“A água que eu lhe der se tornará nele um manancial que jorra para a vida eterna” (Jo 4,14)
O tempo quaresmal possibilita redescobrir as profundezas da pessoa humana, as coisas ocultas no seu interior, para assim poder ajudá-la a conhecer-se, crescer e gerar novos modos de se relacionar consigo mesma, com os outros, com o meio ambiente e com Deus.
Em outras palavras, diríamos que este tempo desvela, por um lado, uma realidade interna machucada, ferida, vulnerada, mas também, por outro lado, um potencial, um dinamismo, um “poço” de possibilidades, um conjunto de forças positivas... São os dois rostos do coração da pessoa humana.
Isso quer dizer que a pessoa toda é movida, no seu viver, por uma mistura dessas duas faces do seu coração: a ferida e o poço, o medo e os desejos...
É a mistura dessas duas realidades que faz que cada pessoa seja ela mesma. É o interagir da parte vulnerada com o potencial de possibilidades que vai dando identidade à pessoa e onde ela pode ir descobrindo qual é o sentido da sua vida e qual é a sua missão na história. Por isso, quando a pessoa se faz mais consciente dessas realidades do seu interior, quando se dá conta daquilo que brota da sua parte vulnerada e a integra, quando se dá conta da riqueza que existe no seu poço e a potencializa..., passará a se conhecer, a crescer e a descobrir a sua verdade mais profunda e, ao mesmo tempo – ao se tornar uma pessoa modificada por dentro – a modificar as estruturas da história.
O evangelho de hoje é um relato eminentemente teológico. É uma catequese que convida a um seguimento de Jesus que traz a ‘água viva”, o dom capaz de saciar o desejo humano. Essa água a encontramos em nosso próprio interior, como um manancial que brota incessantemente.
No texto aparece um significativo jogo de palavras: sempre que a mulher fala, ela fala de “poço”; no entanto, Jesus e o próprio narrador se referem ao poço como “manancial”. Jesus faz a mulher cair na conta que é preciso abrir-se a esse “manancial” novo, que lhe vem através d’Ele e que “jorra em seu interior” de um modo permanente.
O encontro com Jesus fez a samaritana viver uma verdadeira “páscoa”, passando de sua vida trivial e dispersa à responsabilidade de anunciar a outros Aquele com quem havia se encontrado. Como uma água que jorra, uma torrente de gratuidade percorre a cena e transfigura a mulher. Ela foi sendo conduzida até sua própria interioridade através de um paciente processo que a fez passar da dispersão à unificação, da exterioridade à interioridade, da solidão à comunhão com os outros.
Ela entra em cena como “uma mulher da Samaria” e sai dela como conhecedora do manancial de “água viva” e consciente de ser buscada pelo Pai para fazer dela uma adoradora. Sua identidade transformada a converte em uma evangelizadora. Como bom pastor que conhece suas ovelhas, Jesus faz a mulher sair do deserto da superficialidade e vai guiando-a para a profundidade e autenticidade, para a terra do dom da água viva.
Como “expert” em humanidade, Jesus mostra-se profundamente atento e interessado pela interioridade de sua interlocutora, lhe faz descobrir o manancial que pode brotar do mais profundo dela mesma e lhe revela também a interioridade de Deus como Pai que busca adoradores em espírito e em verdade.
Vamos agora, a partir do encontro de Jesus com a samaritana, percorrer a nossa parte brilhante, essa rica interioridade que pouco conhecemos, pois, lamentavelmente, poucas vezes nos permitimos entrar nela e, inclusive, poucas vezes temos alguma consciência de que existe, de que é a mais profunda, valiosa e autêntica de nós mesmos.
Abre-se, então, a possibilidade de reconhecer e fazer um caminho de redenção, acolhendo e potencializando o poço da positividade e das energias vitais. Este é o caminho que leva a desenvolver plenamente a dimensão humana: limpar a ferida a partir do próprio manancial. Isso significa que o crescimento pessoal é um compromisso que só é possível quando se nutre com a água do próprio poço, a água que nasce do manancial interior.
O nosso manancial interior alimenta o poço das nossas qualidades, das nossas potencialidades e faz que se revele, no exterior, o rosto positivo do nosso coração.
E o que é o manancial?
O seu manancial é aquilo que existe em você que é inalterável, inesgotável, o que o(a) salva nos momentos mais difíceis, o que lhe dá mais intimidade. Se você entrar no seu manancial encontrará, além do seu potencial máximo, outras duas realidades que seguramente passam despercebidas no cotidiano de sua vida: a consciência e a água viva.
Em primeiro lugar, no manancial que o(a) identifica se encontra uma voz que é a voz do seu ser que está crescendo, uma voz que lhe indica o que lhe faz bem, o que lhe ajuda a ser verdadeiro, o que o(a) empurra para a integração e, ao mesmo tempo, o(a) leva a gerar o bem, a veracidade, a integridade...
Isso é a sua consciência.
Por outro lado, nesse manancial se encontra também uma água viva, que é a presença atuante e transformante do próprio Deus, lá no âmago da sua intimidade mais profunda. Essa dupla descoberta faz você ser capaz de levar a sério a sua vida e dar-se conta de como, na vida mesma, na sua própria vida, está inscrito, no mais fundo do manancial, algo que tem a ver com a solidariedade, algo que se refere à metáfora da “água” e do “poço”: a água não serve para si mesma; é para as outras realidades, para as outras pessoas. É isso que significa “ser pessoas para os demais”.
Há qualidades que nos identificam: a cor da pele, a altura, a cor dos olhos... o nosso gênero, inclusive a nossa profissão. Mas o manancial nos oferece aquilo que nos faz únicos em meio à caravana humana com a qual caminhamos pela vida.
O que nos faz pessoas únicas são essas forças no nosso interior que nos tornam capazes de superar os piores momentos das nossas vidas; essas forças que nos tiram das piores trevas e nos devolvem à existência. Essas forças não são as mesmas para todos.
Para algumas pessoas será o desejo de viver e ser livre. Para outras, será o desejo de servir, o amor a alguém, a atenção aos necessitados... Essa combinação de um punhado de qualidades, de potencialidades, de “desejos” é o que fundamentalmente nos faz ser nós mesmos.
Essa experiência do manancial se faz não com ideias, mas vivenciando-a; não porque nos disseram, mas porque verificamos que, na realidade, essas forças e potencialidades constituem, de fato, o nosso manancial. De tal modo que se faltasse alguma dessas forças, ou dinamismo, nós não nos reconheceríamos.
Nossos desejos nos constituem, ou melhor, fazem-nos seres inusitados, distintos, únicos. Devemos prestar muita atenção à força que os desejos profundos têm na descoberta do nosso manancial.
Texto bíblico: Jo 4,5-42
Na oração: como a samaritana, também diante de nós se apresenta uma alternativa: continuar buscando água e justificação em poços secos e esgotados ou eleger “vida eterna” e deixar-nos arrastar pela oferta de transformação proposta pelo Jesus que nos busca. Ele deseja ampliar nossa existência e comunicar-nos alegria e plenitude. De quê tenho sede? Onde busco saciar minha sede?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana- CEI
“E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e suas roupas ficaram brancas como a luz” (Mt 17,2)
O ritmo frenético e estressante da sociedade atual, e sobretudo o culto à novidade, ao efêmero, ao superficial, impedem recuperar a dimensão de profundidade em nossa vida diária. Vivemos mergulhados num contexto caracterizado pelo imediatismo, pragmatismo, interesse e voracidade. Em tal contexto há tanta superficialidade e tanto narcisismo que a vivência da profundidade, do silêncio, da admiração... se tornam estranhos para nós. Tal situação nos des-figura e nos desumaniza.
A festa da Transfiguração vem nos dizer quem somos realmente no nível mais profundo. Ela nos revela nosso verdadeiro ser essencial e nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade.
Ao mesmo tempo, transfigurar é descentrar-nos e expandir-nos na direção do outro.
A Transfiguração possibilita cultivar um “olhar” que sabe ver em profundidade, descobrindo em cada ser humano, para além de suas aparências, um ser transfigurado, porque somos capazes de vê-lo em sua beleza e bondade originais; um olhar que sabe deixar-se impactar por tudo aquilo que nos cerca e é capaz de render-se diante do Mistério.
Tal experiência também nos confere um “olhar contemplativo” que nos faz descobrir que toda realidade já está “transfigurada”. Seguramente reacenderá em nós a capacidade de admiração, de assombro e de contemplação, para ver as pessoas e “todas as coisas criadas” para além do meramente superficial.
O relato da Transfiguração não é crônica de um fato histórico; é, muito mais, a experiência de fé dos discípulos que, com toda certeza, perceberam em Jesus uma “transparência” ou “profundidade” que os impactou profundamente.
Podemos expressar numa frase o significado do relato: “Jesus é transparência do divino”. Por isso, podemos dizer também que Ele é um homem transfigurado. Jesus viveu constantemente transfigurado. A transfiguração não foi um fato isolado na vida do Mestre de Nazaré, mas o ‘estado habitual de seu ser’. Não tem sentido pensar que essa plenitude de ser tinha que manifestar-se externamente (até nas vestes) com sinais mirabolantes; não quer dizer que Jesus precisou fazer espetáculo de luz e som pelos montes para provar quem Ele era.
Quê fazia de Jesus um “homem transfigurado?” E em quê se notava? Era sua bondade, sua compaixão, sua autenticidade, sua integridade e coerência, sua liberdade, seu projeto de vida, sua relação com o Pai... Ou seja, o que há de divino em Jesus está em sua humanidade. Sua humanidade e sua divindade se expressavam toda vez que se aproximava das pessoas, especialmente as mais excluídas e sofredoras, ajudando-as a reconstruir a própria humanidade ferida. A única luz que transforma Jesus é a do amor, e só quando manifesta esse amor ilumina. É no humano que Deus se deixa transparecer.
A raiz da mensagem do evangelho de hoje está em apresentar a Jesus como a presença de Deus entre os homens; por isso é preciso escutá-Lo. Sua humanidade levada à plenitude é Palavra definitiva.
Escutar o Filho é transfigurar-se n’Ele e levar uma vida como a sua, ou seja, empapar-nos do “modo” como Ele humanamente viveu e sermos capazes de descobrir a voz de Deus no grito desesperado de cada um dos seres humanos que encontramos em nosso caminhar. Jesus continua se “transfigurando” na montanha interior de cada um.
Nesse sentido, “subir” ao Tabor implica “descer” em direção à nossa própria humanidade. A Montanha nos “transfigura” , revelando nosso ser essencial. Todos estamos dispostos a “subir”, mas nos custa muito “descer”. Não haverá plenitude de humanidade enquanto os de cima não decidam descer, e os de baixo não renunciem subir passando por cima dos outros.
Este é o desafio: “subir” para “descer”, descer aos duros vales da vida com a luz do evangelho e encontrar-se com a vida real, com os pobres e sofredores de turno; descer e sentar-se na planície, dialogar, compartilhar... para poder acompanhar e curar os que mais sofrem neste mundo, ajudando àqueles que perderam o horizonte de sentido em suas vida.
Uma “Igreja do monte” não tem sentido se permanece fechada em si mesma, em seu legalismo, ritualismo, encerrada em seus sonhos de poder e de glória. Os três de cima (Pedro, João e Tiago) precisam descer ao vale obscuro da realidade para conhecer, por experiência real, direta, imediata, a dor real daqueles que vivem nas “periferias existenciais”.
Na “descida comprometida” ouvimos o diálogo de Jesus com seus discípulos. Não permaneceram “acima”, como queria Pedro. O voz do Pai os despertou do sonho e os colocou a caminho; a exigência da entrega de Jesus os faz descer da montanha e, à medida que se aproximam do vale do drama humano, eles vão crescendo na consciência de sua profunda missão: participação da missão e do caminho de Jesus.
Os visionários do monte pensam que encontraram a Deus, que viram seu mistério; por isso querem permanecer ali, fazendo três tabernáculos sagrados onde possam descansar para sempre com o Cristo transfigurado, sem mergulhar na paixão do mundo, sem passar pela complexidade da história, distanciando-se de todos os problemas deste velho mundo.
Quão fácil é cair na tentação de Pedro! Construir cabanas em um mundo sonhado, fora da realidade, para desfrutar de privilégios egoístas. É fácil seguir o Jesus glorioso, distanciando-se do fazer caminho com Ele junto aos mais sofridos.
No Jesus transfigurado encontramos, portanto, indicações que nos conduzirão a essa descoberta: a vivência do amor, a compaixão, a liberdade, a confiança, a experiência de Deus, a consciência unitária... Uma pessoa transfigurada é uma pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano é transparência de Deus. Somos todos “pessoas transfiguradas”, mas desconhecemos essa realidade surpreendente.
A transfiguração não é a condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que se desapegou de seu ego, até o ponto de descentrar-se e abrir-se à realidade do outro. Aqui ficam superados os velhos dualismos e as enganosas dicotomias que o divino e o humano se enfrentavam como realidades antagônicas.
Texto bíblico: Mt 17,1-9
Na oração:
Há gestos cotidianos que nos ajudam a descobrir em profundidade quem realmente somos: um abraço, uma mão que se estende, uma escuta atenta, um olhar sereno... São gestos humanizadores que nos recordam que somos seres transfigurados. Essa sensibilidade gestual deixa transparecer a luz que nos habita. Sem dúvida, esta é a linguagem de Deus, não a das palavras, mas a dos gestos, que dão conteúdo a tantas palavras já desgastadas. Ser transfigurado é prolongar e fazer chegar a todos os mil gestos do amor de Deus que nos fazem descobrir irmãos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“O Espírito conduziu Jesus ao deserto para ser tentado pelo diabo” (Mt 4,1)
Para entender melhor o contexto das tentações e o que há nelas de revelador, é preciso ter presente o texto que o precede e o texto que o segue. A cena imediatamente anterior é a do batismo de Jesus no Jordão. E o texto que segue fala do início da missão de Jesus nas periferias da Galiléia.
O batismo faz referência a uma experiência fundante de Jesus; nele proclama-se Sua identidade que consiste na revelação pública de ser o Filho amado do Pai. Jesus não é Filho para encerrar-se e viver em isolamento, mas para expandir a filiação.
E podemos entender sua marcha ao deserto, movido pelo Espírito, como uma necessidade imperiosa de “processar” essa revelação no silêncio e na solidão, de abrir espaço em sua interioridade para a solidificação do sentido de sua vida e a missão que devia realizar. O significado do deserto, portanto, não é prioritariamente o penitencial.
É o lugar privilegiado de encontro pessoal e de escuta da Palavra. Jesus é conduzido a ele para acolher a Palavra escutada em seu coração no momento de seu batismo. Poderíamos dizer que Jesus precisa tempo para assentar, nas profundezas de seu coração, uma Palavra que O descentrava para sempre de si mesmo e O situava à sombra da ternura incondicional de Alguém maior.
O que parece certo, teológica e historicamente, é afirmar que Jesus, depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de discernimento, em oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho, sob o impulso do Espírito; de algum modo teve de refletir e discernir sobre qual seria seu estilo messiânico, qual caminho assumiria para realizar a missão em sua vida pública. É um tempo de busca, de conflito interior, de crise. A partir deste discernimento e opção, o messianismo de Jesus se manifesta como “diferente” daquilo que muitos esperavam em Israel.
Sob esta ótica, as tentações não são simplesmente uma prova na qual Jesus vence o maligno, não são tentações de ordem moral; as tentações não são uma prova a superar quanto um projeto que deve ser discernido e assumido.
A “crise” põe à prova sua atitude frente a Deus: como viver sua missão e a partir de quê lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente a Palavra? Como deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? Buscando sua própria glória ou a vontade de Pai?...
Esta estadia no deserto como um tempo de discernimento e lucidez, fez com que Jesus tomasse plena consciência da sua relação filial e iluminou de tal maneira sua vida a ponto de se tornar impossível confundir Deus com os falsos ídolos que o tentador lhe apresenta: um “deus” contaminado pelas vazias pretensões do pior da condição humana: possuir, brilhar, ostentar, poder, exercer domínio... Estas tentações não são fatos isolados, no começo das atividades de Jesus, mas expressão do conflito permanente de sua vida e na realização de sua missão.
As tentações são, pois, expressão da oferta de dois tipos de messianismos, dois projetos, dois caminhos, dois estilos de missão que se opõem. A Jesus lhe é oferecida a possibilidade de um messianismo a partir do centro, a partir de cima, a partir do poder e do prestigio religioso e social, um messianismo triunfalista e glorioso, como aquele que muitos de seus contemporâneos esperavam.
De um lado, está o caminho da autossuficiência, da segurança, a partir do centro, um messianismo triunfalista, evitando conflitos com o poder político e religioso, alheio ao sofrimento do povo; uma lógica que supõe adaptação ao “sistema”, ser servido antes que servir. De outro lado está o caminho da solidariedade, a partir da margem e da periferia da sociedade política e religiosa, a partir do povo, a partir de baixo, vivendo a filiação e a confiança no Pai, em gratuidade, num estilo de simplicidade e pobreza alternativo ao “sistema”, optando por servir antes que ser servido; uma lógica de inclusão frente o sofrimento do povo, na linha do Servo de Javé e dos profetas de Israel.
O fato é que Jesus, para realizar sua missão como Messias, não se dirigiu à capital, Jerusalém, nem à importante província da Judéia. Logo após sua experiência de deserto, Jesus foi viver e desenvolver sua atividade, pregar sua mensagem, numa região distante, habitada por humildes camponeses e pescadores pobres, pessoas que, naquele tempo, eram consideradas uma população sem influência e de má fama.
Se efetivamente Jesus queria “evangelizar”, ou seja, comunicar uma “boa notícia” à sociedade de seu tempo, não buscou conquistar para si os notáveis e as classes influentes da sociedade de seu tempo, nem procurou os postos de privilégios, nem o favor dos mais influentes, e nem, muito menos, os que detinham o poder e o dinheiro. Para Jesus, o poder nunca é mediação para a libertação do ser humano; pelo contrário, toda manifestação de poder destrói o ser humano: deteriora relacionamentos, resvala-se para o terreno da competição, da violência, da morte...
Todos sabemos que as “mudanças profundas e duradouras” na sociedade não vem de cima, mas de baixo, a partir da solidariedade e da identificação de vida com os últimos deste mundo. Há uma esperança alentadora, que vem das periferias e das margens, que se empenham por imprimir um movimento novo à história; nele está a semente na qual Jesus viu o germe de uma vida diferente, nova e mais promissora. E Jesus foi o ponto de partida de uma profunda mudança na história da humanidade. Ele escolheu a lógica da solidariedade, a partir de baixo. Opôs-se às tentações de poder, de riqueza e prestígio através da obediência à Palavra de Deus que apresenta outra ótica, na linha profética de pobreza e humildade.
Na cena das tentações vemos Jesus reagindo da mesma forma que ao longo de toda sua vida, ou seja, centrado e aderido afetivamente ao que vai descobrindo como o querer de seu Pai: a vida abundante daqueles aos quais veio buscar e salvar. Não veio para preocupar-se com seu próprio pão, senão preparar uma mesa na qual todos possam sentar-se e comer. Jesus não quer “converter as pedras em pão”, mas mudar os homens, para que compartilhem o pão. Jesus sabe que o problema do pão é primordial e por isso o colocou no centro de seu projeto de reino, mas não na forma de meio para a imposição e divisão de classes, senão como expressão de comunhão. Não veio para ser carregado pelas asas dos anjos, monopolizar fama e “fazer nome”, senão dar a conhecer o nome do Pai e levar sobre seus ombros os perdidos, como um pastor leva a ovelha perdida.
Não veio para possuir, dominar ou ser o centro, mas servir e dar a vida. Sua autoridade é só para criar vida e para amar, para ensinar e curar, para abrir caminhos de esperança.
Conduzido ainda pelo Espírito, abandona o deserto; a partir desse momento, o veremos caminhando pela Galiléia, entrando em relação com as pessoas, anunciando o Reino, criando comunidade, buscando colaboradores, aproximando-se dos excluídos, entrando nas casas, acolhendo, curando, ensinando...
Texto bíblico: Mt 4,1-11
Na oração: deixar que o mesmo Espírito nos conduza para o Deus a quem Jesus experimentou no deserto: um Deus que não exige de nós proezas nem gestos espetaculares, mas somente nossa confiança e nosso agradecimento; um Deus que nos dirige sua palavra não para impor-nos obrigações ou para nos julgar, mas para alimentar-nos e fazer-nos crescer.; um Deus que não encontraremos nos lugares da prepotência ou da riqueza, mas nos lugares da pobreza e da exclusão.
Deixemo-nos batizar pelo nome novo que Ele sonhou para nós desde toda a eternidade. Nossa vida não está programada a partir do mercado, nem somos uma fotocópia do consumidor exemplar, nem um mero espectador, nem um súdito do deus “dinheiro”. Somos abençoados, somos seus filhos amados; não somos clones de ninguém, somos únicos e originais, e o Pastor nos conhece pelo nosso nome.
Que nesta Quaresma, aprendamos do Mestre a nos colocar no caminho em direção aos outros: como Ele, encurtemos distâncias, estendamos mãos, invistamos nas relações, façamos amigos, libertemo-nos de coisas e afeiçoemo-nos às pessoas, conjuguemos verbos como incluir, incorporar, tecer redes, acolher... e sentemo-nos com outros no banquete da vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“E o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará recompensa” (Mt 6,18)
Mais uma vez é Quaresma, e mais uma vez ressoa em nós o forte apelo à conversão.
Quando falamos de conversão, estamos nos referindo a um estilo de vida diferente, a uma mudança qualitativa de vida. A conversão tem muito a ver com as atitudes diante das coisas, das pessoas e de Deus; ela tem a ver com o êxodo ou saída de uma maneira de viver na qual se dava importância a determinadas coisas, para começar a dar importância a outras coisas. Conversão implica reservar-nos espaços e tempos para dar maior consistência à nossa vida, para perguntar-nos o que há de Evangelho em nossas vidas, para examinar quê lugar Jesus tem em nossos corações.
A Quaresma é, sobretudo, um tempo para reaprender a olhar; é um tempo para converter nossa visão à maneira de Jesus. Sabemos muito bem que o olhar de uma pessoa é uma porta aberta para o íntimo do seu coração. É no olhar maravilhado dos amigos que nos descobrimos compreendidos e amados por eles. Por isso, Deus é Aquele que olha, mas o seu olhar é Amor e traduz a infinita ternura do seu coração; seu olhar é cheio de misericórdia e perdão que nos salva; olha-nos com todas as nossas possibilidades e convida-nos a corresponder-lhe. O seu Amor não cessa de criar-nos, suscitando em nós momentos de ressurreição. Sob o Seu olhar existe sempre a possibilidade de renovação, de re-criação, de transformação
Estabelecida essa relação, as palavras tornam-se inúteis, porque compreendemos tudo no olhar de Deus.
“A contemplação cristã é trinitária, é o fogo de dois olhares que se devoram por amor”’. (P.Molinié)
No interior da Trindade as Pessoas divinas olham-se, acolhem-se e entregam-se num amor mútuo. Rezar é simplesmente participar dessa troca de olhares que se expande numa comunhão de amor.
O olhar de Deus é um olhar inovador, olhar comprometido que faz acontecer o novo, olhar que recria o ser humano, que abre futuro novo, que suscita comunhão com tudo, que abarca as fronteiras do universo e acolhe a humanidade inteira. Olhar não contaminado, sem veneno..., olhar sem rancor, sem julgamento.
Olhar inquietante que sonda a verdade... Olhar audacioso que desperta as consciências, sacode as velhas estruturas, derruba os muros da separação e da violência...
Quaresma é um tempo para deixar-nos olhar por Deus, para descobrir o olhar em cada irmão e aprendermos a olhar o outro como Deus olha... Porque um olhar seu, bastará para “converter-nos e crer no Evangelho”. Podemos considerar a Quaresma como “mística dos olhos abertos”.
No evangelho da liturgia de hoje (quarta-feira de cinzas), Jesus denuncia aqueles que mendigam um olhar sobre si mesmos; querem ser vistos, elogiados, serem o centro das atenções a partir de práticas religiosas puramente exteriores e que alimentam uma vaidade pessoal. Querem brilhar diante dos outros, com a falsa pretensão de uma vivência religiosa.
Somos chamados a corresponder ao olhar de Deus através das chamadas “práticas quaresmais”: oração, jejum e esmola. Por detrás de cada uma destas práticas está o desejo de Deus de ver-nos mais livres: livres para olhar mais além de nós mesmos, para olhar como Deus olha, graças à oração; livres graças ao jejum, que ajuda a configurar nossa sensibilidade, que nos impulsiona a sermos críticos com certos excessos, com determinadas coisas que embora sendo supérfluas, exigem demasiada atenção e nos desgastam. Livres graças à partilha (esmola), para ir deixando de pronunciar a palavra “meu”, para configurar nosso tempo, nossas coisas, nossos dons, no horizonte das necessidades do outro.
Em primeiro lugar, a proposta por excelência para este tempo, e que não podemos esquecer, é a oração. Trata-se de abrir momentos de silêncio e escuta, para deixar retumbar dentro de nós as perguntas: “e tu, a partir de onde olhas? Como olhas? Em quê e onde estão fixos teus olhos?...”
O que a liturgia nos propõe para a Quaresma é que, a partir da intimidade com Deus na oração, sejamos capazes de olhar a partir de Deus, que fixando nosso olhar no Senhor Jesus, sejamos capaz de nos olhar com mais bondade, de olhar os outros com mais carinho...
Orar é ter acesso ao nosso “eu profundo” sob o olhar de Deus e desejar ser visto por Ele até as profundidades mais secretas do nosso ser. A verdadeira oração começará no dia em que descobrirmos esse olhar de amor, mas é necessário que Deus ilumine os olhos do nosso coração.
Só podemos “ver a face de Deus” deixando-nos iluminar pela luz dos Seus olhos. “Ver a face de Deus” é ter consciência de ser penetrado pelo Seu olhar e só n’Ele podemos contemplar a luz: “Na vossa Luz é que vemos a Luz” (Sl 35,l0).
Conheceremos então, a experiência espantosa em que desejar ver a Deus é ser visto por Ele, que perscruta as profundidades e os abismos. Nesse momento nascerá uma relação de intimidade em que olharemos a Deus, “olhos nos olhos”. Quem é capaz de olhar o próprio interior, sensibiliza-se para olhar de modo diferente a realidade que o cerca. O olhar, então, se expande e se faz contemplativo.
A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo, entra em comunhão com a realidade tal como ela é. É olhar o mundo como “sacramento de Deus”. Um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que existem no mundo; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e por isso gerador de misericórdia; um olhar que compromete solidariamente.
O olhar verdadeiramente humano não é um olhar de medusa, possessivo, mas um olhar contemplativo, que vê todas as criaturas e todas as pessoas, admirando-as e amando-as na singularidade do seu mistério. Um olhar gratuito e desinteressado que expande o ser humano numa atitude acolhedora de tudo que o rodeia; olhos que possibilitem o trânsito do olhar, revelando a interioridade e dialogando com o exterior.
A liturgia quaresmal nos propõe também o jejum. A novidade não está em reduzir o que comemos, o que ingerimos quase por intuição mecânica. Mas também o jejum tem a ver com o olhar, tem a ver com o olhar-se a si mesmo, tem a ver com fixar-se naquilo que nos alimenta. O jejum, pode ser talvez, a prática de olharmos com mais compaixão. Em outras palavras, afastar-nos de nós aquele olhar possessivo que nos destroça por dentro, que nos faz dano, que nos impede de sermos nós mesmos.
Com o jejum aprendemos a conhecer e a ordenar nossos diferentes apetites mediante a moderação do apetite fundamental e vital: a fome. Aprendemos, desta maneira, a regular nossas relações com os outros, com a realidade exterior e com Deus, relações muitas vezes motivadas pela voracidade. Ao mesmo tempo, o jejum nos desperta a “fome essencial”: fome de sentido, fome do Reino, fome em favor da vida.
Por fim, a outra prática quaresmal proposta é a esmola: dar do que temos e somos, e não o que nos sobra. Mas “dar esmola” tem a ver como olhamos àqueles que estão ao nosso lado. Tem a ver com presentear ao outro um olhar de proximidade, de consolo, de acolhida...
Com o olhar, podemos transformar uma pessoa, destruí-la ou reconstruí-la, aniquilá-la ou fazê-la renascer, restituí-la a si mesma e ao futuro ou afundá-la no seu passado.
É preciso purificar o olhar, cristificá-lo. Contemplar o rosto do outro é sentir sua presença, sem pré-conceitos e pré-juízos..., vendo nele o sinal da ternura de Deus. Passar da contemplação à acolhida: este é o movimento da oração dos olhos. Muitas vezes, o presente mais precioso que podemos dar a alguém é um olhar diferente; o futuro, a acolhida, o perdão, a alegria... dessa pessoa podem depender desse olhar novo, cheio de afeto e confiança.
Em muitas situações difíceis da vida, o que salva é o olhar. Esse é o sentido verdadeiro da esmola.
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração:
- torne o seu coração vulnerável ao olhar do Pai, receptivo a todo apelo que vem d’Ele, deixando-se tocar pelo inesperado, pela novidade, pela iniciativa amorosa de Deus.
- evangelizar o olhar: aprender a olhar como Jesus Cristo, ultrapassando as aparências.
- como você “olha” as pessoas, as coisas, os fatos, o mundo...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“Portanto, não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá suas preocupações” (Mt 6,34)
Sabemos que a rivalidade e a competição, o desejo de poder e de resultados imediatos, a impaciência e a frustração e, acima de tudo, a angústia e o medo, criam suas exigências e preenchem todos os espaços vazios em nossa vida. A maioria de nós procura uma “ocupação”, e não espaço livre.
Quando não estamos ocupados, ficamos inquietos e ansiosos; ficamos até com medo quando não sabemos o que fazer agora, amanhã ou no ano que vem. Enquanto nossas mentes, nossos corações e nossas mãos estiverem ocupados, poderemos evitar o confronto com as questões dolorosas, às quais não queremos encarar. “Estar ocupado” tornou-se uma obsessão, um símbolo de status, e as pessoas incentivam umas às outras a manter o corpo e a mente em constante movimento. “Estar ocupado”, em contínua atividade, com agenda cheia, quase se tornou parte de nossa constituição. Aqui não há lugar para espaços contemplativos e gratuitos.
Isso explica por que o silêncio é tão difícil. Muitos dizem desejar o silêncio, a calma, a quietude, a oração pacificadora, mas não conseguem suportar tempos e espaços repousantes. Ficar sossegado é perigoso: pode parecer doença. Recolher-se dentro de si mesmo é uma ameaça.
Esse é o problema do mundo moderno: a agitação e a ocupação se apresentam como um estilo de vida e acabam controlando nosso ritmo cotidiano, tornando-se fonte inesgotável de ansiedade. Em nosso padrão cultural, somos pressionados a mostrar o tempo todo que estamos ocupados e “produzindo” alguma coisa. Vivemos perdidos numa floresta de compromissos e atividades, incapazes de perceber alguma trilha estreita para poder andar e respirar. Mesmo com tudo que foi inventado para facilitar a vida – celular, internet, e-mail, mensagens instantâneas – parece que não temos tempo para nada.
Há muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Acuados pelo relógio, pelo ativismo, pela agenda, pela opinião alheia, disparamos sem rumo feito hâmsteres que se alimentam de sua própria agitação.
No entanto, há um empecilho muito maior que a ocupação: trata-se da preocupação. A preocupação é sintoma de que temos nos desconectado de nossa interioridade, de nossa verdadeira identidade, e nos deixamos determinar pelo ambiente e pelas questões externas. Investimos naquilo que não somos e acabamos por nos afastar de nosso lar; perdemos a confiança em nós mesmos e em Deus.
Nossas preocupações evitam que tenhamos novas experiências e nos mantém nas trilhas conhecidas. A preocupação é a maneira medrosa de manter as coisas como estão; parece que preferimos uma certeza ruim a uma incerteza boa (por quê deixar o certo pelo duvidoso?)
As preocupações ajudam a manter o mundo pessoal que criamos e bloqueia possíveis transformações. Nossos medos, incertezas e hostilidades nos fazem preencher nosso mundo interior com ideias, opiniões, julgamentos e valores, aos quais nos agarramos como se fossem preciosas propriedades.
Em vez de olhar de frente o desafio de novos mundos que se abrem e atuar em campo aberto, escondemo-nos atrás dos muros de nossas preocupações. Elas expressam nossa falta de habilidade de deixar resolvidas as questões vitais que nos inquietam. Somos compelidos a arranjar qualquer solução ou resposta possível que pareça ajustar-se à ocasião.
A “preocupação”, quando se torna hábito de vida, tem o efeito desastroso de comprometer a capacidade de relação, dimensão fundamental que torna a existência fecunda e criativa. Segundo o Evangelho de hoje, a preocupação envolve duas necessidades básicas do ser humano: o alimento e o vestuário.
A preocupação que pode atormentar o coração do ser humano, o medo de perder aquilo que dá segurança e o temor de não ter acumulado suficientemente, fazem com que o alimento e o vestuário percam o seu significado mais amplo e a sua força evocativa.
Então, acontece que a preocupação com o alimento e com o vestuário prevalece sobre a própria vida, não mais acolhida como dom; do mesmo modo o corpo, não mais entendido como possibilidade e lugar de relação-encontro. Inevitavelmente, a dignidade da vida se degrada e a luz do rosto da pessoa se apaga.
Uma pessoa preocupada se dispersa num louco ativismo; com isso, ela se endurece e se resseca em seu dever, não sabe mais viver a gratuidade, acolher o imprevisto, gastar tempo em escutar seus desejos essenciais, deixar-se olhar, amar, receber a graça libertadora, a abundância dos dons de Deus. Vive alienada, dividida; estando ali, desejaria estar em outro lugar. O seu existir situa-se na ordem do “fazer”.
É cada vez mais desafiante criar espaço aberto e receptivo, onde algo novo possa acontecer a nós; do mesmo modo, é urgente oferecer um espaço onde as pessoas possam se desarmar, deixar de lado suas preocupações e ocupações, e ouvir com atenção as vozes interiores.
É salutar deixar ressoar em nós questões como essas:
Qual o sentido e a direção daquilo que fazemos? Para quê? Para quem?
Qual é a intenção ou a motivação que está por trás de nossa ação?
Esta “dica” nos ajuda a superar a ansiedade e a pressa, harmonizando-nos com o tempo e fazendo as pazes com o relógio. Normalmente, vivemos ações ‘insensatas’, ou seja, sem sentido, sem direção. Se fizéssemos uma faxina em nossos compromissos e deveres, boa parte desapareceria rápido no ralo do bom senso. Se examinássemos o baú de nossas prioridades, certamente a arrumação interior seria outra.
Aliviar a vida, o coração e o pensamento... eis o desafio; não para inventar de acumular ali mais alguns compromissos estéreis e sem sentido.
Jesus Cristo revelou que nossas preocupações impedem a vinda do Reino, ou seja, do novo mundo. Não podemos esperar que algo realmente novo aconteça se nossos corações e mentes estão tão cheios com nossas preocupações que sequer ouvimos os sons que anunciam uma nova realidade. Viver em conexão com o melhor que há em nós é sentir-nos livres, desprendidos e centrados no essencial: a busca do Reino e sua justiça. A busca do Reino é o “pão” da vida e a “roupa” da luz que nos envolve.
Deus constantemente nos surpreende no singelo, nas coisas simples da vida. Muitas vezes nós perdemos a capacidade de ver a sua ação nas pequenas coisas e ficamos esperando grandes sinais, grandes milagres. Cada instante é uma chance de percebermos esse amor providente e cuidador que Ele tem por nós. Se vivemos cada momento ordinário de forma extraordinária, certamente perceberemos a sua ação e seremos surpreendidos. Deixar-nos surpreender por Deus não implica uma atitude passiva, mas um olhar contemplativo, capaz de perceber sua presença criativa em tudo e em todos. Ter um olhar contemplativo é “encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus” (S. Inácio)
Deus é o princípio vital de tudo; as criaturas são o que são devido à presença de Deus nelas. O valor e o significado últimos de todas as coisas provém não delas mesmas, mas da presença de Deus em seu interior; todas as coisas são “santificadas” porque nelas está Deus. A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo entra em comunhão com a realidade tal como ela é. Para o contemplativo, Deus é seu lar, e Deus está em todas as partes. O que Ele espera é que nos deixemos “surpreender por seu amor, que acolhamos as suas surpresas”.
Texto bíblico: Mt 6,24-34
Na oração: Jesus aponta para a verdadeira “preocupação”, o desejo que preside a todas as nossas ocupações. Pois, se a preocupação não está bem ordenada, todas as nossas ocupações carecerão de sentido e ficarão vazias. E a “preocupação” deve ser o Reino de Deus e sua justiça.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana
Esta afirmação de Jesus “Sede perfeitos...”, tirada do contexto, tem gerado profundos sentimentos de culpa diante de Deus e uma frieza no relacionamento com Ele.
O Pai de Jesus Cristo, revelado como infinita ternura, misericórdia, amor, proximidade para com os pecadores não é vivido como Pai, mas como um juiz mal humorado, esquadrinhando nossa vida atrás de infidelidades, desobediências, fraquezas, e exigindo o cumprimento rigoroso das mínimas leis.
De fato, desde os primeiros anos de nossa infância somos impulsionados a buscar a perfeição. Este conceito assumiu um valor central na compreensão e na orientação da nossa vida; não só isso, mas assumiu também um caráter claramente sobrenatural: a vida divina exige que a pessoa procure a perfeição. Na experiência de fé, esta ideia se reforçou quando se passou a considerar a santidade como sinônimo de perfeição; o caminho da perfeição coincide com o caminho da santificação.
A perfeição se converteu, então, no termo normal da vida, o valor espiritual supremo, o elemento comum de todas as virtudes. Os manuais de espiritualidade passaram a destacar a perfeição como único ideal e a moral evangélica se reduziu à moral da perfeição; por séculos, a perfeição seduziu, modelou, dominou e controlou a existência dos cristãos.
O pior é que, em pleno novo milênio, ainda somos educados a perseguir a perfeição como finalidade suprema da existência humana. Do ideal de perfeição que nos séculos passados seduzia o espírito, passamos ao ideal de perfeição que seduz o corpo: seres belos, altos, magros... A sociedade atual valoriza pessoas dominadas pela eficiência, pelo sucesso a qualquer custo, pelo mérito, pela cobrança do “vencer sempre”... A vida cotidiana continua a ser invadida pelo ideal de perfeição através da permanente cobrança do “render ao máximo”, “produzir o máximo”, “nascido para vencer”... Tal fórmula se traduz em competição, rapidez, eficiência, tensão emotiva permanente, dedicação estressante ao trabalho porque “tempo é dinheiro”...
É necessário repetir sempre: o ser humano não é capaz de viver “perfeitamente”. Um tal credo não tem nada de humano, é uma “tortura inútil”. A perfeição conspira contra a vida interior, e ameaça, consequentemente, a humanidade do ser humano. A perfeição é uma falsa orientação, um caminho que vai em sentido contrário à nossa realidade. Assumindo a perfeição como objetivo da vida, o eu entra em contradição com a vida mesma, que é essencialmente limitada, frágil e pobre.
A procura da perfeição é um movimento que nega o ser humano como ser humano e põe em movimento uma visão desumana da vida, pois desconhece sua condição de criatura limitada. A busca de perfeição torna-se um projeto fechado dentro do próprio eu orgulhoso, que exige o máximo de si, o máximo de esforço para não falhar em ponto algum, uma vez que o “perfeccionista” está convencido de que somente será amado por Deus e pelos outros se for perfeito. Nesse esforço ele tende a contar exclusivamente consigo mesmo, prescindindo de Deus e dos outros.
A perfeição dialoga com um código de normas e de exigências, dialoga com a lei. O perfeccionista não suporta o pecado uma vez que ele vê o pecado não como uma ruptura de laços de amor, não em relação a um outro, mas em relação ao próprio ideal. A perfeição, humilhada pelo pecado e pelas fraquezas, tende a fechar a pessoa sobre si mesma, e fechá-la para Deus e para os outros. O Amor desaparece.
Como seguidores de Jesus, somos chamados a viver a santidade, em vez de centrarmos nossa vida na busca da perfeição, e a santidade está relacionada com compaixão, com misericórdia, com amor, com o convite que Deus nos faz: “Sede santos porque Eu sou Santo”.
Deus é Amor e nisso consiste a santidade de Deus. Trata-se, pois, de abrir-nos para o Amor, dentro mesmo dessa realidade nossa de criaturas limitadas, frágeis, pecadoras... Ora, essa capacidade de Amar nos é dada por Deus, é um dom de Deus.
A santidade, portanto, nos é dada por Deus e nos é dada agora:
- Somos amados por Deus, sem condições, agora, com todas as nossas imperfeições, pecados,
fraquezas, debilidades, limitações, traumas...
- e esse Amor de Deus sem condições, nos torna capazes de amar agora, de fazer o bem agora,
de servir agora, de ser santo agora, apesar de nossas imperfeições e fraquezas.
A santidade nunca é humilhada pelo pecado, porque um Outro nos acolhe e nos ama apesar de nosso pecado. A santidade é humilde porque nos faz descer em direção à nossa própria humanidade, aceitando-nos ser pobres, frágeis, limitados, pecadores… e acolhendo, na ação de graças, uma salvação que nos é oferecida gratuitamente pelo Deus que nos ama.
A santidade nunca leva ao fechamento em si mesmo, antes abre-nos para Deus acolhendo sempre o seu perdão e abre-nos para os outros no amor, no serviço e no dom.
Contrariamente à perfeição que dialoga com um código, a santidade dialoga com Alguém, com o Pai, com Cristo, constituindo-se nesse lugar privilegiado de liberdade aberta ao sopro do Espírito. Santidade não é um resultado que possa ser contabilizado; santidade é um caminhar. É nesse horizonte que devemos entender a afirmação “Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito” (Mt. 5,48); ela está ligada com o texto precedente pela partícula de consequência “portanto”.
Ora, o texto imediatamente antecedente fala precisamente do Amor sem limites do Pai. Assim poderíamos concluir que o discípulo de Jesus deve ser perfeito no Amor como o Pai celestial é perfeito no Amor. Ele ama a todos sem distinção, “fazendo nascer o sol e cair a chuva sobre maus e bons, justos e injustos”.
O Deus de Jesus, portanto, não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, controlar, verificar... Basta-lhe a misericórdia, o amor para com justos e injustos.. A misericórdia de Deus constitui a resposta à indigência do ser humano. Ela oferece a possibilidade de pôr de lado o julgamento, a violência e a condenação.
A misericórdia é a resposta de Deus ao delírio do ser humano de querer ser perfeito; é a única força capaz de detê-lo naquele processo de auto-divinização, própria do perfeccionista. Jesus propõe um modo de ser humano inseparável da misericórdia do Pai:
“Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc. 6,36)
Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado convite e a mensagem mais profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a si mesmo e aos outros.
O caminho de Jesus não vai pelo terreno pantanoso da perfeição, mas pelo terreno firme do perdão, da compaixão e da não-violência.
Texto bíblico: Mt 5,38-48
Na oração: Quais são as “marcas” da perfeição impregnadas no seu interior pela formação familiar, pela religião, pela educação...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
21.02.2013
“Vós sois o sal da terra”; “vós sois a luz do mundo”
5º Dom. Tempo comum
A proclamação das Bem-aventuranças desemboca nesta constatação: quem as vive se converte automaticamente em “sal da terra e luz do mundo”. Trata-se de duas imagens profundamente eloquentes, que tem a ver com dois de nossos sentidos e que apontam para algo que todos aspiramos: o sabor e a luz. As parábolas não precisam de explicação nem de comentário. Explicam-se por si mesmas. Exigem, isso sim, uma resposta vital do leitor ou ouvinte.
Se nos deixamos interpelar por elas, descobriremos uma nova dimensão da existência à qual somos convidados. Podemos aceitar o desafio ou rejeitá-lo. A parábola nos coloca frente uma alternativa: ou continuar como estávamos em nosso modo de viver, ou aceitar essa nova maneira de assumir a vida que elas nos sugerem.
O texto do evangelho de hoje constitui uma das mais claras afirmações evangélicas de que a missão dos discípulos no mundo faz parte de sua própria identidade. Neles aparecem os traços fundamentais que caracterizam essa missão. “Vós sois” diz Jesus e não “vós deveis ser”, ou “tendes que converter em...”, ou “tendes o sal”.
Eles são, querendo ou não, pela força do chamado que lhes foi dirigido. Sois. Esta palavra refere-se a toda sua existência. Quem segue Jesus Cristo, afetado pelo seu chamado, fica plenamente convertido em sal da terra e luz do mundo.
Devemos cair na conta de que não nos é pedido para salgar ou iluminar, mas ser sal, ser luz. O matiz tem sua importância. A missão fundamental de cada um está dentro dele mesmo, não fora. A preocupação de cada um deve ser alcançar a plenitude humana. Se é sal, tudo o que ele toca ficará temperado. Se é luz, tudo ficará iluminado ao seu redor. Com demasiada frequência cremos ser sal e luz, mas sem dar-nos conta de que temos perdido toda capacidade de salgar e iluminar, porque somos sal insosso e luz extinta.
Embora o sal e a luz não tem nada em comum, há um aspecto no qual coincidem. Nenhuma das duas é proveitosa por si mesma. O sal sozinho não serve para a saúde, só é útil quando acompanha os alimentos. A luz não é para ser vista; ela possibilita ter uma visão clara das coisas.
O sal e a luz tem duas formas diferentes de realizar sua ação: o sal remete a uma ação invisível; no entanto, próprio da luz é brilhar. De acordo com o texto, as formas de presença significadas pela luz e pelo sal não se eliminam; as duas são inseparáveis. Sal e luz são elementos expansivos; a importância não está neles mesmos, mas na relação com a realidade onde se fazem presentes: o sal realça o sabor dos alimentos; a luz revela a realidade escondida na escuridão.
O significado é tão simples como profundo: o sal serve para que os alimentos tenham seu sabor; a luz serve para que se possa ver o que já existe. Ambos tem uma só função: servir para que outras coisas sejam válidas, para que sejam o que são. Ser sal e luz é ressaltar e potenciar tudo o que é positivo na vida humana.
O simbolismo do sal aqui é extraordinário: ele não pode salgar a si mesmo. Sua capacidade não lhe é útil para nada. Mas é imprescindível para os outros. É para ser acrescentado a outro alimento, é para ressaltar seu sabor. O humilde sal é feito para os outros, para que os outros sejam eles mesmos. Ele garante o sabor, com a condição de que se dissolva.
O sal é um dos produtos mais simples, mas também mais imprescindíveis para nossa alimentação. Suas propriedades são principalmente duas: dá sabor à comida e conserva os alimentos.
O sal atua no anonimato. Se um alimento tem a quantidade precisa, passa desapercebido, ninguém se lembra do sal. Quando a um alimento lhe falta sal ou tem demasiado, então nos lembramos dele. Não se pode comê-lo diretamente. Se não há comida, o sal é simplesmente veneno. O que importa não é o sal, mas a comida temperada com sal. Quando a comida tem excesso de sal se faz intragável. A dose tem que estar bem calculada.
O tema da luz é muito frequente na Bíblia. Partindo de um dado experimental, descobre-se sua importância para o desenvolvimento da vida. Não só porque a luz é imprescindível para a vida, mas porque o ser humano não pode desenvolver-se na escuridão. Daí que a luz tenha se convertido no símbolo da vida mesma e de tudo o que a rodeia. Assim como a escuridão se converteu no símbolo da morte e de tudo o que a provoca.
A escuridão nos paralisa; tudo está aí, mas não podemos nem nos mover. A pequena luz põe as coisas em seu devido lugar, nos faz capaz de contemplar a beleza presente em tudo. É como o primeiro momento da Criação: “Faça-se a luz”, e a partir daí o caos foi se transformando em cosmos.
Um pouco antes Mateus nos havia dito que Jesus era “a luz que brilhou na Galileia” (4,16). Agora, afirma-se que é luz todo aquele que encarna o espírito das bem-aventuranças. Ou seja, somos luz, como Jesus, na medida em que, esvaziando-nos de nosso eu, permitimos simplesmente que a luz “passe” através de nós sem encontrar obstáculo.
“Deus é luz e nele não há treva alguma” (1Jo 1,5). Deus revela, potencia, ilumina, dá sabor. A pessoa que vive descentrada de si mesma torna-se um canal por onde passa a mesma luz divina. Não a impede, não a retém e nem se apropria dela, mas permite que a Luz divina ilumine tudo.
Ser luz, significa explorar nossas possibilidades humanas e espirituais e pôr toda essa riqueza a serviço dos demais. Devemos ter cuidado de iluminar, sem deslumbrar. Ninguém é “a” luz, senão que tem um pouco de luz. E todos compartilhamos mutuamente a luz que vem de Deus. Nossa pequena luz reforça e ativa a luz presente no outro.
Não podemos esquecer outro aspecto importante nas duas imagens usadas por Jesus. O sal, para salgar, tem que desfazer-se, dissolver-se, deixar de ser o que era. A lamparina ou a vela produzem luz, mas o azeite ou a cera se consomem.
No último parágrafo da passagem evangélica de hoje há um ensinamento esclarecedor. Como devemos ser sal e luz? “Para que vejam vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai”. A única maneira eficaz para transmitir a mensagem é a ação, são as obras. Uma atitude verdadeiramente evangélica se transformará inevitavelmente em obras.
Texto bíblico: Mt 5,13-16
Na oração: “O amadurecimento da experiência e uma visão de fé mais profunda evidenciam a grande Luz que nos precede, acompanha e segue no percurso da vida”.
Deixemo-nos iluminar, levemos a Luz nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos do nosso cotidiano.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
04.02.2014
“Segui-me e eu farei de vós pescadores de homens” (Mt 4,19)
Entre as tentações do deserto e as bem-aventuranças, Mateus apresenta um relato que é como uma síntese de toda a atividade futura de Jesus, incluindo o chamado dos primeiros discípulos. Como excelente “resumo programático”, marca as linhas diretrizes de todo seu evangelho. Desde o ponto de vista teológico, é muito importante para Mateus deixar claro que Jesus começa sua atividade longe da Judéia, de Jerusalém, do templo, das autoridades religiosas. Quer desligar a atividade de Jesus de toda possível conexão com a instituição religiosa.
Jesus foi viver e desenvolver sua atividade, pregar sua mensagem numa região distante, habitada por humildes camponeses e pescadores pobres, pessoas que, naquele tempo, eram consideradas uma população sem influência e de má fama. Os “galileus” do tempo de Jesus não gozavam de especial estima (Jo. 7,52); eram considerados ignorantes e impuros com os quais se devia manter distância.
Para evangelizar, ou seja, comunicar uma “boa notícia” à sociedade de seu tempo, Jesus não buscou conquistar para si os notáveis e as classes influentes da sociedade, nem procurou os postos de privilégios, nem o favor dos mais influentes, e nem, muito menos, os que detinham o poder e o dinheiro.
Todos sabemos que as “mudanças profundas e duradouras” na sociedade não vem de cima, mas de baixo, a partir da solidariedade e da identificação de vida com os últimos deste mundo. Há uma esperança alentadora, que vem das periferias e das margens, que se empenham por imprimir um movimento novo à história; nele está a semente na qual Jesus viu a possibilidade de uma vida diferente, nova e mais promissora. E Jesus foi o ponto de partida de uma profunda mudança na história da humanidade. Por isso, Galileia foi a primeira decisão importante que Jesus tomou no início de sua vida pública. “Deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galiléia”. Uma decisão que foi essencial em sua vida, porque Jesus permaneceu na Galiléia até pouco antes de morrer.
Galiléia é o lugar do compromisso pela vida, o lugar dos excluídos e desprezados, o lugar dos discípulos, o lugar no qual Jesus realizou os gestos libertadores contra tudo aquilo que atenta contra a vida. Ele percorreu vilas e cidades despertando a vida e fazendo renascer a esperança nas pessoas.
“Galiléia” é também o lugar do chamado ao seu seguimento. A primeira intervenção de Jesus, o evangelho de hoje, não tem nada de espetacular. Não realiza um mila-gre prodigioso; simplesmente, caminha junto ao mar, chama alguns pescadores que se deixam impactar por um convite ousado: “Segui-me”. Assim começa o movimento dos seguidores de Jesus e o germe humilde daquilo que um dia será sua comunidade. Aqui, pela primeira vez, se manifesta a relação que há de se manter sempre viva entre Jesus e aqueles que deixam ressoar em seu coração o mesmo convite.
Fica claro, então, que a fé cristã não é apenas uma adesão doutrinal ou uma prática piedosa, mas conduta de vida marcada por nossa vinculação a Jesus. Crer em Jesus é viver seu estilo de vida, assumir suas opções, deixar-nos conduzir pelo seu Espírito para nos fazer presentes, de maneira criativa, junto às Galiléias excluídas do mundo de hoje.
Mateus destaca o elemento de irradiação e sedução de Jesus. Tudo começou às margens do mar da Galiléia... um encontro. Ele vai em busca de pessoas, chama-as pelo nome; sua presença e sua voz arranca-as do seu ambiente, da sua rotina... e lança-as para novos desafios. Jesus entra no cotidiano de 4 homens, no meio daqueles movimentos difíceis e repetitivos, próprios de pescadores. Não estamos no templo, nem num dia sagrado, mas junto do mar, depois da fadiga de um dia de trabalho.
Jesus caminha e, ao passar ao longo do mar, entra no espaço vital daqueles homens, que estavam retornando da pesca. Exatamente ali, naquela vida tão normal, acontece algo novo.Partindo do lugar e das coisas que representam as esperanças, as dificuldades, as decepções, os sucessos, as derrotas daqueles homens pescadores, Jesus lança a sua promessa:“Segui-me e farei de vós pescadores de homens”.
Este chamado deve ser lido não no sentido proselitista, ou seja, convencer pessoas a fazer parte de um determinado grupo religioso. Trata-se de “pescar” o que há de mais humano e nobre em cada pessoa, ajudar as pessoas a viverem com sentido, tirando-as do mar da desumanização; “pescar homens” é extrair o melhor e mais original versão humana de cada pessoa, garimpar a autêntica qualidade humana misturada nesse cascalho de inumanidade que todos carregamos dentro.
E Jesus tem a capacidade de extrair o maior bem possível de cada um, de ativar as melhores possibilidades de vida latentes no seu interior, sem necessidade de dar-lhe lições ou arrastá-lo com argumentos racionais. Logo que ouviram a Sua voz, aqueles pescadores se dão conta d’Aquele que estava passando: eles já tinham sido vistos, conhecidos, amados, escolhidos por Ele.“Eles deixaram as redes e o seguiram”: seguir Jesus não é só assumir o estilo de vida d’Ele; é também uma libertação. Na realidade, o que eles deixam não não só redes, mas tudo aquilo que aprisiona, enreda e que impede a vida ter uma dimensão maior.
Aquela voz abre os olhos, a mente e o coração daqueles pescadores do lago. Sentem-se chamados pelo nome e conseguem compreender melhor a si mesmos, confrontam-se com Aquele que os chama e re-descobrem um sentido novo, um significado inimaginável para a própria existência.Finalmente, não se sentem mais sozinhos.
O olhar e a voz de Jesus atrai aqueles pescadores à verdade da própria vida: eles descobrem a luz e compreendem para onde devem ir. Jesus os chama do mar, os faz descer da barca e os convida a segui-Lo, para mergulhá-los no Seu mar, para fazê-los subir noutra barca, para atraí-los a uma vida diferente.
O seguimento só se realiza quando alguém se deixa conduzir para águas profundas num novo mar.A vida de Jesus se torna norma, uma maneira de proceder, um estilo próprio de ser e de viver... O fundamental é o “estar com Ele”, conviver com Ele, participar de sua Vida, compartilhar do mesmo sonho: a realização do Reino.
Jesus está inteiramente polarizado por esse sonho, por essa utopia esperançada capaz de despertar e mover outras pessoas a participarem do mesmo movimento; toda Sua pessoa foi capaz de despertar nos outros o melhor de si mesmos e de mobilizá-los frente a um novo projeto de humanização.
Os quatro homens são atraídos pela voz, mais do que pelas palavras ou pela promessa do Desconhecido que passa, vê, chama, conhece também o nome de seus pais, e sabe bem quantas e quais são as barcas e as redes que lhes davam segurança. O objetivo da promessa não se refere somente a algo que haverá de acontecer, mas a Alguém que já está presente. A promessa que os atrai é, justamente, Aquele desconhecido, que, das margens, os chama pelo nome.
Depois de tê-los despojado de suas seguranças e levado a intuir que a vida não é questão de certezas, mas de busca e de desejos, Jesus chama aqueles pescadores para ficarem com Ele e entre eles, fazendo comunidade.Aquele Desconhecido se aproxima, ainda hoje, do nosso mar da Galileia, que representa os lugares, os afetos, os segredos, os costumes da nossa vida cotidiana... nos faz a proposta para entrar em outro mar.
Seguir o Desconhecido do lago significa alargar a vida num novo horizonte de sentido; esta proposta é para corajosos e ousados. Quê impacto isso tem em minha vida?
Texto bíblico: Mt 4,12-23
Na oração: No fundo do seu coração cheio de velhas barcas, redes inúteis, mar
estreito... é aí que o Senhor passa... e com sua voz provocante o acorda para uma ousadia maior. Compete a você dar-lhe acolhida e entrar na dinâmica do Reino. “Convertei-vos, porque o Reino dos céus está próximo”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
23.01.2013
“Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo”
Neste início do chamado “Tempo Comum”, após a celebração do batismo de Jesus, a liturgia continua nos pedindo e nos propondo que “façamos memória”, mais uma vez, daquele evento tão significativo; desta vez, é-nos oferecida uma passagem tomada do evangelista João. Neste, não se narra o acontecimento do batismo em si, mas ele vai diretamente ao núcleo e nos fala do Espírito, que é o verdadeiramente importante em todos os relatos do batismo de Jesus.
A humanidade de Jesus está inundada do Espírito; é a humanidade do Filho de Deus possuída pelo Espírito, guiada pelo Espírito. Jesus é, por excelência, o homem nascido do Espírito e se deixa conduzir pelo Espírito do Pai, vivendo intensamente o seu tempo presente. “Tempo carregado” da presença do Espírito; por isso, tempo criativo, inspirador...
Com Jesus chega um “novo tempo”, um tempo decisivo para a história da humanidade. É Deus quem irrompe de maneira definitiva na temporalidade. A partir desse momento, a história fica dividida em dois tempos: o anterior e o posterior a Jesus.
Desta maneira, o Senhor do tempo faz de Jesus o centro e o ponto de referência do tempo dos homens. Todos os acontecimentos do mundo, tanto passados como futuros, encontrarão seu lugar e sentido a partir do “tempo central”, que é o tempo de Jesus. Por isso, aos seus olhos, as realidades da vida cotidiana se tornam transparências. Jesus as olha com olhos contemplativos; todas lhe falam do Reino de Deus e do Deus do Reino que está a caminho.
O Espírito é o que habita o tempo, e nos habita. Estamos no tempo do Espírito que nos faz perceber o “espírito do tempo”; só assim viveremos o tempo de maneira criativa e ousada, como Jesus. Não é raro encontrar-nos numa situação na qual vivemos o tempo como um túnel, contínuo, repetitivo... Tempo que absorve, desgasta, esgota... e nos faz entrar numa frenética corrida por rentabilizar ao máximo os minutos e as horas. O tempo torna-se cada vez mais veloz, fugaz, estressante...
Diante desse tempo não há futuro auspicioso, nem esperança que se sustenta. Nesse “tempo apertado” o Espírito não consegue entrar e a nossa maneira de viver fica desabitada e estéril.
Para Jesus, o tempo deve ser recebido em graça e se converte na missão que dá sentido à sua vida neste mundo. Jesus aceita de seu Pai o “dom do tempo” e o encarna na história humana de maneira original e única. Vivendo “no tempo” Jesus descobre uma presença que completa seu ser, que plenifica sua existência e o inspira a ser presença inspiradora junto àqueles que vivem o tempo como fardo pesado.
Com os olhos fixos na “Hora do Pai”, Jesus mostra com sua mobilidade que, participando no tempo humano, não se deixa prender pelas ataduras da preocupação, da ansiedade, da pressa...; Ele busca viver com alegria e prazer cada momento como um dom inesperado. O Filho do Homem vive na espera paciente de seu momento. Sua sabedoria consiste em saber aguardar que o tempo chegue à sua colheita, sem cair na tentação de forçar sua maturação.
A tirania da agenda, a pressa descontrolada, o ritmo frenético, a antecipação dos acontecimentos, a impaciência diante do desejado, a falta de respeito pelo tempo interior das pessoas,... são atitudes que caracterizam o ser humano pós-moderno, mas que estão ausentes na pessoa de Jesus.
O Espírito está no coração do tempo; Ele está ali como força explosiva que dá à nossa vida nova dimensão e uma densidade de sentido à nossa existência. De agora em diante, cada um de nossos momentos está cheio de Sua presença, transformando o “kronos” em “kairós”; de agora em diante nada em nossas vidas é insignificante, nem rotineiro. A ação mais simples é transfigurada e assume uma dimensão divina. Nada é banal, nada é comum para alguém que se deixa conduzir pelo Espírito. É nesse nível do tempo inspirador onde respiram nossos desejos, onde nossa esperança bebe, onde nossos sonhos criam raízes... É nele que podemos moldar a arte de viver.
Nossa biografia humana se estende e se distende no tempo cotidiano. Sob o impulso do Espírito queremos viver este tempo de forma extraordinária: queremos enchê-lo de sonhos, de aspirações, de criatividade. Queremos viver o tempo intensamente, vivificá-lo, cuidá-lo e artisticamente orientá-lo para aquilo que desejamos. Queremos viver de uma maneira original como tempo de sentido único, como tempo irreversível. Este “tempo presente” é oportuno, precioso e não volta mais. Não há um “segundo tempo”. “A vida não dá duas safras”.
O grande programa da vida é precisamente aprender a viver, acolhendo a novidade e a surpresa de cada tempo. Como o sedento busca a fonte, como o peregrino busca a meta, como o náufrago a orientação do farol, o ser humano vive no rio do tempo; está sempre a caminho; é sentinela do futuro.
O Espírito é “atmosfera de Deus”, “herança de Jesus” e “ambiente de realização do ser humano”; n’Ele a vida adquire profundidade, consistência; n’Ele o tempo é vivido sem sobressaltos e sem pressas. Carregamos dentro de nós o melhor da vida. Somos uma história sagrada. Exercitar o olhar contemplativo buscando “ler” a vida pessoal e comunitária com o olhar mesmo de Deus.
Deixar o Espírito “pousar sobre nós” é dispor-nos a algo grande. A missão que Ele nos anima a viver é alucinante, imenso, fora do nosso tempo rotineiro. É Ele que nos faz mais lúcidos, mais sensíveis, muito mais corajosos para descobrir a profundidade e a riqueza de tudo o que acontece ao nosso redor e dentro de nós. Somos feitos disso: desejo, busca, esperança... No mais profundo de cada um há uma carência que nos faz clamar: “Vinde Espírito Santo!”
Texto bíblico: Jo 1,29-34
Na oração: Enquanto seguidores de Jesus, não somos homens e mulheres escravos da regularidade, dos costumes, dos horários e das normas; somos pessoas “tocadas pelo Espírito”, inspiradas por Ele. Fazer “experiência do Espírito” é abrir-se à novidade, criatividade, mobilidade...
- Quem prevalece mais em minha vida: o costume, as normas, as expectativas dos outros... ou a inspiração do Espírito?
- Diante das mudanças sociais, eclesiais e pastorais... vejo-me na defensiva? Sou capaz de olhar com simpatia e empatia a sociedade que me cerca e ver nela os sinais do Reino?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
14.01.2013
“O céu se abriu e Jesus viu o Espírito de Deus descendo como pomba...” (Mt 3,16)
Começamos o Tempo Comum do ano Litúrgico, seguindo o evangelista Mateus (Ano A). Ao longo de todo o ano vamos tendo acesso aos mais importantes acontecimentos da vida pública de Jesus. E o primeiro fato importante desse caminho é seu batismo no Jordão por João Batista.
Sem dúvida foi um momento decisivo para Jesus: sua vida se alarga e, tomado pelo Espírito, parte para sua missão de evangelizador dos pobres e libertador do mundo. O batismo de Jesus foi também muito importante para os primeiros cristãos que tentavam compreender sua vida e milagres; o batismo deixa claro que o motor de toda a trajetória humana de Jesus foi obra do Espírito.
Jesus “desce ao Jordão”; esse deslocamento revela, mais uma vez, o realismo da Encarnação: Jesus “desce” e afunda os pés na humanidade ferida. Com o seu batismo Jesus “entra na fila dos pecadores” e faz uma experiência única: os céus se abrem e Ele vê claro o que Deus espera dele. Fiel ao Espírito, faz uma mudança radical em sua vida e se dispõe a pregar o Reino de Deus. A partir deste momento, abandona sua vida em Nazaré e dedica todo seu tempo ao anúncio e realização da Boa Nova. Começa sua vida pública.
Os evangelhos fazem constante referência ao Espírito para explicar quem é Jesus: “Concebido pelo Espírito Santo”; “Nascido do Espírito Santo”; “Desce sobre ele o Espírito Santo”; “Ungido com a força do Espírito”; “Eu batizo com água, Ele vos batizará com Espírito Santo e fogo”; “O Espírito é o que dá a vida”; “O que nasce da carne é carne, o que nasce do Espírito é Espírito”.
A alusão aos céus que se abrem definitivamente, é a expressão de uma esperança de todo o AT. A distância entre Deus e o ser humano fica superada para sempre. Os céus estavam “fechados”. Uma espécie de muro invisível parecia impedir a comunicação de Deus com seu povo. Ninguém era capaz de escutar sua voz. Já não havia profetas. Ninguém falava impulsionado por seu Espírito.
Finalmente, em Jesus, o encontro com Deus tornou-se possível. Sobre a terra caminhava um homem cheio do Espírito de Deus. Esse Espírito que desce sobre Ele é o Sopro de Deus que cria a vida, a força que renova e cura os viventes, o amor que transforma tudo. Por isso Jesus se dedica a destravar a vida, a curá-la e fazê-la mais humana.
Jesus não é um sacerdote do Templo, consagrado para cuidar e promover uma religião. Do mesmo modo, ninguém o confunde com um mestre da Lei dedicado a defender um legalismo estéril. Os camponeses e pobres da Galiléia veem em seus gestos e em suas palavras de fogo a atuação de um homem movido pelo espírito profético: “Um profeta grande surgiu entre nós”. Jesus, como os profetas de Israel, não faz parte da estrutura política nem do sistema religioso. Não é nomeado por nenhum poder. Sua autoridade não vem da instituição, não se fundamenta nas tradições religiosas. Provém de sua experiência de Deus, empenhado em guiar seus filhos e filhas pelos caminhos da justiça.
Segundo a mentalidade bíblica, este Espírito faz Jesus viver a partir do alento vital de Deus, cheio de seu amor e de sua força criadora, movido a libertar, transformar e potenciar a vida.
É este mesmo Espírito que há de alentar aqueles que seguem os passos de Jesus.
Deixando-se conduzir pelo Espírito, Jesus se encaminha para a plenitude humana e, dessa maneira, nos marca o caminho de nossa própria plenitude. Mas temos que ser muito conscientes de que só nascendo de novo, nascendo da água e do Espírito, poderemos desatar todas as nossas ricas possibilidades humanas. Não seguindo a Jesus a partir de fora, como se se tratasse apenas de um líder, mas entrando, como Ele, na dinâmica de vivência interior, movido pelo Espírito.
“Descer” com Jesus ao Jordão para sermos batizados é “descer” em direção à nossa própria humanidade e ser solidário com a humanidade de todos. Ao fazer, junto com Jesus Cristo, o caminho da “descida”, o ser humano vai ao encontro de sua realidade e coloca-se diante de Deus para que Ele transforme em amor tudo quanto existe nele, para que ele seja totalmente perpassado pelo Espírito de Deus.
O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da própria realidade pessoal.Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.
“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas; é “descendo” ao Jordão interior que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida.
Quem “desce” até sua própria realidade, até os abismos do inconsciente, até a escuridão de suas sombras, até a impotência de seus próprios sonhos, quem mergulha em sua condição humana e terrena e se reconcilia com ela, este sim, está subindo para Deus, faz a experiência do encontro com o Deus verdadeiro e escuta a mesma voz que Jesus escutou: “Este é o meu(minha) filho(a) amado(a), no qual eu pus a minha afeição”.
É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser. O ser humano é torrente de riquezas, é expressão de vida, êxtase, paixão, criatividade, impulso vital... Aberto à criatividade do Espírito ele é capaz de alçar longos vôos, de extrair ousadia de seu medo, de romper seus estreitos lugares...
Aquele que se deixa conduzir pelo Espírito faz-se “peregrino” do Absoluto. O ser humano é itinerante por essência; ele “abre suas asas” quando matura suas potencialidades, multiplica suas capacidades, extrai riqueza e criatividade das profundezas de seu ser... No seu Batismo ele realiza a grande Passagem, deixando seu estreito território e enveredando pela terra que “mana leite e mel”.
Deixa o território da apatia e da neutralidade para o território da opção e do compromisso; deixa o território da mentalidade conservadora e atua no território da mentalidade inovadora; deixa o território que mantém aliança com a morte e caminha para o território que faz germinar múltiplas formas de vida; sai do território da rotina e da repetição e ativa o território que gera o diferente e o alternativo. Desloca-se do território da injustiça, violência e exclusão... para o território da justiça, da solidariedade, compaixão...
Somos batizados para que o Espírito de Jesus possa ser nosso guia e nossa força nos dias de dúvida e de incerteza. Somos batizamos para que sejamos uma luz de esperança na noite angustiosa do mundo. Somos batizados para que sejamos uma gota de água no caminho da vida. Somos batizados para que possamos compartilhar com os outros a alegria e o amor que todos necessitamos. Somos batizados para que vivamos a esplêndida aventura de sentir-nos filhos de um Pai que nos ama desde sempre e para sempre.
Texto bíblico: Mt 3,13-17
Na oração: Para realizar-nos e desenvolver toda a nossa potencialidade, busquemos, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de nosso ser, o núcleo original de nossa personalidade. É no mais íntimo de nós que o Espírito clama. É no mais profundo de nossa interioridade que sentimos o Sopro que nos faz criativos. Deixemo-nos invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “do caos cria o cosmos interior”.
- Rezar o compromisso batismal, na Igreja e no mundo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
09.01.2013
“E a estrela ia adiante deles, até parar sobre o lugar onde estava o menino” (Mt 2,9)
A festa da Epifania nos revela que diante de Jesus pode-se adotar atitudes muito diferentes. O relato dos magos nos fala da reação de três grupos de pessoas: alguns pagãos que buscam, guiados pela pequena luz de uma estrela; os representantes da religião do Templo, que permanecem fechados em suas tradições e não são capazes de perceber o “novo” que surge; o rei Herodes que, marcado pelo medo de perder seu poder, só vê perigo e ameaça na singeleza de uma criança.
Contemplemos o relato da Epifania e procuremos perceber, por trás do texto, três possíveis ícones de nossa interioridade: Herodes, os guardiões da religião e os Magos.
Todos atuam convencidos de fazer o melhor e de serem até justos. No entanto, somente os Magos tem a autêntica liberdade para ver algo mais além de si mesmos e para abrir-se à Boa Notícia.
Os magos não pertencem ao povo eleito; não conhecem o Deus vivo de Israel. Mas vivem numa atitude de atenção e leitura do “mistério” que se revela no cosmos. Seu coração busca a verdade.
Descobrem uma pequena luz que aponta para um Salvador. Rapidamente se põem a caminho. Não conhecem o itinerário preciso que hão de seguir, mas em seu interior arde a esperança de encontrar uma Luz para o mundo. Neste sentido, eles são o paradigma da atitude de discernimento.
Os outros dois ícones – Herodes e os guardiões da religião – nos sugerem as resistências que nos contaminam e que a busca de poder e prestígio não nos deixam espaço para o encontro com o outro, nem para escutar o que vem de fora.
A impressão que se tem é que a afetividade de Herodes está dominada pelo medo a tudo o que ameace seu pequeno protagonismo, seu minúsculo poder, a pequena cota de prestígio com a qual sustenta sua frágil autoestima...; e essas ameaças devem ser eliminadas o quanto antes.
Por outra parte, parece que toda a inteligência e a longa formação dos sacerdotes e dos mestres da lei lhes permite quase tocar a verdade, mas, petrificados em seu próprio saber, não veem os sinais que os magos percebem; obscurecidos pelo cinismo, perderam a capacidade necessária para abrir-se ao mistério e à novidade que ultrapassa suas sutis racionalizações.
São os guardiões da religião, mas não buscam a verdade. Representam o Deus do Templo, mas vivem surdos ao seu chamado. Sua segurança religiosa os cega. Conhecem onde há de nascer o Messias, mas nenhum deles se desloca até Belém. Dedicam-se a prestar cultos a Deus e não suspeitam que seu mistério é maior que todas as religiões e que revela sua face nas periferias da vida. Por isso, nunca reconhecerão Jesus.
Os magos, por sua vez, prosseguem sua busca. Não caem de joelhos diante de Herodes, não entram no Templo grandioso de Jerusalém, pois o acesso lhes é proibido. A pequena luz da estrela os atrai para o minúsculo povoado de Belém, longe do centro do poder. Alí se “esbarram” com algo desconcertante: um menino sem poder e glórias, uma vida frágil que precisa dos cuidados de uma mãe. Mas isso é suficiente para despertar neles a adoração. Os Magos visitam e se vão; retomam a itinerância na fidelidade a uma estrela; isto significa novamente fazer a experiência da busca, da esperança...
Toda viagem que culmina na manjedoura, é ponto de partida para novos caminhos.
Os Magos do Oriente são o símbolo de tantos homens e mulheres que em qualquer parte do mundo, a partir de outras sendas e tradições espirituais, se perguntam, buscam e caminham.
Uma lenda os apresenta como um rei jovem, outro ancião e outro negro, querendo significar que a humanidade toda é mobilizada a “fazer-se caminho”.
Na experiência da vida cristã buscamos ser como os magos: desejosos de encontrar a Vontade de Deus, atentos para reconhecer “estrelas” na noite e ágeis para segui-las, capazes de pedir ajuda quando nos perdemos e apaixonados por descobrir um caminho que, no fundo, é o caminho do mesmo Deus.
Nesse processo, os Magos escutam outras palavras e sinais, aprendem a filtrar aquilo que “ajuda para o fim” e a não seguir qualquer conselho. Herodes e os escribas estão presentes e ameaçam reaparecer antes, durante e depois do encontro dos Magos com o menino.
A Graça também nos precede e nos acompanha sempre e libera nossa afetividade e nossa inteligência para abrir-nos ao novo, a abertura que permite reconhecer o “mistério” e adorá-lo.
Como os Magos, também nós nos dirigimos primeiramente aos palácios de nossa sociedade do bem-estar e aos “Herodes” contemporâneos, até que nos damos conta de que ali não encontramos o que estamos buscando, que ali se anula e se anestesia a vida, essa vida de Deus que quer crescer em nós.
O ícone bíblico do relato dos Magos ilustra o risco do fechamento em si e de enredar-se nas armadilhas da própria afetividade ou da própria inteligência. Isso se manifesta como rigidez para a mudança, a intensa necessidade de manter a própria imagem, a resistência em aceitar coisas novas que rompam nosso frágil equilíbrio ou os sérios limites da vontade...
A experiência da Epifania supõe uma capacidade de encontro e de escuta de Alguém que chama, uma atenção especial para distinguir vozes diferentes da própria voz, uma sensibilidade para escutar os gritos de nosso mundo e para receber a palavra da comunidade cristã.
O Deus, escondido na fragilidade humana, não o encontramos naqueles que vivem encastelados em seu poder ou fechados em sua segurança religiosa. Ele se revela àqueles que, guiados por pequenas luzes, buscam incansavelmente uma esperança para o ser humano na ternura e na pobreza da vida.
A viagem dos Magos se torna, assim, o símbolo da vida cristã, entendida como seguimento, como discipulado, como busca.
A viagem exige desapego, coragem, movimento, esperança. Quem está preso à terra pelo peso das coisas, pelos apegos, pelos egoísmos, não é capaz de se tornar peregrino. Não pode peregrinar aquele que não se dispõe sinceramente a ultrapassar as fronteiras e os esquemas pré-concebidos que muitas vezes lhe fecham e lhe dão segurança. Isto não o deixa livre para encontrar a Vontade de Deus.
Quem está convencido de possuir tudo, inclusive o monopólio da verdade, não tem a gana da busca contínua; é semelhante aos sacerdotes de Jerusalém, frios exegetas de uma Palavra que não os atrai nem converte. Quem está bem instalado na cidade não precisa de Belém; ao contrário, Belém lhe parece um insignificante vilarejo de província.
Quando aprendemos a aceitar e amar a nossa própria viagem, novamente a estrela surge à nossa frente, indicando o sentido de nossa existência e mantendo acesa a chama da busca inspiradora.
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: Discernir é rastrear o coração e deixar-se surpreender pelos “sopros-inspirações-luzes” do Espírito no ritmo da vida cotidiana e em meio à realidade que nos cerca.
A experiência do discernimento implica colocar-se a caminho, seguindo as “pegadas” dos Magos, fazendo opções e usando desvios, lançando-se pessoalmente a ações concretas...
- O quê você está buscando na vida? Onde busca?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
02.01.2014
“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido” (Lc 2,20)
Hoje começamos um Novo Ano. Mas, quê pode ser para nós algo realmente novo? Quem fará nascer em nós uma alegria nova? Quem ativará em nós novos sonhos? Quem ensinará a sermos mais humanos? Para viver o novo ano com mais intensidade, o decisivo é estar mais atentos ao melhor que se desperta em nós e viver sintonizados com a eternidade de Deus.
Esta união com Deus faz com que o tempo seja pleno. Também para nós o tempo pode ser de plenitude na medida em que vivemos unidos a Deus e nos abrimos aos irmãos pelo amor. Pois o amor é o que faz com que o tempo deixe de ser enfadonho e caduco e se abra a uma plenitude que se renova cada dia.
Nem todos os tempos são iguais. Uma coisa é o tempo do calendário, o contínuo movimento dos momentos, todos idênticos; e outra coisa é a vivência humana do tempo: há momentos em que o tempo se faz longo e outros em que se faz curto. Mais ainda, o tempo pode ser vivido como uma experiência opressiva e limitadora ou como uma experiência de plenitude. Quando vivemos o tempo como uma oportunidade para acolher o novo, para abrir-nos às surpresas da vida e para fazer-nos presentes gratuitamente, realizamos uma experiência positiva do tempo.
O tempo se torna “kairós”, ou seja, o momento oportuno para construir algo vital que possa transformar nossas vidas, o tempo propício onde todas as possibilidades estão à nossa disposição.
Foi essa a experiência vivida pelos pastores, segundo o relato do Evangelho de hoje: no seu tempo, rotineiro e sem expressão, uma criança se faz presente e a alegria tomou conta do coração deles. A plenitude chegou para eles, e quando ela chega não se esgota num instante, senão que permanece ao longo de toda a vida. Na Encarnação e Nascimento de Jesus, o tempo e a eternidade se fecundaram mutuamente. Deus não só entrou no tempo, senão que assumiu o tempo, assumiu nossa realidade passageira para enchê-la de eternidade.
O que faz a diferença é o olhar que pousa sobre o recém-nascido. Esse olhar está maravilhosamente mostrado na cena tão despojada do encontro dos pastores na Gruta de Belém. Trata-se de um olhar que chama à vida, que desperta uma resposta, um olhar perfeitamente realista sobre as dificuldades, mas também sobre o potencial que permitirá construir a vida.
A partir do “olhar” admirado dos pastores, iniciar, ao longo deste ano, um processo minucioso de extirpação das “cataratas” do nosso olhar interior: o olhar das lembranças negativas, das suspeitas, dos julgamentos, das comparações... e reacender o olhar contemplativo capaz de expressar a benevolência, a delicadeza, a acolhida, a serenidade, a modéstia, a afabilidade, a alegria simples de estar juntos...
Recordar todos os “olhares amorosos” que Deus foi depositando sobre nós ao longo da vida.
Coração e olhos espreitam na mesma direção. São os puros de coração os que verão a Deus (Mt. 5,8).
Mas quê “novo olhar” somos convidados a ativar, no início deste Novo Ano, a partir da experiência da Gruta de Belém? É o olhar contemplativo, que libera a capacidade de admiração e de encantamento para com o mundo, a vida, as pessoas... É o olhar que nos abre para perceber a ação de Deus na história e em nossas vidas. É o olhar que desperta o deslumbramento, que é a virtude da criança, a inocência da vida, a capacidade de ver, de aprender, de ser... É o olhar límpido, a face transparente, a memória sem ensaio.
Tudo é novo e por isso tudo é maravilhoso, porque tudo se vê pela primeira vez.
A capacidade de assombro é a medida da vitalidade no ser humano.
O olhar contemplativo, portanto, é marcado pela esperança, pois consegue enxergar possibilidades novas na realidade e abre “espaço para o imprevisto, para a magia e para o milagre de que as coisas podem, de repente, mudar e ganhar outra configuração...” (L. Boff).
Nesse sentido, o olhar é “grávido” de “boa-nova”, ou seja, é evangélico e transformador.
Desse olhar contemplativo, nasce o olhar cuidadoso, que zela e guarda o outro, a ele se dedica e investe o próprio tempo e energia, dispensando o melhor de si; nasce o olhar compassivo, que acolhe e sofre a situação do outro; um olhar ousado, que quebra as barreiras e aproxima corações...
Trata-se de um olhar inclusivo, solidário, humanizante, que procura perceber e valorizar o outro em sua diferença, em sua originalidade, em sua dignidade... e com ele se compromete.
Todos conhecemos o expressivo valor do olhar na dinâmica do encontro, na saudação, no receber e acolher, na conversação, no despedir-se. O olhar fala, tanto assim que muitas vezes o chamamos de eloqüente. No encontro com os outros, os olhos têm uma função fundamental, pois acompanham atentos cada detalhe do modo de ser dos presentes.
Observamos os interlocutores por inteiro, o rosto, os gestos, as posturas, as mãos, o que dizem e como dizem, os silêncios...; queremos saber e compreender com quem estamos nos relacionando, deixamos aflorar reações, avaliamos as impressões que eles produzem em nós e as que nós produzimos neles.
O primeiro encontro é prerrogativa dos olhos; o contato inicial de duas pessoas é sempre feito, antes, com o olhar, e só depois com as palavras. Inversamente, evitar o olhar é evitar o encontro. Voltar a olhar para alguém é o primeiro modo de dizer-lhe: sei que você existe.
O olhar de quem fala cria envolvimento, interação e estimula a atenção. A escuta mantém a distância; o olhar anula a distância e cria a presença. Um amigo se torna presente no momento em que há encontro de olhares, mesmo que ele esteja no outro lado da rua ou da praça e não possa saudá-lo verbalmente.
Entrar no campo visual de uma pessoa é entrar no campo da sua consciência. Nesse momento passa-se da categoria do ser, própria dos objetos, para o da presença e encontro, própria das pessoas.
O olhar tem o poder para despertar e para intimidar. Existem olhares que irradiam luz e atraem, outros que espalham gelo e distanciam. Há um olhar que determina o fim de tudo, outro que a tudo dá um começo ou recomeço. Há um olhar que recusa, outro que propõe e espera. Com o olhar, exprimimos disponibilidade ou indisponibilidade, dizemos a uma pessoa se ela pode ou não contar conosco. E há o olhar autoritário, que reflete a vontade de deixar claro que somos superiores, a essência secreta do poder.
O olhar de uma pessoa nasce da camada mais profunda e secreta do seu ser. Por isso dizemos que os olhos são o espelho da alma, pois transmitem as vibrações que brotam do nosso “eu” mais profundo.
Cada um de nós tem um modo habitual de olhar que é o seu modo habitual de sentir.
Devemos habituar-nos a manter os olhos erguidos, a olhar as pessoas nos olhos; um olhar afetuoso, que não intimide e não se sinta intimidado, um olhar entre iguais, acolhedor, estimulante, que demonstra interesse por aquilo que o outro diz, participação empática no seu modo de sentir. Um olhar desarmado e estimulante que, como o olhar dos pastores, nos motiva glorificar e louvar a Deus diante das infinitas manifestações de sua surpreendente Bondade em nossas vidas.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: O cristão é aquele que conserva límpidos os olhos interiores, prontos para perceber a maravilha que está germinando em sua vida.
Que olhar você tem sobre sua vida? Contemplativo? pessimista? compassivo?
Que olhar você tem sobre o mundo? Sobre as pessoas?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
28.12.2013
“Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito!” (Mt 2,13)
Hoje é o domingo da Sagrada Família, uma família de “emigrantes perigosos”, que devem fugir de sua pátria (onde são perseguidos), buscando outra terra também rica em opressões (Egito), para voltar de novo a uma terra cheia de perseguições (Judéia, Galileia). Assim ela aparece como a patrona de “todas as sagradas famílias” que tem de fugir, exilar-se, esconder-se...
Jesus nasce num mundo hostil. Ele foi perseguido pelos “donos do poder” desde o início de sua vida. O não reconhecimento de Jesus por Herodes e por Jerusalém antecipa a rejeição, a condenação e a morte d’Ele na Cidade Santa, no lugar onde Ele encontrará a maior hostilidade.
O paralelismo entre Jesus e Moisés, de um lado, e entre Herodes e Faraó, de outro, é claro.
Há também um paralelismo entre Jesus e o povo de Israel: Jesus revive na sua própria carne a história do seu povo chamado por Deus do Egito. “Do Egito chamei meu filho” (Os. 11,1).
A perseguição e o exílio, logo no início da vida de Jesus, revelam o realismo da Encarnação. Ao entrar na nossa história, o Filho de Deus esvaziou-se de sua glória e assumiu nossa condição humana, com todas as consequências: pobreza e impotência, perseguições e ameaças de morte por parte dos poderosos de turno.
Como exilados, Jesus e seus pais, fazem parte da corrente ininterrupta das vítimas do poder, que são obrigados a percorrer lugares inóspitos, desertos, cidades estrangeiras, gente hostil...
Jesus e seus pais são irmãos de todos os refugiados políticos dos países repressivos. Já desde pequeno Jesus se vincula e se solidariza com o mundo dos pobres, dos últimos. Ele é um Deus frágil que arma tenda nos acampamentos dos exilados, nas favelas e cortiços da miséria total; é um Deus que acompanha e compartilha a sorte dos fugitivos, expulsos das aldeias, mandados para fora da segurança, da tranquilidade dos muros da cidade. Para Ele permanecem cerradas as portas de ferro dos palácios.
O alarme diante da notícia do nascimento do “rei dos judeus” encaixa perfeitamente no contexto de mentiras e complôs, de terrores e furores dos últimos anos de Herodes. A história humana e o solo do nosso planeta sempre estiveram manchados de sangue. O massacre por razões de estado sempre foi uma das práticas mais experimentadas, carregando consigo o triste cortejo de repressões, torturas, prisões, violações dos direitos civis.
De fato, nessas vítimas inocentes que Mateus relata, estão representados todos os inocentes que foram exterminados no decorrer da história, cujos nomes não estão registrados nos arquivos da repressão, mas apenas no “livro da vida” de Deus. Entre essas vítimas podemos entrever todos os que foram esmagados pelos pequenos e grandes Herodes, sacerdotes da satânica liturgia da morte, da violência, do sangue.
O relato do Evangelho deste domingo é como o espelho de nossa história violenta, que avança sobre cadáveres de crianças sacrificadas, de inocentes fugitivos, de homens e mulheres errantes, perseguidos, em busca de uma pátria. Nossa história do “falso natal” avança sobre o Natal verdadeiro que continua acontecendo nos caminhos dos fugitivos e dos clandestinos deste mundo.
Só podemos celebrar hoje a festa da “Sagrada Família” se descobrimos que as famílias mais sagradas, aquelas que devemos respeitar, proteger e potenciar, são aquelas que não tem casa nem pátria, nem meios de vida... e no entanto, continuam caminhando.
Maria compartilha a sorte do menino, vive para ele, com ele assume os riscos da fuga e exílio. Ela cuida, protege, educa o menino entre perseguições e exílio. Enquanto existirem mães que protegem e cuidam das crianças, como Maria, haverá Natal.
José, em meio à perseguição, põe-se a serviço do Deus fugitivo, expulso, exilado do mundo. Como verdadeiro esposo e pai, ameaçado e fugitivo, percorre, com Maria e o menino, os caminhos do desterro. Enquanto existirem pais que, como José, se arriscam pela mulher e pelos filhos, que são sua riqueza, o dom de Deus..., enquanto estiverem dispostos a sofrer por seus filhos e pelas mães de seus filhos, no exílio ou na pobreza, haverá Natal.
Nessa escola de perseguição cresceu o Messias, compartilhando assim a sorte dos hebreus oprimidos no Egito; crescendo nela pode entender e interpretar nossa história por dentro. Entre fugitivos e perseguidos, cresceu Jesus, nas fronteiras da desumanização; ali vai sendo gestada a história da nova humanidade.
Se a história da Encarnação começa lá “embaixo”, na periferia, quer dizer que a fé em Deus implica prestar atenção e voltar a cabeça em direção aos “últimos”, aos que vivem “deslocados”. É por esse caminho que podemos chegar à descoberta e à experiência de Deus; é também por este caminho que podemos chegar ao conhecimento de nós mesmos e nos fazermos mais “humanos” e “solidários”. Ali temos que buscá-Lo e encontrá-Lo, nós que celebramos a festa da Sagrada Família.
O mistério do Exílio interpela a nossa liberdade e a nossa fé. Jesus bate e pede hospitalidade na ponta dos pés. São rostos desfigurados pela fome e pobreza, rostos aterrorizados pela violência diária, rostos angustiados de menores carentes, rostos humilhados e ofendidos na sua dignidade... Podemos fechar-Lhe a porta e condená-Lo ao exílio, que é uma atitude gravíssima na relação com Deus.
Aqui se condena uma criança. Se não entendermos essa lição, nada mais conseguiremos entender. Nesta nossa ignorância e insensibilidade a respeito do presente divino que é a Criança de Belém, estão as raízes de nossas maiores desgraças, injustiças, violências... E Deus não pode abençoar uma sociedade que não sabe valorizar suas crianças.
O Evangelho de hoje termina com três indicações geográficas, que são como que a espinha dorsal da narrativa. Antes de tudo, o anjo diz a José que deve retornar à terra de Israel: é a pátria mais genérica de Jesus e da revelação bíblica. Depois José é advertido em sonho para ficar no território da Galileia. Enfim, de modo mais específico, ele vai morar “numa cidade chamada Nazaré”.
Nazaré está no traçado do retorno-êxodo de Jesus do Egito. Com a terra de Israel Jesus revive a experiência do Êxodo; com a Galileia dos gentios Jesus abre a salvação aos mais pobres e excluídos; mas com Nazaré Ele atinge quase que o vértice do seu destino. Uma cidade insignificante que se torna o ponto de partida do caminho de Jesus, uma vida oculta e corriqueira que é celebrada pelos profetas.
Podemos dizer que Nazaré é, em certo sentido, a apologética do cotidiano, das horas, dos meses, dos anos escondidos, da vida tranquila, provinciana, não-escrita, de Jesus. Essa atenção à simplicidade do cotidiano, à natureza da Galileia, à mensagem que Deus esconde nos homens, nas coisas, nas horas…, é uma constante na pregação de Jesus. Nazaré é o sinal da epifania de Deus nas pequenas coisas, é o sinal da palavra divina escondida nas vestes humildes da vida simples e familiar, é o sinal da presença graciosa de Deus em nossas casas.
Texto bíblico: Mt 2,13-15.19-23
Na oração: contemplemos, com os olhos e o coração de Maria e de José, a entrada na terra que fora o lugar de escravidão dos seus antepassados. Terão recordado a história do seu sofrimento no cativeiro e da sua libertação, realizada pela ação criativa de Deus.
Suplicar a graça do seguimento de Jesus nos êxodos e nos exílios interiores e exteriores.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciano - CEI
27.12.2013
“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)
Se a história da Encarnação começa na Gruta, quer dizer que a fé em Deus implica prestar atenção na manifestação do amor materno e na frágil beleza do recém-nascido. É por esse caminho que podemos chegar à descoberta e à experiência de Deus; é também por este caminho que podemos chegar ao conhecimento de nós mesmos. No momento em que o Verbo de Deus assume um rosto, todo ser humano chega à plenitude de sua realização: entra em comunhão com o Infinito e recebe uma dignidade infinita.
As grutas sempre despertaram fascínio nos seres humanos; possuem uma força atrativa e guardam segredos em seu interior. Ao mesmo tempo simbolizam o desejo permanente de retornar ao ventre materno, lugar de segurança, de aquecimento...
A contemplação do Nascimento de Jesus nos impulsiona a fazer a travessia para o interior de uma Gruta: ali o Grande Mistério se faz visível e revelador do sentido da existência humana. “Conectar-se” com a Gruta de Belém é despertar o que há mais “divino” em nós.
Trata-se de “entrar” nela com suavidade, de percebê-la e fazê-la descer até o coração, de convertê-la em matéria de consideração e oração silenciosa e surpreendida.
A contemplação do Menino na Gruta revela que Deus assumiu a aventura humana desde seus começos até seu limite (vida, amor e morte). Deus se fez “tecido humano”, revestiu o ser humano de sua própria glória, plenificou-o de sentido e de finalidade. No nascimento de Jesus é revelada a grandeza, a dignidade, o mistério inesgotável do ser humano. Nossa humanidade foi divinizada pela “descida” de Deus. “Sendo rico, Cristo se fez pobre para que nós participássemos de sua riqueza” (2Cor. 8,9).
Ao aproximar-nos da Gruta de Belém, com todos os nossos sentidos abertos, começamos a intuir que tudo foi alcançado pelo amor encarnado de Deus. Belém é Deus que entra em nossa própria casa. Acolhido pela natureza, presente na Gruta, Deus se deixou impactar por tudo aquilo que o rodeava. Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano. Na pobreza, na humildade da própria história pessoal, inserida na grande história da humanidade, torna-se possível acolher o dom do amor de Deus visível na Criança de Belém.
“Não basta ajoelhar-se uma vez ao ano frente ao presépio para que a vida humana seja inundada da vida divina; antes, é necessário que toda a vida esteja em contato com Deus” (Edith Stein)
Celebrar, louvar e reverenciar o nascimento de Jesus tem a ver também com poder honrar nossas raízes, despertar nossa criança escondida em nosso interior. Jesus foi desalojado de nossos natais. Daí a urgência em nos aproximar da realidade de Belém.
Deus aparece como Menino mostrando-nos que a verdadeira dimensão do ser humano é “fazer-se criança”. É preciso retornar à infância para entrar na gruta de Belém; é preciso desbloquear em nós as fontes da inocência e da bondade. Dentro de todos nós há um menino adormecido. O ser humano precisa despertar esse menino, porque é o melhor que existe em cada um.
Sabemos que somos habitados pelo Mistério e, portanto, compartilhamos o mais essencial de nossas vidas, que se manifesta em forma de bondade, amor, compaixão...
Ao entrar na gruta para contemplar o Menino-Deus, acessamos, ao mesmo tempo, o mais profundo do coração humano, carregado de compaixão e generosidade. A bondade humana é uma faísca que pode se atrofiar, mas jamais se apagar. São necessários alguns momentos densos para que esta chama seja ativada. A vivência do Natal é um deles.
Em Belém somos pacificados de nossas ansiedades e pressas de fazer mais e de conseguir mais, de nossa sede de poder e de acumular mais; e se permanecemos em silêncio ali, diante do menino deitado no presépio, brotará em nós um desejo profundo de sermos mais humanos; ao mesmo tempo, brotará um desejo de venerar cada ser humano, de contemplá-lo em seu interior, esse lugar ainda não profanado em cada pessoa, o lugar de sua infância e de sua paz.
Hoje, percebemos que o ser humano tem perdido o contato e a comunhão com a própria interioridade, recusando receber a seiva que a todos alimenta; ele está conectado com tudo e com todos e, no entanto, tal conexão não lhe nutre, nem lhe oferece sentido à sua existência. A compulsão dos meios eletrônicos que o ameaça de superficialidade, de individualismo e de isolamento..., tem provocado nele toda espécie de mal-estar, de doenças, de conflito e divisão, de insegurança, de ansiedade, de solidão, de aridez existencial...
É aguda a consciência de uma fragmentação do eu interior.
A verdadeira nobreza do ser humano consiste nisto: há nele “algo” de interior, decorrente de sua profunda conexão com a Vida, de onde recebe a seiva que o nutre e o faz entrar em relação com tudo e com todos; há nele uma força latente, como uma energia fundamental, que o impulsiona a viver, que o ajuda a crescer e a melhorar continuamente, aumenta a sua capacidade de resistência, estimula-o a alcançar aquilo que é o sentido de sua própria existência: a verdade, a liberdade, o bem, o amor...
Com a presença desta força interior, a pessoa se sente guiada pelo seu dinamismo, que lhe proporciona saúde física, lucidez mental e limpidez afetiva. É esta força que comanda os melhores momentos da vida humana como um princípio ativo, dinâmico, criativo... Tais forças primordiais, vitais, presentes nas diferentes etapas do crescimento, são essenciais ao ser humano, graças às quais ele se orienta diante das solicitações da vida pessoal e das múltiplas escolhas, constrói a sua vida pessoal, reforça as relações comunitárias e sustenta o seu compromisso solidário no caminho em direção à plenitude do seu ser.
Quando o acesso à gruta interior permanece bloqueado, o ser humano perde a direção, seca a criatividade e o gosto por viver, não faz progredir a sua potencialidade e demite-se da própria vida.
Natal não só nos conecta com o que há de mais divino em nós, mas nos conecta também com o divino presente em toda pessoa humana, pois o Filho de Deus, com sua encarnação e nascimento, se uniu a todo ser humano. Natal faz referência à nossa comum humanidade, ou seja, nos revela que nossas vidas estão estreitamente interconectadas, e por causa desta conexão, somos responsáveis uns pelos outros. Nós nos humanizamos através dos outros. Precisamente porque cada um é parte inseparável do tecido da humanidade, o que um faz ou deixa de fazer tem consequências nas vidas dos outros.
Texto bíblico: Lc. 2,1-14
Na oração:
Na presença do Menino Jesus tudo é iluminado, tudo é aceito, tudo encontra seu lugar, nada é recusado.
Tudo fica transformado pela irradiação da luz que emerge a partir de dentro; e há muito mais lugar do que poderíamos chegar a imaginar, muita dignidade e muita beleza. Diante de tal luz nos fazemos “lugar puro”; e a vida inteira passa a ser presépio, gruta, espaço sem limites onde acolher os outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
21.12.2013
“Quando acordou, José fez conforme o anjo do Senhor havia mandado…” (Mt. 1,24)
3º Dom. Advento
Advento deveria ter mais ingredientes de surpresa que de rotina. Sem surpresa não há vida, já que a vida é a constante surpresa de ter consciência da própria existência. Advento deve ter este elemento de surpresa, de poder desvelar aqueles sinais de esperança que dão luz e calor à vida. É preciso estar atento à surpresa, rastreando o horizonte a partir da esperança do coração. Ao mesmo tempo, é preciso ter um coração preparado para acolher esta surpresa. Ela pode passar desapercebida, se estivermos imersos na rotina cansativa de nossos dias.
Muitos de nós, provavelmente, em um momento ou outro de nossa vida, já vivemos uma experiência de explosão de assombro e surpresa diante de nossa própria existência. Num determinado momento, tudo parecia enfadonho e rotineiro e, de repente, tudo é percebido como extraordinário e maravilhoso.
É como se alguém se visse afetado de um repentino ataque de assombro, que suscita humildade e agradecimento diante do milagre da vida. É como se despertasse para ver a realidade com novos olhos, como se visse pela primeira vez coisas que estiveram aí desde sempre. Emerge uma profunda reverência diante do “mistério”, incompreensível, mas mobilizador. E diante do mistério, a atitude adequada é a contemplação silenciosa, como fazem as mães, em longas horas de silêncio, cheias de assombro, diante da fragilidade de um novo ser humano.
Não é difícil imaginar o assombro de José e Maria que surpresos descobrem que a “vida é mais que vida”, que há sempre algo maior que nos ultrapassa no emaranhado cotidiano de nossa história. Uma aprendizagem vivida ao longo da vida, marcada por momentos de serenidade e paz, mas também por obscuridade e dúvida.
O Advento é, por sua própria natureza, uma surpresa que quebra a solidão da pessoa abandonada a si mesma, aos seus desertos desolados, fechada em suas rotinas e esquemas...
Faz-se necessário recuperar o sentido da surpresa, que é a atmosfera deste tempo litúrgico, recordar que a visão bíblica da história dirige-se para uma meta surpreendente, encontrar novamente a capacidade de maravilhar-se. Devemos recobrar o sentido da expectativa, da novidade, da coragem.
O Advento quer reafirmar a possibilidade de uma alternativa, da chegada de um hóspede inesperado, porque é “boa nova”, é evangelho. Com essa atitude frente às surpresas de Deus, o cristão pode dar sabor à sua vida, muitas vezes modesta e simples como a de José. Pois é no traçado das horas e dos dias que Deus prepara sempre a sua novidade, a sua surpresa, o seu dom natalício.
O cristão não deve jamais cair na resignação, mas permanecer em vigília, na expectativa; ele também deve ser uma surpresa para os outros, com seu gesto de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola, com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona.
O texto evangélico de hoje afirma claramente o conflito vivido por José. Ele viveu a experiência de uma verdadeira “noite escura”, do “silêncio de Deus”. Mais uma vez é Deus quem toma a iniciativa. José era um pobre noivo, pertencente a uma nação oprimida e a uma categoria social esquecida, mas conserva límpidos os olhos do espírito, prontos para perceber e acolher a presença surpreendente de Deus em sua vida. Na narração de Mateus, o anjo comunica ao confuso José o mistério que está acontecendo com sua esposa Maria. Por essa revelação do anjo, José é atingido como que por um raio, é tomado de surpresa. A sua noite, o seu silêncio, o seu sono, a sua rotina diária são quebrados por uma novidade absoluta.
O que José recebe no sonho é o chamado a uma existência marcada por constantes “deslocamentos”, pois, a mulher que entrou em sua vida e vai entrar em sua casa, Maria, leva em suas entranhas Aquele que para muitos será uma presença provocativa, uma ameaça ao poder estabelecido, um transgressor das leis e normas religiosas... A vida inteira de José, o justo, vai ficar desestabilizada a partir deste momento porque foi convidado a aproximar-se do mistério surpreendente do Deus feito homem.
Exteriormente, o mundo permanece como estava, aparentemente nada mudou; mas, ao associar-se ao destino do “Deus que se humaniza”, também José se revelará como presença surpresa, marcada pelo cuidado, pelo silêncio e pela prontidão ao chamado de Deus.
Mergulhados naquilo que é margem, na superfície das coisas, na rotina estressante…. acabamos por perder de vista o essencial, isto é, a adesão a Deus e ao seu plano de amor, de verdade, de justiça. Aprendamos de José a abrir nosso interior e deixar-nos surpreender por Deus. Ele nos fala que quem vive a esperança sabe que, "mesmo em meio às dificuldades, Deus atua e nos surpreende". Mas como viver essa atitude na nossa vida cotidiana, em cada coisa que fazemos?
Ele espera que nos deixemos “surpreender por seu amor, que acolhamos as suas surpresas”. Deixar-se surpreender por Deus não implica uma atitude passiva, onde esperamos que tudo caia do céu. Deixar-se surpreender por Deus no singelo, nas coisas simples da vida. Muitas vezes nós perdemos a capacidade de ver a sua ação nas pequenas coisas e ficamos esperando grandes sinais, grandes milagres. Cada instante é uma chance de perceber esse amor que Ele tem por nós. Se nós vivemos cada momento ordinário de forma extraordinária, certamente perceberemos a Sua ação e seremos surpreendidos.
Pensemos agora na quantidade de ocasiões que temos em apenas um dia para sermos surpreendidos por Ele. Um encontro com alguém, um gesto de bondade, uma palavra que alguém nos dá, uma paisagem que vemos, enfim, infinitos momentos em que Deus nos fala, busca nos surpreender. Mas, por não prestarmos atenção, por estarmos dispersos em tantas preocupações, por não fazermos silêncio em nosso interior, acabamos não percebendo.
A espiritualidade do Advento pede de nós uma docilidade à audição da voz que nos habita; é o sussurro que vem da realidade e das coisas, carregada da Presença d’Aquele que desperta o nosso ser para o assombro, para a maravilha e para o milagre.
Diante do “Mistério” que nos envolve e nos escapa, brota do mais profundo do nosso ser, o grito cheio de surpresa. O Mistério irrompe como voz que convida a escutar mais e mais a mensagem que vem de todos os lados, como apelo sedutor para nos mover mais e mais na direção do coração de cada coisa. Ele pertence a uma dimensão humana à qual todos tem acesso, quando vivem em profundidade e conseguem penetrar nos níveis mais profundos da vida.
Eis a plenitude da vida: mergulhar naquela Presença benfazeja que nos enche de sentido, de alegria, e nos surpreende a cada momento, nos invade e nos conduz a caminhos novos.
Texto bíblico: Mt 1,18-24
Na oração: Durante a contemplação devemos deter-nos particularmente na figura de José. Ele teve seus pensamentos próprios, suas preocupações e suas provações, suas perguntas dilacerantes e suas dúvidas angustiantes.
Mas Deus nunca deixa de atuar no meio das nossas noites, dúvidas, provações. Ele conhece nossos pensamentos e temores. E, no momento certo, nos liberta de nossos medos e nos dá a conhecer sua Vontade.
- Fazer memória das “surpresas” de Deus que despertaram um novo “movimento” em sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana –CEI
16.12.2013
“Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo” (Mt 11,4)
3º dom. Advento
O Advento é um tempo forte que nos convida a conectar com o melhor que há em nós, em nosso coração. Conectar com o sonho de ser uma pessoa melhor, mais madura, mais comprometida, mais aberta à realidade; conectar com as ricas possibilidades ainda latentes em nosso interior...
Com toda certeza, no “eu mais profundo” há um “espaço divino” onde as beatitudes originais estão presentes, esperando uma ocasião propícia para manifestar-se. Advento é tempo especial para ativar aquilo que há de mais nobre em nós. Estas “beatitudes” (bem-aventuranças) são um caminho privilegiado pelo qual Deus chega até nós, possibilitando-nos viver com mais intensidade.
Normalmente, nosso modo de viver é estressante e o melhor que há em nós vai ficando atrofiado a cada dia. Mergulhados no ativismo alucinante, vivemos desconectados de nossas raízes existenciais, de nossos sonhos mais profundos, daquilo que aspiramos de verdade...
E então... quê é Advento? Conectar com nossas melhores aspirações, essas que nos levam a dizer: “Chega de vazio interior! Basta de secura!!! Temos um coração que necessita água fresca de sentimentos, de verdade, de vontade de ser de outra maneira mais humana e menos maquinal”. E aqui, nós que acreditamos no Deus de Jesus, conectamos com as esperanças de homens e mulheres que, em todos os tempos, sentiram o mesmo que sentimos e esperaram Alguém (Jesus) que viesse dar um sentido às suas existências, que lhes dissesse palavras de vida e que viesse trazer “vida em abundância”.
O Evangelho de hoje deixa muito claro que a mediação entre os seres humanos e Deus é a vida, não a religião. A religião é uma expressão fundamental da vida e deve estar sempre a seu serviço. Como consequência, a religião é aceitável só na medida em que serve para potenciar e dignificar a vida, inclusive o prazer e a alegria de viver. Quando a religião é vivida de maneira a agredir à vida e à dignidade das pessoas, ela se desnaturaliza e se desumaniza, e acaba sendo uma ofensa ao Deus revelado por Jesus. De fato, para Jesus, o primeiro é a vida e não a religião. Ele colocou a religião onde deve estar: a serviço da vida, para dignificá-la. Ele tomou partido da vida, contra aqueles que, a partir da religião, cometiam todo tipo de agressão contra a vida.
Jesus se deixou conduzir pelo Espírito do Senhor para aliviar o sofrimento humano: “os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados”. Ou seja, Sua presença consistia em dar vida àqueles que tinham a vida massacrada ou diminuída, devolver a dignidade da vida àqueles que eram encurvados pelo peso da opressão e do legalismo religioso.
Jesus, o biófilo (amigo da vida), tocou as “vidas feridas” com delicadeza e ternura e as transformou. Seus gestos terapêuticos foram o prolongamento da ação criativa de Deus; com palavras e ações Ele inaugurou no meio de nós o Reino de Vida do Pai. Não só optou pela vida e se comprometeu com a vida, mas fez de sua Vida uma entrega radical a favor da vida.
Diante da questão apresentada por João Batista “és tu que aquele que há de vir?”, Jesus não responde diretamente. O caminho para reconhecer sua verdadeira identidade é mais vivo e concreto: “ide contar a João o que estais ouvindo e vendo”.
Primeiro, os enviados de João hão de comunicá-lo o que vêem: Jesus vive voltado para os que sofrem, dedicado a libertá-los daquilo que os impede viver de maneira sadia, digna e feliz. Em seguida, hão de dizer o que ouvem: uma mensagem de esperança dirigida precisamente àqueles mais excluídos, vítimas de todo tipo de abusos e injustiças.
Isto significa que a espiritualidade do Advento, apresentada pelo Evangelho de hoje, funde a causa de Jesus com a causa da vida; doía-lhe a fome dos outros; doía-lhe a exclusão e a violência sofrida pelos mais pobres; doía-lhe a vida massacrada daqueles que não tinham direito a viver com liberdade...
Os cristãos encontram a Jesus somente na medida em que defendem, respeitam e dignificam a vida. Só seremos seguidores d’Ele se os sofrimentos dos outros “doerem” em nós. Este é o sentido da compaixão: fazer própria a dor dos outros e comprometer-se com a vida.
A espiritualidade que o Advento apresenta não é um projeto que centra o sujeito em si mesmo, em sua própria perfeição, ou na aquisição de determinadas virtudes, mas um projeto centrado nos outros, orientado aos demais, com a intenção de aliviar o sofrimento alheio. É um projeto centrado na defesa e no respeito à vida, na luta por sua dignidade. Deste modo, aparece claro que na espiritualidade cristã, funde-se e confunde-se a causa de Deus com a causa da vida.
Os cegos, surdos, coxos, leprosos, pobres e muitos outros coletivos no mundo de hoje, continuam sendo símbolos da marginalização mais radical que afeta muitíssimos seres humanos. O texto de hoje quer ressaltar que a chegada do Reino terá consequências para todos, mas sobretudo para os mais excluídos, que tinham perdido toda esperança e o sentido do viver.
Como podemos perceber, entre os sinais da presença do Messias não há um só sinal “religioso”: nem culto, nem rezas, nem sacrifícios... Isto nos deveria fazer pensar. Nós cristãos, com frequência, esquecemos que, para Jesus, primeiramente vem a vida, depois o culto; em primeiro lugar, o compromisso em aliviar a dor humana, depois a religião. Nem João, nem os rabinos, nem os sacerdotes, nem os apóstolos estavam capacitados para entender Jesus. Sua presença e atuação não se ajustavam ao que eles esperavam do Messias. Jesus rompe com todas as concepções e esquemas mentais, desmonta todas as expectativas, frustra uma visão...
A novidade de Jesus é muito maior do que aquilo que podiam esperar; além disso, o que Ele traz vai na direção contrária do que esperavam do Messias. Não vem com poder e força; não vem impor nada, senão propor uma dinâmica de serviço e desatar a vida travada. Jesus “tem um caso de amor com a vida”. Não são só os cegos, surdos, coxos, doentes que fazem presente o Reino, mas também aqueles que se preocupam com eles. Só as ações em benefícios dos outros fazem presente a Deus.
Entrar na dinâmica do Advento, significa estar dispostos a aproveitar qualquer ocasião para fazer presente o Reino, não frustrando aqueles que esperam de nós atitudes comprometidas com a vida.
Uma comunidade de Jesus não é só um lugar de iniciação à fé nem só um espaço de celebração. Deve ser, de muitas maneiras, fonte de vida mais sadia, lugar de acolhida e casa para quem necessita de um lar.
Uma comunidade que segue o “Amigo da Vida” deve-se constituir como “comunidade curadora”: mais próxima daqueles que sofrem, mais atenta aos doentes desassistidos, mais acolhedora daqueles que precisam ser escutados e consolados, mais presente nas situações dolorosas das pessoas. Ou seja, não é uma comunidade que dá as costas aos pobres; pelo contrário, conhece mais de perto seus problemas, atende suas necessidades, defende seus direitos, não os deixa desamparados. São eles os primeiros que devem escutar e sentir a Boa Nova de Deus.
Textos bíblicos: Mt 11,2-11
Na oração: Se alguém nos pergunta se somos seguidores do Messias Jesus: quê obras em favor da vida podemos lhes mostrar? Quê mensagem libertadora podem escutar de nós?
Quais são as marcas características que não podem faltar em uma comunidade de seguidores de Jesus? Nossa comunidade cristã é “curadora” e “cuidadora”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
09.12.2013
“...encontraste graça diante de Deus” (Lc 1,30)
Certamente, cada “concepção” é um “mistério” de vida sagrada. Cada concepção é “in-maculada” e cada princípio de vida é santo, desde o “ventre” da mãe. Hoje a liturgia celebra a festa da Concepção, dia do amor “secreto” de Joaquim e Ana, dia que marca o princípio do que será o caminho aberto na vida de Maria, que começa já no “ventre santo” de sua mãe.
Para além da realidade do puro pensamento, o “dogma da Imaculada” pertence á esfera do sentimento cristão. Nesse contexto, a comunidade cristã quis descobrir um “lugar de graça”, uma experiência, uma vida “sem pecado”, e viu que Maria, a Mãe de Jesus, é também Imaculada.
O “dogma da Imaculada” não é um dogma que se impõe à razão e que é preciso crer à força (isso seria imposição doutrinal), mas é o que ilumina e impulsiona o pensamento e o sentimento dos cristãos. Nesse sentido, um dogma que nos faz “sentir Maria”. Esse dogma expressa o fato misterioso de que ela foi transparente ao desejo de Deus, dialogando com Ele em liberdade, fazendo-se mãe do Filho divino. É um dogma aberto a todos os homens e mulheres que, por sua fé e seu compromisso, querem superar a trava do pecado, abrindo-se à vida pura da terra limpa, do amor imaculado, da justiça universal.
“Sentir Maria” é reencontrar em nós mesmos aquilo que diz sim à vida, quaisquer que sejam as formas que esta vida tomar. “Sentir Maria” é superar toda expressão de desconfiança, de dúvida, de temor diante daquilo que a vida vai nos dar para viver. É assim que se fala de Imaculada Conceição. O Verbo é concebido no que há de mais imaculado no ser humano, no que há de mais completamente silencioso e íntimo. Isto supõe que haja no mais profundo da pessoa um lugar onde não existe limitação, mas a fonte de onde nasce a vida.
Em todos nós, algo de bom, de inocente, de imaculado, continua a dizer “sim” ao incompreensível Amor... O ser humano é “capaz de Deus”. É preciso encontrar, entre nós mesmos, este lugar por onde entra a vida, este lugar por onde entra o amor. É uma experiência de silêncio, uma experiência de intimi-dade, alguma coisa de mais profundo do que aquilo que se chama o pecado original.
Charles Peguy dizia que “Maria é mais jovem que o pecado”. Isto quer dizer que existe em nós alguma coisa de mais jovem e de mais profundo, anterior ao pecado, que é a beatitude original. Falamos demais sobre o pecado original e muito pouco sobre a beatitude original. Existe em nós uma realidade mais profunda que a nossa resistência, um sim mais profundo que todos os nossos “nãos”, uma inocência original que todos os nossos medos e feridas... É preciso encontrar a confiança original.
Maria é o estado de confiança original. Assim, os Antigos Padres viam nela um arquétipo da beatitude original, a mulher da pura confiança, do sim original Àquele que É.
Maria é a nossa verdadeira natureza, é a nossa verdadeira inocência original, aberta à presença do divino.
Mas Maria não é Imaculada só (e sobretudo) em sua Concepção, senão em sua vida inteira; Ela se faz Imaculada, em atitude constante de diálogo com Deus e de abertura (entrega) ao serviço dos outros, por meio de Cristo, seu filho. Não reservou nada para si, tudo colocou nas mãos de Deus, para serviço e libertação da humanidade. Maria não dialoga com Deus para si mesma, senão em nome de todos os homens e mulheres e para o bem do mundo inteiro. Rompe assim a cadeia de mentiras, de egoísmo e de violência que tem suas raízes na origem da humanidade. Este é um dogma da Igreja que se reconhece em Maria e que quer também ser “imaculada”, colocando-se a serviço da obra libertadora de Deus.
Por isso dizemos que Maria é Imaculada com todos, por todos, para todos, para “nosso próprio bem e salvação”. Nesse sentido dizemos que ela é Imaculada como referência única de uma humanidade que também é capaz de escutar Deus e de responder-lhe; ela é Imaculada porque nos “des-vela” que também nós podemos romper as amarras que nos desumanizam; ela é Imaculada porque “re-vela” que o ser humano é “lugar” de abertura a Deus, que é possível viver em liberdade, dialogando com os outros, a serviço da comunhão e da vida.
Maria é o verdadeiro Templo, é espaço de presença do Espírito, lugar sagrado onde habita a divindade para, a partir dela, expandir-se depois a todo o povo. Ela é lugar de plenitude do Espírito, terra da nova criação, templo do mistério. Evidentemente, esta presença é dinâmica: o Espírito de Deus está em Maria para fazê-la mãe, lugar de entrada do Salvador na história. Ela não é um instrumento mudo, não é um meio inerte que Deus se limitou a utilizar para que fosse possível a Encarnação. Maria oferece ao Espírito de Deus sua vida humana para que através dela o mesmo Filho Eterno possa entrar na história.
Toda envolvida pelo amor divino, Maria soube colocar-se, em total disponibilidade, nas mãos de Deus, para cumprir sua santa vontade: “Eis a serva do Senhor, faça-me em mim conforme a tua palavra”. Por isso a “Imaculada Conceição” é um dogma teologal, ou seja, expressa a certeza de que Deus quis comunicar-se de maneira transparente com os homens; buscou e encontrou em Maria uma interlocutora privilegiada, capaz de escutá-lo e responder-lhe, compartilhando seu mesmo desejo de Vida plena. É um dogma sobre Deus, que não quer o “pecado” dos homens e mulheres, mas o amor que cria e dá a vida.
Uma tal comunhão com Deus excluía qualquer traço de egoísmo e de pecado. Só a plenitude da graça (“cheia de graça”) permitiu-lhe ser totalmente despojada de si para cumprir o projeto de Deus. Daqui brota a fé de que Maria, mesmo antes de nascer, foi preservada do pecado.
A festa da Imaculada Conceição leva-nos, portanto, a pensar em Maria como aquela que, movida pela Graça realizou-se como pessoa que acolhe o desejo de Deus e lhe corresponde com seu mais profundo desejo. Ao encarnar-se por meio dela, Deus não se impôs a partir de cima ou de fora, mas deseja e pede sua colaboração; por isso lhe fala e espera sua resposta, como indica o texto de Lucas, uma cena simbólica que pode apresentar-se como diálogo do consentimento: Maria respondeu a Deus em gesto de confiança sem fissuras; confiou n’Ele, lhe deu sua palavra de mulher, pessoa e mãe. Ambos se uniram para compartilhar uma mesma aventura de amor e de graça, a história divino/humana do Filho eterno.
Para isso, a liturgia desta festa nos convida a focar a atenção no momento da Encarnação de Jesus, como fruto de um profundo diálogo entre Maria e o anjo de Deus. É no seu diálogo de amor fecundo com Deus que podemos e devemos afirmar que Maria é Imaculada. Nessa linha, a Igreja pode afirmar que Maria é (e foi se fazendo) Imaculada ao dialogar com Deus em profundidade pessoal.
Deus mesmo quis conduzi-la desde o momento de sua origem humana (concepção), como conduz cada homem e cada mulher que nascem neste mundo. Ali onde um frágil ser humano (uma mulher e não uma deusa), pode escutar Deus em liberdade e dialogar com Ele em transparência, surge o grande milagre: o Filho divino já pode existir em nossa terra.
Texto bíblico: Lc 1,26-30
Na oração: entoar um hino de louvor, reconhecendo as “maravilhas” de Deus em sua vida; dar-se conta das beatitudes originais presentes no seu interior: compaixão, bondade, mansidão, busca da justiça e da paz...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
02.12.2013
“Vigiai, porque não sabeis em que dia vem o vosso Senhor” (Mt 24,42)
1º Dom. Advento
Advento de novo? Um Advento a mais ou nova oportunidade? Sim, mais uma vez estamos começando o tempo litúrgico do Advento. O risco é vivê-lo como “mera repetição”, como um “tempo parecido” com o tempo anterior.
Na realidade, cada Advento, por mais parecido que seja ao anterior, é totalmente diferente; ele é original e único, porque as esperanças são novas, os projetos são novos, a vida se renova sempre, o seguimento de Jesus Cristo se aprofunda sempre mais...
Não esqueçamos que o Advento é toda uma possibilidade de vida que temos à frente. Por isso o grande grito deste primeiro domingo é “Vigiai” porque “não sabeis quando virá o vosso Senhor”. Ninguém vigia o passado que já passou e já não existe mais. Vigiamos o que está por vir, o que está vindo. A vigilância olha sempre o futuro. Um futuro que depende de Deus e depende de nós. Porque uma coisa é a ação de Deus em cada um de nós neste tempo do Advento e outra coisa é o que nós fazemos para que algo novo aconteça.
Nós mesmos somos um “advento”, porque nosso futuro humano depende do que esperamos. Haverá aqueles que já não esperam nada. Haverá outros que esperam algo novo, mas duvidam. E haverá aqueles que esperam o novo e dedicam sua vida a criá-lo já agora. Porque em cada momento definimos nossas vidas; em cada momento algo surpreendente pode acontecer em nossa vida; em cada momento nossa vida pode apagar-se ou pode rejuvenescer-se.
No evangelho de hoje, as duas pequenas parábolas insistem na atitude da vigilância. A primeira delas nos adverte com uma intencionalidade clara: o maior inimigo da vigilância é a dispersão, revestida de rotina e apego ao costumeiro (“comer, beber, casar-se”). Viver vigilantes para olhar mais além de nossos pequenos interesses e preocupações. Na segunda, a insistência se situa na importância de “estar vigilante”, porque o que está em jogo é nada menos que a segurança da “casa”, ou seja, a consistência da própria pessoa. Tanto nos sonhos, como nos contos e nas parábolas, a casa é um símbolo arquetípico da pessoa. A partir desta perspectiva, a mensagem de Jesus é um chamado a tomar consciência de quem somos, favorecendo a atitude que nos permite “construir-nos” – a vigilância – e estando atentos àquela outra que nos “rompe” ou arruína – a dispersão.
Podemos compreender melhor o que ambas atitudes indicam quando as relacionamos com a atenção, entendida como a capacidade de viver no momento presente. A dispersão é o estado habitual de quem se encontra identificado com seus pensamentos, sentimentos, emoções ou reações, ignorando sua verdadeira identidade.
A vigilância, pelo contrário, refere-se à capacidade de não perder-se no emaranhado dos pensamentos nem cair na armadilha das solicitações externas. Requer, portanto, a atitude própria do sentinela: situado estrategicamente em lugares altos e de amplos horizontes, ele recebe a delicada missão de observar, discernir e anunciar, para defender a vida do povo. Tal missão implica numa vigilância investigadora do horizonte, onde se fazem perceptíveis os “sinais”, ou até mesmo os indícios de que algo importante para a vida do povo está prestes a acontecer. Por isso, o sentinela está treinado para “olhar” a grandes distâncias, para “olhar” com precisão. Seu “olhar” investigador, aguçado pelo amor ao povo e a fidelidade à missão, está em alerta permanente.
Graças a essa distância e observação, vamos descobrindo em nós e em nossa realidade sinais de uma Presença que vem, que está vindo... em nossa direção. De fato, onde colocamos nossa atenção, aí estará nossa vida (ou nossa falta de vida). A maneira como focamos nossa atenção é fonte de equilíbrio ou de desequilíbrio, de harmonia ou de desarmonia...
Viver em vigilância contínua é estar em atitude de exploração e rastreamento, é nos deixarmos ser surpreendidos, conduzidos, desafiados e, em última instância, transformados pelo Espírito de Deus.
Precisamente a vigilância é rastrear, descobrir os “espíritos-sopros-inspirações” do Espírito no ritmo da vida cotidiana e em meio á realidade que nos cerca.
Rastrear-descobrir-deixar-se conduzir: este é o movimento do tempo do Advento.
Vivemos num contexto marcado pela “dispersão”, seduzidos por estímulos ambientais, envolvidos por apelos vindos de fora, cativado pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizado por ofertas alucinantes...
E então, nós nos esvaziamos, nos diluimos, perdemos a interioridade e... nos desumanizamos.
A pessoa “dispersa”, por não ter um horizonte de sentido que a atraia, fixa-se no cenário externo, agarra-se ao mundo circundante, apega-se às coisas, na ilusão de alcançar uma segurança almejada. Ela foge de si mesma, tem medo de encontrar-se. Por isso, acompanha o ritmo dos outros, repete a linguagem dos outros, adota os critérios dos outros, e acaba sendo influenciada e dominada por pressões e hábitos externos.
A “dispersão” corrói a interioridade da pessoa e dissolve aquilo que é mais nobre em seu interior. Longe de uma humanidade dinâmica, operante, ousada... o que a pessoa deixa transparecer é uma humanidade neutra, apática, estagnada; é humanidade lenta, afogada na “normose”, estacionada na repetição dos gestos e dos passos. Ela gira em torno de si mesma e não consegue fazer um salto libertador. Isso tudo leva a pessoa a debilitar-se, provocando a redução da vitalidade humana em vez de favorecer o crescimento pessoal.
“Dispersão” quer dizer estar espalhado, estar ocupado em muitas coisas e em diversas direções ao mesmo tempo, estar ausente, esquecido, dividido, distante, apenas por cima das coisas.
Pessoa “dispersa” é massa anônima empurrada pela multidão, vive na superfície de si mesma, desconectada da fonte interior, desarticulada e ocupada com o que não é essencial.
Advento é tempo propício – “kairós” - para ajudar a superar nossa “dispersão” e poder recuperar a densidade humana interna. Para isso, precisamos entrar em “estado de vigilância”, repensar a interioridade perdida, reconquistar a autodeterminação.
E “vigiar” não é repetir-se, mas re-descobrir-se, re-inventar-se, re-encontrar-se, buscar-se de novo.
“Vigiar” é re-ajuntar as energias humanas que haviam sido dispersas e canalizá-las para reabrir horizontes fechados e gerar diferenças originais fecundas.
“Vigiar” é acordar a autonomia adormecida e emancipar-se, ser pólo de afirmação pessoal e social. É indispensável colocar “ordem” por dentro e descobrir que a pessoa pode inventar-se a cada dia, a cada passo, conduzindo conscientemente a vida em direção à plenitude e não arrastá-la pelo chão.
Quem está em “estado de vigilância” tem a coragem de redefinir-se, de eleger, de assumir-se; é alguém preparado para dar um salto arrojado e criativo.
É nessa direção que o “tempo do Advento”, centrado n’Aquele que vem, mobiliza e re-ordena todas as dimensões da vida e propõe um caminho de humanização. Ele desafia cada um a assumir o potencial humano criativo que estava latente em seu interior.
Estar atentos e vigilantes é uma condição humana e cristã para viver intensamente; viver distraídos e dispersos é perder as oportunidades de muitos encontros, é deixar que o outro passe ao nosso lado sem nos darmos conta, é deixar que Deus passe sem que o percebamos, é deixar passar o momento em que Ele nos chama e perdemos a oportunidade de dar uma resposta vivificadora.
Viver é estar atentos à vida, a nós mesmos, aos demais. Viver é estar atentos às ocasiões únicas, às oportunidades que não voltam; viver é estar com os olhos abertos para contemplar, é estar com os ouvidos atentos para escutar.
Texto bíblico: Mt 24,37-44
Na oração:
-Em quê dimensões da vida você sente a força desagregadora da “dispersão”?
-“Vida atenta” é vida com largos horizontes: neste Advento, o que você está “lendo” no seu horizonte pessoal, social, profissional, familiar, religioso...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
25.11.2013
“Acima dele havia um letreiro: ‘Este é o rei dos judeus’” (Lc 23,38)
Rei, não há outra palavra menos apropriada para Jesus.
Jesus, rei atípico. Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos.
Jesus reina perdoando, amando e comunicando vida a partir de uma situação de humilhação e impotência extremas.. Um rei crucificado é uma contradição e um escândalo. Lucas nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até à morte. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres, de liberdade e justiça, de solidariedade e de misericórdia.
O título de Cristo Rei corre o risco de ser utilizado de uma forma pagã, como uma pura imitação dos reis deste mundo. O triunfalismo religioso e político tem utilizado este título para defender ideias dominadoras, triunfalistas e conservadoras.
Esse é o maior paradoxo da história humana: o Crucificado é esperança dos pobres, dos pecadores e de todos os sofredores. Jesus é Rei desta forma e não da forma triunfalista como querem os cristãos “gloriosos”. Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia dos excluídos e não dos poderosos deste mundo. Um rei que lava os pés dos seus, um rei que não tem dinheiro e que não pode defender-se, que não tem exército... Um rei sem trono, sem palácio, sem exército, sem poder.
Jesus crucificado é um estranho rei: seu trono é a Cruz, sua coroa é de espinhos. Não tem manto, está desnudo. Até os seus o abandonaram. Pobre rei!
Por isso, para poder aplicar a Jesus o título de “rei”, devemos despojá-lo de toda conotação de poder, força ou dominação. Jesus sempre se manifestou contrário a todo tipo de poder. E não só condenou aquele que submete como também condenou, com a mesma veemência, aquele que se deixa submeter.
Jesus quer seres humanos completos, isto é, livres. Ele quer seres humanos ungidos pelo Espírito de Deus, que sejam capazes de manifestar o divino através de sua humanidade. Tanto o que escraviza como o que se deixa escravizar, deixa de ser humano e se afasta do divino.
Jesus quer que todos sejamos reis, ou seja, que não nos deixemos escravizar por nada nem por ninguém. Quando responde a Pilatos, não diz “sou o rei”, mas “sou rei”; com isso, está demonstrando que não é o único, que qualquer um pode descobrir seu verdadeiro ser e agir segundo esta exigência. Há uma nobreza presente em nosso interior e que é ativada no encontro com o outro, através da compaixão, do serviço, do amor solidário...
Devemos estar conscientes de que o sentido que queremos dar a esta festa não é aquele dado pelo papa Pio XI, há mais de 80 anos e nem mesmo aquele sentido que é dado pela maioria dos cristãos. Devemos conservar o título, mas mudar a maneira de entendê-lo, ou seja, com o Evangelho na mão podemos continuar falando de “Jesus rei do universo”.
Jesus será “Reino do Universo” quando a paz, o amor e a justiça reinarem em todos os rincões da terra, quando todos sejamos testemunhos da verdade, quando em todos os ambientes a mesa do Reino se tornar mesa de inclusão e de acolhida... Jesus será Rei quando estivermos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão pendurados nela.
O Evangelho da festa de hoje faz parte da narração da Paixão de Jesus. Fixemos nosso olhar nos personagens que assistem ao tremendo espetáculo da crucifixão. O povo estava ali olhando. Não é a multidão que habitualmente O segue, mas pessoas que assistem com curiosidade zombadora. Os chefes, as autoridades religiosas escarneciam de Jesus. Eles conservavam a ideia de um Messias triunfal. Tem um Deus feito à medida de seus interesses. A mensagem de Jesus não os afetou. Julgam-se em posse da verdade.
Os soldados também lhe zombavam. Aproximavam-se dele para dar-lhe vinagre. Os executores da violência do poder romano não podiam entender um rei que não fazia nada para defender-se. O letreiro também indicava ironia: “Este é o rei dos judeus”.
Um dos ladrões o insultava: “Não és tu o Messias? Pois salva-te a ti mesmo e a nós”.
Ninguém parece ter entendido Sua vida e Sua mensagem. Ninguém compreendeu seu perdão aos algozes. Ninguém viu em seu rosto o olhar compassivo do pai. Ninguém percebeu que, pendente da Cruz, Jesus se unia para sempre a todos os crucificados e sofredores da história.
Mas, em meio aos escárnios e zombarias, brota do coração de um dos condenados uma surpreendente invocação: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu reinado”. Não se trata de um discípulo ou seguidor de Jesus. Lucas nos apresenta um ladrão como admirável exemplo de fé no Crucificado, que no último instante de sua vida “roubou” a promessa de Vida que acontece no “hoje”. “Hoje estarás comigo no paraíso”. A narrativa lucana é muito provocativa: o único que o reconhece Jesus como rei é um condenado à morte, um maldito, um marginalizado da lei. Este está mais perto do reinado de Deus que as autoridades religiosas e as demais pessoas. Por isso Jesus o acolhe como companheiro inseparável. Juntos morrerão crucificados e juntos entrarão no Reino de Vida.
À primeira vista parece um paradoxo que dos lábios de um homem aparentemente derrotado e praticamente moribundo, brote uma palavra de vida, acompanhada de uma certeza que a faz eterna, ou seja, válida para todo momento, em um presente sempre atual: o “hoje” de Lucas significa “todo momento”, qualquer instante em que ouvintes ou leitores se abrem à Palavra.
A resposta de Jesus diante dos insultos é o silêncio carregado de mistério. Silêncio que poderia ser interpretado como impotência resignada ou reconhecimento do fracasso. No entanto, Ele transforma a onda de insultos em manifestação de misericórdia e salvação. Desse modo, o evangelista parece estar nos dizendo: “Essa Palavra é válida também para ti, hoje, desde que sejas capaz de abrir-te a ela e acolhê-la. Também para ti há uma promessa de vida, que não se acaba na fronteira da morte. Tu também ‘hoje estarás comigo no paraíso’”
Assim compreendida, a narração nos apresenta uma dupla questão: por um lado, como pôde Jesus pronunciar essa Palavra de Vida nessas circunstâncias de morte?; por outro, como podemos acolhê-la, de modo que sejamos alcançados e vitalizados por ela?
A festa de “Cristo Rei” nos convida também a tomar a Cruz e “descer” com Jesus até à cruz da humanidade.
A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, nos fazem descer aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o Crucificado, identificado com os crucificados da história.
Entende-se, assim, o grande “grito” que brotou das profundezas da dor de Jesus na Cruz e que continua ecoando como clamor angustiado. Nele se condensam todos os gritos da humanidade sofredora. Ao ecoar seu grito junto aos crucificados, provocará grandes novidades. Um grito que não fica no vazio, mas aponta para a vida.
Texto bíblico: Lc 23,35-43
Na oração: o Crucificado desmascara nossas mentiras e covardias; pendente na Cruz Seu grito denuncia o aburguesamento de nossa fé, a nossa acomodação ao bem-estar e nossa indiferença diante daqueles que sofrem. Celebrar a festa do “Cristo Rei” é nos aproximar mais dos crucificados da nossa história e comprometer-nos a tirá-los da Cruz.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
19.11.2013
“Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra que não seja demolida!” (Lc 21,6)
“Um peregrino percorria seu caminho quando certo dia passou diante de um homem que parecia ser um monge e que estava sentado no campo.
Perto dali, outros homens trabalhavam em um edifício de pedra.
- “O senhor parece um monge”- disse o peregrino.
- “Sim, sou um monge”- respondeu o monge.
- “Quem são aqueles que estão trabalhando no edifício?”
- “Meus monges”- respondeu – “Eu sou o abade”.
- “É magnífico”- comentou o peregrino – “É estupendo ver levantar um mosteiro”.
- “Nós o estamos derrubando”- disse o abade.
- “Derrubando-o?”- exclamou o peregrino – “Por que?”
- “Para poder ver o sol nascer todas as manhãs” - respondeu o abade”.
Estamos chegando ao final de mais um tempo litúrgico (Tempo Comum); fizemos uma longa “caminhada contemplativa”, tendo os olhos fixos em Jesus e deixando-nos ensinar por Ele. Hoje, mais uma vez, ressoa forte em cada um de nós, o apelo de Jesus: é preciso “sair dos próprios muros”, remover as pedras que foram soterrando a vida dentro de nós, derrubar as muralhas que cercam nosso coração.
O contexto é a presença de Jesus no Templo de Jerusalém e a admiração dos discípulos diante da grandeza e da beleza do edifício. No entanto, Jerusalém e o Templo traíram sua missão e serão destruídos pois se fecharam em suas fronteiras, em suas seguranças e não acolhem a transformação interior que Jesus trouxera. Com toda a sua beleza e grandiosidade o Templo carrega sinais de morte dentro de si. A destruição do santuário é para Jesus a consequência do fechamento interior e recusa a acolher a novidade do Reino. Não só o Templo, mas as realidades que parecem intocáveis e eternas devem cair para que seja possível a Nova Jerusalém, humana e humanizadora.
Jesus, ao falar da destruição do Templo de Jerusalém não estava interessado na destruição dos edifícios, e sim, na destruição da vaidade e do orgulho humano; não vislumbrou a ruina dos muros e das pedras, e sim a ruína da vanglória. Sua presença rompe muralhas, afasta as pedras que impediam a manifestação da Vida.
Dizer: “não ficará pedra sobre pedra” é o mesmo que dizer: “não ficará orgulho sobre orgulho, opressão sobre opressão, injustiça sobre injustiça…” Há muitas pessoas encerradas em seus próprios muros... pessoas fechadas em si mesmas, em seus interesses, vivendo um universo de egoísmo e exclusão. Vivem separadas dos outros, e quando encontram pessoas semelhantes criam verdadeiros cemitérios ao seu redor.
Cobrimo-nos de pedras, rodeamos nosso coração de muros, construímos muralhas que nos afastam dos outros e de Deus. É o que somos convidados a fazer: destruir o templo de Jerusalém da solidão, fechamento, angústia, alienação, indiferença, rancor, medo e insegurança… Precisam desparecer os templos abusivos onde adoramos o nosso “eu” e idolatramos a riqueza, o poder, o prestígio…
É sobre as cinzas de nossas míseras ambições que o Reino de Deus plantará suas raízes. É preciso romper com as muralhas para que a Vida brote. A Vida que habita em cada um de nós. Todo ser humano é dotado de riquezas especiais e únicas, dons pessoais e insubstituíveis, um jeito de ser irrepetível... Há uma força interior que quer romper a casca e transbordar numa explosão vital multiplicadora. Mas, muitas vezes há pedras (grandes e pequenas) que impedem esta manifestação da Vida plena.
A mudança de mente, de coração, de esperança, de paradigmas... exige de nós que, de tempos em tempos, revisemos nossas vidas, conservando umas coisas, alterando outras, derrubando ideias fixas, convicções absolutas, modos fechados de viver... que impedem a entrada do sol e da brisa da manhã.
Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção. Nada mais contrário ao Seguimento de Jesus que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores...
Numa vida assim faltaria por completo o princípio da criatividade, a capacidade de questionar-se, a audácia de arriscar, a coragem de fazer caminho aberto à aventura.
Se quisermos que a nossa vida cristã tenha a marca da adesão a Jesus, é necessário compreender que somos chamados a um compromisso diferente e mais profundo: sair da reclusão de nosso mundo para entrar na grande “casa” de Deus; romper com o tradicional para acolher a surpresa; deixar a “margem conhecida” para vislumbrar o “outro lado”; desnudar-nos de ilusões egocêntricas; afastar a “pedra” da entrada do coração para poder viver com mais criatividade...
As respostas do passado às questões atuais já não satisfazem; as velhas razões para fazer coisas novas, simplesmente já não movem os corações num mundo repleto de novos desafios. Não há razão para permanecer nos castelos e mosteiros quando todas as circunstâncias mudaram. É muito tarde para reconstruir nossas vidas utilizando moldes antigos.
Estamos vivendo um tempo de mudança, mas também tempo emocionante e santo. Há um poderoso fogo sob as cinzas. Precisamos avivar a chama, acolhendo o momento presente e vivê-lo até suas últimas consequências. “Este é o tempo de graça, o tempo de salvação”.
Vivemos um momento de densidade única; participamos de uma sociedade rica pela diversidade e pelo pluralismo. No entanto, não teremos nada que oferecer a ela se não nos deixarmos “empapar” pela experiência do discipulado. Com a vida cristificada somos impulsionados a inventar constantemente, a ousar sem medo, a “deslocar-nos” sem cessar, na busca de um “novo começo”...
A possibilidade de rompermos com um hábito ou com um padrão em nossas vidas é a marca do Evangelho deste domingo. A primeira atitude é reconhecer que nossa vida está “estreita” e que precisamos nos colocar num horizonte diferente. A lucidez do seguimento nos revela que a utopia de Jesus é possível. Em Jesus acontece algo totalmente novo. Ele traz uma nova maneira de viver que não cabe nos nossos esquemas; o Seguimento é uma novidade que rompe velhos barris. “Vinho novo em odres novos”. Sentimentos novos em um coração ardente; visão nova em olhos ousados...
Para encontrar Jesus Cristo é preciso “sair”; é inútil permanecer nos templos. É preciso caminhar em direção às “periferias existenciais”, o Grande Templo onde o Vivente se deixa encontra. Afinal, vivemos mergulhados na magia do Discipulado; esta é a paixão que não nos dá repouso.
Texto bíblico: Lc 21,5-19
Na oração: Viver o Seguimento de Jesus hoje é deixar expandir tudo o que é vida dentro de nós. É contaminar de Luz as trevas que criamos e que sufocam a alegria plantada em nós desde sempre.
Deixemo-nos iluminar, levemos a Luz nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos de nosso cotidiano. Destruídos os muros e afastadas as pedras… resta caminhar..
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
11.11.2013
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