"Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!” (Mc 1,3)
Neste tempo de preparação para o Natal, aparece na liturgia cristã um personagem sumamente interessan-te e provocador: seu nome é João; “a terra se chama João”, escreveu Pablo Neruda. Ou seja, um nome universal; um nome que revela a identidade de um homem que rompe os esquemas estabelecidos; sua missão profética se dá no deserto, longe dos templos e da religião oficial. A partir da margem ele grita e este grito é o que melhor revela o espírito de Advento. Ele denuncia que nossos caminhos estão bloqueados e que as veredas da humanidade estão torcidas, impedindo que venha e se manifeste o Deus da justiça.
Uma frase de Fernando Pessoa poderia sintetizar o quão inspirador é este tempo do Advento:
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso cor-po, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.
Por isso, Advento é tempo propício para destravar nossa vida, colocando-a em movimento. É nesse contexto de uma realidade atrofiada, pessoal e social, que ressoa forte a voz de João: “preparai...”. Somos nós que devemos nos mobilizar, fazendo-nos Caminho de Humanidade, precursores de “Alguém” maior. Somos peregrinos que preparam o Caminho para o verdadeiro Enviado de Deus, para os homens e as mulheres da paz e da plenitude futura.
“Preparai” significa estar atentos para não permanecermos fechados em nossos pequenos reinos e abrir um espaço de esperança frente a um mundo que gira em torno a si mesmo. Se estamos apegados ao que temos e somos, jamais seremos capazes de “fazer estrada com Deus” e participar da preciosa vida que Ele nos oferece.
É preciso “endireitar-se”, ter um horizonte de vida, preencher nosso vazio de vida interior, “aplainar” e descer de nossas montanhas de orgulho e soberba... Vivemos instalados em certos costumes, estilos de vida medíocres…Vivemos no centro de uma humanidade torcida, retorcida e, no fundo, envenenada. Para endireita-la é preciso forçar, fazer que se quebrem e se rompam as resistências interiores, a fim de que tudo se aclare, se desvele.
Estamos decididos a percorrer os caminhos novos que a novidade de Deus nos apresenta? Ou nos entrincheiramos em estruturas caducas que perderam a capacidade de resposta? Caminhar é sair do centro, das seguranças, da acomodação... e ir em busca das surpresas, das novas descobertas; implica arriscar, ter ousadia, não ter medo de fazer a travessia para o outro lado. Somos passageiros, um Caminho aberto à vida de Deus que permanece, caminho que anuncia e prepara a Vida. Por isso precisamos, mais do que nunca, da figura do profeta; autênticos profetas que, sem medo e partindo de sua experiência de Deus, nos ajudem a encontrar o verdadeiro caminho; pessoas que por sua dedicação e experiência pessoal possam lançar alguma luz nesse emaranhado de caminhos que se entrecruzam e que a imensa maioria são sendas perdidas que não levam a lugar nenhum.
A humanidade deveria ser caminho de vida, jamais caminho de morte. Nunca foi oferecido ao ser humano tantos falsos caminhos de salvação como agora: caminho fechados, caminhos obstruídos que veda passos e impede a circulação da vida, caminhos que paralisam mobiliza-ções, caminhos que travam saltos históricos, caminhos que barram transformações sociais, caminhos embrutecidos que conduzem à crueldade e à violência, caminhos mortíferos que precipitam à morte. Nada mais desolador do que ser “inviável”, ficar “sem via”, ficar sem caminho, sem saída, sem futuro. Nada mais trágico do que perder o caminho.
“O ser humano é Terra que anda” (Atahualpa Yupanqui). O caminho está dentro de nós. Sem caminho nos sentimos perdidos, confusos, sem rumo, sem bússola e sem estrelas para orientar as noites de nossa existência. Somos peregrinos. A vida cristã é um movimento constante de passagem. Somos seres em trânsito, rumo ao novo. Itinerantes. Caminhar sempre. O próprio caminhar desvenda mais caminho.
Enquanto amadurecemos no caminho, importa colher e acolher o que o próprio caminho oferece. Expandir a esperança que ilumina a mente e o coração. Mais do que ser-de-caminho, o ser humano é ser-caminho: caminho da vida, caminho da verdade, caminho da justiça, caminho do coração, caminho do amor, caminho da ciência, caminho da ética, caminho da solidariedade. Cada pessoa tem a responsabilidade de ser caminho para os outros.
Caminho escancarado à passagem da humanidade peregrina. Caminho acolhedor; caminho aberto e solidário; caminho ecumênico; caminho plural; caminho sedutor. “Senhor, mostra-nos teus caminhos!”
Para o povo que peregrina no deserto, é essencial conhecer direções e entender ventos. E para o coração que peregrina no deserto da vida, é essencial conhecer os caminhos do Espírito e os ventos da Graça. De Deus viemos. Dele somos. Nele vivemos. Para Ele vamos. Peregrinos espertos em discernir rumos e encruzilhadas. Somos caravana que avança em êxodo continuado. Vida nômade, provisória.
Peregrinar sem morada permanente. Tenda ambulante, não casa sólida de pedra. Somos Pessoas de muitas tendas, de muitos acampamentos. Nada definitivo. Estado de itinerância evangélica, traço característico de Jesus e de todo seu seguidor. O mundo, nossa casa sem paredes.
Caminhar em direção a Quem é sempre maior, rumo ao destino prometido.
Somos todos peregrinos, mas os viajantes são diferentes. A estrada não é igual para todos. Vivemos uma caminhada que começa dentro de nós mesmos, nas estradas e trilhas do nosso eu profundo. Mas, ao mesmo tempo, é um caminho solidário: no caminho de cada pessoa estão presentes milhões e milhões de experiências de caminhos vividos e percorridos por incontáveis gerações. A missão de cada um é prolongar este caminho e vivê-lo tão intensamente que aprofunde o caminho recebido, endireite o caminho retorcido e ofereça aos futuros caminhantes um caminho enriquecido com suas pisadas.
Caminhamos juntos, acompanhados por Aquele que é o Caminho: “Emanuel, Deus conosco”.
Quem caminha quer ser mais. Seu horizonte é o seu sonho, o seu ideal. Aceita o desafio de caminhar com os pés no chão e o coração na eternidade.
Pioneiras são as pessoas que vão a lugares onde ninguém esteve antes: “gente de fronteira”.
“Temos fome e sede de estrada, e ela está ardendo por dentro”.
Caminhar é preciso. O seu caminho tem coração?
Texto bíblico: Mc 1,1-8
Na oração: rezar a bagagem de sua vida; imagine-se diante de sua mochila... onde colocou tudo o que você leva consigo, desde os anos de sua infância até agora (os dias felizes e menos felizes, as experiências plenificantes e as experiências frustrantes, tudo o que lhe pesa e lhe aborrece, o que você sente que o importuna, o que lhe pressiona e o abate, talvez alguma coisa que lhe parece insuportável...).
- Contemple as experiências bonitas e enriquecedoras em sua bagagem, as “coisas” que você guarda com carinho... Faça “memória” das maravilhas que o Senhor realizou em você, na estrada da vida. Reze... Louve... Agradeça...
- Diante do Senhor, pegue a sua mochila para sentir o seu peso... ofereça-a.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Para que não suceda que, vindo de repente, ele vos encontre dormindo” (Mc 13,36)
Estamos iniciando um Novo Ano litúrgico. Começamos com o Advento, que não é somente um tempo litúrgico, mas toda uma atitude vital que atravessa toda nossa existência. Sempre há o risco de vivê-lo como “mera repetição”, como um “tempo parecido” com o tempo anterior.
Não entenderemos a mensagem de Jesus se ela não nos motiva a viver em continuo e criativo Advento. Cada Advento é único e original, pois já não somos mais os mesmos: passamos por contínuas mudanças, amadurecemos mais, estamos vivendo problemas e desafios diferentes, acumulamos experiências... Deus também não se repete; Ele se aproxima de cada um de nós com um novo olhar e um novo apelo. Ele quer suscitar vibrações novas em nossas vidas e sua Presença instigante desperta em nós o grande desejo de entrar em sintonia com o Seu coração. Novo tempo, que pede de nós amplitude de visão e sensibilidade.
“Ficai despertos!” “Vigiai!” “Tende os olhos abertos!”: são apelos para o início deste Advento. A chave do relato do Evangelho de hoje está na atitude dos servos. Para provocar essa atitude, Jesus nos fala da chegada inesperada do dono da casa. Deus é Aquele que sempre está vindo. Ele é “o que vem”. Se passamos a vida adormecidos, nada acontece. Isto é o que deveria nos dar medo: poder transcorrer nossa existência sem ativar as possibilidades de plenitude que nos foram dadas. Mas não basta ter os olhos abertos; é preciso ampliar a visão para além de nossos pequenos interesses e preocupações; precisamos também de mais luz.
Despertar é simplesmente abrir nossos olhos, cada dia, à luz que provém de Deus e confiar que tal luz transforme nossa maneira de ver; é preciso deixar que esta luz ilumine nossas sombras interiores, desvelando e trazendo à tona nossas aspirações e esperanças mais duradouras. Abrir os olhos à luz de Deus e escutar atônitos, fascinados, a voz divina que cada dia ressoa em nosso interior. Trata-se de estar despertos para assumir a vida com uma consciência lúcida. O amor, a inspiração, a vida, nos movem por dentro. Tudo o que esperamos já temos dentro de nós. Um dinamismo misterioso nos abre e nos atrai, nos impulsiona a ser, a viver. Basta “destravar” este impulso e nos deixemos levar.
Advento é tempo que nos convida a abrir os corações, escutar o Espírito e pôr-se a caminho, enquanto “a luz da vida” nos ilumina.
É preciso despertar e ativar um fogo novo em nosso interior; há algo importante, essencial na vida humana que ainda está adormecido; há uma dimensão existencial profunda onde é cada vez mais difícil a inteligência e a vontade terem acesso.
Hoje o ser humano está desperto por fora, mas por dentro revela um coração descontrolado, sacudido entre forças de gravidade que ora o arrastam para o exterior, o imediato e a superficialidade, ora despertam a experiência de um desejo interior com uma forte nostalgia de vida, de paz, de plenitude...
A humanidade quer viver. O coração humano precisa escutar este desejo, não só como sede de terra seca, mas como uma palavra de vida, como o rumor de uma fonte de água viva. Talvez ele precise colocar outro ritmo em sua existência, que lhe permita estar atento e à escuta das surpresas que a vida desvela.
O Advento constitui também um tempo habitado; é um tempo de espera, de paciência, de confiança em Deus que não só se revela na história, mas também na temporalidade. Deus é o que marca o ritmo do tempo, é Aquele que tem a iniciativa. Ao ser humano lhe corresponde estar atento aos movimentos do Espírito e dos acontecimentos. Mas é um tempo de espera ativa.
Acolher os momentos de Deus é estar preparado para o mais “inesperado”.
A dinâmica da espera inclui a surpresa. Esta certeza forma parte central da experiência da fé. Brota uma certeza: o esperado, quando chega, ultrapassa sempre o que se espera. Pede ser esperado em gratuidade, sem pressas, sem ansiedade, porque sabe que tudo é dom e graça.
Esperar é uma forma de viver. Esperar é ser fiel ao dinamismo profundo da vida, deixar-se levar simplesmente pelo Espírito que nos habita, o Espírito que tudo une e liberta, que tudo move e atrai. A espera, quando é carregada de amor e presença, faz crescer e conhecer regiões do coração até então desconhecidas e inexploradas.
“Despertar” também nos abre a uma sintonia, a uma relação profunda, com o universo que nos envolve, com os outros com quem convivemos, com o Criador que tudo sustenta. Poderíamos nos perguntar: o quê nos pede Deus em cada acontecimento e em cada situação da vida.
Esta é a maneira de entender e viver uma espiritualidade aberta a um “Deus sempre surpreendente”, sempre novo. Um Deus de quem tudo procede, que habita nas criaturas, que trabalha por nós, que desce às nossas vidas e aos nossos tempos. Isto é contemplação, e que faz toda a diferença: talvez não transforme de imediato as dificuldades, os desafios, uma situação dura, mas, pode sim mudar a textura de nossos corações, a qualidade de nossas respostas, a profundidade de nossos sentimentos e pensamentos.
O tempo do Advento nos oferece uma oportunidade única de aprender a esperar e fazer da esperança nossa condição existencial. Somos, na medida que esperamos. Somos aquilo que esperamos ser. Por isso, o Advento pede vincular esperança e responsabilidade, justamente para dar mais consistência humana e maior sentido a esse futuro que está aberto à nossa frente, carregado de motivações e inspirações.
O ser humano pode esperar o que quiser, mas não pode esperar qualquer coisa. É preciso ter os olhos bem abertos para “ver” e acolher o que acontece ao nosso redor: as alegrias e os sofrimentos daqueles que nos cercam, as esperanças dos povos que estão mais além de nossas fronteiras, muitas vezes em situações dramáticas, os sonhos de tantos que buscam um mundo mais fraterno, livre e justo...
Viver conectados, em redes, unidos, entrelaçados, para potenciar a esperança e a vigília, iluminando-nos uns aos outros, despertando sonhos e buscando soluções alternativas, ressuscitando as aspirações profundas, vivendo continuamente comprometidos com outro mundo mais fraterno e justo. Vigiemos, observemos, abramos os olhos a “outra realidade” que já está presente nas entranhas da nossa própria cotidianidade. Advento é indicar e ativar a “nova vida” que quer se fazer visível.
O dia esperado está começando. Estamos apenas na aurora, mas os primeiros raios trazem a suavidade que enche o nosso coração. Resta-nos a esperança; com ela, damo-nos as mãos, colocamo-nos a caminho. Como Maria, tenda humilde do Verbo, podemos nos converter em pessoas de esperança, abertas à novidade do Espírito, que espreita oculto nas dobras de nossa história. Podemos chegar a ser sentinelas do amanhã.
Texto bíblico: Mc 13,33-37
Na oração: o que o faz permanecer adormecido, alienado da realidade e incapaz de “ler” os sinais d’Aquele que vem vindo?
Como se situa diante dos desafios que você é chamado a enfrentar? Não se sente cansado, desanimado ou sem esperança por já ter vivido tantas mudanças? Ou talvez desanimado porque as coisas não aconteceram como havia previsto? Ou, ao contrário, cheio de energia, entusiasmado por ser protagonista de uma época considerada de graça e de bênção?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“...todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes”
Como dizia o biblista Jean-Pierre Prévost: “Para ser honesto com vocês, devo dizer francamente que não tenho nenhuma predileção particular pela realeza e que, em si, o título de rei aplicado a Jesus não é aquele que mais me inspira”. Por essa razão, devemos redefinir a realeza, se quisermos aplicá-la ao Cristo ressuscitado na Igreja de hoje; caso contrário, corremos o risco de confundir a realeza de Cristo com aquela dos homens, a ponto de deformar o rosto de Jesus.
Felizmente, em cada época, houve discípulos, homens e mulheres, que souberam devolver ao Cristo a sua verdadeira realeza, que consiste em servir e não em ser servido. Jesus nunca atribuiu a si o título de rei; pelo contrário, o evangelho nos mostra que esse título foi dado a Ele de maneira irônica e sarcástica por um rei, Herodes, e por um representante de César, Pôncio Pilatos... Por outro lado, se dizemos que Cristo é rei, é porque reconhecemos nele o servidor que quis estabelecer o reino de justiça e de paz, tão desejado pelos homens e pelas mulheres de todos os tempos. Mas Ele não tem nada de outro rei: seu trono é a cruz; sua coroa é de espinhos e seu cetro é o bastão de pastor.
No Evangelho indicado para a liturgia desta festa, todos nós esperávamos um discurso mais triunfalista da parte de nosso Rei. Esperávamos que nos falasse de príncipes valentes, de “armas e heróis poderosos”. Mas acabou nos falando de famintos e doentes, de maltrapilhos e presidiários, de cordeiros e cabritos... Esperávamos que nos falasse de batalhas, de vitórias e territórios conquistados. Mas acabou nos falando de pão e de água, de remédios, de roupa e de visitas fraternas... Esperávamos que ele exaltasse a importância das leis e da disciplina, da teologia e da moral. Mas acabou exaltando os valores presentes na vida cotidiana. Enfim, este discurso do Rei nos desinstala energicamente, porque nos convoca a investir na vida, a lutar pela vida, a colocar o ser humano no centro das atenções.
Em Mt. 25,31-46, todo o discurso nos revela uma imagem de Deus revolucionária: Ele se identifica com aqueles que sofrem, que passam fome e sede, que são estrangeiros, que estão nus... À hora da verdade, quando se decide o destino definitivo de cada ser humano, o que vai ser levado em conta não são as crenças de cada um, nem as práticas religiosas ou a observância das leis; o único determinante será a atitude compassiva e acolhedora na relação com o outro.
Ou seja, não resta mais nada a não ser o ser humano. Tudo isso para deixar bem claro onde e como podemos encontrar o Deus a quem buscamos e em quem acreditamos: na medida em que tomamos a sério o sofrimento e também a felicidade dos outros. Esta é a verdadeira religião.
A imagem de Deus mais surpreendente encontrada nos Evangelhos é que Ele se “fundiu” com o humano. É no “humano” onde Deus se revela a nós e é no “humano” onde nós podemos encontrá-Lo.
Quem crê em Jesus como “revelação de Deus”, crê num Deus que está intimamente vinculado ao humano, encarnado no humano e, portanto, fundido com o humano.
Mais ainda, “Deus se funde e se confunde com todo ser humano”. De maneira que, quem se “humaniza” até o mais profundo de seu ser e se relaciona com os outros, com sentimentos e atos de profunda humanidade, na realidade esse é o que se “esbarra” em Deus, na vida, no cotidiano, nas relações...
A identificação de Deus com o ser humano é tão forte e tão decisiva que, no momento do encontro definitivo com Ele, o critério para entrar no Reino não é o que cada pessoa fez ou deixou de fazer “para” Deus, mas o que ela fez ou deixou de fazer “para” os seus semelhantes, com os quais conviveu.
Lido numa perspectiva social, o evangelho de hoje oferece uma síntese das necessidades básicas da humanidade, estruturada em três níveis: material (fome e sede), exclusão social (exílio e desnudamento) e de suma impotência (enfermidade e cárcere). O texto não discute as causas desses males, mas toma-os como fatos. Não se trata, portanto, de teorizar sobre eles, mas de buscar uma maneira de solucioná-los.
Jesus, Messias de Deus, o Filho do Homem e o Rei das nações, não aparece como situado fora ou à margem dos males deste mundo. Pelo contrário, Ele assume como próprios todos os sofrimentos e as necessidades de todos os humanos: “tive fome, estive enfermo e encarcerado...”
Da fome (primeiro dos males) ao cárcere (último dos males) estende-se toda uma cadeia de males que deformam o rosto dos humanos, e, portanto, deformam o rosto do próprio Deus.
“Esta situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor que nos questiona e interpela:
- Feições de crianças golpeadas pela pobreza ainda antes de nascer.
- Feições de jovens desorientados por não encontrarem seu lugar na sociedade.
- Feições de indígenas e de afro que vivem segregados e em situações desumanas.
- Feições de camponeses que vivem sem terra, em situação de dependência.
- Feições de operários mal remunerados e que tem dificuldades de se organizar e defender seus direitos.
- Feições de desempregados, despedidos pelas duras exigências das crises econômicas.
- Feições de marginalizados e amontoados das nossas cidades.
- Feições de anciãos, postos à margem da sociedade, que prescinde das pessoas que não produzem.
Compartilhamos com nosso povo de outras angústias que brotam da falta de respeito à sua dignidade de ser humano, “imagem e semelhança” do Criador e a seus direitos inalienáveis de filhos de Deus”.
(Doc. de Puebla)
Esse sofrimento injusto dos últimos da Terra nos ajuda a conhecer a realidade do mundo que estamos construindo. Não se conhece o mundo a partir de seus centros de poder, mas a partir dessas “massas sobrantes”, sem rosto e sem nome, dos excluídos, os únicos para os quais não há um lugar em nosso mundo globalizado. São nossas vítimas as que mais nos ajudam a conhecer quem somos. Ninguém pode nos interpelar com mais força. Ninguém tem mais poder para nos arrancar de nossa cegueira e indiferença. Ninguém tem mais autoridade para nos exigir mudança e conversão. Dizia Jon Sobrino, “as vítimas tem um potencial para salvar a história e a humanidade, e, em parte, esse potencial seu é insubstituível”.
Isso fica claro no Evangelho de hoje. Ali estão os sofredores de todas as raças e povos, de todas as culturas e religiões, gerações de todos os tempos.
A “autoridade dos que sofrem” é a única instância ante a qual Jesus colocou a humanidade inteira.
Vai-se escutar o veredito final sobre a história humana, a palavra que desvela tudo. O que vai decidir a sorte final não é a religião que cada um viveu, nem a fé que confessou, nem as leis ou doutrinas que muitos defenderam. O decisivo é o compromisso solidário para com aqueles que sofrem. O que fazemos às pessoas famintas, aos imigrantes indefesos, aos enfermos desvalidos, aos encarcerados esquecidos por todos, tem um valor absoluto, pois o estamos fazendo para o mesmo Deus.
Texto bíblico: Mt 25,31-46
Na oração:
Que rosto de Cristo revelamos às mulheres e aos homens do nosso tempo? Estamos apresentando, com nossas vidas, um rosto de Cristo amável, misericordioso, tolerante, aberto, livre, justo, respeitoso dos outros, compassivo: um rosto de Cristo que faz o homem e a mulher no mundo de hoje ter esperança?
Diante de Deus, deixe seu coração responder:
Como você se coloca diante deste mundo: inconformado? revoltado? acomodado? indiferente? otimista? ativo?...
Examinando a sociedade, sentindo de perto os seus problemas e desafios, quê esperanças você carrega?
Somos chamados a criar uma sociedade digna da liberdade humana, a partir das condições econômicas, políticas, sociais, culturais... Como você atua e se prepara para se comprometer com a transformação do mundo que o cerca?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Fiquei com medo e escondi o teu talento no chão; aqui tens o que te pertence” (Mt 25,25)
“Ter talento” é, entre nós, uma expressão popular tão frequente que é equiparada a “ser inteligente”. De fato, normalmente uma pessoa inteligente ou brilhante é designada como uma pessoa “talentosa”.
A parábola dos talentos, lida em chave “religiosa”, pode dar margem a uma apologia do mérito e da recompensa, alimentando uma atitude oposta àquela pretendida por Jesus.Partindo dessa visão, o esquema básico, ao estabelecer a relação com Deus, se apoiaria em três pilares: dom-exigências-recompensa. Percebe-se facilmente que esse esquema revela uma relação mercantilista com Deus. Essa maneira de viver a religião conduziu a desvios graves como a autojustificação beata ou a angústia culpabilizadora, onde a pessoa religiosa chega a ter a sensação de viver uma relação com Deus marcada por uma chantagem afetiva de impossível saída.
No entanto, a mensagem e a própria prática de Jesus jogam por terra este esquema. Não é o mérito ou a recompensa que constitui o núcleo da mensagem de Jesus, mas a gratuidade.. Tudo é dom, Deus mesmo é Graça que rompe nossas supostas barreiras de méritos e de “dignidade”. Como ler, então, esta parábola quando ela insiste explicitamente na obrigatoriedade de “fazer produzir” o dom recebido?
Em primeiro lugar, não podemos esquecer que o que a parábola pretende transmitir não pode ir nunca contra algo que para Jesus era prioritário: a gratuidade misericordiosa de Deus. Um Deus que “ama os maus e ingratos” (Lc 6,35), que abraça o “filho pródigo” e organiza uma festa para ele, sem nenhum tipo de condição (Lc 15,20-24), que é “amigo dos publicanos e pecadores” (Mt 11,19)..., não pode se identificar com o senhor da parábola que exige até o último centavo e castiga a quem não apresenta méritos. Tirar daquele que tem pouco para dar ao que tem mais, tomado ao pé da letra, seria uma atitude imprópria do Deus de Jesus. No fundo, Jesus também está denunciando a falsa imagem de Deus dos fariseus, ou seja, Aquele que recompensa quem observar estritamente todas as leis e preceitos.
Na parábola dos Talentos, Jesus, mais uma fez, nos fascina e provoca, abordando a temática do medo. Na realidade, a raiz do comportamento do terceiro empregado é mais profunda: ele tem uma imagem falsa do senhor. Imagina-o severo, egoísta, injusto e arbitrário; é exigente e não admite erros; não se pode confiar nele. O melhor é defender-se dele.
Esta ideia mesquinha de seu senhor o paralisa. Não se atreve a correr risco algum. O medo o bloqueou. Não é libre para responder de maneira criativa à responsabilidade que lhe foi confiada. O mais seguro é “conservar” o talento. Quer proteger o pouco que recebeu, não ousa e tenta evitar uma perda total. Quando não se vive a fé cristã a partir da confiança mas do medo, tudo se desvirtua. A fé se conserva mas não se contagia; a religião se converte em dever; o Evangelho é substituído pela observância; a celebração fica dominada pela preocupação ritual; a oração torna-se um monólogo culpabilizante; a comunidade revela-se “pesada”...
Em outras palavras, a “parábola dos talentos” não tem por finalidade dizer-nos como é Deus, mas seu objetivo é despertar-nos da apatia e superar o medo que nos mantém paralisados. Nesse sentido, trata-se realmente de uma narração sábia e estimulante.
Os talentos – sejam cinco, dois ou um: em qualquer caso, uma riqueza fabulosa – representam a riqueza que somos, da qual geralmente conhecemos apenas uma mínima parte. A parábola vem nos dizer: “tens uma riqueza, és um tesouro de valor incalculável..., não tenhas medo nem te ‘enterres’ na mediocridade ou superficialidade. Atreva-se a viver tudo o que és! Seja ousado e saia da ‘normose’”!
A primeira atitude nossa, portanto, é descobrir essa realidade interior; devemos retornar ao nosso “eu profundo” para poder destravar e ativar todas as nossas ricas possibilidades, ainda latentes. Renunciamos a viver quando nos reduzimos ao pequeno e limitado mundo de nosso ego, fechando-nos nele e em seus interesses mesquinhos, ignorando a verdade de quem somos. Esta ignorância faz com que esqueçamos a riqueza que somos. Os talentos de que fala o evangelho, são as realidades que nos fazem ser mais humanos. E ser mais humano significa amar mais, servindo mais.
Na medida que vamos nos abrindo à nossa verdade interior e tendo acesso ao nosso verdadeiro tesouro, experimentamos a alegria de poder participar da festa do Senhor, não como um “prêmio” ou recompensa pelos méritos do “eu” (isto seria farisaísmo), mas porque nossa verdade coincide com essa mesma alegria do Senhor: uma e outra são a Plenitude desejada.
Pelo contrário, quando nos fechamos no ego, o que ali aparece é “pranto e ranger de dentes”, ou seja, sofrimento inútil e lamento constante, que não são um “castigo” proveniente de um Deus irado ou ofendido com nosso comportamento, mas consequência direta de ignorar a verdade de quem somos. Não esqueçamos que ego é sinônimo de ignorância, confusão e sofrimento.
O Mestre Jesus, com esta parábola, quer dizer a cada um de nós: “se você tiver uma imagem de Deus tão marcada pelo medo, sua vida será, já agora, choro e ranger de dentes. Se você quiser controlar tudo, perderá, já agora, qualquer controle sobre sua vida. Se você estiver tão obstinado em não cometer nenhum erro, errará em tudo”.
O método que Jesus aplica nessa parábola é demonstrar o absurdo do padrão de comportamento de controle temeroso e tentativa de domínio absoluto sobre a própria vida, atrofiando a ousadia e a criatividade, tão próprias do ser humano.
Toda parábola dá margem a outras releituras. Por exemplo, poderíamos perguntar porquê a parábola não contemplou uma terceira possibilidade, ou seja, o empregado negocia seus talentos com a melhor boa vontade, mas perde todo o dinheiro. Gostaríamos de saber o que o senhor teria feito com ele. Seguramente que a resposta não teria sido a condenação. A parábola indica muito mais que aquilo que se valoriza não são os resultados, mas a atitude de busca e a confiança que os empregados tem para com o seu senhor e para com eles mesmos.
Finalmente, é também muito interessante constatar que, tanto aquele que negocia com cinco, como aquele que negocia dom dois, recebem exatamente o mesmo premio. Isto indica que em nenhum caso se trata de comparar resultados do trabalho, mas a atitude dos empregados.
Texto Bíblico: Mt 25,14-30
Na oração: dar nomes aos medos que estão paralisando sua vida, impedindo-o de viver com mais ousadia e criatividade.
- Quem é o “Deus” em quem você crê? É o “deus da lei”, o “deus do mérito”, o “deus” que cobra até o último centavo... ou o “Deus de Jesus”: Pai e Mãe, fonte de misericórdia e compaixão?
- A fé e a confiança em Deus possibilitam ter acesso às suas riquezas interiores e expandi-las?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!” (Jo 2,16)
Os profetas de Israel costumavam recorrer a “gestos proféticos” para expressar, de um modo visual e contundente, mensagens que lhes pareciam decisivas. Na mesma linha dos profetas de seu povo, Jesus realiza também gestos repletos de simbolismo: suas refeições com os pecadores, o lava-pés, a ação contra o Templo...
É disso que trata o Evangelho da festa de hoje (Dedicação da Basílica do Latrão), ou seja, uma ação simbólica na qual se pretende mostrar que o tempo do Templo terminou. A expressão “purificação do Templo” não é a mais adequada, porque não se trata de purificar o espaço que se tinha convertido em centro comercial, mas de substituí-lo. Jesus prescindiu do Templo para relacionar-se com o Pai.
A partir de seu projeto, que chamava “Reinado de Deus”, foi questionando uma religião que desumanizava às pessoas. Ele mesmo, durante sua vida, foi relativizando e esvaziando os pilares da religião judaica: o sábado, a “pureza” legal, o Templo, o culto, os sacrifícios, as doutrinas, os sacerdotes... E pouco a pouco foi colocando tudo isso em questão, transgredindo suas normas e atacando a hipocrisia de um culto a Deus que desprezava as pessoas.
O simbólico ataque final ao Templo foi determinante para ser considerado um subversivo pelo sistema político e um blasfemo pelo sistema religioso. Aquele Templo já não era a casa de um Deus Pai, pois não era espaço de acolhida mas de exclusão.
Jesus se sentia como um estranho naquele lugar. O que seus olhos viam nada tinha a ver com o verdadeiro culto ao Pai. Deus não pode ser o protetor e encobridor de uma religião tecida de interesses e egoísmos. Deus é um Pai a quem só se pode prestar culto trabalhando por uma comunidade humana mais solidária e fraterna.
Nesse gesto ousado de Jesus, fica claro o que Ele pretende: denunciar os “templos e as religiões” que se absolutizam como lugares da presença divina, criando dicotomias ou dualismos estranhos entre “o religioso” e “o profano”. A novidade de Jesus consiste em afirmar que existe só um caminho para encontrar a Deus e que não passa pelo Templo. Na religião, o determinante está no “sagrado”; no projeto de Jesus, o centro de tudo está no “humano”, na dignidade e felicidade das pessoas, na vida. Jesus não suprimiu o “sagrado”, mas o deslocou do religioso ao humano. Para Ele o sagrado é o ser humano como pessoa, com os demais seres humanos. Desse modo, supera-se definitivamente aquele dualismo e se reconhece a vida como lugar da Presença. Os templos não são fronteiras que dividem o sagrado e o profano; são espaços onde vivemos a sacralidade de toda a vida. O verdadeiro “templo” é a vida, e vida destravada, aberta...
Ao “substituir” o Templo por seu Corpo, Jesus nos convida a viver o encontro com Deus no centro de nossa pessoa e da vida mesma. E Ele torna-se referência para nos ajudar a ver o que é uma vida vivida desse modo: uma existência marcada pelo amor compassivo e pela alegria de uma vida plena.
Ali é onde vamos encontrar Deus com certeza; ali se enraíza o “segredo” do viver humano: no amor e na alegria intensa. As pessoas não serão mais ou menos santas porque vão rezar no templo; sua santidade se fará presenta na vida cotidiana.
A superação do Templo significa a superação da religião. Não no sentido de que é preciso deixá-la de lado (tanto a religião como o templo podem ser meios valiosos para muitas pessoas), mas no sentido de não absolutizá-la. A absolutização da religião provocou muita exclusão e sofrimento entre os humanos.
As religiões se fazem indigestas e sumamente perigosas quando pretendem apoderar-se do Absoluto. Devemos fazer de nossas comunidades cristãs um espaço onde todos possamos nos sentir na “casa do Pai”; uma casa acolhedora e calorosa onde não se fecham as portas a ninguém, onde ninguém se exclui nem se sente discriminado; uma casa onde aprendemos a escutar o sofrimento dos filhos mais desvalidos de Deus e não só nosso próprio interesse; uma casa onde podemos invocar a Deus como Pai porque nos sentimos seus(suas) filhos(as) e buscamos viver como irmãos(ãs).
Com seu gesto Jesus põe abaixo todas as barreiras existentes: religiosas, sociais, culturais, éticas... De maneira especial, Ele acaba com o predomínio do poder sagrado, que tanta divisão, submissão, marginalização e sofrimento causaram durante séculos aos seres humanos. Aqueles que acreditam em Jesus, seguindo suas pegadas, não iniciam uma nova religião com caráter sagrado, senão um novo estilo de vida, assimilando os principais critérios do reinado de Deus, que Ele nos deixou nos evangelhos.
Jesus tem consciência que o poder sagrado divide, discrimina e subordina, enquanto que o serviço e a solidariedade criam irmandade e igualdade. Jesus desencadeou um movimento que teve inicio nas periferias da Galileia. Ele não foi sacerdote do Templo, consagrado a cuidar e promover uma religião; nem funcionário do Templo, nem ostentou cargo algum relacionado com a religião, nem foi um mestre da Lei, fechado em seu legalismo.
Jesus, como os profetas de Israel, não formou parte da estrutura política nem do sistema religioso. Não foi nomeado por nenhum poder. Sua autoridade não vinha da instituição, não se baseava nas tradições religiosas. Provinha de sua experiência de Deus empenhado em conduzir seus filhos e filhas pelos caminhos da justiça.
Jesus fugiu de todo poder e se preocupou especialmente das pessoas marginalizadas. Não organizou nenhuma religião; pelo contrário, entrou em conflito com a religião judaica e suas instituições (sinagoga, Templo de Jerusalém, Lei). Cercou-se de pessoas, homens e mulheres, dispostas a continuar seu caminho anunciando a mensagem do Reino de Deus. Proclamou as bem-aventuranças, como projeto do reino de Deus. Denunciou as opressões e injustiças, tornando realidade a salvação do Deus pai e Mãe, através de suas curas.
Jesus supera as antigas divisões (sacerdotes ou laicos, judeus ou gentios, homens ou mulheres...) e a estrutura social dominante que geram exclusão e violência.. Não veio para sancionar os bons costumes e vantagens dos justos, na linha do poder ou do conhecimento, senão para romper esse esquema de valores e privilégios. Esta é a sua novidade messiânica.
Ele Não nos impõe uma lei, não exige que cumpramos simplesmente alguns preceitos religiosos... Ao contrário, quer que todos vivamos e possamos desenvolver em plenitude nossas potencialidades.
Jesus não veio para sancionar uma ordem existente, deixando cada um com sua exclusão, senão para oferecer a todos um caminho de humanização. Por isso tornou-se um transgressor: rompe as fronteiras que foram traçadas pelos poderosos, abrindo um caminho de humanidade a partir de baixo, do lado dos excluídos e dos últimos...
Um transgressor consequente, a serviço da vida e dos últimos; isso foi Jesus. Assim devem viver seus seguidores.
Texto bíblico: Jo 2,13-22
Na oração: Muitas pessoas pensam que é somente no templo (capela, lugar santo e cerimônias sagradas) onde é possível fazer uma experiência de encontro com Deus. Se o Deus que é experimentado no templo não coincide com o Deus que move nossa vida na rua, na convivência com os outros, no compromisso com os últimos,... então o templo e seu suposto “deus” não tem nada a ver com o Deus de Jesus, e a prática religiosa é vazia.
- O decisivo é o “templo interior”, com portas abertas a todas as pessoas que queiram se aproximar e entrar.
- Somos também o “novo templo”, morada do Espírito, presença que alarga nosso interior para que todos possam ali ter acesso. Quem são os “frequentadores” do nosso “templo interior”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Viver sem morrer é viver menos, é impedir o pleno ser,
é partir sem nunca chegar, é jamais poder ressuscitar, é aceitar viver em vão.
Por isso, cedo quiseste voar, buscando a libertação” (L. Boff)
No Dia de Finados dedicamos a fazer memória daqueles(as) que são parte radical de nossa vida: deles(as) nascemos, por eles(as) somos. Recordamos, na oração e no afeto, aquelas pessoas que amamos e que fizeram a “travessia” para a “Vida maior”, a vida que não terá fim. Ao mesmo tempo, este dia será ocasião para aprofundar o sentido de nossa existência. De fato, a morte não fala dela mesma, mas da vida.
Para muitos, a morte é a que dá profundidade à vida humana, que permite saborear cada instante em sua fragilidade e em sua beleza. Para outros, a morte é a que tira o sentido de tudo o que fazemos. Na visão cristã, a morte não é o fim de tudo; ela é o despertar da “vida eterna”. É a experiência de ressurreição.
Quando alguém sabe “para quê e para quem vive”, realizando sua original missão, pode morrer em paz. Os que vivem intensamente enfrentam com grande serenidade seu envelhecimento e a proximidade da morte, vendo nela mais uma etapa no processo normal de seu amadurecimento e de sua realização. É o modo como alguém vive que qualifica a morte. Há mortes que, para além da inevitável dor que causam aos familiares e amigos, provocam paz, agradecimento, vontade de viver seriamente, de se levantar da superficialidade e da mediocridade.
É duro situar-se diante da morte das pessoas queridas. Corta fundo o coração uma esperança ferida. Diante da morte de quem amamos, reduzimo-nos ao silêncio; quanto mais intenso o amor, mais sofrida é a dor de um adeus. Quantas pessoas “partem no horário nobre da vida”: quantos projetos sem realizar, quantos sonhos despedaçados!...Parece que morre também uma parte de nós. Quando alguém parte, um pouco dele permanece conosco, e um pouco de nós vai com ele.
Um tímido protesto contra Deus brota do fundo do coração: “Onde está Deus?”
É na escuridão da dor e da morte que a Fé se manifesta e nos revela que fomos feitos por mãos celestiais; confessamos que a Vida é mais, é maior e que é eterna. Somos chamados à vida, criados para a liberdade, para a bondade, para a amplidão dos céus.
Confessamos que a vida vem de Deus e volta para Ele. “O amor é Deus, e a morte significa que uma gota desse amor deve retornar à sua fonte” (Tolstói). E a nossa última morada não é sob a lápide fria de um túmulo, mas no coração do mistério de um infinito Amor.
Aos olhos do Criador, tudo tem sentido. Até o “sem sentido” (morte) revela o Deus presente, solidário... Em cada pessoa que morre, morre um “pouco” de Deus. Deus “morre com”, para “ressuscitar com” e manifestar a força de seu Amor e Vida.
Deus não está distante da dor, do fracasso, da morte... Ele se faz presente, caminha conosco e sofre nossa fragilidade. Nesse sentido, a Ressurreição é possível porque Deus se mistura com a morte, e faz emergir daí a Vida eterna. Em Deus morremos, em Deus vivemos.
Na vida e na morte somos de Deus. Quando Ele tecia nossos órgãos complexos, nosso cérebro, nosso coração, nossos sentidos, nosso corpo... no ventre de nossa mãe, foi deixando sinais digitais de sua mão criadora e “pegadas” de seu amor.
E se são pegadas de amor, como poderiam terminar na tumba? Deus não nos criou para a morte mas para o amor que vence a morte, para a festa de amor sem fim. O Deus Pai e Mãe nos formou e nos sustenta em cada batida do coração; nossa respiração, nosso hálito de vida, sempre se move e se renova dentro da imensa “respiração” do Espírito. E o mesmo Deus que um dia nos teceu nas entranhas com ternura, com essa mesma mão poderosa de amor nos conduzirá de retorno à mesma fonte de ternura: seu coração vulcânico de vida, para que desfrutemos ali da festa do amor sem fim, juntamente com todos os nossos entes queridos que fizeram a travessia antes.
Nosso Hoje, então, se vestirá de Sempre. Nele Somos... e Nele seremos... para sempre!!!
Somos todos peregrinos e vivemos contínuas “travessias provisórias” até fazermos a grande travessia para Deus. Quando nascemos recebemos o sopro do Criador; quando morremos somos “aspirados” para dentro de Deus. Nosso destino é o Coração de Deus: “D’Ele viemos e para Ele retornamos”. Por isso somos eternos: já vivemos a eternidade nesta vida. Descobrimos no coração de nossa vida mortal a eternidade que vive em nós.
O que é real em nós é a vida eterna, a dimensão de eternidade que está no cerne desta vida. A vida eterna não é somente a vida depois da morte. A ressurreição não é uma experiência após a morte. E o que se chama de vida eterna não é a vida depois da morte, mas é a vida antes, durante e depois da morte. E que é eterna. Eterno é o que não está no tempo.
Segundo G. Rosa, “as pessoas não morrem, ficam encantadas”. Encantadas no coração de Deus e na nossa memória. Confessamos que sua passagem pela vida a humanidade ficou um pouco mais enriquecida e engrandecida.
No dia de Finados, fazer memória das pessoas que já fizeram a travessia é despertar a reverência pela vida. A vida é tanta surpresa, tanta novidade e riqueza que desperta o assombro e o encantamento. Fazer memória daqueles que viveram intensamente (mesmo que por pouco tempo) nos mobiliza e nos compromete a viver mais intensamente. E viver intensamente é viver aqui e agora de “modo eterno”.
A vida é dom que não pode ser desperdiçado. Para quê viver? Tem sentido? Quê marcas quero deixar?...
Alguém já afirmou que a morte é a realidade mais universal, pois todos morrem, mas nem todos sabem viver. Por isso, viver é uma arte; é necessário reinventar a vida no dia-a-dia, carregá-la de sentido.
“A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter).
Quem viveu intensamente deixa “marcas”; fazemos, então, memória dessas marcas. “Aquilo que a memória amou fica eterno” (Adélia Prado). A memória é a presença da eternidade em nós. Tudo o que recordamos da pessoa que “já partiu” é semente de eternidade. Sua passagem entre nós não foi em vão.
A vida é feita de partidas e chegadas. De idas e vindas. De travessias. Assim, o que para uns parece ser a partida, para outros é a chegada. Nesse caminho em direção à plenitude, um dia, todos nós partiremos como seres imortais que somos ao encontro d’Aquele que nos criou.
Portanto, como seguidores de Jesus, no dia de Finados vamos celebrar a vida, a vida verdadeira, a plenitude dos irmãos que já vivem para sempre, que estão no coração de Deus. Porque a vida, como um rio, tem duas margens; a ponte para cruzar de uma margem à outra é construída diariamente com o amor, a fraternidade, a solidariedade, a esperança..., que ao longo da vida vamos semeando em nós, nos outros e na criação, dando a esta vida uma dimensão celestial.
Texto bíblico: Jo 6,37-40
Na oração: recordar os grandes silêncios da vida nas perdas de pessoas muito próximas, onde não há razões, não há uma lógica... mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“...amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração... amarás o teu próximo como a ti mesmo”
Paixão por Deus e compaixão pela humanidade: nestas duas atitudes Jesus condensa a totalidade dos mandamentos bíblicos, ou seja, amar a Deus e amar o próximo. São dois amores diferentes, mas inseparavelmente unidos. Estão unidos, porque não se pode amar verdadeiramente a Deus sem amar o irmão. E o verdadeiro amor pelo irmão tem suas raízes no amor a Deus.
Estes dois mandamentos já estão presentes no AT, mas separados (Dt. 6,4; Lev. 19,18). Jesus tem a genialidade de mostrar que o “segundo é como o primeiro”, e não só em importância, mas em essência, de tal maneira que nenhum dos dois pode existir sem o outro.
A pergunta feita a Jesus torna-se ocasião para ajudar a recuperar o essencial, descobrir o “espírito perdido”: qual é o mandamento principal? O que é essencial? Onde está o núcleo de tudo?
O Amor, essência de Deus, é também essência do ser humano, criado à Sua imagem. Quando amamos não é necessário dizer que Deus está em nosso coração porque, de uma maneira melhor, estamos no coração de Deus, participamos do próprio dom de seu Amor.
Quando esquecemos o essencial, facilmente corremos o risco de mergulhar na mediocridade piedosa ou na casuística moral, que não só nos incapacitam para uma relação sadia com Deus, senão que podem desfigurar e destruir as relações com as pessoas.
O seguidor de Jesus sabe que toda expressão de amor tem um alcance divino. Uma das maiores razões para o Amor ser uma experiência de expansão se deve à sensação de imortalidade e eternidade que nos proporciona. Quem ama vê o tempo se alargar e a vida ganhar mais sentido.
Em outras palavras, o Amor traz em si a marca da eternidade, pois se trata da “faísca de Javé”, colocado por Deus no coração do ser humano. O Amor impregna o ser humano. Amor não é apenas uma função, uma área, um momento. Amor é onipresença.
O amor nasce em Deus como um rio imenso que envolve toda pessoa, iluminando e transformando sua existência. O cristão não se encontra submetido a uma espécie de exigência tirânica, obrigado a cumprir, no limite de suas forças, alguns mandatos alheios a seu ser.
“Amar a Deus com todo o coração” é reconhecer humildemente o Mistério último da vida, orientar confiadamente a existência de acordo com sua vontade: amar a Deus como força criadora e salvadora.
Nas duas tradições, judaica e cristã, o centro da pessoa é o coração. Amar é fazer tudo com o coração.
Falamos do Amor Ágape que transborda, que nada pede em troca. Amor Ágape não é o amor que sacia minha sede, pois ele não nasce da minha sede, mas ele nasce da minha fonte. Não é o amor da falta, da carência, mas é o amor da plenitude.
É esta gratuidade do amor em que se ama por nada. Amar sem ter nada de particular para amar. Amor como dom gratuito de si mesmo. Não é motivado pelo valor do outro, isto é, pela recompensa que meus gestos de amor podem trazer-me. Este amor não implica necessariamente, mas também não exclui a reciprocidade do dom de si mesmo. Com efeito, neste caso não se ama o outro porque ele é bom, mas para que seja melhor, já que o amor quer o bem do amado.
O amor ágape é expansivo: nos alarga através dos nossos membros, mãos e pés.
Podemos dizer que o amor tem mãos e pés: mãos que cuidam, curam, abençoam... e pés que nos arrancam de nossos lugares rotineiros e nos deslocam para as margens, para o mundo dos pobres...
Quando o Amor nos habita tudo se torna sagrado. Não há “Terra Santa”, há uma maneira santa de caminhar sobre a terra. “O Amor é o que diz ‘sim’, em nós”: sim à vida, sim ao compromisso, sim à compaisão...
O texto do Evangelho de hoje não só reafirma o amor ao próximo, mas, ao mesmo tempo, realça sua modalidade: “ame a seu próximo como a si mesmo”. O que significa amar o próximo “como a si mesmo”?
Segundo a Biblia, é a prioridade do outro em relação a mim. “Amar o outro como a si mesmo” não quer dizer, portanto, amar o outro do mesmo modo com que o eu se ama naturalmente e espontaneamente, e sim colocando o outro no lugar do próprio eu, afirmando sua precedência e sua prioridade sobre o eu e, assim, impedindo o movimento originário do eu em direção ao próprio eu, a fim de instaurar o movimento do eu em direção ao outro.
Podemos, então, entender o “como a si mesmo” como: “ame seu próximo, é você mesmo”; “esse amor ao próximo é você mesmo”; “ame o seu próximo, tudo isso é você mesmo”; “ame o seu próximo, porque o seu próximo é justamente como você mesmo”.
O mandamento bíblico do amor implica, pois, a “inversão da direção de vida do ser humano natural” (movimento “do eu em direção ao eu”) e a instauração da vida como vocação para amar. Trata-se do amor de alteridade onde o eu sai de sua pátria para não mais aí voltar, e sim para encontrar uma outra pátria.
O mandamento do amor é, portanto, um “contínuo êxodo” do eu para o outro. É da presença desse próximo que o eu é liberto e gerado para a nova identidade de responsável, de quem deve responder e não pode deixar de responder pelo outro que passa ao seu lado.
Cada vez que o ser humano ama a fundo perdido, os ciclos vitais se concentram. Só aquele que ama vive de verdade, amadurece antes. E é que o amor dá à liberdade a densidade de destino. O amor só se compreende a si mesmo na autodoação, no descentramento de si.
O amor é uma força unitiva: une os corpos, as mentes, os espíritos e as vontades; une as pessoas e as sociedades, não para além de suas diferenças, mas precisamente com suas diferenças.
O amor converte a diferença em riqueza; o amor enche a vida de sentido. Ali onde falta o amor, as pessoas se sentem vazias e se separam cada vez mais umas das outras. O mais grave é que ali onde falta o amor corre-se um sério perigo de morte.
Nosso coração exige de nós que as coisas mais belas, as mais amadas - começando pela própria vida e pelo próprio amor - não tenham ocaso. Este é nosso destino feliz, bem-aventurado e abençoado, que já começou, ainda que não tenha chegado à sua plena manifestação.
Texto bíblico: Mt 22,34-40
Na oração: - entoar um hino de louvor e gratidão a Deus pelo Seu “amor em excesso” que se revela no cotidiano da vida;
- ter sempre presente na memória que fomos criados para viver em relação de amor e solidariedade com todos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Daí a César o que o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21)
Jesus foi um homem que viveu e falou de tal maneira que se tornou desconcertante para aqueles que o conheceram e se aproximaram dele. Até o final de sua vida, Ele desconcertou todo mundo. Desconcertou, sobretudo, aqueles que estavam confortavelmente instalados na estrutura religiosa e política da época: os fariseus e herodianos, que se uniram para armar-lhe uma cilada.
Jesus desconcertou porque colocou o ser humano no centro de sua missão; Ele tornou-se surpreendente porque não se conformava com a situação injusta imposta aos mais fracos e sofredores; com sua liberdade provocativa pôs a descoberto as mazelas sustentadas pelos encarregados da religião (fariseus) e pelos colaboracionistas do império romano (herodianos).
Jesus impressionou, surpreendeu, inovou a partir da sua relação com Deus, chamado familiarmente de Abbá, que lhe conferia "autoridade" para denunciar todo tipo de poder que desumaniza. Trata-se de uma autoridade diferente da do mundo, uma autoridade que não tem como fim exercer um poder sobre os outros, mas servi-los, devolvendo-lhes a liberdade e a plenitude de vida. Viveu totalmente dedicado, não precisamente ao imperador César, mas aos empobrecidos e excluídos do império. E isso até o ponto de pôr em jogo a sua própria vida.
Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.
Desde o início de sua vida pública Jesus exerceu considerável poder de sedução sobre os pobres e excluídos da Galileia. Seu fascínio sobre o povo não tinha nada de improvisado, mas era fruto de anos de solidariedade com os simples, os doentes, os pecadores... Não tinha terras, não possuía denários de prata, não tinha poder. Vivia de maneira pobre e livre, totalmente centrado na busca do Reino de Deus e de sua justiça. A riqueza original desse sonho primordial não se “encaixou” nos esquemas dos fariseus e herodianos, dos sacerdotes e anciãos do povo, dos saduceus, dos essênios ou zelotes, nem se deixou instrumentalizar pela instituição do Templo ou sinagoga.
Isso inquietava as instituições, políticas e religiosas, pois a presença original e crítica de Jesus ameaçava pôr por terra toda uma estrutura extremamente injusta cujas primeiras vítimas eram os pobres e excluídos. Jesus optou por ficar do lado das vítimas. Essa situação conflituosa de Jesus com os “podres poderes” é o resultado do confronto entre sua missão (que anuncia a justiça do Reino e as bem-aventuranças) e a realidade que não quer ouvir e rejeita a novidade do Reino.
Além disso, o Deus que Jesus nos revela é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como representantes do divino.
O Deus que Jesus nos faz conhecer não é o Deus que nos complica a vida com normas e leis, nem nos impõe pesados fardos, mas o Deus que se humaniza para humanizar nossa vida. E assim Jesus nos indica que só na medida em que nos fazemos mais humanos, nos fazemos mais semelhantes a Ele que, para aliviar o sofrimento humano, se comprometeu com os que sofrem, até identificar-se com eles na morte.
O Deus de Jesus é o Deus que responde e corresponde aos anseios de respeito, dignidade e felicidade que todos trazem inscritos no sangue de suas vidas e nos sentimentos mais autênticos e nobres. O Deus Misericordioso não impulsiona ninguém a desejar poderes, por mais divinos que sejam. Ele é o Deus que só legitima a identificação e até a fusão com o destino das vítimas deste mundo.
Esta foi a principal fonte de conflitos de Jesus com os aqueles que, em nome de Deus, exerciam o poder e a dominação sobre as pessoas e sobre o mais íntimo que há em cada um: sua consciência e sua liberdade para tomar decisões na vida e expressar sua fé em Deus. É nesse contexto que os fariseus e herodianos se unem contra Ele com uma pergunta capciosa: “É lícito ou não pagar o tributo a César?”
A resposta de Jesus tem dado margem a interpretações distorcidas. De fato, Jesus acrescenta uma grave advertência sobre algo que ninguém lhe perguntou: “dai a Deus o que é de Deus”.
Jesus não põe Deus e César no mesmo nível, senão que toma partido por Deus. Com sua resposta, Jesus propõe um princípio de validade permanente: a rejeição a absolutizar qualquer tipo de poder. César se impõe (imposto) pelo poder, que oprime e exclui; Deus não se impõe (não é imposto); faz-se dom, esvazia-se de todo poder e se aproxima de nós, se faz comunhão. O relacionamento entre o ser humano e Deus dá-se na esfera da mais pura liberdade, lá onde as decisões são ditadas pelo amor.
Jesus denuncia a submissão dos fariseus e herodianos que carregavam consigo moedas com a imagem do imperador romano: vivem como escravos submissos a um poder que desumanizava e humilhava a todos com pesados impostos. Mas o ser humano é “imagem” de Deus e só a Ele pertence. O único absoluto é Deus. Trata-se de uma “submissão amorosa” que não se impõe (imposto), pois nos convida a entrar em sintonia com Ele, numa comunhão de vida e compromisso com os outros.
Alguns biblistas traduzem a expressão “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” por “retirai de César o que é de Deus”, ou “não dai a César o que é de Deus”, ou ainda, “dai a César o que é de César, mas não lhe deis o que é de Deus”.
Em outras palavras: não entregueis a nenhum César o que é de Deus: seus pobres. Os pequenos são os prediletos do Pai; o Reino de Deus pertence aos pobres. Não se pode sacrificar a vida e a dignidade dos indefesos a nenhum poder político, financeiro, econômico ou religioso. Os humilhados pelos poderosos são de Deus e de ninguém mais. Que nenhum poder abuse deles; que nenhum César se imponha.
Enfim, numa sociedade corrupta e deformada, uma pessoa que se ajusta ao que está estabelecido e, portanto, não desconcerta ninguém, é uma pessoa alienada, que passa pela vida sem ser provocadora e deixa tudo como está. Só desconcerta quem, na fidelidade ao Evangelho e à causa do Reino, rompe os esquemas fechados e estruturas de poder, transgride o excesso de normas, abre novos caminhos ainda não imaginados.
Texto bíblico: Mt 22,15-21
Na oração: “Quem é o senhor que move nossa vida?
Alimentamos diferentes “césares” em nosso coração, aos quais nos fazemos submissos: instinto de posse, busca de poder e prestígio, consumismo, obsessão por um bem-estar material sempre maior, o espírito de competição... Quando é “cézar’ que determina nossa vida, sua influência envenena nossa relação com Deus, deforma nossa verdadeira identidade e rompe nossa comunhão com os outros; nos desumanizamos...
Como seguidores de Jesus, devemos buscar nele a inspiração e o alento para viver de maneira livre e solidária.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
Entre os personagens próximos de Jesus, poucos como Maria. Dela não se diz muita coisa nos evangelhos, mas o que se diz é surpreendente. Mãe, testemunha, seguidora, servidora, presente... Uma mulher fiel a Deus e capaz de ver mais além do cotidiano e estabelecido; uma mulher capaz de ver diferente.
Onde outros viam uma loucura, Maria viu um horizonte; onde muitos tinham visto uma transgressão, ela intuiu a promessa de Deus; onde tantos teriam estremecido diante da proposta de Deus e teriam exigido mais provas, mais seguranças ou mais garantias, Maria exclamou: “faça-se”. Onde a lei era a referência e a condenação, ela foi capaz de cantar a grandeza do Deus que está com os mais simples e quebra as estruturas estabelecidas; onde tudo era convencional, Maria, com uma acolhida feita de valentia, confiança e entrega, foi capaz de colaborar com Deus de modo radical; onde todos viam o desenlace frustrante e triste de uma festa de casamento, ela “viu e antecipou a hora de seu Filho”... Porque estava sempre presente.
Porque estava presente a Deus, Maria fez-se presente nos momentos decisivos de seu Filho, bem como fez-se presente na vida das pessoas. Uma presença que faz a diferença: presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de uma mãe.
Sua presença não era presença anônima, mas comprometida; presença expansiva que mobilizou os outros, assim como mobilizou seu Filho a antecipar sua “hora”. Nas bodas de Caná, a novidade está numa nova forma de presença de Maria, que não se encontra interessada, em princípio, por fazer coisas, por resolver problemas, senão para traçar uma presença. Ela não está aí para “arrumar” as coisas, mas para escutar e compartilhar um momento festivo. Ela se encontra presente, num gesto de solidariedade que transcende e supera toda atividade.
Trata-se de uma presença que é “música calada” nos lugares cotidianos e escondidos, que sabe enternecer-se e escutar as inquietações que procedem desses lugares. Uma presença que descobre o próximo no próximo, que sabe resgatar a solidariedade na vida cotidiana. Uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.
Em definitivo, Maria descobre que é chamada a dar de graça o que de graça recebeu. Sabe entrar em sintonia com os sentimentos dos outros e construir vida festiva, e vida em abundância. Sua presença revela um gesto profético de solidariedade e de anúncio: presença que aponta para uma outra presença, a de seu Filho. Sua presença dignifica e revela um novo sentido à presença de Jesus numa festa de Casamento.
A presença silenciosa, original e mobilizadora de Maria desvela e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher na própria vida outras vidas; histórias que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.
Disto se trata: aprender dos outros; recarregar nossa própria história de um horizonte diferente, no qual cabem outras possibilidades e outras responsabilidades; descobrir uma perspectiva mais ampla que ajuda a formular melhor o sentido de nossa própria vida.
Evidentemente, nem toda presença é “saída de si”; uma pessoa pode passar pelos lugares sem que os lugares deixem pegadas; ela pode tocar a superfície das coisas e das vidas, mas esse contato deixa pouca memória e que logo desaparece. Com isso não há encontro nem aprendizagem.
Quando a pessoa se faz presença que desemboca no verdadeiro encontro, ela se expõe, se faz vulnerável, se deixa afetar... Mas essa é a oportunidade para transformar os olhares e os gestos de quem se atreve a sair dos horizontes conhecidos.
São muitos os encontros que são fecundos para quem se faz presente e para quem acolhe esta presença. São muitas as pessoas cujas vidas ganham em seriedade, em profundidade, em compaixão e em alegria autêntica ao fazer esse caminho de saída de si. São muitas as pessoas que, em contato com vidas e histórias diferentes e reais, compreendem melhor suas próprias vidas e sua responsabilidade.
O seguimento de Jesus nos mobiliza e nos expande na direção dos outros.
“O discípulo-missionário é um descentrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais. A posição do discípulo-missionário não é a de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias” (Papa Francisco)
Que significa “fronteiras geográficas e existenciais”. É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novas vivências, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode enriquecer-nos...
A vida está cheia de possibilidades; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, provocações, aprendizagens, motivos para celebrar... lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
A fronteira passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
Isso pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Nosso desafio não é fugir da realidade, mas aproximarmos dela com todos os nossos sentidos bem abertos para olhar e contemplar, escutar e acolher, percebendo no mais profundo da mesma a presença ativa do Deus que nos ama com criatividade infinita, para encontrar-nos com Ele e trabalhar juntos por seu Reino.
O discípulo missionário não é aquele que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele que, movido por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença do Inefável. “Encontrar, a experimentar Deus em todas as coisas... a Ele em todas amando e a todas n’Ele” (S. Inácio).
Deus emerge na densidade das coisas, das pessoas e dos acontecimentos.
Quem está em sintonia com esta Presença, vive uma festa permanente.
Texto bíblico: Jo 2,1-11
Na oração: por onde você tem transitado normalmente? Somente por lugares conhecidos, junto às pessoas amigas? Sua presença eleva, anima, desperta os outros?
Você se deixa afetar pelas presenças provocativas? os pobres? os marginalizados? as minorias?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“Quando o dono da vinha voltar, o que fará com os vinhateiros?” (Mt 21,40)
Na perspectiva bíblica, a vinha aparece sempre como aliada do ser humano; ela nos ensina a viver em harmonia com a água, com a terra e com todos os seres, numa relação de aliança. A primeira relação do ser humano com a Vinha, portanto, não é a da posse, mas a da acolhida, por ela ser dada em herança. Todos os bens da Criação são recebidos por nós deste modo, ou seja, como dons.
A Vinha, como realidade doada, convida à compreensão de sua origem, não para dominá-la e manipulá-la, mas para tornar o dom uma benção fecunda para todos. A vinha é dada por Deus em função da vida. Por isso a Vinha é sagrada e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador; ela é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina. E o ser humano é chamado a “trabalhar com” o Criador, cuidando da Vinha, para que ela seja fecunda e alimente a alegria de todos.
O Evangelho de hoje (27 dom. T.Comum) revela que, quando as pessoas rompem a aliança com Deus e se afastam d’Ele, a vinha fica estéril. Quando uns poucos se apropriam dela como donos, ela passa a ser o lugar da espoliação, da devastação, da morte e deixa de ser espaço para a convivência fraterna e solidária.
De fato, contemplando a “grande Vinha do Senhor”, percebemos que o poder-dominação sobre a natureza e o consumismo exacerbado destruiu o sentido cordial das criaturas e legou-nos um devastador vazio existencial.
Segundo a revelação bíblica, as criaturas não estão colocadas umas ao lado das outras, em justaposição, mas são todas sinfônicas, interligadas. Há uma grande unidade, feita de muitos níveis, de muitos seres diferentes, todos eles ligados e religados entre si. E, por isso, num profundo e intenso dinamismo.
O drama do ser humano é não se sentir em comunhão num todo maior e perder a memória de que é parte do todo; é não se sentir um elo vivo e esquecer que este é um elo da única corrente de vida. A antropologia bíblica é iluminadora ao reconhecer a vida humana numa estreita interconexão com outros seres, como uma teia interdependente.
Ao predominar a autoafirmação e o domínio do ser humano sobre a Criação, produziu-se a quebra da “religação” com tudo e com todos. Ele se colocou num pedestal solitário a partir de onde pretende dominar a Terra e os céus; como consequência dessa atitude temos a devastação da vinha. O embrutecimento do ser humano, de sua interioridade, a perda do gosto pela verdade, pelo bem e pelo belo, o extravio da ternura e da transcendência, repercutem em falta de respeito pela natureza, em ruptura com as outras criaturas, em insensibilidade ecológica.
Por sua atitude de arrogância e de autossuficiência, o ser humano explorou exaustivamente a vinha herdada e a destruiu, depredou, aniquilou, tomou posse dela... Assim, não foi respeitoso para com o Criador que a ele reservou a missão de cuidar da sua vinha e de compartilhar os seus frutos.
Há um clamor generalizado que emerge da realidade desafiante enfrentada pela humanidade: o planeta Terra está gravemente enfermo. As consequências trágicas estão presentes por toda parte: degradação do meio ambiente, diminuição acelerada das fontes de água potável, desertificação, degelo das calotas polares com a consequente elevação do nível do mar, grande incidência de furacões e de queimadas, extinção de milhares de espécies de animais, escassez de alimento, proliferação de doenças, migrações forçadas... Enfim, o desequilíbrio dos ecossistemas pode comprometer, de forma irreversível, todas as formas de vida sobre a terra.
Ferir a Vinha é ferir o próprio Criador. Quando observamos vinhas outrora verdejantes e agora destruídas ou entulhadas de lixo, uma sensação de violação, de tragédia, quase de sacrilégio, se manifesta no nosso interior. E uma voz ecoa das profundezas da destruição: “Quê fizestes de minha vinha?”.
Como seres humanos, somos convocados a desenvolver uma consciência criatural, em que a Criação deixa de ser vista como objeto de domínio. Ela é um dom de Deus que deve ser acolhido com reverência, respeito e louvor. Somente a vivência dessa relação do ser humano com a criação possibilitará novas relações sociais e ambientais, o novo tempo de paz e justiça.
É nesse momento dramático que uma nova cosmologia se revela inspiradora. Em vez de “dominar” a natureza, situa-nos no seio dela em profunda sintonia e sinergia. O que caracteriza essa nova cosmologia é o cuidado em lugar da dominação, o reconhecimento do valor intrínseco de cada ser e não sua mera utilização humana, o respeito por toda forma de vida e os direitos e a dignidade da natureza, não sua exploração.
A primeira relação do ser humano com a Criação, portanto, não é a da posse, nem a da pergunta pelo seu porquê, mas a da acolhida em seu ser dado. A forma dessa acolhida é o assombro de sua presença e o temor diante de sua possível perda.
Enfim, a parábola do evangelho de hoje aponta para uma relação de acolhida agradecida e reconhecida para com a Vinha, pois ela é o lugar no qual não só existimos, mas somos chamados a uma plenitude de vida, em aliança e comunhão com o Deus Trindade.
Somos todos “lavradores” encarregados de tornar a vinha fecunda. Somos todos “lavradores” que temos de prestar contas a Deus dos frutos de sua vinha, que não nos pertence. Assim, o exercício do senhorio, ou a dominação, por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina e contribuir com o crescimento e a evolução da natureza em todas as suas dimensões; igualmente, cuidado com o meio ambiente para fazer dele uma fonte de bênçãos, ou seja, de comunhão com todos e, a partir dele, crescer em harmonia interior e estreitamento de relações com o próprio Criador.
Texto bíblico: Mt 21,33-43
Na oração: Mobilizar meus sentidos para ver, ouvir, tocar, sentir e saborear a beleza de nossa terra. Considero minha conexão com esta beleza e como ela me faz perceber o amor da Trindade ao cosmos, em constante evolução.
Considero o novo sentimento de maravilha que cresce em meu coração e como dá novo sentido à minha missão de colaborador no grande jardim do Criador.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
“... os publicanos e as prostitutas vos precederão no Reino de Deus” (Mt 21,31)
No Evangelho de hoje (26º Dom. Tempo Comum), Jesus, com sua original sabedoria, nos oferece uma outra perspectiva de vida. Sem dúvida alguma, Jesus era um provocador, no sentido etimológico da palavra, (provocar: chamar para frente, desinstalar), que obrigava a ver as coisas a partir de uma perspectiva diferente da que era habitual. Ele é Aquele que vê mais além da realidade: descobre vida onde os outros só veem morte; desvela possibilidades onde os outros se deparam com o impossível; descobre sementes de futuro escondidas onde ninguém vê mais saída; vê santos onde todos só veem pecadores... Jesus é Aquele que vê bondade presente no fundo do coração, inclusive daqueles que eram condenados como “publicanos e prostitutas”; sabe ler nos gestos mais simples a grandeza de um coração capaz de amar, de mudar, de ser melhor.
Mas, custa-nos muito modificar nossa perspectiva; estamos acostumados a um modo fechado de viver, com umas viseiras (a dos “sacerdotes e anciãos do povo”) que não nos permitem captar a vida em sua plenitude e riqueza; com isso nos instalamos no já adquirido e conhecido e atrofiamos em nós o dinamismo que busca abrir a mente e alargar o coração à realidade que nos cerca.
Ver as coisas “por uma outra perspectiva” é muito mais divertido. O “avesso” revela que o mundo poderia ser diferente. Dizem que, ao pintar uma paisagem, os paisagistas a olham dobrando-se e pondo a cabeça entre as pernas abertas, por mais incômodo que seja a postura, porque assim se libertam da visão “oficial” do conjunto que todos veem de pé, e descobrem novos ângulos, perspectivas não usuais e a surpresa do novo no molde antigo.
Também aqui os hindus conhecem e praticam a sabedoria ancestral da postura do “pinheiro”, com a cabeça para baixo e as pernas para cima, mudando de direção as correntes metabólicas do corpo e olhando ao mesmo tempo o “mundo ao avesso”. Isto acaba sendo a maneira de ver as coisas pelo direito. É o segredo da arte, da vida e das decisões bem tomadas. Um enfoque novo sempre proporciona um ponto de referência melhor para uma avaliação independente, seja de linhas e cores, seja de opções e valores de vida.
Um ponto de vista novo, limpo e original é uma grande ajuda para uma vida sadia.
O que Jesus pretende na pequena parábola de hoje é dar-nos um novo ponto de vista, um novo ângulo, uma nova perspectiva, fazendo-nos ver a realidade do outro como se fosse pela primeira vez, com um olhar límpido e um juízo desinteressado.
Os “sacerdotes e anciãos do povo” são os “profissionais” da religião: aqueles que disseram um grande “sim” ao Deus do templo, os especialistas do culto, os guardiães da lei. Não sentem a necessidade da conversão e não se abrem à novidade trazida por Jesus.
Os “publicanos e prostitutas” são aqueles que disseram um grande “não” ao Deus da religião, aqueles que se colocaram fora da lei e do culto. No entanto, seu coração se manteve aberto à conversão e acolheram a novidade de Jesus. “Sacerdotes e anciãos do povo” x “publicanos e prostitutas”: revelam o lugar e o modo de viver de cada grupo na estrutura religiosa do tempo de Jesus. Mas podemos ir além: tais grupos estão presentes, e em constante conflito, em nossa própria interioridade.
Como integrá-los e como conviver com eles para que nossa vida seja criativa e expansiva?
Nesse sentido, esta pequena parábola nos capacita a considerar nossa vida sob outra perspectiva. Provavelmente, a parábola – em linha com a sabedoria de Jesus – está nos convidando a que sejamos capazes de reconhecer e abraçar o “publicano” e a “prostituta” que cada um de nós carrega em nosso interior. O sentido seria o mesmo que aquela outra parábola que fala do “fariseu” e do “publicano”: até que não reconheçamos o nosso publicano interno não poderemos estar reconciliados.
Simbolicamente, “publicano” e “prostituta” é aquela dimensão nossa que temos reprimida e oculta, nossa própria sombra. É claro que, enquanto não a reconhecermos, projetaremos nos outros o que em nós mesmos rejeitamos. Só quando abraçamos nossa “negatividade”, nos humanizamos, porque nos abrimos à humildade. E só então pode emergir a bondade e a compaixão para com os outros.
Os “sacerdotes” e os “anciãos” – escravos de sua própria imagem de “observantes religiosos” – eram incapazes de reconhecer e aceitar seu “publicano” e sua “prostituta” – presentes em todos nós. Isso os incapacitava para amar os outros – publicanos e prostitutas – e para entrar no Reino. Quanto mais nos reconciliamos com nossa debilidade e fragilidade, mais próximos estaremos da verdade.
Uma coisa parece clara: abraçar nossos próprios “publicano” e “prostituta” nos permitirá abraçar qualquer pessoa que cruze nosso caminho, sem necessidade de impor-lhe nenhuma etiqueta prévia. Dito de outro modo: ao reconhecer e aceitar nossa própria sombra (tudo aquilo que em algum momento tivemos que negar, ocultar, reprimir...) crescemos em unificação e harmonia interior, desaparecem os juízos e preconceitos e entramos em um caminho de humildade e graça.
A aceitação da sombra (“publicano-prostituta”) nos faz descer do falso pedestal ao qual nos havia feito subir o “sacerdote que nos habita” e nos permite crescer em humildade e em humanidade.
Para Jesus, a conversão significa mover-nos em direção à nossa fragilidade, aos limites, às sombras...
Ao reconhecer-nos fracos e limitados, nós nos abrimos para Deus e para os outros; sentimo-nos necessitados de salvação. Só a aceitação de nossa verdade completa conduzir-nos-á no caminho da libertação. E a verdade é que em cada um jazem unidas a luz e a sombra, o sacerdote e o publicano. Em cada santo dorme um pecador, e não reconhecer isso conduz ao farisaísmo e ao moralismo; mas em todo pecador dorme também um santo, e não percebê-lo supõe um empobrecimento humano, desesperança e vazio.
Somente quando integrarmos e nos reconciliarmos com os aspectos nossos que tínhamos negado ou até rejeitado – a sombra - , poderemos alcançar a paz e a harmonia estáveis. Portanto, nossa grande tarefa não consiste em sermos “perfeitos”, mas “completos”. Na medida em que somos mais “completos”, porque aceitamos de maneira integral nossa verdade, tornamo-nos mais compassivos e humanos.
Quem se identifica com “ideais” muito elevados, quem se exalta a si mesmo na busca da “perfeição”, mais cedo ou mais tarde terá de confrontar-se com suas “sombras”, será forçado a tomar consciência de sua condição humana e terrena, de seu “húmus”.
Quem “desce” até sua própria realidade, até os abismos do inconsciente, até a escuridão de suas sombras, até a impotência de seus próprios sonhos, quem mergulha em sua condição humana e terrena e se reconcilia com ela, este sim, está “subindo” para Deus, faz a experiência do encontro com o Deus verdadeiro.
Texto bíblico: Mt 21,28-32
Na oração: “Em você há uma luz capaz de espantar as trevas dos acontecimentos mais dramáticos; você é portador de uma força que pode sustentá-lo em experiências exigentes. Em sua fraqueza há algo divino. O que a terra seca tem a oferecer? Nada, quando abandonada às suas próprias limitações. Mas ela não desespera. Mesmo sob a pobre forma de deserto, continua guardiã de tesouros insuspeitos” (Frei Cláudio V. Balen).
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Chama os trabalhadores e paga-lhes uma diária a todos, começando pelos últimos até os primeiros” (Mt 20,8)
Outra parábola surpreendente de Jesus onde o protagonista é o dono da vinha, um homem bom e justo, que quer trabalho e pão para todos. Ao contá-la, certamente Jesus despertou nos ouvintes um desconcerto geral. Os trabalhadores são contratados em horários diferentes, ao longo do dia e, surpreendentemente, o dono da vinha paga a todos um denário, que era o que uma família precisava para viver cada dia na Galileia. Os que chegaram primeiro protestaram, considerando uma injustiça o fato de terem trabalhado mais e recebido o mesmo valor pela diária.
Jesus revela uma concepção revolucionária de justiça do Pai. Deus desafia a justiça calculadora, autosuficiente. Nós achamos justiça pagar algo com seu preço equivalente. Mas Deus tem outros critérios: para Ele, justo é o que é bom. A justiça de Deus é idêntica à sua bondade. O dono da vinha pagou o salário que não era proporcional ao trabalho feito, mas sim proporcional às necessidades dos trabalhadores e de suas famílias. Ele não se fixa nos méritos de cada um, se trabalhou muitas horas ou se trabalhou poucas horas; o que lhe preocupa é que, esta noite, todos tenham o que comer.
A parábola também revela que o importante é a intensidade do trabalho e a intenção com que ele é realizado e não apenas sua duração; revela também que o trabalho a serviço do Senhor já é uma graça e um privilégio. No Reino não se trabalha por méritos ou para receber recompensa. A retribuição já está dada no fato de “trabalhar na vinha do Senhor”.
Outro aspecto que a parábola deixa transparecer é que, além da relação de trabalho, baseada no rendimento e regida pela justiça, existe a relação amorosa, baseada na generosidade e regida pela bondade e pela ternura. Precisamente aos “primeiros” que foram trabalhar na vinha, o dono teve de recordar uma coisa que é absolutamente lógica: “o teu olho é mau porque eu sou bom?”
A última palavra é a chave de todo o texto. Deus Pai se relaciona com seus filhos não a partir do critério do mérito segundo o rendimento, mas a partir da generosidade. Ele não anda calculando o que cada um merece. Isso é uma falsa ideia que serviu somente para ‘deformar” a imagem de Deus que todos nós carregamos dentro. Muita gente fundamenta sua fé num Deus “deformado”, porque é um Deus que se parece muito mais a um patrão que ajusta contas com seus criados do que um Pai que quer sempre que seus filhos vivam. Deus é generoso, e basta.
As pessoas que tem em sua cabeça o Deus-patrão, que paga segundo os méritos e o rendimento, não entendem e nem podem entender o Deus-Pai revelado por Jesus no Evangelho.
Há cristãos que passam pela vida como “diaristas”, calculando o que vão “ganhar” e “merecer”. E há cristãos que caminham pela vida como “filhos” do Pai do céu: eles não pensam em ganhos e em merecimentos; só pensam em ser bons filhos, honrados por trabalharem na vinha do Pai e que vibram quando alguém acolhe o chamado para colaborar. Para eles o que importa não são os “méritos”, mas a “generosidade”.
Em geral, aqueles que veem a si mesmos como os “primeiros” e, portanto, como os que apresentam maior rendimento, os mais eficazes e os melhores, o que fazem mais pelos outros, não podem tolerar que os “últimos” sejam tratados como eles, que veem a vida somente a partir da eficácia, dos direitos, dos privilégios e do bom rendimento. Não possuem outros critérios em sua cabeça e nem sequer em suas vidas há lugar para outras categorias ou outros valores.
Ora, as pessoas que assimilaram tais critérios são pessoas que não entendem as “razões do coração” e, portanto, tais pessoas correm o perigo de não entender a generosidade e, o que é pior, normalmente não estão capacitadas para compreender que a vida tem de se reger por uma bondade tão grande que supere todas as obrigações do direito e da justiça humana.
Ao dizer isso, estamos tocando na utopia do Reino anunciado por Jesus. Por isso, a ética de Jesus nos desconcerta, nos confunde. Pois não temos a coragem de afirmar que na vida inteira, tanto na vida privada quanto na vida social e pública, se não é a bondade e o amor que prevalecem, fazemos desta vida uma selva, um campo de batalha, um inferno, no qual caem os mais fracos e tiram proveito os que dominam os outros.
Sabemos muito bem que todo aquele que pretende situar-se na frente ou acima dos outros provoca divisão, inveja, ressentimentos e, definitivamente, rompe a proximidade entre as pessoas.
Ao contrário, aquele que não pretende postos de honra e de importância, somente pelo fato de agir assim, produz uma corrente de harmonia, de união, de humanidade, de proximidade entre as pessoas.
Na parábola de hoje há um “pecado de raiz” que afeta a todos: a comparação com outros. E da comparação brotam a inveja e a queixa. E quanto mais se compara com outros, mais insatisfeito fica e mais se sente prejudicado por Deus e pelo destino. Com isso, trava o fluir da própria vida.
Na parábola, o que deveria ser um motivo de alegria para os primeiros que foram chamados, é sentido como ameaça à própria segurança. Quando ouvimos as palavras dos “primeiros” – justificando-se e pedindo reconhecimento - percebemos uma queixa mais profunda. É a que vem do coração que acha que nunca receberam o que lhe era devido. Na sua queixa, o trabalho é visto como escravidão.
É a queixa expressa de inúmeras maneiras, sutís ou não, formando uma montanha de ressentimento. Fechados em si mesmos, só olham para si, para suas obras, para a duração do seu trabalho; encouraçados na própria justiça, não há neles a mais mínima abertura para a gratuidade e a alegria da comunhão, para a vivência da filiação e da fraternidade.
Queixar-se é contraproducente e nocivo. Alguém que só reclama é alguém difícil de conviver.
O trágico é que, uma vez expressa, a lamúria leva ao que mais se queria evitar: um afastamento maior. Essa queixa íntima é sombria e pesada: condenação dos outros, condenação própria, justificativas... entrando numa espiral de auto-rejeição. À medida que se deixa arrastar ao interior do vasto labirinto das suas queixas, fica mais e mais perdido, até que, no fim, acaba achando-se a pessoa mais incompreendida, rejeitada, negligenciada e desprezada do mundo.
É esta derrota – caracterizada por julgamento e condenação, raiva e ressentimento, amargura e ciúme – que é tão perniciosa e prejudicial ao coração humano. Tornou-se menos livre, menos espontâneo e um tanto quanto “pesado”.
Texto bíblico: Mt 20,1-16
Na oração: - é na “queixa”, declarada ou não, que reconheço em mim a imagem dos “trabalhadores da primeira hora”. Quais são minhas queixas?
- não é fácil distinguir o meu ressentimento e administrá-lo de maneira sensata; esta é a realidade: onde quer
que se encontre meu lado virtuoso, aí também existirá sempre um lado queixoso e ressentido;
- abrir espaço em meu interior para que a bondade e a gratuidade do Pai prevaleçam na minha relação com
os outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito...” (Jo 3,16)
Diante do mistério da “exaltação da Santa Cruz”, o mistério do “esvaziamento” e “descida” do Verbo de Deus até as últimas consequências, muitos questionamentos brotam naturalmente:
- O ser humano pós-moderno, que absolutiza o bem estar, o prazer, o consumo, pode ainda encontrar,
na contemplação de um Crucificado, a chave para entender sua própria vida?
- Quê sentido tem um Deus que se esvazia de suas prerrogativas e “desce”, deixando-se encontrar entre
os últimos e excluídos?
- a Cruz é sinal de solidariedade ou sinal de impotência, sinal de libertação ou sinal de opressão, sinal de rebeldia ou sinal de submissão, sinal dos vencidos ou sinal dos vencedores...?
A Cruz é um produto terrível da maldade, se a encaramos da perspectiva humana; e é manifestação do amor levado até as últimas consequências, se a olhamos da perspectiva de Deus.
A festa da “exaltação da Santa Cruz” nos desvela o verdadeiro rosto do Deus de Jesus: rosto feito de amor e não de ira; de vulnerabilidade e não de distancia; de perdão e não de castigo; de benção e não de maldição.
A primeira coisa que descobrimos ao contemplar a Cruz é a força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da mentira. Mas é precisamente aí que nós, seguidores de Jesus, vemos o Deus identificado com todas as vítimas de todos os tempos. Está na Cruz do Calvário e está em todas as cruzes onde sofrem e morrem os mais inocentes. A partir da Cruz, Deus não responde o mal com o mal; Ele não é o Deus justiceiro, ressentido e vingativo, pois prefere ser vítima de suas criaturas antes que verdugo.
A Cruz e o Crucificado nos revelam que não existe, nem existirá nunca um Deus frio, insensível e indiferente, mas um Deus que padece conosco, sofre nossos sofrimentos e morre nossa morte. Despojado de todo poder dominador, de toda beleza estética, de todo êxito político e de toda auréola religiosa, Deus se revela a nós, no mais puro e insondável de seu mistério, como amor e somente amor.
Nós cristãos contemplamos o Crucificado para não esquecer nunca o “amor louco” de Deus para com a humanidade e para manter viva a recordação de todos os crucificados da história. Tudo está atravessado pelo dinamismo vivificante do Amor de Deus que transpareceu em Jesus com seu amor até o fim. O seu Amor é um Amor que em sua fidelidade sofrida nos sustenta e conforta em nossas noites.
De fato, a Redenção está na Luz e não na cruz. Esta – com minúscula – foi imposta pelos carrascos e, de nenhum modo, foi querida ou imposta pelo Pai, como expiação. Só podemos escrever Cruz – com maiúscula – quando ela se converte em Luz, deixa de ser ensanguentado patíbulo para se revelar como progressivo Caminho de salvação. O Deus dos cristãos se fez humano para indicar-nos o Caminho da Luz, ou seja, da humanização da pessoa e do mundo.
Abraçar e dar sentido à Cruz supõe uma real e firme adesão aos valores pelos quais o Crucificado preferiu morrer a desertar e trair. Está aí uma multidão de mártires para comprovar isso. A Cruz é a revelação da “escada de luz” que o Filho desceu até o fundo do poço da degradação na qual o ser humano estava (e está) metido. Só se regenera e se salva quem se empenha em subir por essa escada, vivendo os valores que o Crucificado viveu. Nem sacrifícios, nem méritos, nem pagamentos. Puro amor gratuito de um Deus que é Amor!
“Deus amou tanto o mundo...” O mistério da Santa Cruz nos sensibiliza e nos capacita para aproximar-nos do nosso mundo com uma visão mais contemplativa. Em outras palavras, a contemplação da Cruz ativa em nós uma maneira contemplativa de viver no meio do mundo para rastrear a presença de Deus, oculto nos lugares da fragilidade. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da humanidade.
O seguidor de Jesus oscila entre o mundo e Deus. É tão familiar com Deus que admira a variedade e a multiplicidade do mundo, e não teme o mundo com toda a sua complexidade. E é tão familiar com o mundo que sente o Espírito de Deus, que trabalha no mundo, em todos os lugares e da maneira mais inesperada.
Em Jesus cristo fica claro, de uma vez para sempre, que Deus é do mundo e o mundo é de Deus. “Meu solo e o solo de Deus são o mesmo solo” (Mestre Eckhart). A terra já não é um vale de lágrimas mas o lugar onde Deus armou sua tenda. A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo, entra em comunhão com a realidade tal como ela é. É olhar o mundo como “sacramento de Deus”. Um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que existem no mundo; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e por isso gerador de misericórdia; um olhar que compromete solidariamente.
Na Cruz de Jesus, portanto, nos é oferecida uma nova forma de sentir o mundo: “tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus”. O madeiro onde Jesus de Nazaré morreu não é belo aos olhos humanos, não gratifica nossos sentidos; não é a marca de um “país católico”, nem a divisa da cristandade... É e será sempre fonte origem de um novo modo possível de ver e ouvir o mundo, de olhar quem somos e como é Deus.
A Cruz, com seu mistério fascinante e tremendo, com seu mistério sempre maior, não só é fonte de salvação eterna, mas princípio de uma nova sensibilidade para um novo modo de se fazer presente neste mundo.
Não podemos venerar a Cruz e adorar o Crucificado vivendo de costas ao sofrimento de tantos seres humanos destruídos pela fome, miséria e exclusão. Se ao contemplar o rosto do Crucificado nos esquecemos das vítimas, seja qual for sua raça, cultura ou religião, então é que nosso olhar não é o olhar da fé. Segundo Jon Sobrino, a fé no Crucificado implica em fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela.
Na Cruz, Jesus Cristo “desceu” ao nível mais baixo da condição humana, de maneira que todo aqueles que caírem, caiam n’Ele. Associar-nos ao Cristo em sua “descida” para “subir” com Ele significa, também, arrancar de nosso próprio coração a cumplicidade com todo tipo de morte e deixar-nos possuir pela glória de Deus. “Descer” com Ele para aquilo que também está morto em nós (no nível corporal, afetivo, espiritual, social). A luz da presença de Cristo ilumina tudo o que é sombrio em nosso interior. Ali estão presentes germes de vida que ainda não tiveram possibilidade de irromper e crescer.
Texto bíblico: Jo 3,13-17
Na oração: quando levantamos nossos olhos até o rosto do Crucificado, contemplamos o Amor insondável de Deus; se O contemplamos mais atentamente, logo descobriremos nesse Rosto o rosto de tantos outros crucificados, longe ou perto de nós, reclamando nosso amor solidário e compassivo.
- Diante do Crucificado, trazer à memoria os crucificados de hoje: isto nos afeta? nos deixa inquietos? nos incomoda?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana –CEI
“Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles” (Mt 18,20)
O evangelho de hoje faz parte do chamado “discurso comunitário”, que revela um modo original de viver e proceder e que tem seu fundamento no modo de viver e agir do próprio Jesus.
É bonito ver como Jesus prepara e acompanha os seus amigos, os apóstolos, para a vida de comunidade e para a missão. Ele dedica à formação dos Doze suas melhores forças e seus ensinamentos mais claros. O fundamental, nesta formação, é o "estar com Ele": convivência, intimidade, partilha de vida, de sonhos...
Jesus tem consciência de que nenhuma comunidade de seus seguidores poderá subsistir se imperar um estilo de vida individualista, competitivo e incapaz de acolher as limitações e fragilidades de cada um.
Daí seu constante convite a provocar encontros que ajudem a integrar, a re-unir, a re-ligar, a articular o tecido comunitário. Há tantas vidas esparramadas, isoladas, rejeitadas... esperando por sinergia.
Na verdade, Ele provocou as pessoas a saírem de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para expandir-se em direção a uma nova forma relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho do “Reino de Deus”.
O sentido da vida em comum é um dom de Deus, que nos foi dado a todos. O fundamento é que Deus Criador é Amor Trinitário, é comunhão de Pessoas (Pai-Filho-Espírito Santo). Como criaturas, fomos atingidos pela marca trinitária de Deus. Como homem e como mulher, trazemos esta força interior que nos faz “sair de nós mesmos” e criar laços, fortalecer a comunhão...
O ser humano não é feito para viver só; ele necessita con-viver, viver-com-os-outros; ele é um ser constitutivamente aberto, essencialmente em referência a outras pessoas: estabelece com os outros uma interação, entrelaça-se com eles, e forma um nós: a comunidade.
O termo comunidade faz referência a algo “comum”. É aquilo cujo modo de ser é comum. A palavra “comum” vem do latim, “communis”, palavra composta de “com/cum” e “munis”. “Com/cum” significa: com, junto com, um ao lado do outro, unido, junto. “Munis” significa: disposto a, pronto, preparado para o serviço. O “múnus” é, portanto, o melhor de nós mesmos, o que de mais nobre e precioso brota de nossa interioridade e que compartilhamos quando vivemos uma sadia relação com os outros.
Estar juntos, unidos nessa partilha do melhor de nós mesmos, da maturidade e do crescimento, da autoridade e da identidade pessoal é ser “comum”. Nisso se expressa a comunidade.
No Evangelho proposto para esta liturgia, encanta-nos a delicadeza de Jesus, causa-nos impacto sua fina e delicada pedagogia, afeta-nos sua sensibilidade em salvar a dignidade do pecador e não delatá-lo publicamente. Jesus rejeita sempre o pecado, mas empenha todos os seus esforços por salvar sempre a dignidade, a honra e a estima do pecador. Por isso, o evangelho nos indica todo um processo de relação reconstrutora com aquele que falha e cai no erro: a atitude básica, fundamento de toda relação na verdade, é acreditar que “o outro” busca claramente o bem, e, se existe o erro, é por engano, suposta sua absoluta boa vontade.
Tal atitude desmascara o preconceito e esvazia a predisposição de julgar e de condenar sem conhecer e sem dar ao outro uma nova possibilidade. Segundo a afirmação de Jesus, o preconceito, a consciência julgadora, o juízo rápido, são incompatíveis com o bom senso evangélico, a liberdade, e o espírito de discernimento exigido.
O “bom seguidor” é aquele que vive segundo o bom senso de seu Mestre e Senhor, vencendo os impulsos da consciência julgadora e ativando a atitude inaugurada por Ele, de ouvir, compreender e amar o outro na sua fragilidade. Todos somos “santos e pecadores” e é enquanto pecadores que somos chamados a ser presença que corrige com amor.
A “correção fraterna” é gesto humilde que não humilha, porque é discreto e silencioso. Corrigir com amor não significa pôr o outro de joelhos para que reconheça as suas faltas; ele nasce de um coração “educado” pela Misericórdia divina e se manifesta externamente com uma atitude mansa e condescendente. Esse Amor é uma força poderosa, não se rende diante do mal, porque é sempre capaz de redescobrir o bem ou de salvar a intenção do outro, de ativar novamente a esperança...
A correção fraterna é mais um estilo de vida que um ato ligado a uma transgressão. É um modo de pôr-se diante do outro e de sua fraqueza, mas que não se realiza exclusivamente depois da queda; antes, pode às vezes impedir essa queda porque é um estilo de bondade, compreensão, magnanimidade, estilo de quem não presta atenção ao que o outro merece nem se escandaliza com sua miséria. "Devemos corrigir como pecadores”, não como “justos”.
A pessoa misericordiosa salva e redime só enquanto ama: quer o bem do outro e se entristece com seu mal, sente o dever de fazer alguma coisa por ele. Trata-se da motivação mais nobre e verdadeira de sentir-se responsável pelo outro.
Sua correção é fundamentalmente uma mensagem de estima e confiança no outro, crer na sua amabilidade. Quem corrige está convencido de que o irmão é melhor que aquilo que aparentava.
Por isso, a correção é aquela energia escondida nas palavras de Jesus:
“Vai e não peques mais”. Força que cria aquilo que diz.
O cristianismo é tão revolucionário que exige do ser humano não apenas a grandeza de compreender e desculpar o ofensor, mas a capacidade de amá-lo. Corrigir é ter esperança no ofensor, acreditar em sua humanidade, oculta sob a sua fragilidade. O ser humano é muito mais que um ato e uma decisão. É reconhecer sua liberdade de ser, de iniciar uma nova possibilidade para sua existência e de reiniciar-se a si mesmo.
No momento da correção fraterna, que é um momento de parto e de libertação, dá-se ao outro o direito de “ser um outro”, não o aprisionando numa única possibilidade de ação e de decisão. Enfim, a correção é uma atitude de vida que exige redefinição do outro (contemplá-lo sob outro prisma). É enxergar no outro não o mal que fez, mas sua verdadeira identidade de filho de Deus. Correção expansiva, que abre futuro; faz emergir outros recursos latentes na pessoa; é impulso de vida, destrava e coloca a pessoa em movimento, impulsionando-a a ir além de si mesma.
Texto bíblico: Mt 18,15-20
Na oração: A Graça é o mais profundo em nós, e para revelar sua força, ela nos atravessa por inteiro, demolindo e reconstruindo, ferindo e sarando. A Graça constrói sobre a natureza, e pode elevá-la.
Deus vem ao nosso encontro em nossas carências e fraquezas; Ele nos procura através de nossas falhas, de nossas feridas, de nossas limitações... Deus serve-se de nossos pecados para abraçar-nos carinhosamente.
Nesta perspectiva, ser carente e limitado é o espaço onde Deus atua e revela seu rosto misericordioso.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16,24)
O tema do seguimento é central em todos os Evangelhos. Trata-se de abandonar qualquer outra maneira de se relacionar com Deus e com os outros, e entrar na dinâmica espiritual que Jesus manifesta em sua vida. É identificar-se com Ele em sua entrega total aos outros, sem buscar para si nada que possa ter cheiro-resquício de poder e glória.
Jesus é realista. Como todos os mestres espirituais, mostra a senda da vida, que nos permite escapar da confusão e do sofrimento, para reconhecer-nos na nossa verdadeira identidade, espaço de verdade, de liberdade, de unidade e de comunhão.
A oferta de Jesus é um chamado à liberdade: “se alguém quer me seguir...” Caminhar com Ele nos liberta da autossuficiência estéril e do auto-centramento que nos fecha. O seguimento de Jesus pede “descentrar-nos” de nós mesmos para sermos agentes do novo e criadores de futuro.
Aqui está o sentido da expressão “renunciar a si mesmo”, erroneamente interpretada como autonegação, automutilação e autodesprezo. Mas não é disso que Jesus fala. A palavra grega “aparneisthai” significa “dizer não, recusar-se”. Aquele que o segue precisa dizer não às tendências egocêntricas do seu interior, que querem fechá-lo em si mesmo, atrofiando e travando o impulso de vida. Portanto, a expressão “renunciar a si mesmo”, não significa negar o que somos, mas o que julgamos ser e não somos. “Renunciar a si mesmo” não é negar a vida, nem inclui uma atitude de resignação, auto-sacrifício ou morte em vida. Jesus era um homem profundamente vital e defensor da vida.
“Renunciar a si mesmo” significa renunciar aquilo que nega a vida. Para ganhar a vida é necessário perdê-la, e “perder a vida” significa “perder o eu”, ou seja, deixar de alimentar o “ego”. Porque, de outro modo, quando vivemos para ele, estamos perdendo a vida, entrando na confusão e no sofrimento.
A experiência verdadeira do seguimento de Jesus só é possível se abrirmos mão do nosso ego, se não deixarmos que ele determine a nossa vida; se seguir Jesus serve apenas para aumentar o nosso ego, nos tornamos cegos e nos perdemos.
A mensagem de Jesus não pretende desumanizar-nos, mas conduzir-nos à verdadeira plenitude humana.
A vida quer fluir, e quando não flui, ela se atrofia. No entanto, no mais profundo de cada um de nós habita uma pretensão básica de querer “ser deus” – “sereis como deuses”. É o pecado de raiz já dos nossos primeiros pais. É a tentação de querer ser outro, de não aceitar ser dependente, de não aceitar-se como criatura, como humano (frágil e limitado).
“Renunciar a si mesmo” é não deixar que o impulso para a vaidade, a soberba... predomine; não deixar que o centro seja o “eu”, mas Deus. Isso implica em “descer”, humildemente, ao próprio húmus.
Viver para o eu é gastar a vida para algo que vai morrer, porque é só uma identidade relativa ou transitória. Descobrimos a Vida quando temos acesso à nossa identidade mais profunda, aquela que nunca morrerá. “Perder a sua vida por causa de mim” equivale a reencontrar-nos nessa identidade que compartilhamos com Jesus e com todos os seres. “Perdemos” o eu, deixamos de viver egocentrados e nos descobrimos seres em relação, inseparáveis dos outros.
Para entrar na escola de Jesus, precisamos nos distanciar de toda ambição pessoal, daquela tendência que deseja possuir, dominar, usar tudo para seus próprios fins, que sempre gira em torno de si mesmo e que até tenta instrumentalizar o próprio Deus. Quem vive fixado em seu pequeno eu, na realidade está interessado apenas por sua autoproteção e na pretensão de “bastar-se a si mesmo”.
“Renunciar a si mesmo” significa a morte do ego ou, com mais propriedade, o final de nossa identificação com ele. O ego ou eu não é negativo; mais ainda, teremos que cuidar para que seja um eu psicologicamente integrado. O que torna enganoso e destrutivo é identificar-nos com ele. Brota, então, uma compreensão de que o eu se plenifica na medida em que rompe os laços do seu isolamento, se alarga em direção aos outros, na doação, no serviço e no compromisso solidário.
Na linguagem inaciana, a morte do ego significa “sair do seu amor próprio, querer e interesse”.
O evangelho de hoje nos instiga também a “tomar a cruz”. Da mesma forma, muitos têm interpretado erroneamente a imagem de “carregar a própria cruz”.
“Carregar a sua cruz”, porém, significa acolher aquilo que diariamente cruza o meu caminho, ela é um símbolo para a unidade de todos os pólos opostos (dentro de nós atuam o trigo e o joio, o risco e a covardia, o desejo e o medo, o santo e o pecador...)
Tomar a cruz significa: aceitar-me com todas as minhas contradições. Tomar a cruz significa abraçar-me com todas as minhas forças e todas as minhas fraquezas: os aspectos saudáveis e os doentios, as qualidades vistosas e as feias, as partes imaculadas e as manchadas, os sucessos e os fracassos, as coisas vividas e as coisas perdidas, o consciente e o inconsciente...
Nesse sentido, a cruz deixa de ser um “peso morto”, ou seja, uma cruz vazia, sem sentido, insensata..., pois ela fecha a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não aponta para o futuro, nem abre um horizonte de vida.
Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus que leva a Cruz da fidelidade nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no desespero, nos fracassos, nos traumas das experiências frustrantes...
Portanto, num primeiro nível, a cruz é a consequência de sermos fiéis à nossa verdadeira identidade de seguidores de Jesus. Em outro nível, podemos dizer que ela revela simplesmente o destino do eu.
A sabedoria consiste em que nosso eu seja “crucificado” em lugar de ser dono de nossa existência. E o crucificamos na medida em que tomamos distância dele, o esvaziamos de toda soberba e de toda pretensão de poder e prestígio, de modo que não leve as rédeas de nossa vida.
Ao crucificá-lo, deixamos de viver egocentrados e nos abrimos à verdade de quem somos nós.
Texto bíblico: Mt 16,21-27
Na oração: “fazer memória” das cruzes da vida: elas nos recordam que o dom da vida nos é dado não para que o guardemos e o preservemos, mas para que se consuma e se expanda no serviço aos outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Tu és pedra, e sobre esta rocha eu construirei minha Igreja” (Mt. 16,18)
Nos Evangelhos, Pedro é o pescador que, impactado pela presença e pelo convite de Jesus, vai entrando, aos poucos, em sintonía com Ele. Um encontro que vai crescendo em adesão à proposta do Reino; um caminho de seguimento que tem seus momentos de obscuridade e de crise, sobretudo ao ver o fracasso do Mestre condenado pelas autoridades religiosas e políticas.
Pedro é o protótipo do cristão que vai se convertendo, abrindo-se à presença desconcertante de Deus na conduta histórica de Jesus. Em Pentecostes, Pedro fala em nome dos primeiros discípulos, cuja fé vem a ser normativa para todas as gerações que se sucedem na história da igreja. Ele confessa o artigo central e original da fé cristã: “Jesus Cristo é o Filho de Deus vivo”. E se a Igreja se mantém firme nessa confis-são, nada nem ninguém a destruirá.
Entre os discípulos de Jesus, Pedro foi sem dúvida o mais atirado, o mais impulsivo, com o perigo que isso implica. Era o líder do grupo, o primeiro a falar em qualquer circunstância, sem medo de repreender Jesus quando este anuncia sua paixão, sem medo de levar uma reprimenda quando Jesus quer lavar os pés ou quando anuncia que todos o trairão. O fato de ser tão lançado o situa também no lugar mais perigoso, o da negação de Jesus. Mas, ele mesmo termina confessando depois da ressurreição: “Tu sabes tudo, tu sabes que te amo”. Não é novidade que Jesus o visse como o líder natural do grupo depois de sua morte e ressurreição.
No evangelho de hoje nos encontramos num destes momentos em que Pedro, com sua habitual ousadia e rapidez, responde à pergunta que Jesus lhes dirige sobre sua identidade: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. Diante da pronta confissão Jesus o chamou, em hebraico, “Kephas”. Mateus faz um sugestivo jogo de palavras entre dois nomes gregos comuns: “petros” (pedra) e “petra” (rocha). “Petros” só é usado como nome próprio no NT: fala-se de “Simão Pedro” ou simplesmente de “Pedro”. No AT “petros” tem o significado de pedra comum, pedregulho, algo que se pode pegar e lançar. No entanto, tanto no Antigo como no Novo Testamento não há confusão com a palavra “petra” que sempre significa rocha, sobre a qual se assenta um edifício.
Agora podemos conhecer em seu justo significado o famoso texto de Mateus. Este faz uma sugestiva comparação-oposição entre a fragilidade e a pequenez da pedra frente à segurança e robustez da rocha.
A pessoa de Pedro em sua fragilidade, em sua cabeçudagem e até em sua covardia é, ao mesmo tempo, símbolo de fortaleza e de segurança pela confissão de fé que fez para a pessoa de Jesus. Pedro é “pedra” em sua fragilidade humana, mas é “rocha” em sua manifestação de fé. Portanto, este é o significado das palavras que Jesus diz a Pedro e a toda a comunidade cristã: “Tu és Pedra, e sobre essa Rocha vou edificar minha comunidade”. A rocha não é a pessoa de Pedro, mas a fé de Pedro. Sobre essa rocha-fé de Pedro Jesus deseja edificar sua comunidade de seguidores.
Pedro aparece, então, como o primeiro discípulo que manifesta sua fé pessoal em Jesus. E o evangelho faz um convite para que cada pessoa, cada seguidor, expresse para si mesmo qual é sua fé em Jesus. Como consequência, essa mesma fé que aflorou na primeira comunidade cristã é a que emerge e se prolonga, ao longo dos séculos, em cada seguidor de Jesus. Com sua fortaleza (petra-rocha) e, ao mesmo tempo, com sua fragilidade (petros-pedra); sem dogmatismos nem doutrinas, mas com a modesta manifes-tação de alguém que se sente interpelado e animado pela forma como Jesus viveu e pelos estímulos que Ele lhe deu para caminhar na direção da nova humanidade.
“Petros” é o que em nós é fragilidade, incoerência, vulnerabilidade, limitação... “Petra”, ao contrário, é o que é sólido, firme, consistente, sobre o qual fundamentamos a vida. “Carregamos um tesouro em vaso de barro” (2Cor. 4,7). O ser humano é a integração de “petros” e “petra”.
Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que cada pessoa tem, para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis golpes na luta pela vida. O “eu profundo” constitui-se como um centro sólido, consistente e estável de nosso ser, radicalmente diferente das experiências fluidas que o atravessam. Existem camadas sólidas da experiência do “eu” que devem contrapor-se às experiências passageiras de sentimentos vazios, desejos periféricos, sonhos sem paixão.
É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser. Trata-se da dimensão mais verdadeira de si, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde ela vive o melhor de si mesma, onde se encon-tram os dinamismos do seu crescimento, de onde partem as suas aspirações e desejos fundamentais, onde percebe as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.
Vivemos um contexto social e cultural no qual se constata um modo de vida que não favorece o contato com a nossa rocha interior. Seduzidos por estímulos ambientais, envolvidos por apelos vindos de fora, cativados pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizados por ofertas alucinantes... nós nos esvaziamos, nos diluimos, perdemos a interioridade e... nos desumanizamos. Tudo se torna líquido: o amor, as relações, os valores, a ética, as grandes causas... (cf. Bauman).
Diante desta “cultura líquida” é urgente gerar espaços que facilitem o acesso à rocha da interioridade, possibilitar o retorno à “base interior” onde é gestada a nossa identidade e as nossas opções mais firmes.
Somos um mistério no meio de mistérios, em um mundo de surpresas e de assombros.
Texto bíblico: Mt 16,13-20
Na oração: Busque, na oração, cavar mais profundamente, até atingir a rocha de seu ser, o fundamento original e consistente de sua personalidade.
- Quais são os valores perenes, as visões ousadas, as experiências fundantes, as opções duradouras... que constituem a rocha inabalável, sobre a qual construir sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judéia”
A vida de Maria na terra foi um percurso, um itinerário para a plenitude humana, em comunhão com todos os outros, através de seu filho Jesus. Pois bem, cumprido esse percurso vital, que havia começado no seu nascimento, Maria foi assumida (assunta) à glória de Deus, que se identifica com a Ressurreição e Ascenção de Cristo. Maria “foi aspirada para dentro de Deus”, absorvida pela Vida.
Este dogma afirma que Maria culminou sua vida em Deus, por meio de Jesus, “em corpo e alma”, ou seja, como pessoa histórica, em comunhão com as demais pessoas que estiveram e continuam estando implicadas em sua vida. A plenificação da vida de Maria na Assunção não é triunfo da passividade, mas do amor solidário e da preocupação pelos outros. A Assunção é o céu da ternura maternal, a proximidade amistosa, o serviço gratuito... Por um lado, Maria chegou ao cume: contempla Deus face a face, vive no interior da família divina. Por outro lado, Maria está assumindo uma nova função: ela começa sua tarefa de ajuda maternal em favor de todos os homens e mulheres, especialmente dos mais pobres e frágeis.
Na festa da Assunção a Igreja nos revela a plenificação final da obra de Deus na mulher que não opôs nenhuma resistência à sua ação. Deus havia empreendido um caminho de salvação e ela, com seu sim, consentiu a esse projeto salvífico. Sua original maneira de colaborar consistiu em deixar Deus fazer, e por isso reco-nhece: “O Poderoso fez em mim maravilhas”.
A Assunção não é um privilégio excepcional exclusivo de Maria, mas o símbolo de nosso próprio destino, quando seremos “assumidos” na vida definitiva. Este dogma pode ser entendido desde um duplo enfoque: com ela acontece algo único, e com ela acontece aquilo para o qual todos estamos destinados.
Ela é a Humanidade que já chegou à plenitude e é a vida que vence a morte. Sua Assunção é como uma ampliação da grande Ascenção de Jesus. Maria, como Imaculada e Assunta, é um ícone de esperança. Com isso, nossa vida se torna caminho de esperança jubilosa; com Maria já entramos, de algum modo, no céu de Deus, no futuro da ressurreição plena.
O próprio Papa Pio XII deixou isso claro ao proclamar este ensinamento solene em 1950: “O essencial da mensagem é reavivar a esperança na própria ressurreição”, que consiste em ser assumido no mistério original da Vida da vida. A Assunção não é só um mistério de elevação da Mãe de Deus. É também um mistério de “descida”, pois ela continua sendo humanidade, mas é humanidade carregada de Deus, integrada no mistério trinitário.
Assunção é vida plena antecipada.
Ao falar da Assunção nos referimos à plenitude final e à culminação do processo vital de Maria. Mas a meta supõe sempre um caminho, um percurso. O Evangelho de hoje nos apresenta Maria, desde o começo, “caminhando depressa”, de Nazaré da Galileia até às montanhas da Judéia para chegar à casa de Isabel e ajudá-la; naquela primeira “meta” de seu percurso recebeu dos lábios da prima a primeira bem-aventurança: “Feliz é tu que acreditaste...” E aquela saudação foi uma antecipação da felicitação que Maria recebeu no final definitivo de sua trajetória.
Toda a vida de Maria consistiu em dirigir-se apaixonadamente para essa meta definitiva que não podia ser outra coisa que a prontidão para o serviço a quem dela precisasse. É oportuno recordar o que dizia o Vat. II: Maria é o modelo e exemplar mais acabado de toda vida cristã. Foi aquela que mais conheceu, amou e seguiu Jesus Cristo.
Quando falamos de Assunção, empregamos um termo que desperta imagens de movimento, de atração para o alto, de impulso ascensional; nosso olhar é atraído para a altura, e vemos Maria elevada para essa dimensão que chamamos “céu”. Essa maneira de vê-la, no entanto, não a afasta de nossa experiência, senão que nela se faz transparente o destino da humanidade inteira: em Maria vemos agora o cumprimento antecipado da transfiguração de nossa existência.
Ela foi “assunta” porque assumiu tudo o que é humano, porque “desceu” e se comprometeu com a história dos pequenos, dos pobres e excluídos... Maria foi glorificada porque se fez radicalmente “humana”. Por isso, Deus a engrandeceu plenamente.
Crer na Assunção de Maria implica crer na exaltação dos pequeninos e humilhados, dos pobres esquecidos, dos injustiçados sem voz, dos sofredores sem vez, dos abandonados sem proteção, dos misericordiosos descartados, dos mansos violentados...
Vivemos já a Assunção quando não nos deixamos determinar por uma vida estreita e atrofiada, presa pelos apegos... Somos “assuntos” quando sonhamos, buscamos e ativamos todos os dinamismos humanos de crescimento e de expansão em direção aos outros. Nós nos “elevamos” quando “descemos” em direção à humanidade ferida e excluída. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da realidade pessoal e social, sendo presença servidora.
Somos chamados a nos situar, como Maria, diante do olhar salvífico de Deus: “... porque Ele olhou para a humildade de sua serva”; deixar-nos “olhar” por Deus para sentir-nos acolhidos e envolvidos em sua ternura, seu perdão e seu amor incondicional; deixar que seu olhar faça cair os fardos que carregamos às costas e nos possibilite experimentar a assombrosa liberdade de não ter que representar papéis, nem acumular méritos, nem dissimular fragilidades; sentir-nos envolvidos na proteção cálida de um amor que nos acolhe e desata em nós ricas possibilidades de existência e crescimento; emigrar dos velhos “chãos” que sustentavam nosso eu, para encontrar-nos ancorados em outro centro e respirando outro ar; fazer a experiência da relação filial que nos pacifica e expande o coração. A partir daí, tomar de novo contato com a realidade e nos dirigirmos a ela com um olhar novo e um coração acolhedor: a de quem se sabe “filho” e “irmão”. E quem se reconhece filho sob o olhar do Pai, todos se tornam irmãos.
Celebrar o mistério da Assunção de Maria, portanto, é também um convite a viver nessa dinâmica do compromisso e não da resignação, da esperança solidária e não da “espera passiva”.
Este mistério celebrado por toda a Igreja é um mistério profundamente enraizado no coração do ser humano, que quer viver sempre, permanecer, ser imortal. Por isso somos convidados a continuar nesse “deslocamento” contínuo a serviço da vida.
Assunção é missão.
Texto bíblico: Lc 1,39-56
Na oração: Que esta festa nos convide a olhar Maria com novos olhos, para que seja um estímulo que nos leve a descobrir a proximidade do divino em todas as circunstâncias da vida. A meta de todo ser humano é a mesmo que Maria já alcançou e que hoje celebramos. Deus está fazendo grandes coisas em cada um de nós, embora, muitas vezes, vivemos sem nos dar conta disso. Criar um clima de ação de graças.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana- CEI
“Jesus lhes disse: Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (Mt 14,27)
Quando o ser humano quebrou sua aliança no Paraíso, o medo foi sua reação imediata. “Ouvi teus passos no jardim, por isso tive medo...” (Gn. 3,10). O medo se instalou em seu coração. E o ser humano continuou a temer através de desertos e cidades, de dia e de noite, no coração e na sociedade, onde quer que vivesse, fizesse o que fizesse.
Medo dos passos de Deus e de seus próprios passos; medo de estranhos e de amigos; medo de seu corpo e da sua afetividade; medo de decidir; medo de se comprometer; medo de romper as amarras do passado; medo do novo; medo de viver e de morrer...
Uma longa cadeia de medos, da primeira à última respiração, nesta terra de sombras. Vivemos sob um medo constante, sentido com maior ou menor intensidade, mas sempre presente. Todos os medos estão inter-relacionados e, qualquer que seja seu objeto imediato, todos tem em comum o sentimento sombrio do perigo ameaçador.
Humanamente falando, o medo é algo tão natural como o instinto de sobrevivência. Evangelicamente falando, o medo é sinal de que ainda não entramos na dinâmica do Reino, no caminho de Jesus; o medo nos faz refugiar numa fé alienante, que não arrisca nada, que não se compromete com nada, que não vai mais além de nós mesmos, de nossa auto-realização narcisista.
Os medos não costumam apresentar-se de rosto descoberto; mascaram-se, porque são sintomas de debilidade; tornam-se vergonhosos para nós. Eles se disfarçam para se tornaram mais aceitáveis.
Existem muitos medos escondidos por trás das atitudes tirânicas de rigidez, de perfeccionismo, de legalismo, de intransigência ou de intolerância. Recorremos a eles para ocultar-nos e defender-nos contra o novo e o diferente.
É aterrorizante o medo das tempestades que surgem no cenário da vida cotidiana. O medo nos empurra na direção dos individualismos e das soluções que contemplam simplesmente os próprios interesses. O medo enche de sombras o horizonte, tornando impossível uma decisão clarividente e ordenada; ele cega, agita a imaginação e precipita juízos e decisões, criando impedimentos sérios para a vivência da fraternidade e para a coragem de compreender a vida como doação de si para o bem dos outros.
Não existe depósito de munição mais potencialmente explosivo do que os estoques de medo nas escuras profundezas do nosso interior, mas sua influência é sentida nos nervos, no pulso, nos músculos e na respiração. Grandes medos não aparecem com frequência; são os pequenos que surgem em encontros diários com a realidade e minam o poder de resistência e crescimento.
Cada atividade humana é acompanhada de uma sombra escura que desperta o medo. Nada é garantido, nada está seguro, e a vida sem segurança é vida marcada pelo medo. As pessoas ficam tensas e projetam as tensões na realidade circundante. Encaram os outros como inimigos, e as oportunidades como ameaças. O trabalho é competição, e a vida, um campo de batalha.
No entanto, uma coisa é sentir medo, pois somos humanos, frágeis e limitados; outra coisa, porém, é permanecer paralisado com medo de arriscar e não se aventurar por novas terras, na descoberta infindável que é a vida. As intuições mais profundas do espírito (a quebra de limites da mente e do costume, o avanço sobre novos ideais e sonhos...) se conquistam com o atrevimento da coragem, com a força da fé, com a imaginação solta, com a criatividade livre e desimpedida.
Desafiando os medos aprende-se a ter coragem. Aceitar os medos é o caminho para tornar-se destemido. O conhecimento da própria fraqueza é a maior força. Cada medo não resolvido é um peso na vida. É preciso descobri-los, identificá-los, nomeá-los e tomá-los como são até que se possa dissolvê-los em consciência e coragem.
Um medo que pode ser nomeado perde o terror e a capacidade de ferir; no entanto, um medo sem nome, um fantasma sem rosto, escuro como uma sombra e rápido como uma tempestade aumenta o pavor e paralisa a ação. Se aprendemos a desmascarar e a enfrentar os pequenos medos nas escaramuças diárias, diminui-se seu impacto e nos tornamos mais sábios e fortes para lidar com os medos mais importantes.
O evangelho deste domingo nos revela que há muitas tormentas e ameaças ao nosso redor. Em meio à tempestade levantam-se ondas de obscuridades sem sentido, de medos paralisantes, de dúvidas angustiantes... Sopram outros ventos tempestuosos que nos ameaçam, arrastando tantas seguranças que nos sustentaram, quebrando tantos salva-vidas aos quais nos agarrávamos...
Mas, em meio às tempestades urge não perder a calma, ter a coragem de “permanecer”, não permitir que o ruído dos ventos nos vença, que os relâmpagos nos ceguem, que as ondas nos levem... “Permanecer” é a palavra chave: permanecer firmes nos compromissos assumidos, nos passos que buscam abrir caminhos novos, ainda que seja arriscado; permanecer ancorados na fidelidade a Jesus e a seu Reino e consentir que os ventos levem todos os nossos velhos padrões mentais, ideias fixas e atitudes petrificadas, preconceitos e tudo o que já está caduco e que não nos impulsionam para a outra margem...; permanecer apenas com a pessoa de Jesus e seu sonho como o melhor legado que podemos oferecer aos nossos contemporâneos, sacudidos por tormentas que os afundam sem poderem vislumbrar um novo horizonte e um novo sentido para suas existências.
Na tempestade também é necessário “soltar amarras e içar velas”, ou seja, atrever-se a “viver no Vento”. Aproveitar dos “ventos contrários” para transformá-los em “ventos favoráveis” que conduzam nossa vida para a “outra margem”. Soltar as amarras e âncoras de nossos apegos, de nosso consumismo, de nossa prepotência, afã de domínio, fundamentalismos, patriarcalismo, machismo... Precisamos perder o medo dos novos ventos e içar as velas das novas ideias, das visões arrojadas, dos projetos criativos, da riqueza da pluralidade de culturas, religiões, raças, deixar-nos mover pelo vento dos movimentos de libertação (povos em desenvolvimento, negros, indígenas, os sem terra, os movimentos ecologistas, pacifistas, feministas...), enfim, acolher o vento que nos impulsiona em direção ao novo e diferente...
A barca de nossa vida naufragará na estreita calma de mares mortos se não formos capazes de desatar os antigos nós de marinheiros que impedem içar as velas para receber os novos ventos da história.
Durante a tormenta aprender a recordar que depois da tempestade vem a calma, para não perder assim o horizonte nem a esperança. Afinal, somos “seres de travessia”.
Texto bíblico: Mt 14,22-33
*Jesus conhece a necessidade de intervir no mais escondido de cada um dos discípulos; ali estão alojados os mais diferentes medos, que minam a força e a coragem do seguimento.
* Dar nomes aos medos pessoais: são reais? Imaginários?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
“Jesus viu uma grande multidão e, tomado de compaixão, curou os seus doentes” (Mt 14,14)
Quem é verdadeiramente humano? Aquele que é movido pela compaixão.
O grau de humanidade (ou de barbárie) de nosso mundo se mede pelo grau de sensibilidade diante da dor humana. E é a compaixão a melhor expressão dessa sensibilidade e humanidade: deixar-nos afetar pelo que acontece – ou seja, ter uma sensibilidade limpa, desbloqueada e vibrante.
Definitivamente, a compaixão é central para sermos humanos. O sofrimento das vítimas nos “descentra” e nos faz “descer com paixão” aos seus pés e nos situar ao lado (a favor) delas. Sempre se pode “passar para o outro lado”. Aí é onde se abrem espaços à compaixão.
No interior de todos nós há sempre reservas e redutos de bondade, muitas vezes, adormecidos, mas que podem ser ativados diante da dor e da miséria dos outros. Não somos sempre e totalmente egoístas. Uma desgraça, uma tragédia... podem muito bem “impactar nossas entranhas” e despertar a consciência de que fazemos parte da mesma família humana.
Esta compaixão não é meramente um sentimento privativo, mas reação “apaixonada” diante das injustiças sangrentas de nosso mundo. Nos sofredores há algo que atrai e convoca, que nos faz sair de dentro de nós mesmos e nos fazer próximos dos sofredores; aí reside a origem da solidariedade que suscita uma ação eficaz e um compromisso de vida a favor de quem é vítima de situações injustas.
Ao mesmo tempo, não é raro que a compaixão desperte o contato com a nossa própria vulnerabilidade ou fragilidade. Quando acolhemos toda essa nossa realidade a partir de uma atitude humilde, é provável que emerja um sentimento amoroso para nós mesmos. E, a partir dele, nos tornamos mais sensíveis ao sofrimento dos outros.
O campo da compaixão é o encontro pessoal, ou seja, quando as pessoas decidem romper as barreiras que as isolam e deslocar-se uma em direção à outra. No encontro, estabelecem-se relações que mudam as posições entre si, umas e outras intercambiam seus lugares vitais e os laços da existência ficam reforçados.
O primeiro traço do encontro compassivo é a gratuidade. Aqui não se gera uma situação de dependência ou de senhorio, mas revela-se um “excesso” de amor, que não se mede.
Outro traço do encontro compassivo é a proximidade. Tocar, ver, aproximar-se, deixar-se afetar..., são requisitos da compaixão, superando as barreiras da indiferença, da falta de atenção. A distância os fez estranhos, a proximidade, o abraço os devolve a seu lugar: filhos, amigos, amados, festejados...
O terceiro traço do encontro compassivo é a profundidade, que desperta a capacidade de amar que está presente em todo ser humano. Compartilha-se a ferida mais profunda da outra pessoa. Só se pode amar o que tem mistério, e onde há mistério há profundidade.
A cena evangélica da multiplicação dos pães revela que o Reino nem sempre chega pelos caminhos “religiosos”, mas pode chegar através da compaixão despertada pela situação desumanizadora do outro. A compaixão derruba todas as barreiras. Compaixão, no seu sentido etimológico, quer dizer “sofrer com”. Esse é o sentido do amor: ter o outro dentro da gente. A compaixão é uma maneira de sentir. É dela que brota a ética. A falta de compaixão é uma perturbação do olhar. Olhamos, vemos, mas a coisa que vemos fica fora de nós.
“Jesus olhou e multidão e teve compaixão”. Ele faz vibrar as pulsões do humano presentes em cada pessoa. Seu jeito de “ser humano” entra em sintonia e desperta o que é mais humano no outro. Um dos traços que definem a nossa época é o fato de ser uma era de “sem-compaixão”, um tempo no qual se faz muito difícil vibrar de verdade com os outros, e especialmente com os outros maltratados pela situação sócio-econômica. A compaixão está cada vez mais ausente da esfera pública e de nossas relações com o outro diferente e com o outro distante que sofre. Aqui está a chave da incapacidade de nossa sociedade para responder aos desafios atuais.
No evangelho de hoje, em contraste com atitude compassiva de Jesus diante das multidões, os discípulos, percebendo a hora avançada, pedem que elas sejam despedidas para que comprem pão e se alimentem. Esta é a lógica desumanizadora: devolver as pessoas às suas próprias possibilidades limitadas, à escassez e à privação que a sociedade as relegou. Os discípulos são sensíveis à fome do povo empobrecido, mas o deixam à mercê de seus próprios recursos. Não conhecem outra solução.
Jesus abre outra lógica: a da partilha, frente à logica do mercado, focado na apropriação e na acumulação. “Quantos pães tendes?”, pergunta que desinstala e possibilita encontrar uma saída, pequena mas mobilizadora: a partilha de cinco pães e dois peixes. Só se fará efetiva a nova comunidade quando pães e peixes entrarem na lógica do Reino. Sem oferecer o próprio pão, os próprios recursos, a própria pessoa, não há possibilidade de construção do Reino de Deus.
A multidão dispersa, transformada pelo encontro com Jesus, já é capaz de sentar-se em grupos ordenados sobre a relva, iguais, sem divisão em hierarquia, que costuma criar fissuras na comunhão. Os que tinham algo para comer também foram repartindo com os outros. Na realidade, o verdadeiro milagre foi o da partilha, onde as pessoas famintas não se lançam vorazmente sobre os pães numa luta para conseguir os alimentos escassos. Compartilhar gratuitamente com os outros, com desconhecidos, e não acumular o que sobra, isso sim é milagre.
Em cada migalha de pão, em cada pedaço de peixe, há uma história de amores e trabalhos que vão passando de mão em mão, sem cobiça devoradora. Os bens deste mundo carregando dentro uma vocação fraterna e universal. São dons para todos.
Nesta refeição de todo o povo sobre o campo verde não se discrimina ninguém, não se pergunta a ninguém pelo seu passado, sua profissão ou sua situação moral e religiosa. Todos são acolhidos como expressão das entranhas compassivas de Deus, que chama todos a compartilhar sua mesa. Todos se sentem pessoas dignas e amadas.
Esta é a utopia do Reino: tudo está reconciliado: o cosmos, com a natureza verde e em paz; os produtos do trabalho humano, da generosidade do mar e da terra; e as pessoas, numa relação harmoniosa entre si e com Deus, sem exclusões, competições nem privilégios.
A compaixão de Jesus situa tudo na lógica do amor, que é a única força transformadora da história.
Texto bíblico: Mt 14,13-21
Na oração: A oração é também questão de densidade de vida, de humanismo, de ativar a sensibilidade para com aqueles que não têm quem os defenda; é revelar que em nosso peito bate um coração de amor infinito, capaz de vibrar e mobilizar-nos em favor dos outros. A oração implica entrar em sintonia com o coração compassivo de Deus voltado para a miséria humana.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“O Reino dos Céus é semelhante a um negociante que anda em busca de pérolas preciosas”
As duas pequenas parábolas de hoje nos remetem a uma questão, básica e universal, que acompanha todo ser humano: qual é o “tesouro” de minha vida? Onde estou investindo minhas energias e criatividade? O que dá sentido à minha existência e é capaz de plenificar meu coração?
Essa “aspiração essencial”, que habita o coração humano, é a que nos converte em “buscadores”.E o que é que, consciente ou inconscientemente, estamos buscando na vida? As imagens do tesouro e da pérola não se referem a algo “separado” que, a partir de fora, viria dar sentido à nossa existência. O tesouro e a pérola é o que já somos, embora ainda não os tenhamos descoberto. Em outras palavras, o “buscador é o buscado”.
Na realidade, o que andamos buscando é o nosso “eu verdadeiro”, o “eu profundo”, a “identidade original”. Nesse sentido, só o que nos faz mais humanos, e na medida em que nos faça mais humanos, plenificará nossa existência. O dia em que isso acontecer, vibraremos de alegria e seremos capazes de renunciar a outros valores, critérios e expectativas que se revelavam efêmeros.
Mas, como podemos encontrar o caminho que nos leva àquilo que tanto buscamos?
Jesus nos indica que é aquele que nos leva às nossas próprias profundezas; portanto, um caminho de “descida” ao nosso próprio santuário interior. Lá, nos deparamos com os lados sombrios, com nossos limites e nossas fragilidades humanas. Somos, como diz S. Paulo, um tesouro em vasos de barro. Em nosso “húmus” carregamos uma nobreza.
É justamente no meio do cascalho interior que podemos encontrar o tesouro, a pérola preciosa; é exatamente aqui que alcançamos nossa verdadeira identidade. A pérola cresce nas feridas da ostra; no caminho espiritual, bem como no caminho de nossa humanização, precisamos aprender a descobrir a pérola nos ferimentos da nossa própria biografia. “Onde estivermos quebrados, onde estivermos feridos, lá também se quebram as máscaras que usamos. Somos quebrados para revelar nosso eu verdadeiro” (Henry Nouwen). Hildegarda de Bingen vê o propósito dos processos da humanização justamente na transformação dos ferimentos em pérola.
Viver é desafiador na medida em que viver é buscar um sentido para a própria existência. A dinâmica da busca marca a caminhada humana e define os rumos da vida. Vive-se em permanente busca e só à medida que se vive para buscar é que a vida se torna, de verdade, vida, com mais sabor e sentido. O que se busca define e determina o que é a vida da pessoa. “Diga-me o que buscas e dir-te-ei quem és”.
No interior de cada um ficou aguçada a dinâmica da busca, aquela que mantém a vida de todo coração e o incita na busca do que vale, do que conta e do que é essencial. O coração humano foi feito para encontrar a razão mais profunda do seu viver; há uma inquietude latente em seu interior que o faz peregrino do sentido. Tão fundamental como é o respirar, toda pessoa precisa assumir sua condição de navegadora do infinito. Somos, por natureza, eternos buscadores e garimpeiros do novo.
A vida se torna mais vida na medida em que se vive para dar razão a essa busca. Uma busca que exercita o coração e o modula na sinfonia amorosa do coração de Deus. Ele é a única e completa razão da busca do coração humano.
Todo ser humano é aventureiro por essência; com ardor, ele anseia por uma causa última pela qual viver, um valor supremo que unifique a multiplicidade caótica de suas vivências e experiências, um projeto que mereça sua entrega radical. Para dar sentido à sua vida e realizar-se como pessoa, o ser humano necessita da auto-transcendência, isto é, viver para além de si mesmo, de seus impulsos, caprichos, desejos... Carrega dentro de si a sede do infinito, a criatividade, a capacidade de romper fronteiras, os sonhos, a luz... Portador de uma força que o arrasta para algo maior que ele... não se limita ao próprio mundo; traz uma aspiração profunda de ser pleno, de realização, de busca do “mais”... Estar em busca é sair do próprio ser atrofiado pelas preocupações individuais para mover-se num horizonte maior; estar em busca é perguntar-se, é estar aberto para ser tocado pela mais profunda das graças: a gratidão diante de Deus.
É importante ter claro o que é que se busca. No supermercado da vida pode-se buscar tudo. As ofertas são muitas. Às vezes corre-se o risco de perder o rumo, não perceber o que é e onde está o essencial, apegar-se ao que é passageiro; com isso, a busca desemboca em algo sem sentido, vazio.
É difícil a tarefa de buscar quando alguém se encontra acomodado e satisfeito de tudo e, ao mesmo tempo de nada. Então, para quê buscar? Como despertar e alimentar a sede da busca? Toda busca inclui a purificação de motivações para permitir o encontro de tudo o que garante e promove a vida. É exercício de discernimento constante: “o quê busco? Por quê busco? Tem sentido e valor aquilo que busco? Para onde me leva a força da busca?... É preciso buscar sempre. Importa, pois, buscar o que dá garantias de fecundidade para a vida. Porque busca, desperta também nos outros o “ser buscador” que está escondido.
O desejo do encontro é força determinante para se manter acesa a chama da dinâmica da busca. A pérola que é buscada, justifica, com razões de sobra, o esforço e a recompensa do encontro. Vale a pensa buscar o que é importante e encontrar aquilo que responde às razões mais profundas da busca.
No caminho do seguimento de Jesus, a busca é um dinamismo determinante da mente e do coração de cada um. Aquele que busca, movido por um espírito de aventura e por uma causa, quando encontra, vibra de alegria, como a parábola do buscador de pérolas.
Somos continuamente desafiados diante da grandeza da vida. Por isso, buscar torna-se um hábito de vida. Não é a busca de uma coisa qualquer. Busca-se pela força do amor. ó o amor faz buscar o que vale a pena encontrar. Quem busca por amor encontra o essencial, o tesouro.
Texto bíblico: Mt. 13,44-46
Na oração: seu coração é portador da força insubstituível da busca.
- o que você está buscando?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Queres que vamos arrancar o joio”? (Mt 13,28)
O ser humano vive tencionado e marcado por polos opostos: luz e escuridão, céu e terra, fragmentação e unidade, espírito e instinto, amor e agressividade, solidão e vida comum, medo e desejo, proximidade e distanciamento, razão e sentimento, sagrado e profano, animus e anima..., trigo e joio.
Muitas vezes vivemos apenas um polo e reprimimos o outro; enquanto este permanecer recalcado nas sombras ele terá um efeito destrutivo. Só quando dizemos “sim” a esta tensão básica de nossa vida é que conseguiremos superar a divisão interna. Aquele que acredita que os dois polos constituem sua interioridade poderá sentir que a tensão entre eles é que o mantém vivo e dão calor e criatividade à sua vida. A vitalidade é sempre marcada pelas contradições. Da tensão entre os opostos produz-se no ser humano uma energia que desperta a criatividade e o espírito de iniciativa. Ele precisa assumir os opostos dentro de si para se tornar inteiro, completo...
A arte da humanização consiste na reconciliação dos dinamismos contrários em seu interior. Este é o espanto que os empregados experimentaram quando perceberam que, no campo onde foram semeadas boas sementes, apareceu também o joio. Seu primeiro impulso foi o de arrancá-lo.
Muitos ficam chocados quando, apesar de todo empenho para serem pessoas boas e amáveis, sentem o impulso para o mal; querem ser dóceis, mas descobrem em seu interior a presença do ódio, o sentimento de vingança...; assustam-se diante da presença do joio e querem arrancá-lo imediatamente. Mas, se o fizerem, arrancarão com ele também o trigo. O trigo e o joio não nascem em campos diferentes, nem dividem as pessoas em dois grupos: bons e maus. Trigo e joio habitam juntos em cada coração humano. O joio, do qual Jesus fala aqui, é o “lolium”, que se parece muito com o trigo e cujas raízes se entrelaçam com as do trigo. Quem, em sua vã tentativa de ser perfeito, tenta arrancar todo joio do seu interior, no fim acaba sem trigo para colher e sua vida se torna infrutífera.
Nossa liberdade sente-se movida e atraída em duas direções. A parábola do “joio e do trigo” desvela (distingue, põe às claras...) os dois dinamismos, duas tendências, dois impulsos... que se fazem presentes em nosso interior. A vida espiritual não consiste em um combate interno que nos desgasta, tentando nos transformar em pessoas perfeitas e impecáveis. Somos “húmus”, carregados de fragilidades, limitações... Os dois dinamismos (trigo e joio) fazem parte de nossa constituição humana; não tem como arrancar um em benefício de outro. Não se trata de alimentar uma luta entre eles, como um combate entre o bem e o mal, levando-nos ao sentimento de impotência e desânimo; tampouco se trata de uma leitura moralista diante da presença das chamadas “tentações” (tendências, impulsos, inclinações... presentes em todos nós, simbolizadas pela presença do “joio”).
O combate dualístico (entre o bem e o mal) acaba desembocando no puritanismo, no farisaísmo, no legalismo, no perfeccionismo, no voluntarismo... onde o centro sou “eu”. A fertilidade da nossa vida nunca é expressão de uma impecabilidade absoluta, mas resulta da confiança no fato de que o trigo é mais forte do que o joio e de que o joio poderá ser separado na colheita.
A questão de fundo é saber qual dos dois dinamismos eu alimento; é aqui que entra a liberdade (ordenada) para deixar-me conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito. Em tudo que vivemos e fazemos devemos ser dóceis para deixar-nos levar pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não sabemos. E “deixar-nos conduzir pelo Espírito” significa fazer a experiência originária de Deus em todas as dimensões da vida, não em algumas privilegiadas, ou somente quando estamos no espaço sagrado de uma celebração, ou quando rezamos... Fazer a experiência de Deus em cada situação da vida significa sentir Sua presença em todas as coisas, pois Ele vem misturado em nossa realidade, rica e pobre.
Enquanto vivermos, o joio se fará presente no campo do nosso interior. Isso nos impõe humildade e nos protege de uma dureza falsa em relação a nós mesmos e aos outros.
Toda autêntica experiência espiritual nos ajuda a descobrir nossa natureza singular, nosso eu mais profundo. O verdadeiro eu é aquele núcleo que reúne todas as nossas pulsões, todo o nosso mundo de paixões, não só as paixões luminosas, também as paixões menores, a mediocridade, os instintos... Tudo isso é um potencial enorme para crescermos humanamente, para nos inserirmos num projeto de bondade, não negando essa realidade obscura, mas acolhendo-a como nossa realidade. Ao redimi-la e integrá-la, superamos os mecanismos neuróticos de recalque e rejeição, em nós e nos outros.
Não pretendamos, pois arrancar o joio; demonstremos com nossa vida que, ser trigo, é mais humano. Por isso, a atitude sábia é a de “deixar o trigo e o joio crescerem juntos”. Tal atitude nos remete precisamente ao que temos de fazer com o próprio joio: aceitá-lo, acolhê-lo, integrá-lo, reconhecê-lo como próprio, sem reduzir-nos a ele e sem nos deixar determinar por ele. Tal atitude implica um crescimento em integração e em humildade. Por mais estranho que pareça, a aceitação do “joio” nos humaniza, pois nos faz descer de nosso pedestal egóico – feito de exigência, perfeccionismo e de complexo de superioridade – e aproximar-nos de nosso ser verdadeiro.
Quanto mais nós nos conhecemos e conhecemos o Sol que nos habita (Deus), mais nos integramos voltados para aquele centro divino, mais nos humanizamos. Humanizar-se, não no sentido de mais virtuoso, brilhante, bem-sucedido... Humanizar-se é também a capacidade de ser frágil, ser vulnerável e, ao mesmo tempo, ter vigor, ser criativo, resistir, poder traçar caminhos. Fazer a síntese entre ternura e vigor.
Portanto, a vida espiritual significa ter acesso a esse centro interior, para deixar desvelar o nosso eu verdadeiro, com todas as suas contradições, negações, perversidades, mas também com suas potencialidades, sua dimensão de luz..., até que, nesse eu, as luzes e as sombras fiquem “planetizadas”, como os planetas ao redor do Sol.
A interioridade também tem seu centro, ao redor do qual estão nossas passionalidades, sempre ambíguas, positivas e negativas. São joios que moram em nós, junto com o trigo bom. Os joios também tem sua função. Não podemos negar a nossa dimensão de sombra, de imperfeições, de limites..., que recolhe a história do velho Adão e da velha Eva, como também do novo Adão e da nova Eva na sua luminosidade, na sua capacidade de ser solidário, amoroso, terno. Tudo isso é vida. Tudo isso é humanidade.
Texto bíblico: Mt 13,24-30
Na oração: Amar a nós mesmos significa amar nossa natureza ambígua e, assim, aceitar-nos plenamente. A partir daí, vamos criando essa atitude de oração que nos coloca inteiros diante de Deus. A oração fica inserida dentro da vida e Deus vem misturado em nossa vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
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