Livro: Revelações do Amor Divino
Autora: Juliana de Norwish
Editora Paulus 2018
As Revelações do Amor Divino foram escritas a partir de dezesseis revelações (ou visões), recebidas por Juliana de Norwich, mística do século XV, cujos relatos se inserem na tradicional mística medieval inglesa, de autores como Richard Rolle e Margery Kempe. Seus relatos denotam a aflição típica da provação dos místicos, mas também grande alegria e êxtase pela sua especial condição, e discorrem sobre inúmeros aspectos religiosos e teológicos, tais como o mistério da divindade e da Trindade, o amor de Deus, o conceito de pecado e de alma e a metáfora de Jesus como nossa mãe.
As revelações do Amor Divino, de Juliana de Norwich
Em 1º de dezembro de 2010, o papa Bento XVI dedicou sua audiência geral de quarta-feira a uma catequese sobre a mística inglesa Juliana de Norwich (c. 1342-1430), dando especial relevo à obra Revelações do amor divino, recentemente publicada pela Paulus em tradução de Marcelo Maroldi. Juliana não foi canonizada pela Igreja, porém, nas palavras do próprio papa, é “venerada tanto pela Igreja Católica como pela Comunhão Aglicana”. Viveu como reclusa numa cela contígua à Igreja de São Juliano, na cidade de Norwich (Inglaterra), segundo uma regra de vida escrita para mulheres chamadas a uma vida inteiramente dedicada à oração, ao estudo e ao trabalho, sem, contudo, integrar uma comunidade religiosa. As reclusas também podiam receber pessoas que as procuravam em busca de conselhos e direção espiritual, tornando-se “mães espirituais” para muitos.
As revelações do amor divino são fruto de uma experiência mística que Juliana teve após grave enfermidade que a acometeu quando contava perto de 30 anos. Depois da visita de um sacerdote, que a abençoou com um Crucifixo, ela recebeu o milagre de uma cura instantânea e as 16 revelações que, embora tenham constituído um breve escrito preliminar, anos mais tarde foram interpretadas e comentadas por ela, sob o influxo do Espírito Santo, num texto maior. Como afirma Bento XVI, a obra de Juliana consiste numa “mensagem de otimismo fundado na certeza de sermos amados por Deus e de sermos protegidos pela sua Providência”. Para ilustrar essa constatação, o Santo Padre cita um trecho da 16ª revelação, que sintetiza o espírito das revelações: “Vi com certeza absoluta que, ainda antes de nos criar, Deus nos amou com um amor que nunca esmoreceu, e jamais faltará. E foi nesse amor que Ele realizou todas as suas obras, foi nesse amor que Ele fez com que todas as coisas nos fossem úteis, e é nesse amor que a nossa vida dura para sempre. Nesse amor nós temos o nosso princípio, e veremos tudo isso no Deus Infinito”.
As revelações manifestam uma complexa teoria do pecado e da graça, da queda e da redenção, segundo a qual, em Deus, a misericórdia ultrapassa a justiça. A criatura decaída, objeto da misericórdia e da redenção, é vista com positividade na obra, sendo o pecado e o demônio o objeto da ira de Deus. Nesse sentido, o amor divino é comparado ao amor da mãe pelo filho: amor incondicional do Criador pela criatura frágil e pecadora.
De um ponto de vista escatológico, na quinta revelação Juliana vê o demônio e o pecado sendo derrotados “pela feliz paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, que foi cheia de seriedade e com soberano esforço”. Será então uma ocasião de eterna alegria para a humanidade, que finalmente poderá desfrutar da visão beatífica do Criador: “No Dia do Juízo, [o demônio] será desprezado por todos os que serão salvos, de cujo conforto ele tem grande hostilidade. Pois então ele verá que toda a aflição e tribulação que lhes causou serão convertidas em aumento da alegria deles, infinitamente. E todas as dores e tribulações que ele desejava neles provocar irão com ele para o inferno, eternamente”.
Tiago José Risi Leme
Graduado em Letras (Português/Francês) pela Universidade de São Paulo,
e coordenador de revisão da PAULUS Editora e tradutor.
Livro: Quero que sejas
Editora Vozes, 2018
Autor: Tomás Halík
«Dirijo-me às pessoas com quem me encontro todos os dias e que são simultaneamente crentes e não-crentes. Por outras palavras, não são de modo algum "religiosamente surdos", mas, no seu caminho de fé, conhecem momentos de silêncio da parte de Deus, e a sua própria aridez interior; às vezes extraviam-se do caminho, e depois voltam a encontrá-lo; têm interrogações por responder e também passam por momentos de revolta. Dirijo-me a pessoas que são obrigadas a gritar uma e outra vez, como o homem do Evangelho: "Eu creio. Ajuda a minha pouca fé!"»
É nestes termos que Tomáš Halík situa o livro ""Quero que tu sejas! - Podemos acreditar no Deus do amor?", que a Editora Vozes publicou.
«Eu conheço pessoas que não se atrevem a acreditar que Deus existe; apesar disso, desejariam sinceramente que Ele existisse. Conheço outras pessoas que estão firmemente convencidas da existência de Deus; contudo, têm uma tal ideia dele que, na verdade, prefeririam que Ele não existisse. Quais destes dois tipos de pessoas estão mais próximos de Deus?». Esta é uma das interrogações suscitadas no volume, de que apresentamos alguns excertos.
Trechos selecionados do Livro
Muitas vezes me tenho interrogado, mas sem encontrar resposta, de onde provém a doçura e a bondade. Ainda hoje não o sei, e agora tenho de partir, escreveu Gottfried Benn. A autenticidade e a tristeza deste poema é o que nos cativa. Qualquer coisa mais profunda e mais universal brilha através da sincera humildade do poeta: um testemunho acerca da época em que vivemos. O influxo constante até ao mar do conhecimento humano oculta e revela, em simultâneo, esse não-saber, o abismo do desamparo quando nos confrontamos com a questão do de onde definitivo que desafia todas as tentativas de resposta. Na primeira metade do século XX, tendo por pano de fundo todos os horrores da guerra e dos genocídios, a pergunta milenar «de onde vem o mal?» foi levantada de novo com uma nova urgência. É muito possível que hoje em dia nos tenhamos acostumado tanto ao mal, à violência e ao cinismo, que façamos a nós próprios, com surpresa, outra pergunta: de onde provém a ternura e a bondade? Que fazem elas aqui, no nosso mundo cruel? Emergirão a ternura e a bondade – tal como o mal e a violência – algures no meio das condições do nosso mundo (será que o mal e o bem dependem, principalmente, da forma como organizamos a sociedade?) ou de alguns recantos ainda por explorar dos processos inconscientes ou complexos dos nossos cérebros?
Há inúmeros estudos científicos acerca dos processos psiconeurobiológicos que acompanham todas as nossas emoções, e acerca dos centros cerebrais que são ativados quando nós recebemos ou manifestamos ternura, e quando fazemos bem a alguém ou as pessoas são boas para nós. Não duvido de que tudo aquilo que nós sentimos e pensamos passa primeiro por inúmeros portais do nosso «mundo natural», sendo afetado e influenciado pelo nosso organismo e pelo nosso ambiente, bem como pela cultura em que nascemos, incluindo a língua em que pensamos. Afinal, o nosso corpo e a nossa mente, o nosso cérebro e tudo o que neles sucede, fazem parte do «mundo» ou da «natureza», esse intrincado corredor ao longo do qual o rio da vida flui. Mas onde se encontra a fonte verdadeiramente última? Será que podemos simplesmente rejeitar a antiga intuição de que a bondade e a ternura, a luz e o calor da vida a que hoje em dia quase hesitamos em dar o elaborado nome de «amor» entram no nosso mundo – e, a partir dele, na nossa mente e no nosso comportamento – não apenas como um mero produto de nós mesmos e do nosso mundo, mas como um dom, como uma qualidade radicalmente nova, que nos enche, uma e outra vez, do assombro e da gratidão adequados? Não será o próprio mundo um dom? Não seremos nós um dom para nós próprios? E não é esse dom renovado uma e outra vez e revivido a partir desse «de onde» do qual brota o amor? Contudo, se insistirmos em procurar essa fonte para lá do nosso mundo – fora dele –, porventura não perderemos a oportunidade de o encontrar onde o ignoramos, visto estar tão próximo, ou seja, dentro de nós? Onde está a fonte da ternura e da bondade? Será que eu o sei? Devo confessar que não. Todas as respostas que me ocorrem parecem-me uma pesada cortina que cobre a janela aberta dessa pergunta. Há algumas interrogações demasiado boas para serem estragadas com respostas. Há perguntas que devem continuar a ser uma janela aberta. Tal abertura não nos deve conduzir à resignação, mas à contemplação.
O leitor, consciente de que o autor é um teólogo, talvez já esteja impaciente, à espera que eu diga, por fim, que a resposta à pergunta acerca da realidade última é Deus, claro. Contudo, dentro de mim foi amadurecendo gradualmente a convicção de que Deus se aproxima de nós mais como uma pergunta do que como uma resposta. Talvez Aquele a quem nos referimos com a palavra Deus esteja mais presente, para nós, quando hesitamos em proferir essa palavra de forma demasiado precipitada. Talvez Ele se sinta melhor connosco no espaço aberto da interrogação do que na sufocante estreiteza das nossas respostas, das nossas afirmações definitivas, das nossas definições e das nossas noções. Tratemos o seu Santo Nome com a maior contenção e prudência! Talvez os momentos da história em que reina um silêncio educado ou indiferente acerca de Deus, no mundo académico, constituam uma preciosa oportunidade de o teólogo corrigir a piedosa tagarelice da época anterior e de regressar àquilo que o santo mestre da fé, Tomás de Aquino, sublinhava como o início das suas investigações filosóficas e teológicas: Deus não é «evidente». Por nós mesmos, não sabemos o que é ou quem é Deus. Não temamos as vertigens ao olhar para as profundezas do Desconhecido. Não temamos a humilde confissão «Eu não sei»: afinal, esse não é o fim, mas sempre um novo recomeço na nossa caminhada interminável. Além disso, para a fé (e também para a esperança e o amor), para essas três formas de «paciência com Deus», com o seu carácter oculto, a frase «Não sabemos » não constitui uma barreira intransponível. (...)
A expressão «amor a Deus» parece tão absurda a muitos daqueles que nos rodeiam como as palavras «amor ao próprio inimigo». Além disso, ao fim de trinta e cinco anos de ministério pastoral, atrevo-me a afirmar que a frase: «Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças» (Dt 6,5) também é desconcertante para um número razoável de crentes. O que é que Ele quer especificamente de nós? Os meus livros não são destinados àqueles que têm a certeza absoluta de que compreendem perfeitamente o que significa o mandamento do amor a Deus.
Dirijo-me às pessoas com quem me encontro todos os dias e que são simultaneamente crentes e não-crentes. Por outras palavras, não são de modo algum «religiosamente surdos», mas, no seu caminho de fé, conhecem momentos de silêncio da parte de Deus, e a sua própria aridez interior; às vezes extraviam-se do caminho, e depois voltam a encontrá-lo; têm interrogações por responder e também passam por momentos de revolta. Dirijo-me a pessoas que são obrigadas a gritar uma e outra vez, como o homem do Evangelho: «Eu creio. Ajuda a minha pouca fé!»
Em vários dos meus livros falo do diálogo entre crença e incredulidade, sugerindo que isso não é uma discussão entre duas «partes em guerra», mas algo que tem lugar dentro de muita, muita gente. Ao mesmo tempo, tento demonstrar que a crença (de determinado tipo) e a incredulidade (de determinado tipo) são duas interpretações diferentes, duas vistas da mesma montanha, a partir de ângulos diferentes, veladas por uma luz de mistério e silêncio. Tenho interpretado uma e outra vez a incredulidade da nossa época como uma «noite escura coletiva da alma», como o momento do «eclipse de Deus» de Sexta-Feira Santa, que os não-crentes podem interpretar como a «morte de Deus», ao passo que os crentes a consideram a passagem necessária para a manhã da Páscoa. Neste livro, dou mais um passo ao longo desse caminho. Mostro que o «desaparecimento de Deus» não precisa de ser uma mera «noite escura».
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Fui aprendendo gradualmente a ler a Bíblia de tal modo que, agora, procuro perguntas nela, em vez de respostas. Por vezes até fico impressionado ao ver que ao longo de toda a Bíblia Hebraica Deus faz mais perguntas do que dá respostas. Para muitas das nossas interrogações, não encontramos respostas na Bíblia, pelo menos respostas diretas e claras. Muitas vezes, as pessoas pegam na Bíblia para procurar uma resposta para a pergunta sobre se Deus existe. Então ficam surpreendidas ao descobrir que esse livro não só não consegue resolver essa questão, como nem sequer a levanta. Não perde tempo a tentar «provar a existência de Deus» de forma especulativa: em vez disso, contém histórias acerca de pessoas que nos deixam entrar na sua experiência com Deus. Nas reflexões que se seguem preparei outra surpresa com que deparei na minha leitura dos Evangelhos: Deus espera claramente outra coisa de nós, que é bastante diferente de se acreditamos ou não na sua existência. Pensar que a «questão de Deus» se resolve simplesmente respondendo na afirmativa, quando confrontados com o dilema acerca da existência ou não de Deus, é continuar muito longe da fé cristã.
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Não me parece que a nossa salvação dependa das nossas opiniões, noções e convicções religiosas. São Tomás de Aquino afirmou, há muito tempo, que nós não sabemos o que significa «ser» no caso de Deus, por que Deus existe de uma forma diferente de tudo o que existe.
A fé sem amor é oca; na verdade, muitas vezes não passa de uma projeção dos nossos desejos e medos, e, nesse sentido, muitos críticos ateus da religião têm razão. A fé sem amor está morta, tal como o sal que perde o seu sabor.
«Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças!», diz Jesus, quando lhe perguntam qual é o maior e o mais importante mandamento da Lei. Mas como é que isso se faz? Meu Deus, não me poderias dar alguma instrução específica? Deus não pode ser objeto de amor porque Deus não é um objeto; a perceção objetiva de Deus conduz à idolatria. Eu não posso amar a Deus da mesma maneira que amo outro ser humano, a minha cidade, a minha paróquia ou o meu trabalho. Deus não está diante de mim, tal como a luz também não está diante de mim: eu não consigo ver a luz, só posso ver as coisas iluminadas pela luz. De igual modo, também não posso ver nem visualizar Deus. A própria fé não o «mostra» («A Deus nunca ninguém o viu», declara a Bíblia inequivocamente). Com a Fé, a única coisa que eu posso fazer é «ver» o mundo «em Deus».
A Escritura está sempre disponível para nos ajudar. Diz-nos ela que «Deus é amor». Obviamente, é difícil fazer do próprio amor o objeto do nosso amor. Nós amamos a Deus amando «em Deus». Nós amamos as pessoas e o mundo «em Deus», tal como vemos as pessoas e o mundo iluminados pela luz. Deus é o facto de que nós amamos e de como amamos, mais do que o «objeto» do nosso amor. Ele é a «biosfera» de todo o verdadeiro amor.
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Se Deus existe, está situado a um nível muito mais profundo do que as gerações passadas pensavam; se Ele é a «causa primeira», então devemos afirmar que não é tão detetável nem tão «demonstrável» como parecia àqueles que ainda não conheciam suficientemente a selva complexa de «causas secundárias» que impelem a natureza, os seres humanos e a história. Devemos procurar Deus mais profunda e exaustivamente, agora que sabemos que não o encontraremos na caixa de diálogo, no gabinete, de fácil acesso do diretor do teatro conhecido por «mundo». O conhecimento adquirido ao longo do século passado abalou naturalmente os sistemas fixos de noções religiosas (e a maioria de todos os outros sistemas fixos existentes). Contudo, estou profundamente convencido que esta situação constitui uma bênção e um momento oportuno (kairós), para a fé, porque a fé, mais uma vez, se transforma mais num ato livre, num ato que não se pode forçar – ou seja, numa corajosa escolha pessoal.
No Concílio Vaticano II, a Igreja católica reconheceu que a imagem cristã tradicional do ateu como alguém com um defeito, um desvario intelectual ou moral já não era sustentável. O mundo é ambivalente, está cheio de paradoxos e, se os ateus optarem por uma das várias explicações possíveis, nomeadamente, que a vida e o mundo são uma história sem Deus, então pode haver muitas razões para isso, e a sua escolha poderá ser uma escolha honesta e, pelo menos, subjetivamente respeitável. Os cristãos que não vivem num gueto mental ou cultural conhecem, sem dúvida, pessoas honradas e intelectualmente honestas que não são explicitamente religiosas. Não é necessário que os cristãos demonizem todos os ateus como tantas vezes fizeram na época em que os temiam.
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O pensador judeu Pinchas Lapide também considera que há muito menos ateus reais do que as pessoas pensam porque o rótulo de ateu aplica-se essencialmente a três grupos de pessoas, a quem essa designação – quer aplicada a eles por outros quer por si próprios – na realidade não lhes diz respeito. O primeiro grupo são os anticlericais […].
Mestre Eckhart foi buscar às cartas de Paulo a distinção entre o «homem interior» e o «homem exterior », e desenvolveu esse conceito de uma forma notável: o homem exterior tem um «Deus exterior», ao passo que o homem interior conhece um Deus interior, «um Deus acima de Deus» – uma profundeza de divindade que transcende infinitamente as piedosas noções, teorias e fantasias da religiosidade superficial.
Dêmos graças a Deus pelo ateísmo, se este destrói deuses como esses! O deus exterior tem de morrer, para que caia o véu de esquecimento em relação a Deus, pondo termo à confusão entre religiosidade e fé superficial – uma relação com o Deus vivo. Mas isso também deve significar a morte da pessoa superficial «exterior».
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«O amor é a única força que pode unificar as coisas sem as destruir», escreveu Teilhard de Chardin. Esta afirmação é típica da fé de um homem que era cientista, teólogo e poeta ao mesmo tempo; ela caracteriza esse grande visionário da unificação planetária da humanidade no Cristo cósmico, no «ponto ómega», meta do processo evolutivo universal. Essa frase terá sido provavelmente entendida como uma reação à tentativa dos regimes totalitários do século XX de unir a Europa e o mundo mediante a violência revolucionária. Teilhard acreditava que o amor pela Terra e pela matéria, associado à confiança na força criativa do homem e da natureza, traria ao mundo um impulso suficiente para completar o processo evolutivo da convergência cósmica. Será o Cristianismo de hoje capaz dessa força criativa de renovação? Estará disposto a aproveitar a iniciativa dessa forma?
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Já dissemos que só podemos amar o mundo «em Deus». Isso significa com o «desapego» ou distanciamento crítico que a fé nos confere, mas também com a responsabilidade e o afeto que também são o dom de uma fé e de um amor vivos. Se estamos ligados a Deus mediante a fé e o amor, Deus faz-nos participar parcialmente, tanto na sua transcendência como na sua imanência, na nossa relação com o mundo, permitindo-nos «estar no mundo, mas não ser do mundo», para nos mostrarmos solidários, mas não nos conformarmos com ele. Estar no mundo, mas não ser do mundo, é outro dos koans que Jesus deu aos seus discípulos na Última Ceia, segundo João. É essa a fonte da dinâmica mais intrínseca da existência cristã no mundo, na sociedade e na história.
O cristianismo, o humanismo secular e o neopaganismo (várias tentativas de fazer reviver a religiosidade pré-cristã e não cristã) são, hoje em dia, três propostas separadas, tal como na Antiguidade também havia a tríade: cristianismo, judaísmo e paganismo antigo. A tríade contemporânea está mais obviamente presente na cultura europeia do que a tantas vezes citada tríade dos «monoteísmos abraâmicos»: cristianismo, judaísmo e islamismo, embora o Islão esteja a começar a desempenhar um papel crescente no Ocidente. São três propostas, três caminhos diferentes, mas, hoje em dia, esses mundos sobrepõem-se, de forma ainda mais intensa do que na Antiguidade tardia; há uma interpenetração e várias tentativas de síntese, bem como novos e velhos conflitos e novas e velhas alianças.
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Nietzsche ensinou-me a coragem de não me esquivar a qualquer objeção ou dúvida, a «atrever-me a fazer-me ao largo no mar das dúvidas, sem levar uma bússola»; a não temer a ambivalência da realidade ou a perceber tudo a partir de vários ângulos em simultâneo, a não hesitar em ter «duas opiniões acerca de tudo»; a não temer avançar sozinho ou nadar contra a maré; a não desdenhar do nacionalismo, da mentalidade de rebanho e da idolatria, pura e simplesmente porque as coisas idolatradas são consideradas por muitos como incontestáveis e eternas; a ignorar os sinais de «proibida a entrada» nos caminhos do pensamento; a não perguntar o caminho, mas a pôr em questão os próprios caminhos. Ele ensinou-me que, para além do mundo do dia e da luz da razão, também existe a verdade da noite, quando o mundo é mais profundo do que jamais pareceu ao dia. Se eu aprendesse alguma coisa com isso, talvez o Senhor o atribua ao «mais ateu dos ateus»! Foi ele que me ensinou que os grandes pensamentos e as grandes ideias merecem ter grandes inimigos (o Cristianismo já teve mais do que suficientes pequenos inimigos), e muitas vezes devemos mais aos inimigos do que ao aplauso dos amigos.
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É no amor que nós somos mais verdadeiramente nós próprios. No amor somos humanos, mais realmente humanos. Mas, precisamente, só quando somos mais profundamente humanos, plenamente humanos, humanos ao máximo, quando somos demasiado humanos, é que nos é mostrado e dado aquilo que é mais do que humano.
Publicado em 2018 pela Editora Vozes
O binômio amor e justiça em Lévinas se distancia tanto do caráter abstrato ou de conceitos vazios como abandona a visão do indivíduo e da justiça pensada em função dele. Amor e justiça, segundo Lévinas, brotam do reconhecimento do rosto e da proximidade do próximo e do próximo do outro. Amor e justiça não existem sem o apelo ético, sem o mandamento do rosto de outrem que vem de alhures. Amor e Justiça se encarnam nas instituições, na sociedade, com suas tramas de corpos, na intriga da substituição e da maternidade ética, nas culturas, no Estado, na política e no direito.
Graças à compreensão corpórea de alteridade em Lévinas, vive neste conceito a possibilidade de repensar práticas de inclusão social por meio do acolhimento de diferenças, especialmente no que diz respeito ao estrangeiro, ao apátrida e às minorias vulneráveis. São esses rostos que, no contato físico, permitem construções filosóficas baseadas na harmonia entre amor e justiça. Neste volume, importantes autores brasileiros e estrangeiros, estudiosos da obra do filósofo francês, trazem a questão da transdisciplinaridade ultrapassando os horizontes da filosofia reflexiva a ponto de poder inspirar outros campos do conhecimento, como o direito, a psicanálise, a literatura, a teologia, a antropologia cultural, a sociologia, a bioética e também a ecologia. Da mesma forma, partilham do sentimento de que as temáticas da alteridade, vivamente abordadas pelos autores, auxiliam a repensar novas práticas de inclusão social graças à incidência da óptica levinasiana no corpo e na carnalidade. Pois permitem acolher as diferenças, especialmente o estrangeiro, o apátrida, as minorias e os rostos humanos mais vulneráveis, de todos os que atravessam nossos campos e nossas ruas, avenidas, grandes centros urbanos e favelas.
Autor: Nilo Ribeiro Jr.; Felipe Rodolfo de Carvalho; Diogo Villas Boas; Gregory Rial (orgs.)
Número de páginas: 256
Coleção: Estudos 362
Editora Perspectiva
Livro: Escritas do Crer no Corpo
Edições Loyola 2018
Organizadores: Geraldo de Mori e Virginia Buarque
Refletir sobre as inter-relações vivenciadas através do corpo, simultaneamente sentido e expresso em palavras, recebido como dádiva, ofertado em desejo e labor, mas tantas vezes vilipendiado - eis o desafio proposto a pesquisadores da teologia e das ciências humanas no II Colóquio Interfaces, cujas contribuições encontram-se publicadas nesta coletânea. Priorizando a escrita literária em obras de língua portuguesa, em um circuito que abarca três continentes, os capítulos entremeiam remissões e ausências ao divino, afetações na carne e configurações histórico-culturais.
Geraldo Luiz DE MORI
Geraldo Luiz De Mori, doutor em Teologia pelo Centre Sèvres/Facultés Jésuites de Paris, é professor e reitor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Lidera o Grupo de Pesquisa "As Interfaces da Antropologia na Teologia Contemporânea".
Virgínia Albuquerque de Castro BUARQUE
Virgínia Buarque, doutora em História pela UFRJ e pós-doutora em Teologia pela FAJE, é docente da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
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Livro Elogio da Sede
José Tolentino Mendonça
Edições Paulinas 2018
O livro reúne as meditações que o Pe. José Tolentino fez durante o retiro da Cúria Romana em fevereiro de 2018. Publicado em Portugal agora é lançado no Brasil pelas Edições Paulinas.
José Tolentino Mendonça
In "Elogio da sede". São Paulo: Edições Paulinas, 2018
A água é ensinada pela sede
Aos sedentos é útil recordar que há uma ciência da sede. Tomada de um ponto de vista técnico a sede vem caracterizada como um conjunto de sensações internas que a desidratação desperta em nós e que a reidratação repara. É uma definição rápida esta, e que claramente supõe muito mais. Na verdade, quando nos apercebemos de que temos sede estamos a beneficiar de uma silenciosa e vital interação dos sistemas fisiológicos de controlo do nosso próprio corpo, que se organizam para transmitir-nos essa preciosa informação. Ao que parece, num adulto saudável, este mecanismo de alerta é suficiente para fazê-lo procurar um estado de hidratação adequado, mas nem sempre é assim. Tanto a capacidade de detecção da sede como a possibilidade de resposta positiva a este estímulo podem estar alteradas e, até mesmo, diminuídas, expondo a pessoa a riscos de que não se dá conta. Temos sede e não nos apercebemos. De um modo cada vez mais frequente uma das perguntas que os médicos tendem a universalizar para os pacientes de qualquer idade é esta: «Que quantidade de água bebe por dia?» E normalmente bebemos menos do que aquilo que devíamos. É uma boa pergunta para transpormos para o plano espiritual. Será que reconhecemos a sede que há em nós? Apercebemo-nos da desidratação que, voluntária ou involuntariamente, nos impomos? Damos tempo a decifrar o estado da nossa secura? A poetisa Emily Dickinson dizia que «a água é-nos ensinada pela sede». São João da Cruz afirmava que podemos beber mesmo na obscuridade porque a nossa sede ilumina a fonte. O que é que a nossa sede nos ensina? Que fonte ela ilumina e esclarece? Será que fazemos da nossa sede uma escola de verdadeiro conhecimento, nosso e de Deus? Ou, pelo contrário, aceitamos viver à míngua de água, procurando mascarar uma sede que não escutamos?
A dor da nossa sede
Não é fácil reconhecer que se tem sede. Porque a sede é uma dor que se descobre pouco a pouco dentro de nós, por detrás das nossas habituais narrativas defensivas, ascéticas ou idealizadas; é uma dor antiga que sem percebermos bem como encontramos reavivada, e tememos que nos enfraqueça; são feridas que nos custa encarar, quanto mais aceitar na confiança. Em muitas ocasiões, a lâmina da sede colada à nossa garganta lembra o punhal de Abraão encostado à garganta de Isaac. E não é uma posição muito cômoda, convenhamos. Várias são as passagens da Bíblia que vão nessa linha, onde a sede nada tem de simbólico ou de inspirador. A sede é só sede: uma dura experiência de sacrifício e de prova. É assim que ela é descrita, por exemplo, em Êxodo 17:1-4:
«Toda a comunidade dos filhos de Israel partiu do deserto de Sin para as suas etapas, segundo a palavra do Senhor. Eles acamparam em Refidim, mas não havia água para o povo beber. O povo litigou com Moisés, e disse: “Dá-nos água para beber.” Disse-lhes Moisés: “Porque litigais comigo? Porque pondes o Senhor à prova?” Ali o povo teve sede de água, e murmurou contra Moisés, dizendo: “Porque nos fizeste subir do Egito para nos fazer morrer à sede, a nós, aos nossos filhos e ao nosso gado?” Moisés clamou ao Senhor, dizendo: “Que farei a este povo? Mais um pouco e vão apedrejar-me.”»
Existe uma violência no mundo e em nós próprios que provém da sede, do medo da sede, do pânico que as condições de sobrevivência não estejam garantidas. Viramo-nos contra os outros, litigamos, achamo-nos enganados, queremos voltar ao passado, apressamo-nos a encontrar um bode expiatório. A sede destapa uma agressividade que nos surpreende, mas que, se formos honestos, está algures dentro de nós. Claro que não nos é grato reconhecermo-nos nessa imagem, mas ela oferece-nos pelo menos a possibilidade de nos tornarmos mais conscientes.
A dor da nossa sede é a dor da vulnerabilidade extrema, quando os limites nos esmagam. E acerca disso o Livro de Judite (7:20-22) empresta-nos algumas imagens intensas, que documentam uma situação concreta, infelizmente igual a tantas outras que se verificaram e verificam na história. No Livro de Judite (7) trata-se das consequências devastadoras provocadas pelo cerco do exército assírio:
«O exército da Assíria, a infantaria, os carros de combate e os cavaleiros mantiveram o cerco durante trinta e quatro dias, até que todos os recipientes de água dos habitantes de Betúlia ficaram vazios; as suas cisternas começaram a ficar esgotadas, sem água para poderem beber a sua porção diária, uma vez que a água era racionada. As crianças mais pequenas estavam abatidas e as mulheres e os jovens começaram a desfalecer de sede e a cair pelas ruas e às portas da cidade. Estavam no limite das suas forças.»
A sede retira-nos o alento, esgota-nos, desvitaliza-nos, faz-nos perder as forças. Deixa-nos sitiados e sem energia para reagir. Transporta-nos aos limites. Compreende-se que não seja fácil expormos a nossa sede.
A parábola da nossa sede
O dramaturgo Eugène Ionesco reagia sempre que ouvia classificar o seu teatro como «teatro do absurdo». Ele considerava tal descrição completamente despropositada. Se as suas personagens habitam num mundo de pernas para o ar, que nos mira do avesso, se usam palavras desarticuladas e termos inventados, que simplesmente não existem, há uma razão. Isto acontece para romper com a banalidade de uma comunicação humana que é muito fluente e reconhecível, mas que já não diz nada. Ionesco justificava-se explicando que a única coisa importante no teatro é que ele solte «um grito profundo da alma». Por isso, as suas peças são parábolas tatuadas sobre o coração e em rutura com este tempo desencontrado que vivemos.
Uma delas, representada pela primeira vez em 1964, chama-se "A sede e a fome". Conta a história de um casal — Jean, o homem, Marie Madeleine, a mulher —, onde cada um representa uma posição diferente não só perante a vida prática, mas também quanto ao sentido da própria vida. Jean é devorado por um desejo sem objeto, um infinito vazio, uma inquietude sem coordenação com nada de real. Ele vive abrasado por uma sede e por uma fome que nada parece aplacar. E que rugem dentro dele continuamente como um trovão: «Tenho sempre fome. Como e é como se não tivesse comido. Este vazio, este vazio que não consigo encher... O meu estômago é um buraco sem fundo; a minha boca é um abismo cujas paredes são de fogo. Fome e sede, fome e sede.» A mulher tenta reorientá-lo, mas em vão. Ela interroga-se: «Porque é que não lhe agrada criar raízes?» Ou então: «Onde poderá ele procurar aquilo que está desde sempre ao seu alcance, que se encontra ali, debaixo dos seus pés?» Ele, porém, mesmo amando a mulher e a filha, não acredita que um amor assim limitado possa satisfazer a grandeza da sua sede: «O universo é ainda maior, e o que me falta é-o ainda mais.» Em vez de viver na sede do absoluto, Jean escolheu viver o absoluto da sede. Por isso, tudo lhe parece ínfimo, insuficiente e mesquinho. Sobre todas as coisas espalha o mesmo veneno da lamúria, condenando-as. Esta sede, a que ele não consegue dar um rosto, fez dele um homem sem casa, nem raízes; incapaz de criar laços; estrangeiro de si mesmo; perdido no vazio do labirinto onde escuta apenas o solitário rumor dos seus passos.
Se tivéssemos de contar a parábola da nossa sede, porventura teria traços semelhantes. Uma sede que se torna numa grande insatisfação, numa desafeição em relação ao que é essencial, numa incapacidade de discernimento que nos empurra para os braços do consumismo. Fala-se muito contra o consumismo dos centros comerciais, mas não podemos esquecer que há também um consumismo na vida espiritual. E que o que se diz sobre um, ajuda-nos a compreender o outro.
De facto, as nossas sociedades que impõem o consumo como padrão de felicidade transformam o desejo numa armadilha. O desejo tem a dimensão de uma montra e promete uma satisfação imediata e plena que evidentemente não pode cumprir. Vemos um objeto iluminado numa vitrine e, nesse momento, ele parece-nos conter o brilho do astro distante pelo qual ansiamos. É mesmo aquele, pensamos, enquanto avançamos para a fila da caixa registadora embevecidos com aquele ato de satisfação simbólica. Mas uma vez comprado, o objeto não parece o mesmo, perdeu alguma coisa que tínhamos por irresistível, já não tem a consistência da promessa, como se a posse implicasse uma desvalorização. E com isso cresce em nós um vazio que nos faz voltar ao ponto de partida, uma vez e outra e outra. A desilusão atira-nos para o circuito insone do consumo, onde o nosso desejo adoecido se torna o desejo de nada, a pura metonímia da nossa carência. O objeto do nosso desejo é um ente ausente, um objeto sempre em falta. Obsidiados pelo transe comercial desejamos tanto que já não somos capazes de desejar. Porém, o Senhor não cessa de nos dizer: «O que tem sede aproxime-se; e o que deseja beba gratuitamente da água da vida.»
O caminho da nossa sede
Mesmo não se tratando de uma obra religiosa, o livro de Saint -Exupéry "O Principezinho" é uma espécie de mistagogia contemporânea, pois inicia-nos na procura do sentido da existência. Não é indiferente o facto de ter sido escrito no ano de 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, quando tantas feridas e incertezas pesavam, e mais do que nunca parecia difícil e urgente afirmar aquele «essencial que é invisível aos olhos». Ora, na verdadeira "peregrinatio animae" que o Principezinho realiza, depois de deixar o seu planeta, uma das figuras que encontra é um estranho comerciante de pílulas.
«— Olá, bom dia! — disse o principezinho.
— Olá, bom dia! — disse o vendedor.
Era um vendedor de comprimidos para tirar a sede. Toma-se um por semana e deixa-se de ter necessidade de beber.
— Porque é que andas a vender isso? — perguntou o principezinho.
— Porque é uma grande economia de tempo — respondeu o vendedor. — Os cálculos foram feitos por peritos. Poupam-se cinquenta e três minutos por semana.
— E o que é que se faz com esses cinquenta e três minutos?
— Faz-se o que se quiser...
“Eu”, pensou o principezinho, “eu cá se tivesse cinquenta e três minutos para gastar, punha-me era a andar devagarinho à procura de uma fonte…”»
Há muitas formas de iludirmos as necessidades que nos dão vida, e de adotarmos um escapismo espiritual, sem nunca assumir, no entanto, que estamos em fuga. A nosso favor evocamos sofisticadas razões de rentabilidade e eficácia, substituindo a audição profunda do nosso espaço interior e o discernimento da nossa sede por pílulas que prometem resolver mecanicamente o nosso problema. É tão fácil apegarmo-nos à ideia de poupar cinquenta e três minutos e sacrificarmos a isso o prazer de caminhar devagarinho à procura de uma fonte. É tão fácil idolatrarmos a pressa e a vertigem neste nosso tempo hipertecnológico e que tem o culto da instantaneidade, da simultaneidade e da eficácia. Escreve Milan Kundera, em "A Lentidão":
«Há um laço secreto entre lentidão e memória, entre velocidade e esquecimento. Tomemos uma situação das mais banais: um homem caminha pela estrada. Por instantes, procura recordar-se de alguma coisa que, no entanto, lhe escapa. Então, instintivamente, ralenta o passo... Na matemática existencial esta experiência assume a forma de duas equações elementares: o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento.»
Como é o nosso passo: sempre tenso e apressado ou humilde e distendido? Sentimo-nos nutridos pela memória ou secos pela velocidade de tudo? Sentimo-nos a caminhar devagarinho para uma fonte? Aqui, como em outros âmbitos da vida, a verdadeira conversão não consistirá em belas teorias, mas em decisões que resultem de uma tomada de consciência efetiva das nossas necessidades. E, depois, o passo a passo dos pequenos gestos e das práticas concretas que nos comprometem.
Livro: Escolhendo Jesus. Jovens cristãos para uma nova sociedade.
Autores: Aline Amaro da Silva; Pe. Antonio Ramos do Prado; Pe. Elias Silva; Welder Lancieri Marchini
Editora Vozes
Os jovens possuem uma cultura própria que se revela de acordo com o contexto de sua história. Perceber a notável diversidade de expressões juvenis presentes na Igreja do Brasil, apresentar cenários em que vivem os jovens e, concomitantemente, oferecer pistas de ação para os animadores, lideranças e agentes de pastoral visando ajudá-los a melhor acompanhar os adolescentes e jovens é intenção desta obra. Cada um dos quatro capítulos apresenta pistas de ação, propondo aos animadores e agentes de pastoral juvenil e a todos os que atuam com este grupo, possibilidades de atividades a serem realizadas tanto pelos agentes quanto junto aos adolescentes e jovens. Estas visam ajudar no acolhimento e integração concreta dos jovens na comunidade, estreitando laços entre eles e as ações pastorais da comunidade em que possam atuar. Isto porque se o jovem assume a sua vocação, sua função de sujeito eclesial e auxilia nos processos cibernéticos, não mais evangelizamos os jovens, mas com eles.
Livro: O cultivo espiritual em tempos de conectividade
Autor: Francisco Galvão
Editora Paulus
Escrito entre a agitação de São Paulo e o silêncio de Medellín, este é um livro para quem vive o descompasso da pressa e deseja reconectar-se consigo mesmo. É um despretensioso convite à busca de sentido e harmonia em um mundo marcado por sofrimento e angústia. Um livro para todos aqueles que – professando ou não uma religião – continuam ávidos de sabedoria, compaixão e transcendência. Não é um livro apenas para mentes conectadas à internet, mas também para mentes conectadas aos excessos da vida contemporânea. É um livro sobre pausa e silêncio, mas também sobre contentamento e vida feliz.
Temos muita pressa e estamos sempre atarefados. Contudo, precisamos reencontrar o caminho de volta à nossa morada interior. Caso contrário, continuaremos reféns de nossos apegos, angústias e das falsas expectativas em relação a Deus e as pessoas.
O autor fará o lançamento deste livro dia 21 de junho, às 19h30, no Centro Loyola, quando fará também uma palestra sobre: Espiritualidade e vida conectada. Sobre o despertar interior e a urgência da pausa.
Democracia em crise: o Brasil contemporâneo
Cadernos temáticos do Nesp- número 7
Editora PUC-Minas
O Livro é organizado pelos professores da PUC Minas Robson Sávio Reis Souza, Adriana Maria Brandão Penzim e Claudemir Francisco Alves. A publicação reúne textos de diversos autores, entre eles os cientistas políticos Otávio Soares Dulci, Rudá Ricci, Mara Telles e Léa Souki, o filósofo Maurício Abdalla, o constitucionalista José Luiz Quadros de Magalhães e o jornalista João Paulo Cunha.
A publicação integra a série Cadernos Temáticos do Nesp, que tem como objetivo divulgar artigos, ensaios, relatórios de pesquisas, entrevistas, resenhas e outras produções textuais que possam ampliar o debate e a reflexão sobre temas relevantes, sobretudo acerca da realidade brasileira. O sétimo volume da série dedica-se à temática da crise da democracia, com foco no Brasil contemporâneo.
Equipe do site
Aqui estão aquelas músicas cantadas por poetas como Bandeira, Millay, Bashô, e mesmo a Cecília, que dá o título a este livro de poemas. Título que poderia ser também Fim do mundo, pois as canções da belíssima poesia de Adriana Lisboa são dramáticas enquanto líricas, carregam os sons dolorosos da vida humana num contraponto aos rumores da exultação, do enlevo de simplesmente estar vivo e poder cantar. O canto como exercício, amor, lembrança e confissão.
Indícios da vida vão sendo captados com doçura e bondade, numa comovente dilaceração de si mesma em face do mundo real e imaterial. Indícios dos mundos cotidianos — a máquina de lavar, o relógio, o cão, o cogumelo — e dos sonhados — desertos de tuaregues, deuses distraídos, a raposa na montanha, luas bêbadas. É nos livros que a mulher vai aprender a ser mãe, ou no próprio filho? É nas palavras que a poetisa vai buscar as pequenas músicas, ou nos próprios dias vividos?
Sentada à mesa com os fantasmas do passado, numa reinvenção do tempo e da alma, Adriana Lisboa constrói com o barro dos pensamentos e as partículas dos sentimentos o caminho deste livro: vai do mundo ao eu, contemplando em si a mãe, a irmã, o avô, o pai, o filho, o espírito envenenado pela voz da poesia. Uma voz meiga e contundente. Na harmonia da música mais pura. Deveras, como diziam os antigos, tudo acontece apenas para ser cantado.
Ana Miranda
In: Editora Iluminuras
Livro: Libertar o Tempo - Para uma arte espiritual do presente
Edições Paulinas 2017
Como o próprio título afirma: Libertar o tempo, o personagem central desta obra é o tempo. Nesse conjunto de reflexões densas e ao mesmo tempo leves, belas e agradáveis a leitores não acadêmicos ou versados nas ciências de qualquer tipo, o autor faz teologia. Uma teologia que ele mesmo adverte desde a introdução do volume desejar ser tecida por perguntas. Uma teologia que se abre para escutar as perguntas de cada tempo, de cada pessoa. Uma teologia que ao mesmo tempo interroga o tempo, pronta para construir-se em diálogo com este. Uma teologia que, fiel ao que pede o Papa Francisco, escape de sua autorreferencialidade e escute.
O autor batiza seu livro de "manual da arte de viver". Impossível título mais adequado, nome mais propício e evocativo. Pois de arte se trata, do princípio ao fim. A arte da vida, em seus diversos ângulos e variadas perspectivas.
Todas essas dimensões da vida que são muitas vezes como escolhas, pedras brutas onde se tropeça e resulta em ferida e chaga aparentemente incurável, são resgatadas paciente e belamente pelo autor, que as explora com sua linguagem poética e espiritual. Transfigura-se a pedra que revela aquele que é a pedra angular e redime-se o tempo com a doçura da sabedoria. Assim diz a Bíblia, da qual Tolentino é exímio conhecedor, sobre o sábio. É aquele que espera, que sofre o sofrimento, que exercita a paciência, que aceita não ver tudo, que convive com as perguntas, na escuta e no desejo do mistério.
Ao final, na segunda parte do livro, o autor sobe a montanha para proclamar novas bem-aventuranças. Seu destinatário é a família que hoje passa por tantas crises, mas que continua sendo o laboratório onde a vida se gesta e configura. Tolentino entende a família como comunidade em missão chamada à arte da hospitalidade, onde o afeto seja permanentemente criativo e eloquente, onde se pratique a gramática da gratuidade e a arte da lentidão. A casa deve ser o terreno das surpresas, onde se faz bom uso das crises e se pesquisa sem cessar a alegria.
Na arte de viver que este poeta sapiente e cheio de espírito deseja ensinar, somos todos convidados a entrar por meio da pequena joia que é este livro.
A arte de olhar para a vida
A dada altura percebemos que o mais importante não é saber se a vida é bela ou trágica, se, feitas as contas, ela não passa de uma paixão irrisória ou se a cada momento se revela uma empresa sublime. Certamente está-nos reservada a possibilidade de a tornar em cada um desses modos, só distantes e contraditórios na aparência.
A mistura de verdade e sofrimento, de pura alegria e cansaço, de amor e solidão que no seu fundo misterioso a vida é, há de aparecer-nos nas suas diversas faces. Se as soubermos acolher, com a força interior que pudermos, essas representarão para nós o privilégio de outros tantos caminhos. Mas o mais importante nem é isso, aprendemos depois. Importante mesmo é saber, com uma daquelas certezas que brotam inegociáveis do fundo da própria alma, se estamos dispostos a amar a vida como esta se apresenta.
A dada altura compreendemos que falar sobre o ar, como faz o poeta Tonino Guerra, não tem de ser uma deriva, mas um chamamento à construção concreta que a vida é, confirmada (ou não) pelo nosso sim: «O ar é esta coisa ligeira/ que te gira em torno à cabeça/ e torna-se mais clara/ quando ris». Ou que quando Simone Weil repete que «a atenção é uma prece», ela mais não faz do que mobilizar-nos para a aliança com o agora, porque se não formos prudentes e generosos para manter os olhos maximamente abertos sobre o presente, que ciência poderá o futuro constituir para nós?
O viver tem esta simplicidade, que precisamos de redescobrir, despojando-nos do muito que nos atravanca, relançando-nos no seu obstinado fluxo. Estamos muitas vezes alienados da vida, separados dela, por uma muralha de discursos, de angústias, de confusas esperanças. Precisamos de perfurar esse muro até ao fim.
É necessário decidir, portanto, entre o amor ilusório à vida, que nos faz adiá-la perenemente, e o amor real, mesmo que ferido, com que a assumimos. Entre amar a vida hipoteticamente pelo que dela se espera ou amá-la incondicionalmente pelo que ela é, muitas vezes em completa impotência, em pura perda, em irresolúvel carência. Condicionar o júbilo pela vida a uma felicidade sonhada é já renunciar a ele, porque a vida é decepcionante (não temamos a palavra).
Com aquela profunda lucidez espiritual que por vezes só os homens frívolos atingem, Bernard Shaw dizia que na existência há duas catástrofes: a primeira, quando não vemos os nossos desejos realizarem-se de forma alguma; a segunda, quando se realizam completamente. Há um trabalho a fazer para passar do apego narcisista a uma idealização da vida, à hospitalidade da vida como ela nos assoma, sem mentira e sem ilusão, o que requer de nós um amor muito mais rico e difícil. Esse que é, em grande medida, um trabalho de luto, um caminho de depuração, sem renunciar à complexidade da própria existência, mas aceitando que não se pode demonstrá-la inteiramente.
A vida é o que permanece, apesar de tudo: a vida embaciada, minúscula, imprecisa e preciosa como nenhuma outra coisa. A sabedoria é a vida mesma: o real do viver, a existência não como trégua, mas como pacto, conhecido e aceite na sua fascinante e dolorosa totalidade.
Não se trata apenas de viver o instante, tarefa inútil, pois a vida é duração. Aquilo que nos é dado dura, e nós dentro dele, com ele, por ele. Não é a flor do instante que nos perfuma, mas o presente eterno do que dura e passa, do que dura e não passa.
E quando é que chega a hora da felicidade?, perguntamo-nos. Chega nesses momentos de graça em que não esperamos nada. Como ensina o magnífico dito de Angelus Silesius, o místico alemão do século XVII: «A rosa é sem porquê, floresce por florescer/ Não se preocupa consigo, não pretende nada ser vista».
José Tolentino Mendonça
Marca d’água é a imagem formada por diferenças na espessura de uma folha de papel quando se aplica uma estampa na folha ainda úmida. Pode ser vista apenas se o papel for colocado contra a luz, não interferindo no que está escrito ou impresso. A sutileza e a força da marca d’água inspiraram o novo livro da escritora mineira Elizabeth Gontijo.
''Ela é, ao mesmo tempo, sutil e forte porque é identificadora. Por exemplo: na nota de dinheiro, você só consegue ver a marca d’água se colocá-la contra a luz. Só assim se descobre se ela é verdadeira ou não. Isso é muito interessante. Todos nós temos a nossa marca d’água, mas ela é mais discreta, sutil mesmo. O poeta busca justamente isso: o mais secreto sob a aparência das coisas, a marca que sinaliza o primordial'', diz Elizabeth.
Marca d’água (Editora Cas’a’screver), oitavo livro da autora, com prefácio assinado pelo doutor em literatura Antônio Sérgio Bueno. São 65 poemas – alguns mais sintéticos, como Triz, e outros em que ela conta uma historinha mesmo (Duas moradas). ''Gosto dessa coisa sintetizada do Triz; esse lampejo. Ele é quase um haicai'', afirma a autora. O livro tem quatro partes: Roda, que traz epígrafe de Clarice Lispector; Ranhuras, com palavras de Guimarães Rosa; Indispensável, com texto de Emily Dickinson; e A mais ver, assinado por Guimarães Rosa.
A capa foi criada por Marconi Drummond e as ilustrações são da própria Elizabeth, formada em artes plásticas pela Escola Guignard. A autora conta que desde a infância a escrita tomou conta de sua vida. ''Sempre gostei muito de desenhar e escrever. Mesmo tendo feito artes plásticas, nunca abandonei as palavras e, em 1991, decidi lançar minha primeira publicação, De cor. Não parei mais e não pretendo parar'', avisa.
Elizabeth conta que tem acompanhado com satisfação a nova geração de poetas, destacando o trabalho de Ana Martins e Ana Elisa Ribeiro. ''É uma poesia moderna, considero-as excepcionais. É muito bom ver essa renovação'', conclui.
MARCA D’ÁGUA
• De Elizabeth Gontijo
• Editora Cas’a’escrever
• 92 páginas
• R$ 40
Informações: (31) 3516-1026.
O livro
Publicado inicialmente nos Estados Unidos, “A cabana” se revelou um fenômeno editorial, com milhares de exemplares vendidos em todo o mundo. A obra de William P. Young faz uma abordagem sobre amor, sofrimento, perdão, salvação, e sobre Deus e o ser humano.
Transcrevemos abaixo a palestra sobre o Livro A Cabana, realizada no Centro Loyola em 2011, com o Pe. José Fernandes sj e a professora Eliana Yunes, da PUC-Rio. Ambos comentam a obra.
“No fundo, no fundo, o livro almeja convencer o leitor de que Deus nunca nos abandona”. Esta foi uma das principais constatações às quais a lingüista Eliana Yunes levou os participantes da palestra que ela e o padre jesuíta J. Fernandes fizeram sobre o livro “A Cabana”, no Centro Loyola, no dia 10 de fevereiro de 2011.
Eliana, que também é escritora, começa a reflexão traçando um cenário sobre as questões em que o padre Fernandes iria fazer diretamente um mergulho. “A primeira dúvida que aparece quando um livro desta natureza ganha as páginas dos jornais e está no ranking dos mais vendidos é se isso é literatura ou auto-ajuda. Que tipo de livro é esse?”, interroga. Ela mesma responde: “quando se trata de ficção, a gente costuma imaginar que diz respeito a coisas falsas, ilusões”. Para a doutora em letras, há um equívoco bastante grande em pensar que o imaginário seja habitado por mentiras. “Nosso próprio discurso sobre o mundo é por si só uma ficção”, provoca.
A professora explicou que fazemos essa distinção, porque trabalhamos com o conceito palpável das coisas acontecidas. “A nossa apreensão do mundo, entretanto, não equivale ao mundo. O mundo é uma coisa. Outra coisa é o que nós dizemos que o mundo é”, afirmou. “Cada um de nós narra um fato com suas emoções, suas percepções, suas memórias anteriores, com aquilo que já habitou o seu coração antes”, indica.
De acordo com Yunes, há também uma diferença imensa entre uma língua que está no dicionário e as palavras em situação de uso. A lingüista pondera que, no segundo caso, elas vão ganhar arranjos, tonalidades, sinonímias que no dicionário não aparecem e que têm a ver com a visão de mundo que cada um tem. “Nós não falamos a língua pelo dicionário, nós falamos a língua que vivemos. E é essa língua que desenha o mundo”, observa.
A professora acrescenta ainda a diferença que há entre um idioma e outro: “o mundo que eu vejo em inglês não é o mundo que eu vejo em português”. Como as línguas têm um recorte de mundo diferente, “a nossa língua é”, portanto, “uma ficção sobre o mundo”, deduz. “Nós acessamos um consenso sobre a realidade. Se a gente tivesse acesso à transparência da verdade a gente veria a Deus. E talvez isso fosse insuportável”, ressalta.
Eliana continua sua explanação explicitando que o real mantém a língua convencional como via de acesso. Mas que existem outras como, por exemplo, “explorar o imaginário”. “Esse nível resulta nos discursos de ficção”, expõe. “Não estou falando só da literatura, mas o primeiro discurso com que os homens tentaram entender e organizar o mundo não foi o da lógica, da filosofia, foi o da poética. Esse mundo do imaginário é o que nós chamamos de mundo da ficção. Você não pode provar que as coisas aconteceram, mas você sabe que elas aconteceram, são tão vivas quanto as nossas vidas.”, sustenta.
Conforme Eliana Ynes, o mundo da ficção dilata a extensão do nosso conhecimento, nossa potência de ser. “O outro que nos escuta não habitou nossa experiência, mas tem uma vivência que dá a ele uma certa cumplicidade. Por isso as histórias de ficção movem a gente tão profundamente”, justifica.
A escritora sustenta que a ficção não é exatamente uma mentira, mas alerta que, “ao trabalhar com literatura, e com ficção de maneira geral, você não tem nenhum compromisso com a verdade. Porque quem mergulha no imaginário sabe que do ponto de vista humano não é possível acessar a verdade”. E prossegue: “diante da impossibilidade de falar sobre a verdade a gente usa as múltiplas verdades. E a literatura, a ficção, é um caminho para a gente perceber como as coisas poderiam ser”.
Eliana destaca que, se não há compromisso com a verdade, não há compromisso com a persuasão, com o convencimento. Mas que, ao ler um romance, saímos convencidos de uma porção de coisas. “A leitura é um ato de adesão e abertura”, afirma. “Por isso, quando alguém quer passar uma mensagem - contramão do literário - usa a estrutura literária. A estrutura literária coopta você, coopta seu coração, seus sentimentos, seus desejos. Ela traz você para dentro do que ele está querendo te convencer”, revela. E avisa: “a literatura pode te persuadir de uma porção de coisas, mas essa persuasão é sua responsabilidade”.
“O livro A Cabana é um livro desta natureza!”, revela Eliana Yunes. “Mas ele não é um livro ingênuo”, avisa. De acordo com a especialista, "o autor usa a estrutura literária para contar um relato extraordinário, cooptar você a fazer a experiência da dor e convencê-lo, como fez com a principal personagem da história, de que Deus está muito mais perto do que eu possa imaginar e sob formas que eu não posso imaginar".
A professora terminou sua exposição explicando que o autor de A Cabana, Willian P. Young, conhece esse arsenal todo de literatura, de teologia, o que torna o livro extraordinariamente sedutor. “Mas ele não deixa, no fundo, de querer me passar uma lição de vida”, afirmou, passando a palavra para o padre J.Fernandes que fez uma abordagem teológica dos pontos mais evidentes do livro.
“Nós construímos uma imagem de Deus a partir da nossa própria imagem”, afirma o padre jesuíta José Maria Fernandes em sua reflexão sobre o amor, o sofrimento e a experiência de Deus a partir da leitura do livro A Cabana, de Willian P. Young...
O padre, que também é teólogo e artista plástico, começa sua exposição dizendo que todos nós construímos imagens, ao longo da vida, a partir da nossa própria imagem, mas que o tempo e a história possuem movimentos dinâmicos que atingem nosso interior e mudam tudo. “O inesperado desconstrói nossas imagens e nos obriga a reconstruí-las”, postula.
Para José Maria, essa é a situação apresentada no livro A Cabana. O personagem principal tinha uma imagem de Deus, construída no decorrer dos anos, a partir de conceitos e pré-conceitos que recebeu de outras pessoas. “Mas a perda da filha muda radicalmente seus relacionamentos. E Mack começa a se perguntar ‘que Deus é esse, que permite essa estupidez, e não faz nada”, retoma a narrativa. “O personagem não tem consciência de que está mantendo uma fé desprovida de sentido”, argumenta. E questiona os participantes: “quantas vezes nós já pensamos assim, não?”.
Continuando sua apresentação, Fernandes diz que a situação vai minando Mack por dentro, como também acontece conosco. “A falsa fé vai esvaziando a pessoa”, explica. “Mas aquilo que o protagonista pensa ser o vazio é o espaço das falsas imagens. Aí sim, a ficção vira mentira”, revela. Na sua interpretação, Deus permite tais situações para desfazermos uma falsa imagem. “É no vazio que Deus vai se reconstruir”, sustenta. Para ele, o livro mostra esse processo dentro do Mack.
De acordo com o jesuíta a tensão permanece até que Mack recebe um bilhetinho: “estou te esperando lá na cabana, papai”. Durante meses, anos, o personagem passa por esse processo em que vai se esvaziando, se afastando das suas relações, até que na sua interioridade pega aquele bilhete e diz “estou cheio de Deus!”, rasga-o e joga no lixo. “Nós também podemos passar por essas situações de ter raiva de Deus. Às vezes são situações tão pesadas que a gente acaba falando: ‘volta lá para sua nuvem, fica sentado lá e me esquece’”, pondera.
Mas acontece algo quando ele (Mack) entra na cabana, rememora o religioso. “É a nossa cabana interior”, sustenta. “Toda casa tem um quartinho. Ele fica entupido de coisas. Aquilo que eu não quero, que eu não gosto, que me incomoda. Até o dia em que não cabe mais nem uma folha de papel. Agora tem que esvaziar. E aí começa todo o processo”, ensina. “É nesse quartinho que Deus quer trabalhar em nós. É ali que Ele quer entrar. E a esse quartinho só Deus tem acesso. É a nossa cabana. É ali que Deus quer falar”, assegura.
De acordo com o palestrista, Deus manda bilhetinho, marca encontros, usa de diversas estratégias até que criemos coragem de abrir as portas e esvaziar o “quartinho”. “Então começa a desconstrução da imagem. Eu não sou aquilo que eu esperava ser, que eu pensava ser. Deus também não é assim”, esclarece.
Para o padre, é isso que acontece com Mack e vai se iluminando dentro dele. A começar pelo encontro inesperado com “a negra gorda, peituda, fazendo doce e chá na beirada do fogão”. No livro, o personagem questiona como conversar com um Deus assim e ainda chamá-lo de pai. “Espera quando você conhecer o meu filho!”, reconta. “E chega quem? Um operário, sujo, com a roupa rasgada”, continua. “E a terceira pessoa? A louca da casa!”, recorda.
Neste ponto da reflexão, o teólogo faz um aparte interpelando os participantes: “como é que vocês fazem uma oração para o Espírito Santo? Vocês conseguem conversar com uma pomba?”. Ele afirma categoricamente: “é a imagem que nós temos, que nos é passada”. E ironiza: “Não dá para dialogar com um pombo. Como é que eu vou dialogar com um velho sisudo sentado num trono em cima de uma nuvem com um triângulo na cabeça?”. Retomando a apresentação, José Maria diz que essas imagens começam a se retorcer e a se decompor na mente de Mack.
Na seqüência, Fernandes destaca o trecho em que Mack é levado a atravessar um lago caminhando. “Mas, não tem um barco... Não, a gente vai andando mesmo... Eu não sei andar sobre as águas... Eu te ensino”, refere. “Nós temos uma passagem assim na bíblia, não temos? Vocês sabem o que significa andar sobre as águas? Olha aí uma ficção...”, dialoga com o público. O estudioso esclarece que, na linguagem bíblica, o mar significa a morada do mal. “É por isso que Jesus caminha sobre as águas. Porque é aquele bem que supera a força do mal”, interpreta. “Então andar sobre as águas é uma fantasia, é uma ficção, é um simbólico”, conclui. “O que é que representa para minha fé Jesus caminhar sobre as águas, literalmente? Nada. Quando muito me dá uma imagem do taumaturgo, do mágico”, considera. O jesuíta estabelece que, para nossa fé, hoje, a passagem quer mostrar que somos capazes de superar, de estar acima do mal.
Voltando ao livro, o religioso traz à memória os vários encontros de Mack com essa trindade, onde cada um tem seu papel. “Por que é que Deus, o papai, é a negra gorda que está sempre fazendo os quitutes? Qual a imagem de Deus que está aí por trás?”, aprecia. Ele mesmo responde: “é a mão providente. É Ele quem prepara as coisas”. Neste momento, o palestrista alude às culturas da pré-história, em que todas as deusas da fertilidade eram esculpidas em pedras negras, “gordas, bundudas e peitudas”. Ele também pensa sobre imagens que estão no nosso inconsciente. “Quem não se lembra de ‘Direito de nascer’, com a mamãe Dolores? ‘Sítio do pica-pau amarelo’, com tia Nastácia... ‘E o vento levou’...”, enumera. “É sempre essa imagem, da mãe preta, da ama de leite. É ficção, mas é realidade”, alega.
Se o Pai é aquele que prepara, o Filho é aquele que realiza, segundo padre Fernandes. É o que mete a mão na massa, aquele que trabalha, que chama, que ensina, que mostra que não é por aqui, que aí vai afundar, que diz “vem atrás de mim que eu te ensino”. Já o Espírito Santo, na compreensão do teólogo, traz um nome de origem indu-européia, da mesma raiz de “o vento quente que sopra”. É aquele que vem, que entra, que transforma. “Muito interessante. Ele (o autor) conhece a teologia, a cultura, e vai colocando essas imagens no texto. E os três vão configurando uma nova imagem no Mack”, na opinião de José Maria.
Outro diálogo do livro que mereceu destaque durante a palestra diz respeito à dificuldade que Mack tem de se dirigir finalmente ao Pai, o Deus negro feminino. Deus o questiona: “É complicado por causa dos fracassos do seu Pai?”. E propõe: “Se você quiser, eu posso ser o seu pai”. Mas Mack replica: “Como posso confiar em você se não foi capaz de cuidar de Missi, minha filha?”. E Deus finalmente se revela dizendo: “Mack, não existe uma resposta fácil para a dor de um pai. Desculpe, eu não sou mágico”.
Padre Fernandes chama a atenção para isso. “Deus não é mágico. E nós ficamos pensando na graça de Deus como um pozinho de pirlimpimpim, que vai transformar estátua em príncipe”, alerta. “Milagre de Deus acontece na nossa fé”, ele dá por certo. “É dito, ao longo de todo relato bíblico: ‘foi a tua fé que te salvou’”, referenda. Para o estudioso, com tais questionamentos, as imagens de Deus vão, aos poucos, se desfazendo para dar espaço a uma reconstrução.
Na sequência do livro, Mack é convidado a conversar com Sofia, a sabedoria. Ela o convida a, da mesma maneira que deseja um julgamento para quem matou Missy, sentar no lugar de Deus e a julgar toda sua família, tirando a vida de um de seus filhos. Conforme a avaliação de padre Fernandes, aí está a grande reviravolta na vida de Mack. “É muito fácil jogar para cima dos outros a sua culpa, alienar sua participação na história. É muito fácil pedir a Deus para afastar aquela pessoa que incomoda”, critica. “Nunca vai acontecer. A graça de Deus está para nos fortalecer, fortificar nossa humanidade, para enfrentar essa história maluca”, determina. “Se eu tenho uma falsa fé, ou uma fé infantil, eu acabo me perdendo”, assegura. O teólogo acredita que evidencia-se assim para Mack a circularidade do amor trinitário.
Padre Fernandes faz ainda uma alusão ao trecho em que o personagem principal questiona a crucifixão de Jesus e Deus afirma que estava lá e foi crucificado com Ele. Para o jesuíta, Deus está dizendo que participa da nossa dor, que não estamos sozinhos. “As conversas particulares com os três são o mesmo diálogo, que conduzem a um mesmo objetivo, o amor”, condensa. De acordo o religioso, a história toda gira em torno do valor do amor na nossa vida. “Amar como Deus ama nos faz vencer os desafios. É isso que o filho ensina. E o Espírito fortalece. Ilumina e faz compreender essa verdade que emana do Papai”, sintetiza.
Resumindo, padre Fernandes diz que o que aconteceu com Mack é que “ele tinha uma imagem de Deus. Deus o fez entrar na sua cabana, encontrar a sua verdade, a sua verdadeira imagem, a imagem de um Deus trinitário, compreender o amor, perdoar”. E termina sua explanação abrindo o debate para o público com a seguinte questão: “Qual Deus eu criei na minha história?”.
Ao fim do encontro, a mesa do café foi posta para a costumeira e agradável partilha da vida.
Os palestristas
José Maria Fernandes Machado
Padre jesuíta, teólogo, diretor do Centro Loyola do Rio de Janeiro.
Eliana Yunes
Doutora em letras e lingüística, escritora e professora da PUC do Rio de Janeiro.
A PAULUS lança a obra Teologia em diálogo com a literatura – Origem e tarefa poética da teologia, novo título da coleção Teologia em saída, escrito pelo professor e doutor em Teologia Alex Villas Boas.
Dividida em cinco capítulos, a obra propõe o diálogo entre teologia e literatura como uma forma de ajudar o indivíduo contemporâneo a dar sentido à vida, se conhecer melhor e conhecer o mundo em que está inserido.
De acordo com o autor, a literatura oferece, desde sempre, matéria-prima para a reflexão teológica, desde os clássicos greco-latinos até a atualidade, passando por séculos de produção literária. Contudo, essa reflexão ainda não alcançou a maturidade de um método que apresente uma relação fluida entre a arte literária e o trabalho teológico.
Neste contexto, o objetivo principal da obra é tratar da questão do sentido da vida como introdução da questão de Deus, ou, de modo mais amplo, a questão religiosa. Segundo Alex, tal questão esbarra no mistério da vida, que abarca tanto o seu absurdo quanto o seu excesso de sentido, dimensões que escapam a uma explicação lógica, e se insere dentro da tarefa de pensar uma teologia da cultura.
Alex Villas Boas é professor de Teologia no Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); membro pesquisador do Centro de Estudos Literários, Fenômeno Religioso e Artes (CELTA) da Universidade Estadual de Campinas; vice-presidente da Associação Latino-Americana de Literatura e Teologia (ALALITE), membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião (SOTER); vice-líder do LERTE (Grupo de Pesquisa em Literatura, Religião e Teologia) da PUC-SP. Possui pós-doutorado em Teologia pela Universidade Gregoriana (Roma) e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2012).
“O Evangelho do discípulo amado – um olhar inicial”
Johan Konings, SJ
Loyola / SP 2016, Coleção “FAJE”, 68 pp.
O Pe. J. Konings é um dos mais respeitados biblistas do Brasil.
É tradutor da Bíblia da CNBB e docente da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia-FAJE em BH.
O livro nos oferece uma visão contemporânea, sucinta, clara do Evangelho de João.
Livro: Um Deus que dança. Itinerários para a oração.
José Tolentino Mendonça
Edições Paulinas, 2016.
Um lindo livro do padre e poeta português José Tolentino Mendonça. Lançado em Portugal há vários anos, o livro traz belas orações.
A primeira parte, "Livro das Pausas", é constituída por um conjunto de meditações intituladas Sete Pausas na Beleza, inspiradas em sete textos bíblicos. A segunda parte, "Livro dos Andamentos", consta de orações poéticas, situadas no contexto atual, levando a Deus tudo o que temos e o que somos. Destacamos a introdução do livro que é um belo "tratado" sobre a oração cristã.
No Centro Loyola já utilizamos várias vezes da beleza, leveza, poesia dessas orações em nossas tardes de espiritualidade e outros cursos.
O que te peço, Senhor, é a graça de ser.
Não te peço sapatos, peço-te caminhos.
O gosto dos caminhos recomeçados, com suas surpresas e suas mudanças.
Não te peço coisas para segurar,
mas que as minhas mãos vazias se entusiasmem na construção da vida.
Não te peço que pares o tempo na minha imagem predileta,
mas que ensines meus olhos a encarar cada tempo como uma nova oportunidade.
Afasta de mim as palavras que servem apenas para evocar cansaços, desânimos, distâncias.
Que eu não pense saber já tudo acerca de mim e dos outros.
Mesmo quando eu não posso ou quando não tenho,
sei que posso ser simplesmente.
É isso que te peço, Senhor:
a graça de ser de novo.
José Tolentino Mendonça
"A mística do instante", livro do padre José Tolentino Mendonça, preconiza que os sentidos do corpo «são grandes entradas e saídas» da «humanidade» e da «fé».
Esta perspectiva, apoiada pela «narrativa bíblica», contraria «uma interpretação muito disseminada» segundo a qual a mística é uma «prática elitista que consiste num desligar-se do mundo para reentrar no espaço interior».
Evocando o teólogo Karl Rahner, para quem «o cristão do futuro ou será um místico ou nada será», o Pe. Tolentino defende que «o corpo é a língua materna de Deus» e a vida é o espaço que «permite reconhecer em cada instante, por mais precário e escasso» que seja, a «reverberação» dos «passos do próprio Deus».
A obra, de que apresentamos um trecho, foi publicada pelas Edições Paulinas. Uma leitura indispensável para todo cristão.
A mística do instante
José Tolentino Mendonça
De um lado, a excessiva internalização da experiência espiritual e, de outro, o distanciamento do corpo e do mundo permanecem (...), em grande medida, características destacadas da espiritualidade que se pratica. O que é espiritual vem considerado superior àquilo que vivemos sensorialmente. O primeiro é estimado como complexo, precioso e profundo. O segundo é visto como epidérmico e sempre um pouco frívolo. E há uma sintomática condição descarnada na vivência do religioso, que se refugia voluntariamente numa representação de alteridade em relação ao mundo, do qual se considera (vem sendo considerado) distante, para não dizer estranho. Na chamada «mística da alma», o Espírito divino é radicalmente outro face ao instante presente. E face ao destino histórico e pungente das criaturas. (...)
A concepção bíblica afasta-se propositadamente das versões espiritualistas. Ela defende uma visão unitária do Ser Humano, em que o corpo não é visto nunca como um revestimento exterior do princípio espiritual ou como uma prisão da alma, como pretende o platonismo e as suas réplicas tão disseminadas. A nível criacional o corpo exprime a imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,27). Como afirma Louis-Marie Chauvet, «o mais espiritual não acontece de outra forma que não na mediação do mais corpóreo». Poderíamos adaptar, por isso, aquela frase de Nietzsche: «Há mais razões no teu corpo que na tua melhor sabedoria», dizendo que «há mais espiritualidade no nosso corpo que na nossa melhor teologia». (...)
Descobrir-se amado
Respirar, viver não é apenas agarrar e libertar o ar, mecanicamente: é existir com, é viver em estado de amor. E, do mesmo modo, aderir ao mistério e entrar no singular, no afetivo. Deus é cúmplice da afetividade: omnipotente e frágil; impassível e passível; transcendente e amoroso; sobrenatural e sensível. A mais louca pretensão crista não está do lado das afirmações metafísicas: ela é simplesmente a fé na ressurreição do corpo.
O amor é o verdadeiro despertador dos sentidos. As diversas patologias dos sentidos que anteriormente revisitámos mostram como, quando o amor está ausente, a nossa vitalidade hiberna. Uma das crises mais graves da nossa época é a separação entre conhecimento e amor. A mística dos sentidos, porém, busca aquela ciência que sé se obtém amando. Amar significa abrir-se, romper o círculo do isolamento, habitar esse milagre que é conseguirmos estar plenamente connosco e com o outro. O amor é o degelo. Constrói-se como forma de hospitalidade (o poeta brasileiro Mário Quintana escreve que «o amor é quando a gente mora um no outro»), mas pede dos que o seguem uma desarmada exposição. Os que amam são, de certa maneira, mais vulneráveis. Não podem fazer de conta. Se apetece cantar na rua, cantam. Se lhes der para correr e rir debaixo de uma chuvada, fazem-no. Se tiverem subitamente de dançar em plena rua, iniciam um lento rodopio, sem qualquer embaraço, escutando uma música aos outros inaudível. E o amor expõe-nos também com maior intensidade aos sofrimentos. Na renovação do interesse e da entrega a vida que o amor em nós gera tocamos mais frequentemente a sua enigmática dialética: a sua estupenda vitalidade e a sua letalidade terrível. Mas, como dizia o romancista António Lobo Antunes, «há só uma maneira de não sofrer: é não amar». Mas não é o sofrimento inevitável a todo o amor que impede a vida. O obstáculo é, antes, o seu contrário: a apatia, a distração, o egoísmo, o cinismo.
O amor é o caminho que nos leva a esperança. E esta não é uma espécie de consolação, enquanto se esperam dias melhores. Nem é sobretudo expectativa do que virá. Esperar não significa projetar-se num futuro hipotético, mas saber colher o invisível no visível, o inaudível no audível, e por aí fora. Descobrir uma dimensão outra dentro e além desta realidade concreta que nos é dada como presente. Todos os nossos sentidos são implicados para acolher, com espanto e sobressalto, a promessa que vem, não apenas um tempo indefinido futuro, mas já hoje, a cada momento. A esperança mantém-nos vivos. Não nos permite viver macerados pelo desânimo, absorvidos pela desilusão, derrubados pelas forças da morte. Compreender que a esperança floresce no instante e experimentar o perfume do eterno. (...)
Creio na nudez da minha vida
Gosto muito da definição que li em Georges Bataille, e que serve tanto o que ele chamava a sua «mística ateísta», como descreve amplamente uma mística cristã. A mística, diz ele, é uma experiência nua. Antes de tudo, a definição é justa porque ancora a mística no domínio da experiência. O problema de tantas resistências em relação à mística reside exatamente na evidência de que, em seu nome, têm sido promovidos todo o tipo de evanescências e escapismos.
O contrário do que vem dito no texto da carta aos Hebreus: «Não te agradaram oblações, nem holocaustos... mas deste-me um corpo.» (Heb 10,5). A mística tem peso. É corpo, experiência, letra, lugar, tessitura de vivido. A maior parte das vezes, o que falta ao itinerário crente não são, de facto, ideias, mas corporeidade, ressonância, espessura. Para explicá-lo não bastam conceitos, nem estruturas. A precariedade e a fragilidade do corpo; o grito, universal e concreto, que dele brota; a sua comum e quotidiana respiração aproximam-nos mais de Deus do que qualquer elaboração concetual. Mas não nos devemos esquecer de que a experiência mística é experiência nua. A experiência crente supõe uma confiança, não uma garantia. A fé não possui o objeto que a funda, porque ele é alter, é sempre outro. Como escreve Michel de Certeau: «Avizinhando-se daquele que amam, os crentes experimentam sempre, de uma forma ou de outra, o sentimento do vazio: abraçam uma sombra. Acreditam encontrá-lo se avançarem ao seu encontro, mas Ele não está lá. Procuram em toda a parte, perscrutam em cada detalhe onde Ele possa estar. Mas Ele não está em parte alguma.» Os místicos sabem que Deus se dá ausentando-se. Entre Deus e nós há um espaço vazio. Nós movemo-nos nesse espaço. O essencial está além, só na pobreza da nossa carne e do nosso tempo, que são também carne e tempo de Deus, podemos entrevê-lo. Ver, entrever e experimentá-lo na transparência do instante. Não é fugindo ao banal e ao ordinário, pois ele habita todo o comprimento delicioso e árduo do nosso caminho. Podemos, por isso, entender como uma oração o verso de Sophia de Mello Breyner Andresen, que começa assim: «Creio na nudez da minha vida.» Por difícil e turva que ela se possa revelar, não há via de maior lucidez e transparência para começarmos a viagem espiritual.
O sacramento do instante
Numa espécie de testamento espiritual, o teólogo Karl Rahner assinou a famosa interjeição: «O cristão do futuro ou será um místico ou nada será!» Na opinião dele, há dois traços emergentes no perfil do crente contemporâneo: por um lado, a sua espiritualidade precisa ser vivida continuamente na primeira pessoa, solicitando-lhe um inacusável despertar de consciência; e por outro, ele é chamado à coragem de uma decisão de fé no Espírito, que colha a força de si mesma, provando efetivamente uma experiência pessoal de Deus e do seu Espírito.
Ora, o ponto místico de intersecão da história divina com a história humana é o instante. Não um instante idealizado ou tornado abstrato, mas este instante concreto. Este preciso minuto onde nos situamos, esta hora concreta das nossas vidas, estes dias que o nosso coração afronta com maior ou menor esperança. Mas que, ao mesmo tempo, é capaz de informar-nos do iminente, do que se avizinha no previsível e no imprevisível, do que, de forma declarada ou discretíssima, vem. Esse é, alias, o sentido do termo «instante»: como substantivo, significa «um momento», uma «pequena porção de tempo», uma «duração»; como adjetivo, quer dizer «o que está iminente», «o que está a chegar», «o que solicita com insistência, o premente».
O dominicano padre Perrin, que foi o grande confidente de Simone Weil, dizia que nada do que conheçamos é mais parecido à eternidade do que o instante, e que devíamos pensar simbolicamente nele como um sacramento, o oitavo. Nós que entramos e saímos dos templos, como nos é necessária a veneração pela espantosa santidade do momento presente! «O que não sabe sentar-se/ na soleira do instante/ [...] esse nunca saberá o que é a paz/ serena e iluminada/ de estar-com.»
Se observarmos bem, somos continuamente despojados do passado e, por mais que façamos, não conseguimos antecipar do futuro qualquer parcela, por ínfima que seja. Só nos resta o instante; só o instante nos pertence. Entre as possibilidades infinitas do amor divino e a experiência mutável e progressiva do humano em nós, o único contacto é o instante. Ele é o barro onde a vida se molda e descobre. É a frágil ponte de corda que une o tempo à promessa. No maravilhoso e exigente poema de Teresa de Lisieux recebemos a confirmação: «Minha vida não é mais do que instante, uma hora fugaz/ Minha vida não é mais do que um único dia que se escapa./ Sabes bem, ó Deus, que para amar-te sobre a terra/ Não tenho nada além do hoje.»
A mística do instante reenvia-nos, assim, para o interior de uma existência autêntica, ensinando a tornarmo-nos realmente presentes: a ver em cada fragmento o infinito, a ouvir o marulhar da eternidade em cada som, a tocar o impalpável com os gestos mais simples, a saborear o esplêndido banquete daquilo que é frugal e escasso, a inebriar-nos com o odor da flor sempre nova do instante.
José Tolentino Mendonça
In: A mística do instante, ed. Paulinas
A Edições Chão da Feira lança o livro "Explicação das Árvores e de Outros Animais" do poeta português Daniel Faria.
Explicação das Árvores e de Outros Animais foi publicado no verão de 1998, quando Daniel Faria tinha vinte e sete anos. O poeta viria a morrer cerca de um ano depois, no Mosteiro Beneditino de Singeverga, onde era então noviço. Nos poemas, quem procura pela explicação encontra indagações contínuas interpelando o que é vivo, natural. E o que é vivo responde. A cada resposta o enigma se mostra transitivo e constante, como presença do sagrado.
O lançamento deste Livro no Centro Loyola BH será dia 20 de maio, às 19h30, com comentário da professora Raquel Guimarães, da faculdade de Letras da PUC-MINAS.
No site da Chão da Feira você pode conhecer um pouco mais do livro e ler alguns poemas de Daniel Faria.
As Edições Chão da Feira lançam o livro "Homens que são como lugares mal Situados" do poeta português Daniel Faria.
Homens que são como Lugares mal Situados foi publicado no verão de 1998, quando Daniel Faria tinha vinte e sete anos. O poeta viria a morrer cerca de um ano depois, no Mosteiro Beneditino de Singeverga, onde era então noviço. Os poemas deste livro procuram entender o mal estar dos homens de forma a perdoar a todos nós, por também o sentirmos. Luminosa expedição à sombra.
O lançamento do livro no Centro Loyola BH será dia 20 de maio, às 19h30, com comentário da professora Raquel Guimarães, da faculdade de Letras da PUC-Minas.
No site da Chão da Feira você pode ler alguns poemas deste livro.
Ecotelogia: um mosaico
São Paulo: Paulus, 2016
O livro "Ecoteologia: um mosaico" é organizado por Afonso Murad e é uma reunião de artigos que promovem uma reflexão sobre ecologia, religião e consciência planetária. Busca formar uma nova e moderna consciência, relacionada com o planeta e inspira o leitor a assumir a missão de guardar e cuidar da Terra, a Casa Comum.
A obra considera sobretudo a contribuição das religiões e do cristianismo, junto com os processos educacionais, que são os responsáveis maiores na gestação da nova consciência e de novas práticas amigas da vida. A parte teológica e bíblica é especialmente bem tratada, fazendo avançar a teologia para novas fronteiras. A bibliografia é rica, com orientações que são extremamente instigantes.
Com prefácio do teólogo, escritor e corredator da Carta da Terra, Leonardo Boff, o livro contempla o trabalho de dois grupos de pesquisa. O primeiro é vinculado à Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), de Belo Horizonte (MG). O segundo vem da Pontifícia Universidade Javeriana de Bogotá, Colômbia. Assinam os artigos: Elda M. Suárez Barrera; Carlos Hernando D. Franky; Alirio Cáceres Aguirre; Luis Gabriel E. Garcia; Alejandro Lodoño; Maria Jesús S. Vallinoto; Nohora Inês P. Niño e Germán R. Mahecha Clavijo.
Entre os temas abordados, destacam-se: Ecologia, consciência planetária e bem viver; Espiritualidade, religiões e ecologia; Educar par o bem viver à luz da fé; Singularidade da ecoteologia; Conclusão e oração por Nossa Terra e outros.
Afonso Murad é doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana (Roma) e tem MBA em tecnologia e Gestão Ambiental para USP. É professor de Teologia sistemática da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje) e do Instituto Santo Tomás de Aquino (Ista) em Belo Horizonte (MG).
Teologia e literatura: afinidades e segredos compartilhados. Rio de Janeiro: PUC-Rio & Vozes, 2015.
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti
O livro reúne os textos da teóloga Maria Clara Bingemer sobre essas duas áreas do conhecimento. Para ela, teologia e literatura são saberes que estão cada vez mais conectados – em toda poesia há algo de teologia e em toda autêntica teologia há um quê poético. A obra divide-se em duas partes para discutir essa relação: uma dedicada à literatura brasileira e a outra destinada à literatura estrangeira, com ênfase em autores franceses.
A presença feminina se faz predominante em todo o livro. Entre os escritores comentados e estudados, está a poeta Adélia Prado e Etty Hillesum, a jovem judia autora de diários que relatam os horrores do holocausto. A autora alia a poesia de Adélia ao valor literário dos registros de Hillesum.
Um dos textos do livro analisa os romances de Clarice Lispector Paixão segundo G.H. e Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres para demonstrar como a escritora ensina mais sobre o amor entendido como ágape do que muitos manuais de teologia – incluindo o Eros e a experiência do absoluto como kenosis.
Simone Weil também é protagonista da obra. Amplamente estudada por Maria Clara Bengemer, a literatura da filósofa, que sempre foi uma grande leitora dos mitos e das narrativas simbólicas, é relacionada com um dos contos dos Irmãos Grimm.
Ainda no universo dos autores franceses, Teologia e literatura retrata o escritor Albert Camus. Para a autora, a obra desse filósofo é uma declaração de fé na transcendentalidade da pessoa humana, enquanto se debate com o problema do mal e a questão da teodiceia. Nesse ponto aproxima-se bastante do também escritor João Guimarães Rosa, cuja obra Grande sertão: veredas, com sua discussão sobre o bem e o mal, situa-se no centro do pensar sobre o ser humano.
Já o tema teológico da salvação e da santidade é tratado por meio de Georges Bernanos e François Mauriac. Os personagens sacerdotais de Alain Forcas, de Mauriac, e do pároco de Ambricourt, de Bernanos, valorizam algo importante para a vivência do cristianismo corre o risco de perder: a carga de dramaticidade que a salvação carrega em si mesma.
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