros, um necessitado que nem sequer pertence ao grupo.
A comunidade de Jesus tem que ser servidora e acolhedora daqueles que são como aquela criança, dos desvalidos e dos que não contam. Quando numa comunidade surgem disputas pelo poder e pelos primeiros lugares, inevitavelmente nascem as divisões e se rompe a fraternidade
“Entrar no Reino” significa entender e compartilhar o projeto de Jesus, ou seja a “fraternidade universal” e o “amor que se faz serviço”, pois Ele veio “buscar” os últimos (enfermos, excluídos, pecadores).
Isso se revela impossível para quem rege sua vida por critérios de poder, prestígio, ambição... alimentando atitudes que separam, dividem ou geram competição. O poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga. A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando a criatividade e fragilizando seus laços de convivência. Sorrateiramente esta tentação toma conta do coração humano e o petrifica, impedindo a expansão da vida em direção aos outros. Por isso Jesus quer que seus servidores saibam se colocar no final, para, a partir dali, acompanhar e ajudar os outros (especialmente os perdedores deste mundo), superando a lógica do mando e do poder.
Todos se encontram agora igualados, formando um corpo em torno à criança (que está no meio), a quem devem receber e servir. No lugar onde estava Ele, Jesus colocou uma criança (não um templo, nem uma bíblia, nem o código canônico...), de quem todos devem se aproximar, acolher e servir.
Jesus coloca uma criança no centro para que ali fique; os discípulos discutiam sobre esse centro, mas agora descobrem que está ocupado pela criança a quem Jesus a coloca de pé, convertendo-a em hierarquia máxima, em meio ao grupo onde Ele mesmo estava. Dessa forma, Jesus interpreta a autoridade a partir da ternura: a criança é importante porque está no centro da comunidade. Por isso, uma sociedade que não cuida e não protege suas crianças, é uma sociedade fracassada e não pode ser abençoada por Deus. Para muitos, é mais fácil confiná-las na prisão, lavando covardemente as mãos, “descartando-as” e não se preocupando em oferecer-lhes as mínimas condições para o seu crescimento e formação.
Com seu gesto e palavra, Jesus declara as crianças como coração e autoridade suprema da Igreja. Dessa forma, o que começava sendo uma pergunta hierárquica sobre o poder, entendido como sinal de Deus sobre o mundo (quem é o maior?), desemboca numa exigência ética de inversão do poder, de anti-hierarquia. A comunidade cristã não é um grupo de sábios doutores, uma sociedade de poderosos e influentes, uma associação de burocratas sacros, mas um lar para as crianças, um espaço onde os mais necessitados encontram acolhida e cuidado, um espaço de vida, dignidade e ternura.
A essência da Igreja consiste em abrir espaço de vida e crescimento, de afeto e ternura para com os mais necessitados, e de um modo especial para com as crianças. Eles, Jesus e a criança, constituem a verdade messiânica. Desaparecem os modelos de domínio (ser maior, ser primeiro), o maior e primeiro é a criança. A partir daí se pode falar de uma Igreja entendida como espaço de acolhida e como escola de vida para os necessitados e crianças. Aqueles que acolhem uma criança, oferecendo-a espaço para o abraço no centro da casa, esses são comunidade cristã.
Frente aos discípulos patriarcalistas que buscavam o domínio e o poder, Jesus eleva o modelo de uma Igreja que é família, lar materno a serviço dos mais desprotegidos.
Texto bíblico: Mc 9,30-37
Na oração: É preciso estarmos abertos para as surpresas de Deus! Entremos, pois, na casa em Cafarnaum, mas não de qualquer maneira. Estamos frente a um mistério santo. O “mistério” contemplado atinge as camadas mais profundas do afeto e do coração, gerando novidade em nossa vida cotidiana.
Há muito que ver em Cafarnaum, mas nem todos os olhares poderão acolher o que ali acontece. Há olhares opacos que não se alegrarão, olhares desconfiados que não o entenderão, olhares frios que não vibrarão com a novidade das palavras e gesto de Jesus... Somente os olhares dos pobres e pequenos se admirarão, e a paz do coração será sua recompensa.
“Ver de novo”, ver outras coisas diferentes daquilo que estamos acostumados a ver, é também “nascer de novo”. É preciso despertar a “criança interior” que há em nós, nossa capacidade de atenção à vida, de buscar com outros, de deixar-nos surpreender diante da presença despojada de Deus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo...” (Mc 8,34)
Todos nós somos habitados por um conjunto de “eus”, alguns conscientes, outros inconscientes. São os “pequenos egos” ocultos que habitam nosso interior. São elementos de nossa própria sombra, aos quais deveremos prestar atenção se quisermos avançar rumo a uma plenitude humana e espiritual.
A sombra é composta por um conjunto de pequenos “egos” que fomos alimentando no decorrer de nossa vida. Na sombra pode haver um ego vaidoso, orgulhoso, sozinho, assustado, ressentido, angustiado, irado, invejoso, triste, sensual, avarento, vítima, sádico... Trata-se de descobrir, pouco a pouco, esses pequenos “egos” reprimidos e inflados, nomeá-los e dialogar com eles. Neles se esconde a pessoa que teve de ocultar-se, negar-se ou até rejeitar-se para sobreviver diante dos outros.
Para sair dessa armadilha é necessário situar-nos em nosso “espaço interior”, aí onde nos identificamos com nosso “eu verdadeiro”, para perceber as coisas de forma adequada. Uma experiência espiritual profunda consiste em estar cada vez mais lúcidos com relação a ele; identificando-nos prazerosamente com nosso Eu verdadeiro vamos “desvelando” e conhecendo mais nossos “pequenos egos” ocultos.
Só podemos dialogar proveitosamente com nossos “egos” a partir de nosso “eu” verdadeiro (lugar da beatitude original). Desse diálogo brotam sentimentos de paz, abertura, espontaneidade, vitalidade, amor...
Quando experimentamos algum mal-estar existencial persistente, devemos desmascarar nosso pequeno “eu” sofredor (ressentido, desprezado, criticado, culpado...). A partir do melhor em nós, acolhemos e compreendemos esse mal-estar, ao mesmo tempo que a ele expressamos nossa compreensão e acolhida; nós nos humanizamos à medida que temos a coragem de descer ao encontro dos nossos “egos” e não permitimos que eles determinem nossa vida. Cada vez que nos reduzimos ao “ego”, bloqueamos o fluir da vida, e apenas sobrevivemos na superficialidade de nós mesmos.
É aqui que se situa a afirmação de Jesus que fecha, como chave de ouro, toda a cena do evangelho de hoje: “Quem quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me”. É um ponto chave do ensinamento de Jesus, ou seja, o convite a entrar na lógica do dom, do descentramento do eu, da entrega gratuita, da superação da mera reciprocidade.
É a lógica aberta pelo Reinado de Deus, que alarga o horizonte da vida humana, enriquece as possibilida-des de atuação e aumenta a criatividade no serviço. A lógica do dom implica deixar-se conduzir por Deus, conhecido através de Jesus, que é entrega de vida, misericórdia, perdão, amor infinito.
Uma consideração superficial destas palavras de Jesus deu margem a uma apresentação do cristianismo como a religião que enfatizava a dor, a renúncia e a negação da própria vida e da própria identidade. Mas Jesus não buscava a dor e nem negava a vida. Suas palavras não são uma exaltação do sofrimento, mas expressam uma grande sabedoria: elas buscam “despertar” a pessoa para sua verdadeira identidade, para que assim ela possa assumir uma atitude acertada diante da vida.
O horizonte de toda pessoa é precisamente a vida e a plenitude. Isso é o que todos, sabendo ou não, buscamos. E buscamos isso em tudo o que fazemos e em tudo o que deixamos de fazer. Como acertar?
Jesus oferece uma resposta carregada de sabedoria, na linha daquela que foi dada por todos os mestres e mestras espirituais: para caminhar na direção da vida, é necessário “desapegar-se” do ego.
“Renunciar a si mesmo” ou “negar-se a si mesmo” é não se reduzir ao eu superficial ou ego. Só quando nos desapegamos do ego, tomamos consciência de nossa identidade mais profunda, a vida que somos. Essa é a Vida de que fala o Evangelho, a mesma Vida que Jesus vivia, com a qual Ele estava identificado (“Eu sou a Vida”) e que buscava despertar em nós.
“Renunciar a si mesmo”: não se trata de negar o que somos, mas o que pretendemos ser e não somos.
No mais profundo de cada um de nós habita uma pretensão básica de querer “ser deus” – “sereis como deuses”. É o pecado de raiz já dos nossos primeiros pais. É a tentação de querer ser outro, de não aceitar ser dependente, de não se aceitar como criatura, como humano (frágil e limitado)...
“Renunciar a si mesmo” é não deixar que o impulso para a vaidade, a soberba, o poder... predomine; não deixar que o centro seja o “eu”, mas Deus. Isso implica em “descer”, humildemente, ao próprio húmus.
Se não venço essa pretensão de “bastar-me a mim mesmo”, não posso seguir Jesus Cristo.
O seguimento de Jesus implica, pois, um descentramento, um esvaziamento do “nosso próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Para poder viver o Evangelho de uma maneira inspirada, deveríamos deixar ressoar profundamente em nós essa expressão tão forte de Jesus: “negar-se a si mesmo” para poder viver com mais plenitude e transparência.
“A negação de si” enquanto negação do que nega a vida. “Negar-se a si mesmo” é deixar de se identificar com a tirania das mensagens de nossos pequenos “egos”, que se refletem em nossa própria linguagem e auto-imagem. “Negar-se a si mesmo” é um conselho sábio: significa negar o que na realidade “não é”, despertar-se da ilusão e do engano, deixar de girar em torno de um suposto “eu” que não existe, para viver a comunhão com todos e com tudo e agir assim de um modo mais coerente.
Não somos os pequenos “egos” que acreditamos ser. Precisamos despertar dessa ilusão e entrar em contato com nosso verdadeiro Eu, nosso Ser e, a partir dele, olhar a vida, olhar nossa atividade e olhar os outros, a fim de viver em sintonia com quem somos em profundidade. É esse o modo de “ganhar a vida”.
Precisamos des-velar (tirar o véu) de nossos “pequenos eus”, detectar e reconhecer seus dinamismos sombrios e atrofiadores, para podermos caminhar, com mais naturalidade e leveza, para além de nós mesmos. Do contrário, eles travarão nossa vida de uma maneira tirânica.
É saudável reconhecer esses “eus” e dialogar com eles, pois de outra forma eles se fixarão em nós como rigidez ou nos transformarão em fanáticos. Rigidez e fanatismo, dureza e intolerância, legalismo e moralismo... indicam a existência de “eus” inflados que atrofiam nossa existência.
Por isso “renunciar-se a si mesmo” não é mutilar-se, nem buscar sacrifícios, nem anular-se..., mas é descer até “o dinamismo de vida” (a força germinadora) que pulsa no próprio coração, ansioso de plenitude, de vida e de amor.
A afirmação de Jesus, portanto, nos faz descobrir que por detrás do “renunciar-se a si mesmo” pulsa o desejo de desprender-se do “ego desumano” para poder expandir a vida em direção a uma ousada criatividade.
Texto bíblico: Mc. 8,27-35
Na oração: Orar é aproximar-me da “verdade que me faz livre”; livre para ser “eu mesmo”, chegar a ser aquilo a que sou chamado a ser.
Por isso a oração cristã é também descoberta do “eu”, da minha própria realidade pessoal, do mistério que a habita. É nessa experiência divina que “descubro-me a mim mesmo”. Começo, então a descobrir o meu ser (único, original, sagrado...) quando “mergulho” no misterioso relacionamento com Deus e quando permito que o “mistério experimentado” se torne fonte de minha identidade.
Mais ainda, saberei melhor QUEM sou eu, esquecendo-me de mim mesmo, aceitando perder-me, deixando que o Amor me liberte de meu pequeno ego.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Abre-te! Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou...” Mc 7,35)
O Evangelho de hoje nos diz que os pagãos também foram destinatários da presença inspiradora e salvadora de Jesus: Ele saiu da região de Tiro, passou por Sidônia até o mar da Galiléia e atravessou os limites da Decápole. É uma das pouquíssimas vezes que vemos Jesus fora de seu país, na região dos pagãos, em meio às pessoas de outra religião.
Com efeito, vemos, em primeiro lugar, como Jesus não está entre os pagãos com uma atitude “apóstólica”, não o vemos preocupado em catequizá-los, nem fazer proselitismo religioso: não procura converter ninguém à sua religião, à fé israelita no Deus de Abraão. E tampouco faz discursos religiosos, nem o vemos proclamando uma doutrina, ensinando e divulgando as santas máximas de sua mensagem. Simplesmente “cura”. Em outras palavras: “faz o bem”, não fala sobre o bem; realiza atos, não ditos.
Não podemos dizer que Jesus passou pelo território pagão com indiferença, ou com os olhos fechados, pois ali também ele se encontrou com uma humanidade sofrida e excluída. Por isso, trouxeram-lhe um surdo-mudo e lhe pediram que lhe impusesse as mãos sobre ele.
O texto faz referência a um percurso corporal: de Jesus são nomeados as mãos, os dedos, a saliva, os olhos e a respiração; do surdo-mudo, os ouvidos e a língua. No começo do relato o surdo-mudo aparece fechado em seu silêncio e em sua solidão, levado diante de Jesus por outros e logo afastado deles pelo mesmo Jesus. Dir-se-ia que não só está atado e travado por seu problema de comunicação, mas também impedido para tomar iniciativas e decisões livres.
O contato com Jesus, em intensa proximidade corporal, e a força de seu imperativo “abre-te”, soltam-lhe todas suas ataduras e lhe permitem de novo pronunciar sua própria palavra. Como por um efeito contagioso, todos os presentes se põem a proclamar o ocorrido e escutamos seu rumor admirado, como um eco das palavras de Deus na criação: “Ele tem feito bem todas as coisas”.
“Abre-te”: esta é a única palavra que Jesus pronuncia em todo o relato. Expressão que desata as palavras emudecidas no interior daquele homem; expressão que desbloqueia a voz e os ouvidos, ou seja, restaura nele a capacidade da comunicação, de escutar e responder. Por isso, esse imperativo não está dirigido somente aos ouvidos do surdo mas ao seu coração.
Jesus, com sua presença terapêutica, destrava interioridades. Ele assumiu uma estratégia terapêutica de “inclusão”. Ao curar fisicamente uma pessoa, Jesus busca fazer emergir um ser humano mais sadio e inteiro, a partir de suas raízes, a partir de seu coração, centro e fonte das decisões. Jesus se compromete com a saúde radical e integral do ser humano, e devolve às pessoas a saúde de seu corpo, de suas emoções, projetos, relações e abertura ao outro.
Poderíamos dizer que Jesus ativa no surdo-mudo a dom de “empalavrar”, ou seja, “pôr em palavras” tudo o que estava oculto em seu interior. Sabemos que a palavra abarca todas as expressividades humanas; mas ela não se reduz à oralidade: a gestualidade, a linguagem corporal, a expressão dos sentimentos, as atitudes éticas... tudo isso também faz parte da palavra humana. As palavras são, ao mesmo tempo, pensamento, sentimento, ação... São humanizadoras, por excelência.
A cura do surdo-mudo nos convida a deixar que Jesus continue realizando com cada um de nós seu gesto criador, como fez Deus na primeira manhã da criação, modelando com suas mãos e insuflando seu alento, curando nossa surdez e gaguejamento.
A mesma palavra dirigida ao surdo-mudo “Abre-te”, pode ressoar hoje em nossos ouvidos e em nosso coração, convidando-nos a destravar dimensões importantes de nossa vida, para assim podermos continuar realizando pequenos gestos criadores e oferecendo sinais de vida, também entre aqueles que não compartilham nossa fé.
O quê precisa ser desbloqueado em nossa vida? Talvez alguma capacidade adormecida, ou algum recurso interior que permanece latente; talvez um novo sonho ou projeto, uma abertura para crescer em comunicação com os outros, uma “palavra” diferente que expresse o sentido de nossa existência...
O contexto pós-moderno no qual vivemos nos motiva a considerar a importância e o sentido da “palavra”, a prestar atenção ao seu dinamismo e à sua força expressiva e criativa. Sem dúvida, em nosso momento atual, a palavra cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Banalizamos as palavras, adocicamo-las, manipulamo-las ou as submetemos a um violento esvaziamento de significados, segundo nossa conveniência.
Portanto, “cuidar a palavra é cuidar o mais específico do ser humano, enquanto que é através dela como se expressa nosso mistério” (Melloni, sj). É preciso novamente dar oportunidade às palavras, pois viver é a arte de saber lidar com as palavras.
Cada palavra tem seu impacto interior, algumas evocam e fazem presentes não só as ressonâncias imediatas, senão que nos conduzem às profundas e estremecedoras experiências. Temos a nobre tarefa de aproximar a palavra à experiência, para resgatá-la da insignificância, do anonimato, fazê-la inédita, consciente e poder assim confrontá-la com a Palavra que, feito carne, entrou em nossa experiência histórica.
"Mas você sabe que a pessoa pode encalhar numa palavra e perder anos de vida?" (Clarice Lispector).
De fato, na cena do evangelho de hoje, Jesus desencalha palavras e mobiliza o homem para ir desfrutando palavras novas, inspiradoras, que rompem a sua solidão e expandem a sua vida em direção aos outros e em direção ao grande Outro.
“Em algumas narrativas, certos vocábulos abrem grutas, cofres e corações. Sim, algumas palavras ajudam o barco a flutuar: “esperança”, “amanhã”, “utopia”. Pode-se também passar uma estação com algumas delas, como se pode passar uma temporada num determinado lugar, num certo corpo, num certo amor. Certas palavras são como hotéis: nelas fazemos pernoite, mas outras demandam moradia maior, são grutas ou catedrais que exigem contemplação” (Affonso Romano de Santana).
As palavras são feitas à nossa medida e adquirem vida quando as pronunciamos, convertendo-se assim em um prolongamento de nós mesmos, de nossos sentimentos e de nossos valores. As palavras são o reflexo de nosso viver e sentir, de nossas misérias e grandezas; são a “alma” de quem as pronuncia ou as escreve. Com elas não estamos sozinhos; com elas podemos transcender nossa pobre realidade.
As palavras se desgastam quando nos afastamos do contato originário com a realidade, quando nos distanciamos dos acontecimentos que nos alcançam, quando renunciamos a sentir e saborear as coisas internamente, quando não nos deixamos afetar pelos matizes quase infinitos da dor de nosso próximo. Por isso é importante progredir no caminho do silêncio, no qual nos educamos na escuta autêntica do nosso coração, que é a única capaz de fazer emergir palavras carregadas de vida e de sentido.
E como já disse alguém “as palavras são caminhos para encontrar as coisas perdidas”.
Texto bíblico: Mc 7,31-37
Na oração: nas profundezas do silêncio de seu coração e sob a ação do Espírito, “escave” palavras inspiradas que serão portadoras de vida junto àqueles que lhe são mais próximos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos”
Era uma vez um mosteiro no qual se respeitava escrupulosamente o silêncio. Mas cada dia, justamente às seis horas da tarde, quando os monges iniciavam a oração das Vésperas, aparecia um gato pela porta da igreja, miando fortemente.
Diante da insistência e intensidade dos miados, o abade tomou uma decisão: pediu a um irmão que, das seis às sete da tarde, amarrasse o gato em uma pilastra que havia na entrada do mosteiro, longe da capela onde eles rezavam. E assim fazia o irmão, todas as tardes.
O tempo passou. O abade faleceu e veio substituir-lhe um monge de outro convento distante, que logo percebeu o que cada tarde se fazia com o gato. E pediu para continuar a repetir o mesmo rito. Meses depois faleceu o gato. Imediatamente, o novo abade chamou o irmão e lhe disse: “Compre outro gato o quanto antes para amarrá-lo, cada tarde, das seis às sete horas, na coluna da entrada da igreja”.
Este antigo conto mostra uma tendência bastante habitual no comportamento humano. Começamos fazendo algo porque nos parece útil, mas logo absolutizamos essa ação, convertendo-a em um rito ao qual atribuímos valor por si mesmo, à margem de sua utilidade. Quando isso acontece, dá a impressão que o único motivo que nos leva a manter uma ação ou um comportamento é que “sempre se fez assim”. Se, além disso, a esse comportamento lhe é atribuído um caráter “religioso”, acrescenta-se outra razão poderosa para perpetuá-lo. E se, finalmente, a “autoridade religiosa” atribui a si o poder de controlá-lo e de vigiar seu cumprimento, temos todos os ingredientes tanto para o imobilismo como para situar a ação prescrita acima inclusive do valor e do bem da pessoa.
Tudo isto está presente na cena evangélica de hoje. A atuação de Jesus é perigosa, pois Ele ensina a viver com aquela liberdade surpreendente.. Convém corrigi-la. Os fariseus e doutores da lei vigiavam rigorosamente o cumprimento das normas rituais: lavar as mãos antes de comer, a maneira certa de lavar os copos, jarras e vasilhas de cobre...
Provavelmente, tais normas surgiram como uma medida de prevenção higiênica. O erro acontece quando se absolutiza e se acaba declarando “impuras” (religiosamente) às pessoas que não as cumprem. Desse modo, o que poderia ser uma prescrição saudável terminou se convertendo em uma arma de poder e em um pretexto gravemente discriminatório.
Pretextos desse tipo foram utilizados (e se utilizam) com frequência, na sociedade e na Igreja, para estigmatizar determinadas pessoas ou grupos. E a autoridade, religiosa ou civil, se converte em “polícia das consciências”, acusando, condenando ou inclusive eliminando aqueles que se afastam da norma prescrita. “Quem sou eu para julgá-los?” (Papa Francisco).
Será que Deus complica tanto nossa vida com o peso das normas, proibições, culpas...?
Mais uma vez, frente às armadilhas da religião, a atitude de Jesus é claríssima. Custa-nos entender como há pessoas que professam ser suas seguidoras e continuam absolutizando normas, ritos, crenças..., acima do bem das pessoas, às quais não duvidam em anatematizar e desqualificar do modo mais veemente. No entanto, o culto que agrada a Deus nasce do coração, da adesão interior, desse nosso centro íntimo de onde nascem nossas decisões e projetos.
Em toda religião há tradições que são “humanas”: normas, costumes, ritos, devoções... que nasceram para ajudar a viver a experiência religiosa em uma determinada cultura. Podem fazer bem; mas podem causar muito dano quando nos dispersam e nos afastam da Palavra de Deus. Elas nunca devem ter a primazia.
Não podemos esquecer nunca do que é essencial.
Neste sentido, Jesus foi um “transgressor” porque sua missão estava centrada em “destravar” a vida das pessoas pelo peso das tradições e ritos religiosos. Suas palavras, tomadas de Isaías, apontam diretamente para o coração: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos”.
Tais palavras teriam que se converter, para o seguidor de Jesus, em um questionamento sempre atual. Onde creio encontrar Deus? Nas normas, nos ritos, nas crenças... ou no coração e na vida? Sem dúvida, o comportamento pessoal será radicalmente diferente se identificamos a Deus com nossas crenças e ritos ou se o experimentamos no mais profundo de nosso ser e no serviço em favor da vida. No primeiro caso, haverá fanatismo-legalismo-moralismo; no segundo, respeito-amor-compaixão-serviço.
O decisivo é o “lugar” onde vivemos a experiência de encontro com Deus. É verdade que o próprio Jesus nos advertiu que Ele não veio a este mundo para “suprimir” a Lei e os Profetas, ou para acabar com a “religião”, mas para transformar qualitativamente, para “levar à plenitude” a antiga religião (Mt 5,17).
Em outras palavras, o que Jesus deixou claro, com sua forma de viver e com seus ensinamentos, é que o centro da religião não está nem no templo, nem nos rituais, nem no sagrado, nem na submissão às normas religiosas, nem nos dogmas e suas teologias, mas que está na práxis, numa ética, num projeto de vida, numa forma de viver, que se centra e se concentra na bondade para com todos de maneira igual, no amor sem limitações nem condicionamentos, no serviço gratuito e generoso. Isso se traduz e se realiza no respeito à vida humana, na defesa da vida, da dignidade e dos direitos de todos.
Isto quer dizer que Jesus deslocou a religião, tirando-a do templo, dos sacerdotes e seus hierarcas, separando-a dos ritos, antepondo-a ao sagrado. E a colocou no centro da vida. Mais ainda, a ampliou e a estendeu à vida inteira, não reduzindo-a a determinados momentos da vida, a espaços separados, a gestos privilegiados, a objetos e personagens com quem é preciso manter uma relação de abaixamento e submissão. É assim como Jesus revela e expressa a “humanização de Deus”.
Seu modo livre de ser e viver nos revela “a humanidade de Deus”.
Texto bíblico: Mc 7,1-8.14-15.21-23
Na oração: sua vivência cristã está mais centrada no cumprimento de normas, ritos, leis... ou no serviço e cuidado para com os outros? Seu “culto” a Deus é expressão de um compromisso ou um rito vazio, assumido por imposição e medo?
Sua experiência de encontro com Deus só se dá nos momentos de celebração ou no ritmo da vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?” (Jo 6,60)
“Pai, dê-me uma palavra!” Invocação desconcertante e de grande simplicidade que parecia romper o austero silêncio dos desertos do Egito, Palestina, Síria, Pérsia, nos inícios do séc. IV da era cristã.
Visitantes ocasionais ou irmãos inexperientes na fé, movidos não por uma simples curiosidade mas desejosos de dar nova orientação às suas vidas, costumavam dirigir-se a um “ancião do deserto” para pedir-lhe um ensinamento que, nascido de sua experiência de vida no Espírito, pudesse se tornar de valiosa ajuda na senda das pegadas do Senhor; uma palavra para a vida que, exigida pela experiência cotidiana, pudesse dotá-la de um sentido; uma palavra proveniente do exterior mas meditada e acolhida no coração, para que pudesse se tornar semente de uma vida reconstruída e expansiva; uma “palavra de vida” capaz de ecoar até nas camadas mais profundas do próprio ser, mobilizando o ouvinte a uma existência mais identificada com o seguimento de Jesus Cristo.
Em todos nós habita a pretensão de deixar uma “marca” e permanecer de alguma maneira na memória dos outros, e aqueles que nos cercam podem desejar também receber uma palavra nossa, agora que a experiência de vida nos capacitou para oferecê-la. Qual será então essa palavra ou palavras que desejaríamos dizer? Por que demorar mais no momento de elegê-las, de acariciá-las internamente, de preparar o modo de dizê-las e de chegar a pronunciá-las, mais com atitudes e gestos que com os lábios?
Podemos evocar os nomes de homens e mulheres de Deus (pais e mães, educadores, fundadores de congregações...) e detectar neles quais foram as palavras de vida que pronunciaram em sua maturidade de vida, o legado que deixaram, o testemunho que passaram às seguintes gerações. Aqueles que conviveram com eles(elas) certamente perceberam o testemunho da bondade, da largueza de coração e a sabedoria que irradiavam.
O Evangelho de hoje(21º Dom TC) pode ser uma estupenda ocasião para esquecer velhas palavras desgastadas pelo uso, pronunciadas para afirmar nosso ego ou para conseguir aprovações alheias... e substitui-las por palavras essenciais, nascidas do espírito, que saem do coração e se dirigem ao coração dos outros, fazendo ressoar neles um eco da expressão proferida por Pedro: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna”.
Ele sente que as palavras de Jesus não são palavras vazias nem enganosas. Junto a Jesus descobriram a vida de outra maneira. Sua mensagem lhes abriu à vida eterna. Com quê poderiam substituir o Evangelho de Jesus? Onde poderiam encontrar uma Notícia melhor de Deus?
Pela primeira vez Jesus experimenta que suas palavras não tem a força desejada. No entanto, não as retira senão que reafirma mais ainda: "As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não creem” (Jo 6,63). Suas palavras parecem duras mas transmitem vida, fazem viver pois contém Espírito de Deus.
Jesus não perde a paz; o fracasso não lhe inquieta. Dirigindo-se aos Doze, lhes faz a pergunta decisiva: “Vós também vos quereis ir embora?”. Não os quer reter pela força; deixa-lhes a liberdade de decidir. Seus discípulos não devem ser servos mas amigos. Se quiserem, podem voltar às suas casas.
As palavras tem um peso no anúncio e na atividade missionária de Jesus; não são neutras. Como um raio x que transpassa, as palavras proferidas por Ele iluminam os recantos mais profundos do ser humano; como um refletor em noite escura, ela reacende a esperança onde tudo já perdeu o sentido; como a chuva em terra seca, ela desperta novidades na vida, sacode as consciências adormecidas, põe em questão as atitudes de indiferença e de fechamento...
No encontro com a realidade dos pobres e excluídos, Jesus extrai palavras provocativas, previamente cinzeladas e incorporadas no seu interior, onde elas revelam dinamismo, sentido e alteridade; sua palavra brota de uma vida interior fecunda e conduz a uma vida comprometida.
A palavra de Jesus desencadeia nos ouvintes uma crise: eles têm de se decidir porque com a palavra d’Ele se dá uma divisão entre luz e trevas, vida e morte... Jesus pronunciou uma palavra que tinha peso e que colocava em crise a situação social, religiosa, política e humana da época. A crise que Jesus provoca em seus seguidores com o discurso do “Pão da vida”, arranca-os de seu horizonte limitado e estreito para elevá-los a um horizonte amplo, próprio de Deus. Suas palavras jamais deixam as coisas como estão. Elas não se limitam a transmitir uma mensagem; elas tem uma força operativa, desencadeiam um movimento, provocam uma mudança...
O mundo está repleto de “papos” vazios, confissões fáceis, palavras ocas, cumprimentos sem sentido, louvores desbotados e confidências tediosas, palavras enfeitadas e vazias, sem alma, nem paixão. Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a uma civilização que teme o silêncio (há demasiado ruído em nós e em torno a nós). Fala-se muito para dizer bem pouco. Às vezes temos a sensação de que as palavras nos saturam: nas aulas, na televisão, nos jornais, nas liturgias, na Internet... há demasiado palavrório. Carecemos de poesia.
Sem dúvida, em nossa sociedade pós-moderna, a palavra cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Atrofiamos as palavras, adocicamo-las, manipulamo-las ou as submetemos a um violento esvaziamento de significados segundo nossa conveniência.
Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial.
Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram nossa vida.
As palavras perdem força e criatividade quando não nascem do silêncio. Quem sabe articular silêncio e palavra é um verdadeiro artífice da vida.
Texto bíblico: Jo 6, 60-69
Na oração: diante de Deus, fazer o seguinte exercício: imaginar que vão ser apagadas todas as palavras de nosso vocabulário, exceto três que é preciso escolher para expressar-se e andar pela vida. Tem que ser palavras essenciais para cada um, e que é preciso elegê-las com calma, sem forçar nada, experimentando uma depois de outra até encontrar aquelas que melhor expressarão a própria experiência pessoal, de fé, de relação...
Observar como se sente ao pronunciá-las diante das pessoas com as quais vai se encontrando e imaginar o que lhe diria Jesus se você as dissesse a Ele.
Cave palavras nas minas do seu silêncio, e deixe que o Espírito diga a “palavra” misteriosa, diferente, reveladora de sua verdadeira identidade. Somente o silêncio poderá gerar “palavras de vida”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Maria levantou-se e dirigiu-se apressadamente...”
Quando Deus entra e atua na história das pessoas, move-as para irem “apressadamente” ao encontro dos outros, para serví-los nas suas necessidades, para comunicar a alegria pela salvação recebida, e para alegrar-se com os outros pelas graças que elas receberam.
Com a expressão “apressadamente” Lucas quer sublinhar a atitude interior de fé e de prontidão de Maria.
Sua “pressa” não nasce da ansiedade que não encontra repouso nem pode descansar no presente, mas é a expressão de mobilidade e de um amor serviçal que busca ser eficaz.
Sua “pressa” está dinamizada pelo fervor interior, pela alegria e, sobretudo, pela fé. Quem foi “agraciada” por Deus não fica só contemplando as maravilhas que Deus realizou nela, mas sai para proclamá-las. Quem tem consigo o Sal-vador não o pode guardar só para si.
Maria foi “assunta ao céu” porque “levantou-se apressadamente” em direção ao serviço; ela foi “assunta” porque assumiu tudo o que é humano, porque “desceu” e se comprometeu com a história dos pequenos e marginalizados. Por isso, Deus a engrandeceu plenamente.
Realiza-se em Maria a situação final prometi-da a toda humanidade: “ser um dia de Deus e para Deus”; Maria o é desde o início (imacu-lada) até o final (assunção), através de uma fidelidade servidora de toda sua vida.
Em Maria resplandece o projeto divino sobre a criatura humana: a dignidade do ser humano aparece plenamente iluminada neste destino supremo já realizado na Virgem Maria. Ela deixou-se envolver pelo Espírito – assumida e transformada – no seio da Trindade Vida.
A Assunção não é um privilégio excepcional de Maria, mas a imagem de nosso próprio destino. Crer na Assunção alimenta a esperança; por isso Maria é o ícone da esperança. Como disse Pio XII ao proclamar o dogma da Assunção: “o essencial da mensagem é reavivar a espe-rança na própria ressurreição”, ou seja, em sermos assumidos inteiramente no seio do Mistério original de toda vida. Por isso, a festa da Assunção é nossa festa, pois fala de uma fidelidade duradoura, de um além que se faz sempre mais próximo e presente, de uma vida ainda a caminho da plenitude; enfim, ante-cipação do destino último de nossa vida.
Nesse sentido, o cântico de Maria é um resumo de todas as esperanças de Israel e, ao mesmo tempo, uma expressão condensada da fé, da esperança e do amor da Igreja, o novo Povo de Deus.
Maria canta agora a realização das esperas e das esperanças, cantadas nas horas de júbilo e nas horas de pranto, pelo povo de Israel. A esperança se realiza no encontro, que impele a sair, a caminhar, a ir ao encontro, narrar aos outros o fogo que se acendeu por dentro. As promessas do Magnificat não são uma utopia nebulosa. Elas estão fundamentadas na esperança-certeza da fidelidade amorosa de Deus.
A esperança é caminho e meta, posse e dom, destino e encontro, antecipação e cumprimento, expectativa e busca, risco e certeza, ousadia e liberdade. A esperança é brasa, é pés; o ser humano-esperança é o peregrino que caminha, é o artífice que tece o seu próprio existir.
“O coração do cristão é inquieto, está sempre em busca, em espera: esta é a esperança...
porque a esperança é aquela que faz caminhar, faz abrir estradas...” (Massimo Cacciari)
O ser humano que espera não tem certeza, não fica seguro, não está satisfeito. Mas a esperança tem fun-damento; não é uma ilusão e nem uma utopia; não é um sonho impossível e nem uma lembrança irre-cuperável; não é só futuro, mas permanece, disfarçadamente, presente; não é uma morada, mas um senti-mento sempre inédito. Não há esperança na solidão das próprias seguranças e das próprias expectativas.
Poderíamos acrescentar que uma humanidade, incapaz de cultivar a esperança, não merece ser olhada, porque lhe faltaria a única razão pela qual vale a pena existir. Sem a esperança, a humanidade perde a iniciativa. Embota-se. A esperança é o canto que desperta coragem frente os corredores escuros da história.
A vida sem desafios não é real; mas a vida sem espera, sem desejo, sem paixão, sem esperança, não é vida.
A esperança mora onde a deixamos entrar: onde lutamos, onde convivemos com o outro diferente de nós, onde a fragilidade e a transição podem desorientar, onde as trevas parecem mais fortes que a luz, onde a vida parece ser ameaçada pela morte, onde a violência pensa levar vantagem, onde o caminho é íngreme, onde a espera se confunde com a angústia...
Mas não basta ter esperança. É preciso ser esperança. O ser humano vive de esperança, acredita na espe-rança, mas, sobretudo é esperança. A esperança leva a querer algo mais. É “antecipação criadora”; ela tem “rosto novo”. É madrugada e não crepúsculo. Jamais “envelhece”. É o futuro que ainda pode ser con-vertido em história nova.
É Assunção: vida plena antecipada. Celebrar o mistério da Assunção de Maria é também um convite a viver nessa dinâmica do compromisso e não da resignação, da esperança solidária e não da “espera passiva”.
Este mistério celebrado por toda a Igreja é um mistério profundamente enraizado no coração do ser humano, que quer viver sempre, permanecer, ser imortal. Por isso somos convidados a continuar nesse “deslocamento” contínuo a serviço da vida. Assunção é missão.
Texto bíblico: Lc. 1,39-56
Na oração: Quem ocupa o centro da cena, do começo ao fim, é a figura de Maria. Nela devem concentrar-se, portanto, nosso “olhar, escutar, observar”.
Nenhum outro texto nos revela de maneira tão densa e tão profunda a vida interior de Maria, os pensamentos e os sentimentos que invadem sua alma, a consciência de sua missão, sua fé e sua esperança, sua experiência de Deus, enfim.
Contra uma concepção cada vez mais “econômica” do mundo, contra o triunfo do possuir, do ter, da escravidão das coisas, o Magnificat exalta a alegria do partilhar, do perder para encontrar, do acolher, do admirar, da felicidade da gratuidade, da contemplação, da doação.
O ser humano, e todo o seu ser, transforma-se então em louvor de Deus. O Magnificat, é o canto das escolhas caprichosas de Deus, que tem um“fraco” pelos pobres, por todos os infelizes e os oprimidos; poder e riqueza não gozam de nenhum prestígio aos seus olhos.
* Rezar as “marcas salvíficas” de Deus na própria história pessoal. Não podemos esquecer o que Deus fez ao longo da história da salvação e o que fez particularmente por nós na história de nossa vida.
* Quê esperanças carrego em meu interior?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente” (Jo 6,51)
Com esta afirmação lapidar, Jesus está se manifestando como o Enviado de Deus; mas não usa como sinal o legado poderoso, os atributos régios, os resplendores, as armas, os tronos, as vestes nobres: usa como sinal o pão, ou seja, vida que se desfaz em favor dos outros. Vida expansiva para que outros vivam.
Jesus compreendeu-se a si mesmo no pão, compreendeu-se no vinho, ou seja, ser para os outros alimento e alegria. Grãos e espigas moídos para alimentar; uvas pisadas para expelir o saboroso vinho. Jesus é reconhecido no pão que “desce” e desaparece nos outros, dissolvendo-se no mais íntimo de cada um, despertando alento, dando calor, força e sentido a partir de dentro.
Jesus Cristo, ao fazer-se pão, acolheu tudo quanto é humano e desta maneira tudo redimiu. Em sua humanidade, Ele alimentou e saciou nossas carências mais profundas; ao mesmo tempo, ativou e despertou outras grandes “fomes”: comunhão, compaixão, solidariedade...
Com estas duas palavras, “descer” e “subir”, o Evangelho de João descreve o mistérioda Redenção realizada por Jesus Cristo. Se com Jesus quisermos subir ao Pai, temos primeiro que descer com Ele à terra, afundar os pés na nossa própria condição humana.
Todo aquele que pensa que para aproximar-se de Deus tem que se afastar do humano, deforma a própria imagem de Deus, que em Jesus “desce”, faz-se pão para alimentar e humanizar a todos. O caminho para aproximar-se de Deus é o caminho que Deus fez para aproximar-se do ser humano: “humanizar-se”. Não há outro caminho. Esse caminho nos dá medo, porque nossos instintos de “eudeusamento” são mais fortes que a simplicidade própria do humano. E a humanidade de Jesus nos assusta porque des-vela tudo o que há de mais desumano em nós e nas nossas relações.
Nós “subimos” a Deus quando “descemos” à nossa humanidade. Este é o caminho da liberdade, este é o caminho do amor e da humildade, da mansidão e da misericórdia; é o caminho de Jesus também para nós.
O coração, a quem não é estranho nada do que é “humano”, alarga-se, enche-se do amor de Deus, que transforma todo o humano. O caminho da humildade é o caminho da transformação.
Ao fazer, junto com Jesus Cristo, o caminho da “descida”, o ser humano vai ao encontro de sua realidade e coloca-se diante de Deus para que Ele transforme em amor tudo quanto existe nele, para que ele seja totalmente perpassado pelo Espírito de Deus.
“Descer” e “subir”, portanto, são imagens para descrever o processo de transformação realizado por Jesus no interior de cada um de nós. Não podemos “subir” se não estivermos dispostos a “descer” com Ele ao nosso “húmus”, às nossas sombras, à condição terrena, ao inconsciente, à nossa fraqueza humana.
Jesus curava e ensinava, alimentava (partilhava os pães) e anunciava a chegada do Reino (paz plena, vida partilhada), fazendo-se “alimento” para os outros. Esta é a verdade, a revelação emocionante, a grande novidade deste evangelho de João, que recolhe o que há de mais profundo da mensagem e da vida de Jesus: para dar alimento é preciso fazer-se alimento.
Jesus não só ensina e dá o alimento, mas Ele mesmo “desce” e se converte em alimento. Esta é a sua novidade “teológica”, sua novidade humana, a verdade mais profunda da Eucaristia: compartilhando o pão de Jesus (em memoria de sua vida e de sua morte), seus discípulos descobrem que Jesus mesmo é alimento e que eles devem se fazer alimento uns para os outros.
Jesus Homem se faz “pão”, humanidade convertida em alimento para os outros. A Vida Eterna não se revela num gesto de pura interioridade, mas no encontro e comunhão de uns com outros... Quem crê nos demais, quem compartilha com eles a vida (fazendo-se eucaristia) tem a vida eterna, porque Deus é Comunhão de Vida e porque Jesus é a revelação mais alta desse Deus entre nós.
Nesse contexto é preciso dizer que o verdadeiro alimento é a vida mesma do ser humano: Jesus se fez alimento para os outros, saciou a fome de justiça e amor. Ele é o alimento que gera vida nova no mundo, vida oferecida e compartilhada. Um alimento “subversivo” porque subverte a tradicional “ordem” das coisas. “Eu sou o pão da vida”. Antes de partir o pão, Jesus parte-se a si mesmo, faz-se alimento. Toda sua vida foi entrega. Sua vida inteira dá significado ao partir, compartilhar e repartir o pão da vida.
Porque Jesus é “pão descido do céu” e porque compartilhamos sua vida, também nós podemos e devemos “descer” e sermos comunhão de vida. Neste sentido, todos somos pão de Eucaristia. Cada ser humano é “pão vivo, descido do céu” para outro ser humano; cada homem, cada mulher é revelação de Deus, pão de vida eterna para os outros. Por viver neste nível, por entregar-se e compartilhar a vida neste plano, os homens e mulheres “não morrem”, tem vida eterna.
E é isso que, no nível mais profundo, somos todos. Todos somos Vida, todos somos “pão de vida”. Somos pão quando alimentamos o outro na esperança, no perdão, na acolhida, na compaixão, no compromisso... Sim, podemos multiplicar o pão da festa, da alegria, o pão da justiça, o pão da ajuda fraterna... Quanto pão para ser dividido! “Tornar-nos pão” significa “descer” em nossa própria condição humana para expandi-la em atitudes de serviço, partilha, solidariedade...
Ser “pão para a vida” é confessar que ser seguidor de Jesus é ser-para-os-demais, é comprometer-se a ser fermento de unidade, de amor, de paz, é consumir-se para que outros vivam. Se nossa participação no “pão da mesa” não colocar em questão nossos egoísmos, nossos preconceitos, nossas rivalidades, nossos complexos de superioridade..., não tem nada a ver com o que Jesus quis expressar com o “discurso do Pão da Vida”.
Aproximar-nos do Pão da Vida para sermos “pão de vida” constitui-se como o momento mais “subversivo” que podemos imaginar: fazemos memória do que Jesus foi durante sua vida (pão para os outros) e nos comprometemos a viver como Ele viveu (“fazer-se pão para os outros”).
Ao comer o pão e beber o vinho “fazendo memória”, estamos prolongando um “estilo de vida”, fundamentado no modo de viver de Jesus. O que quer dizer é que fazemos nossa Sua vida e nos comprometemos a nos identificar com o que foi e fez Jesus. Tomar o pão e o vinho da Eucaristia é fazer memória de uma presença que nos compromete.
Texto bíblico: Jo. 6,41-51
Na oração: Ser pão em Cristo: os ingredientes de minha massa. Ao “amassar” a minha vida para querer ser pão... de quê sou feito?
A farinha é o que dá consistência e firmeza ao pão, brindando-o com diferentes formas e estruturas. Minha farinha é aquilo sobre a qual me sustento. É essa voz, no mais íntimo de mim mesmo, que me confirma: “sou eu”. É tudo aquilo sobre a qual posso deter-me sabendo que se trata de terra firme onde colocar-me de pé e levantar-me. É minha palavra, aquela que me pronuncia. É feita de meus valores, minhas crenças, minhas certezas; é o que creio sobre Deus, sobre o mundo, sobre minha identidade; é aquilo que assumo como bandeira de minha existência, aquilo que me faz seguro, confiável, sólido; é aquilo que permanece, atravessando a passagem do tempo e o embate de diferentes tormentas em minha vida.
A farinha é também aquilo que creio sobre mim mesmo, minhas firmezas, minhas convicções: é a imagem que tenho de mim, através de minhas circunstâncias ricas e frágeis, e que constitui minha verdadeira identidade.
Rezar a “farinha” de minha existência.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna e que o Filho do homem vos dará” (Jo 6,27)
Com o evangelho de hoje iniciamos a reflexão sobre o Discurso do Pão da Vida, que se prolongará durante os próximos domingos. Depois da multiplicação dos pães, o povo foi atrás de Jesus; tinha visto o milagre, comeu com fartura e queria mais! Procurou o milagroso e não buscou o sinal e o apelo de Deus que nele se escondia.. Quando o povo encontrou Jesus em Cafarnaum, teve com ele uma longa conversa, chamada Discurso do Pão da Vida, um conjunto de sete pequenos diálogos que explicam o significado da multiplicação dos pães como símbolo do novo Êxodo e da Ceia Eucarística.
O povo viu o que aconteceu, mas não chegou a entendê-lo como um sinal de algo mais alto ou mais profundo. Buscou pão e vida mas parou na superfície: a fartura de comida. No entender do povo, Jesus fez o que Moisés tinha feito no passado: deu alimento farto para todos no deserto.
Indo atrás de Jesus, eles queriam que o passado se repetisse. Mas Jesus pede que o povo dê um passo adiante. Além do trabalho pelo pão que perece, deve trabalhar também pelo alimento não perecível. Este novo alimento será dado pelo Filho do Homem; Ele traz avida que dura para sempre. Ele abre para todos um novo horizonte sobre o sentido da vida e sobre Deus.
Com frequência, a existência humana parece uma corrida em busca daquilo que nos sacia de um modo definitivo. Nesta corrida, entram elementos que nos são familiares: necessidade, ansiedade, vazio, busca, insatisfação... Todos eles, à primeira vista, remetem à percepção de nós mesmos como seres carentes. Seria, pois, essa carência aquela que desencadearia todo o processo de busca.
De fato, o ser humano é um ser insaciável, insatisfeito... vive eternamente buscando, muitas vezes sem saber o quê. Em contato com o seu interior, sente a necessidade de preenchê-lo a qualquer preço; na maioria das vezes, preenche-o com “coisas”: busca de poder, posses, prestígio, pão que se perde... e sente-se frustrado, porque nada lhe satisfaz. Só o Pão vivo pode preencher seu interior.
- “Mas a fome de Deus que eu levo comigo não conhece descanso: ela é exigente! Então eu sigo...
Ela é tremenda e persistente! Então eu sigo... cada vez mais para frente!
Ela é constante e forte! Então eu sigo... Até à morte” (C. de M. Doherty).
Todo ser humano é aventureiro por essência; com ardor, ele anseia por uma causa última pela qual viver, um valor supremo que unifique a multiplicidade caótica de suas vivências e experiências, um projeto que mereça sua entrega radical. Para dar sentido à sua vida e realizar-se como pessoa, o ser humano necessita da auto-transcendência, isto é, viver para além de si mesmo, de seus impulsos, caprichos, desejos...
Carrega dentro de si a fome do infinito, a criatividade, a capacidade de romper fronteiras, os sonhos, a luz.
Portador de uma força que o arrasta para algo maior que ele... não se limita ao próprio mundo; traz uma aspiração profunda de ser pleno, de realização, de busca do “mais”...
Ele é desafiado a deixar a superfície banal e navegar águas profundas da sua própria existência.
A conversa de Jesus com o povo, com os judeus e com os discípulos é um diálogo bonito, mas exigente. Jesus procura abrir os olhos das pessoas para que aprendam a ler os acontecimentos e descubram neles o rumo que deve tomar na vida. Pois não basta ir atrás de sinais milagrosos que multiplicam o pão para saciar uma carência corporal. Não só de pão vive o ser humano.
O empenho em favor da vida sem uma mística não alcança a raiz.
Enquanto vai conversando com Jesus, as pessoas vão ficando cada vez mais contrariadas com as palavras dele. Mas Jesus não cede, nem muda as exigências. O discurso parece um funil. Na medida em que a conversa avança, é cada vez menos gente que sobra para ficar com Jesus. No fim só sobram os doze, e nem assim Jesus pode confiar em todos eles!
É quase sempre assim: quando o evangelho começa a exigir compromisso, muita gente se afasta.
Jesus, com sua presença e seus ensinamentos, desperta outras “fomes”: transcendência, novas relações, horizontes abertos, mundo da partilha...
O discurso do Pão da Vida desvela esta realidade: o ser humano é surpreendente, inesperado, impre-visível... é pulsação original, é interpelação inquietante; é existência peregrina, é uma mina de significados e riquezas. Ele é seduzido pela liberdade que lhe escancara horizontes novos e lhe abre mares desafiantes. Ele é “espaço à vida aberta”. Há nele algo maior que o leva a ser mais verdadeiro, mais justo, mais criativo, mais arrojado, mais responsável.
Ele é chamado a superar medos, a escolher rumo construtivo, a definir sua identidade pessoal e a optar por causas humanas que o fazem transcender.
O ser humano pode transcender-se, ir além de si mesmo... E transcender não significa fugir da própria realidade, mas mergulhar na própria condição humana; “transcender é humanizar-se”.
O impulso de “ir além” é talvez o desafio mais secreto e escondido no ser humano. Ele se recusa a aceitar a realidade na qual está mergulhado porque se sente maior do que tudo o que o cerca.
Com seu pensamento, desejo e sonho, ele habita as estrelas e rompe todos os espaços.
Numa palavra, o ser humano é um projeto infinito; tem sentido de transcendência, projeta-se em muitas direções. Ele tem fome e sede de amplos horizontes.
“Entrar” no caminho de Cristo é viver em “terra de andanças”.
O discurso de Jesus toca naquilo que é mais humano em nós: mundo dos desejos, dos sonhos, as grandes intuições... Tal apelo vem ao encontro deste dinamismo humano para potencializá-lo e abrir uma nova perspectiva: aquela centrada na pessoa e no projeto de Jesus Cristo.
Desejamos, com intensidade, com fome, com paixão, com alegria e júbilo... Somos capazes de desejar com a urgência das crianças, com a impertinência dos adolescentes, com a intensidade dos jovens, com a perspectiva dos adultos e com a sabedoria dos anciãos. Desejamos porque estamos vivos e porque somos capazes de imaginar e sonhar: mundos melhores, vidas melhores, relações melhores...
O desejo é também um dos pilares nos quais se sustenta a fé. Crer é desejar.
O desejo nos ajuda a elevar o olhar para além do imediato; podemos sair do cotidiano, do mais prosaico, e lançar a vista e o coração ao que é possível mas que ainda não está presente. Se caminharmos com olhar fixo somente no imediato, no hoje, no aqui e agora, então nos faltará perspectiva para dirigir nossos passos para algum lugar que valha a pena.
Os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de sua alma, sonhos de rara beleza. São desejos de convivialidade, de superação da dor e da solidão, sonhos de fraternidade e harmonia... Era certamente nessa direção que Jesus apontava ao falar do Pão da Vida, como o mundo das esperanças e possibilidades. “Um outro mundo é possível”.
É preciso forte dose de ousadia e coragem para transcender-se, ir além de si mesmo...
Texto bíblico: Jo 6,24-35
Na oração:
* deixe-se conduzir pela “fome e sede” de Deus que está enraizada em seu coração;
* faça o possível para estimular esta fome, entregando-se a ela;
* esteja certo de que esta “inquietação” tem sua resposta no Amor de Deus, presente na Criação;
* Quê desejas, pensando a longo prazo?
* A quê aspiras na vida e nas relações de hoje?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
Página 26 de 36